INCAPACIDADE
TESTAMENTO
NULIDADE
ANULABILIDADE
Sumário

I - Não se verifica, no caso, a incapacidade de testar do de cujus (art.º 2189 do CC), nem a nulidade prevista no art.º 2180 do CC.
II – O autor também não provou, como lhe cabia fazê-lo, que o testador se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória (art.º 2199 do CC).
III – Tendo em conta as circunstâncias da outorga do testamento e o período de tempo posterior à elaboração do testamento, as lesões psíquicas provadas não permitem concluir pela verificação de uma doença psíquica que devesse levar à aplicação da “tese móvel” adoptada pela jurisprudência para outro tipo de situações muito mais graves (em que passaria a caber ao réu, interessado na validade do testamento, fazer a prova de que o testador tinha entendido o sentido da sua declaração).

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados

A instaurou a presente acção declarativa comum contra R, pedindo que seja declarado nulo o testamento no qual o pai do autor instituiu o réu como legatário por conta da quota disponível do usufruto vitalício de uma fracção autónoma que identifica, bem como do respectivo recheio; subsidiariamente, pede que seja declarada a anulação do testamento identificado.
Alega, para tanto, em síntese, que o seu pai, na data da outorga do testamento lavrado em data próxima à data do seu falecimento, não tinha capacidade para querer e entender o alcance desse acto, nem sequer para se exprimir claramente; aduz que, em face das doenças de que padecia, o pai não se encontrava com as faculdades mentais necessárias para participar no acto notarial em crise.
O réu apresentou contestação; na parte que ainda importa, impugnou os factos base dos pedidos do autor.
Convidado a suprir a preterição de litisconsórcio necessário activo, questão levantada oficiosamente, o autor deduziu incidente de intervenção principal provocada de B, sua irmã e herdeira do de cujus, que, citada para os termos da presente acção, veio fazer seus os articulados do autor.
(este acórdão utilizou o relatório da sentença recorrida)
Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença julgando-se a acção improcedente e absolvendo o réu dos pedidos, principal e subsidiário, formulados pelo autor.
O autor recorre desta sentença, impugnando parte da decisão da matéria de facto e a decisão de absolver o réu dos pedidos.
O réu não contra-alegou.
*
Questões que importa decidir: se a matéria de facto deve ser alterada; se os pedidos deviam ter sido julgados procedentes.
*
Os factos provados que interessam à decisão destas questões foram os seguintes [o facto 20 foi eliminado e a parte final de 10 foi acrescentado ambos por força da procedência parcial da impugnação da decisão da matéria de facto]
1\ F faleceu no dia 01/09/2020, na qualidade de divorciado.
2\ Os autores são os únicos filhos do de cujus.
3\ De 10/07/2017 e até ao seu decesso, o de cujus viveu, em condições análogas às dos cônjuges, com o réu, na fracção id. em 4.
4\ Em 27/07/2020, foi lavrado por notário um testamento no qual foi outorgante o de cujus e no qual declarou «tem descendentes e que faz o seu testamento, que é o primeiro, do seguinte modo: lega, por conta da quota disponível, [ao réu], solteiro, maior, natural de B, residente na fracção a seguir identificada, o usufruto vitalício da fracção autónoma designada pela letra E do prédio urbano sito na Rua A, S, inscrito na matriz da freguesia de Uniões das Freguesias de S sob o artigo 1, bem como o respectivo recheio».
5\ Foram testemunhas da outorga do testamento AT e MF, não tendo intervindo no acto qualquer perito médico.
6\ O testamento foi lido e o seu conteúdo explicado ao de cujus.
7\ Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de S, desde 23/01/1992, sob o número 2 da freguesia de S, aquela fracção autónoma designada como «1.º esquerdo e arrecadação na cave n.º 2», sobre a qual foi inscrita, através da apresentação n.º 3 de 00/03/2021, o usufruto, com fundamento em ‘legado’, a favor do réu.
8\ Em 07/02/2020, o de cujus padecia de um tumor neuroendócrino com características de carcinóide atípico e múltiplas metástases ósseas.
9\ Em 17/02/2020, o de cujus apresentava lesões ósseas na coluna dorsal representativas de infiltração neoplásica difusa.
10\ Em 24/07/2020, o de cujus foi diagnosticado com infiltração neoplásica secundária paquimeníngea e atrofia cerebral cortical difusa.
11\ Em 31/08/2020, o de cujus padecia de neoplasia do pulmão com metastização óssea e cerebral.
12\ Em 02/07/2020, o de cujus escreveu um poema.
13\ Entre finais de Julho e inícios de Agosto de 2020, o autor pediu apoio domiciliário para acompanhamento do seu pai.
14\ Em 14/08/2020, o réu remeteu uma mensagem ao autor referindo «fale com seu pai», «ele está fora da casinha», «ele está muito confuso», «falando coisa com coisa».
15\ Em Setembro de 2020, o réu informou o autor de que a viatura pertencente ao de cujus tinha passado para o seu nome há alguns meses.
16\ O autor tomou conhecimento do teor testamento quando o seu pai ainda era vivo, tendo sido o réu quem o informou.
17\ Em vida, o de cujus manifestou a intenção de que aos seus netos (ainda não gerados ou nascidos) viessem a receber o bem imóvel identificado em 4.
18\ Até ao fim da sua vida, o de cujus conviveu com amigos, nomeadamente tomando refeições com os mesmos.
19\ Em 27/07/2020, aquando da outorga do testamento, o de cujus tinha uma saúde débil e as suas capacidades físicas limitadas, nomeadamente com dificuldades de locomoção e equilíbrio.
20\ Em 27/07/2020, aquando da outorga do testamento, o de cujus estava no pleno gozo das suas faculdades psíquicas.
*
Da impugnação da decisão da matéria de facto
Factos 6 e 20
O autor diz o seguinte contra a decisão de dar como provados estes factos:
1\ O autor juntou prova documental de que o falecido (testador) não tinha capacidade de testar, designadamente do foro neurológico e ou psiquiátrico para outorgar o testamento aqui em crise.
2\ Qual seja: descrição de consultas externas de 07/02/2020 constante do processo clínico do falecido (docs.5 e 6 da PI); relatório de 17/02/2020 da tomografia computorizada a coluna dorsal do falecido (doc.7 da PI); relatório de 24/07/2020 da ressonância magnética cerebral do falecido (doc.8 da PI); relatório de 31/08/2020 de urgência do falecido (doc.9 da PI); mensagem de 14/08/2020 do réu para o autor (doc.10 da PI); parecer psiquiátrico-forense documental post-mortem do falecido de 29/09/2023 (fls. 118 verso a 124 dos autos).
3\ Na verdade, em 24/07/2020, para além das lesões vasculares que condicionavam já atrofia cerebral difusa, a ressonância magnética cerebral do falecido revelou múltiplas metástases cerebrais, dispersas por várias áreas, algumas delas causando efeito de massa locorregional, com uma imagem sugestiva de infiltração secundária da hipófise, não podendo ser afastada a hipótese de uma 2ª neoplasia (macroadenoma hipofisário).
4\ Portanto, em 24/07/2020, ou seja, 3 dias antes da celebração do testamento, o falecido já sofria de atrofia cerebral difusa e múltiplas metástases celebrais dispersas por várias áreas, algumas delas causando efeito de massa locorregional, como resulta do doc.8 da PI).
5\ O tribunal a quo erradamente, de uma forma grosseira, não valorizou o doc.8 da PI, que, conjugada com a restante prova, teria chegado a outra conclusão designadamente com a procedência da acção.
6\ Por outro lado, o referido parecer psiquiátrico concluiu o seguinte:
1/ O falecido padecia de Perturbação Neurocognitiva Major (CID-1017: F 00.9, OMS18, 1992), i.e., de síndrome demencial, muito provavelmente de etiologia mista, com componente vascular, que se terá manifestado em data não concretamente apurada, mas que se encontra documentada em exames complementares de diagnóstico, nomeadamente uma Ressonância Magnética Cranioencefálica (RM-CE) que em 24/07/2020 já revelava alterações neuroanatómicas de natureza microvascular (Fazekas grau 3) com atrofia cerebral cortical difusa. 2/ No ano 2019 terá sido diagnosticada Neoplasia do Pulmão (CID-10: C 34, OMS, 1992), nomeadamente tumor neuroendócrino com aspectos histológicos sugestivos de carcinóide atípico. 3/ Desconhecem-se pormenores do acompanhamento realizado no Hospital, sendo que em Fevereiro de 2020 passou a ser seguido na Consulta de Pneumologia Oncológica do Hospital, tendo iniciado tratamento com Lanreotida. 4/ No final do ano 2019 terá perdido a visão de um dos olhos, o que muito provavelmente se terá devido à existência de metástases cerebrais ao nível do quiasma óptico e do girus fusiforme, conforme veio a ser documentado na RM-CE; da mesma forma apresentava queixas de desequilíbrio, o que se deveria à metástase a nível do cerebelo, bem como à atrofia cerebral difusa. As lesões cerebrais condicionariam assim dificuldades visuais, perceptivas e motoras, motivo pelo qual teria seguramente (muita) dificuldade em ler, escrever e assinar. Não podem ainda ser excluídos outros sintomas psiquiátricos, muitas vezes presentes em indivíduos com tumores neuroendócrinos, como era o caso. 5/ Com o passar do tempo o estado físico e mental do falecido ter-se-á agravado, passando a necessitar de cuidados de terceira pessoa para a maioria das actividades de vida diária, que seriam asseguradas pelo companheiro e pelo filho – que o visitaria regularmente e que nesse período esteve em teletrabalho em virtude da situação pandémica por COVID-19 – sendo que no final da Primavera de 2020 terá sido solicitado apoio domiciliário para complementar os cuidados prestados, dado o grau de dependência que já apresentaria. 6/ Em 24/07/2020, para além das lesões vasculares que condicionavam já atrofia cerebral difusa, a RMCE revelou múltiplas metástases cerebrais, dispersas por várias áreas, algumas delas causando efeito de massa locorregional, com uma imagem sugestiva de infiltração secundária da hipófise, não podendo ser afastada a hipótese de uma 2ª neoplasia (macroadenoma hipofisário). 7/ No dia 14/08/2020 está documentado num SMS do companheiro para o autor, que falecido estava “muito confuso. Falando coisa com coisa”, o que é compatível com fase terminal da doença, com falência multiorgãos e estado confusional quase permanente ou, pelo menos, com intervalos lúcidos apenas breves e esporádicos. 8/ No dia 31/08/2020, o de cujus foi levado ao Serviço de Urgência do Hospital por prostração, dispneia e febre, em estado confusional, vindo a falecer no dia seguinte. 9/ Apesar de não termos tido acesso a outros registos/documentos clínicos e de não termos tido oportunidade de entrevistar pessoas que tenham privado com o falecido nos últimos meses de vida, dúvidas não subsistem que o mesmo era portador de situação de saúde/anomalia psíquica permanente, progressiva e irreversível, em estádio avançado, com importante impacto na visão, na escrita e na locomoção. Do ponto de vista cognitivo, existem fortes indícios que à data da outorga do testamento existissem défices importantes que dificultariam a análise e implicações do acto testamentário. 10/ Com efeito, existem fortes indícios que à data da outorga do testamento o falecido apresentaria situação de saúde/anomalia psíquica que o incapacitava de exercer, de forma plena e consciente os seus direitos e de, da mesma forma, cumprir os seus deveres, necessitando de apoio de terceiros para várias actividades de vida diária, nomeadamente avançadas, instrumentais e até básicas. 11/ Existem ainda fortes indícios que a autonomia, a capacidade de tomada de decisões e a gestão da sua pessoas e bens se mostrava já comprometida nessa data e que, fruto da patologia de que padecia, seria susceptível à influência de terceiros, sem ser capaz de perceber se nestes existia uma intenção de benefício ou prejuízo. 12/ Em virtude dos fortes indícios de debilidade física e cognitiva, estamos em crer que deveria o Sr. Notário ter tido especial zelo e cautela e, tal como previsto no artigo 67/4 do Código do Notariado, ter solicitado a presença de “peritos médicos para abonarem a sanidade mental dos outorgantes” ou, pelo menos, declaração médica contemporânea ao acto, atestando pela capacidade para outorga do testamento nos exactos e precisos termos em que o mesmo foi outorgado. 13/ Pelo exposto, consideramos que se justifica ser realizada perícia médico-legal por entidade independente – o Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses – para avaliação retrospectiva da capacidade testamentária do falecido devendo o perito ter acesso a dados adicionais que possam confirmar ou rebater a hipótese que nos parece muito provável de que no dia 27/07/2020 o falecido não estaria no pleno gozo das suas faculdades mentais e que, muito provavelmente, já não teria capacidade para exercer o direito pessoalíssimo de testar, sendo que tal facto seria notório para uma pessoa de normal diligência.
7\ Portanto, este parecer tem uma base científica, objectiva e que, naturalmente por motivos éticos e deontológicos, não foi manipulado no sentido de corresponder às expectativas do autor.
8\ O tribunal a quo não relevou, erradamente, este elemento de prova, atacando-o com a prova testemunhal da Srª advogada M e o senhor notário, pessoas com interesse subjectivo na boa decisão da causa. A primeira, porque o réu é patrocinado pelo seu escritório nestes autos e o segundo, porque, naturalmente, não vai confirmar que realizou um testamento, no qual o testador não tinha capacidade de estar.
9\ Aliás, a prova testemunhal é uma prova muito menos segura, ou seja, muito mais falível, do que a prova documental que foi junta pelo autor e que o tribunal desvalorizou de sobremaneira.
[…]
12\ […A] testemunha do réu, J que prestou depoimento na sessão de julgamento de 08/11/2023 (parte da tarde) declarou que: “Nesse almoço, ocorrido em inícios de Agosto, ele (o falecido) disse que tinha casado com o réu.”
13\ Por sua vez, a testemunha do réu, E que prestou depoimento na sessão de julgamento de 08/11/2023 (parte da tarde) declarou igualmente que: “Tivemos eu e meu marido um almoço em meados de Agosto e o falecido disse: “Eu casei com o réu.”
14\ Este almoço sucedeu em Agosto de 2020, muito pouco tempo de depois da outorga do testamento (27/07/2020) e é claro que o falecido ficou com a convicção de que tinha ido ao Notário para casar e não outorgar um testamento.
15\ Por isso, afirmou expressamente que tinha casado com o réu às testemunhas J e E.
16\ Por outro lado, no facto 11 consta que em 31/08/2020, o de cujus padecia de neoplasia do pulmão com metastização óssea e cerebral; no facto 20 consta que em 27/07/2020, aquando da outorga do testamento, o de cujus estava no pleno gozo das suas faculdades psíquicas.
17\ O autor considera que existe aqui uma clara contradição, pois é evidente que o falecido em 24/07/2020, para além das lesões vasculares que condicionavam já atrofia cerebral difusa, sofria de múltiplas metástases cerebrais, dispersas por várias áreas, algumas delas causando efeito de massa locorregional, com uma imagem sugestiva de infiltração secundária da hipófise, não podendo ser afastada a hipótese de uma 2ª neoplasia (macroadenoma hipofisário), como resulta do doc. 8 da PI (Ressonância Magnética Cerebral) da conclusão 6/6 da aludido parecer.
18\ Donde, é manifesto que o falecido não estava na plenitude das suas faculdades psíquicas na data da outorga do testamento, e, no espaço de 1 mês, não se pode considerar que perdeu a plenitude das suas faculdades psíquicas, tal asserção vai contra a prova documental, os princípios médicos e das regras da experiência comum.
19\ É certo que o testamento não foi lido e o seu conteúdo não foi explicado ao falecido.
20\ Aliás, o tribunal deu como provado em 17 que: “Em vida, o de cujus manifestou a intenção de que aos seus netos (ainda não gerados ou nascidos) viessem a receber o bem imóvel identificado em 4.”
21\ Contudo, no testamento, o falecido, na qualidade de testador, instituiu o réu como legatário, por conta da quota disponível, do usufruto vitalício do imóvel em causa, bem como o respectivo recheio.
22\ Ora sucede que a esperança média de vida nos homens situa-se actualmente em cerca de 80 anos.
23\ O réu tinha 44 anos à data da outorga do testamento, pois nasceu em 1976.
24\ Donde, o réu tem a perspectiva de viver no imóvel mais cerca de 36 anos, pois beneficia do usufruto vitalício da referida fracção e do respectivo recheio.
25\ Os próximos netos do falecido que nascerem num futuro próximo – uma neta já nasceu, entretanto - terão de aguardar mais de 36 anos para poderem usufruir plenamente o aludido imóvel!
26\ Não era esta a vontade real do falecido, pelo que é manifesto que não quis outorgar o aludido testamento, nem foi esclarecido do alcance e implicações deste acto notarial.
[…]
*
O tribunal recorrido não considerou como provadas as seguintes afirmações de facto que tinham sido feitas pelo autor:
(a) As perdas de equilíbrio e quedas de de cujus eram muito frequentes.
(b) de cujus não ditou os termos constantes do testamento que outorgou.
(c) Em 27/07/2020, aquando da outorga do testamento, de cujus não tinha capacidade para se exprimir.
(d) Em 27/07/2020, aquando da outorga do testamento, de cujus não tinha capacidade para querer e entender o alcance do seu acto.
(e) Em 27/07/2020, aquando da outorga do testamento, de cujus estava incapaz de reger a sua pessoa e bens.
(f) Em 27/072020, aquando da outorga do testamento, de cujus não tinha o livre exercício da sua vontade, face à pressão constante do réu.
(g) As testemunhas que intervieram na outorga do testamento bem sabiam que de cujus não se encontrava em condições de praticar tal acto.
O autor, com base na argumentação transcrita para a questão dos factos 6 e 20, diz, sem mais, que deviam ter sido dadas como provadas as afirmações de (a) a (g).
*
O tribunal recorrido tem a seguinte fundamentação da convicção que, de um modo ou de outro, tem a ver com estes factos, ou com o que o autor diz sobre ela e sobre aquilo que o autor invoca:
Em relação aos factos 4, 5 e 6 o tribunal tomou em consideração o teor do documento intitulado «testamento público de de cujus» (fls. 19 a 21), documento autêntico (cf. art.º 369, n.ºs 1 e 2 do CC, art.º 35, n.ºs 1 e 2 do Código do Notariado) e que faz prova plena dos factos atestados pela entidade que o exarou (cf. art.º 371/1 do CC).
Como se deixou dito, um documento autêntico, como é o testamento, tem força probatória plena quanto às acções ou percepções do Notário que o exarou, que só podem ser ilididas com base na sua falsidade.
Ora, in casu, nenhum dos concretos factos referidos no testamento como tendo sido praticados e percepcionados pelo Notário – as circunstâncias em que o acto ocorreu (data, local, presença do testador, identificação das testemunhas, leitura e explicação do conteúdo do acto) e o lhe que foi declarado pelo testador – foi contrariado pela restante prova produzida, pelo que o documento em causa faz prova plena em relação à materialidade dos factos exarados.
[…]
Os factos descritos em 8, 9, 10 e 11 relativos às condições de saúde apresentadas, ao longo de 2020, pelo de cujus, resultaram provados por via da falta de impugnação pelo réu, nos termos do disposto no art.º 574/2 do CPC, corroborados pela documentação clínica junta aos autos, nomeadamente, «diário médico» elaborado após consulta externa multidisciplinar de pneumologia oncológica (fls. 25 a 26), relatório da tomografia computorizada à coluna dorsal (fls. 27), ressonância magnética cerebral (fls. 28 e 29) e relatório de urgência (fls. 30).
[…]
Em 15, foi dado como provado que o réu informou o autor de que a viatura outrora pertencente ao de cujus se encontrava em seu nome, atenta a falta de impugnação pelo réu, nos termos do disposto no art.º 574/2 do CPC.
Questionado relativamente à aquisição da viatura, o réu alegou que esteve em causa uma «venda», na medida em que de cujus já não a conduzia, mas não quis (recusou-se) esclarecer quando é que a mesma ocorreu nem qual o valor que pagou pela mesma, razão pela qual o tribunal não conseguiu devidamente densificar tal facto.
Relativamente ao facto descrito em 16 - conhecimento do teor do testamento pelo autor -, tomou-se em consideração as declarações prestadas por este, que mereceram credibilidade.
[…] Não se olvida, […] que a prova em apreço emana da própria parte do processo, é dizer, de uma pessoa com interesse directo no desfecho da causa, razão por que foi cuidadosamente ponderada.
Verdade é que o autor, assumindo uma postura serena, prestou declarações claras e objectivas. Em confronto com as declarações prestadas pelo réu neste segmento, o autor conseguiu esclarecer os acontecimentos de forma cabal, movimentando-se temporalmente sem dificuldade.
Nas declarações por si prestadas, o autor afirmou ter sido o réu quem, na segunda semana de Agosto de 2020, lhe deu conhecimento acerca da existência do testamento após, num contexto de desconfiança (pois que o seu falecido pai lhe tinha dito que casara), ter questionado directamente o réu sobre o assunto.
Posteriormente, na véspera da hospitalização (dia 30/08/2020), o autor agendou um almoço para perceber o sucedido e questionar o pai sobre tal, circunstância corroborada pelo teor das declarações prestadas pela testemunha LF.
Por merecer credibilidade e ser consentânea com as regras da experiência comum, esta versão dos factos foi devidamente relevada (em detrimento da versão, avançada pelo réu, de que foi de cujus quem informou o filho da existência do testamento).
Por outro lado, ficou provado, tal como descrito em 17 que, em vida, o de cujus manifestou a intenção de que aos seus netos viesse a caber o bem imóvel objecto nos autos.
De facto, relativamente a tal questão, não foram contraditórios os depoimentos prestados por autor e réu em audiência de julgamento.
Durante as suas declarações, o autor explicou que falou diversas vezes com o pai acerca do destino da casa, descrevendo que este lhe dizia: «a casa será sempre tua e dos teus filhos».
Por sua vez, também o réu, afirmando que falava com de cujus sobre a casa objecto no presente processo, esclareceu que aquele sempre lhe disse que a casa ficaria para os futuros netos, descrevendo ainda que o mesmo manifestava medo que os filhos a vendessem.
Resultou que o autor não tinha filhos nascidos nessa altura, sendo uma pretensão futura do falecido.
Relativamente à vida social mantida por de cujus, a factualidade descrita em 18 – de que conviveu com amigos até ao fim da sua vida – resultou provada por via da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento.
Na verdade, as testemunhas J e E, amigos do falecido de cujus, afirmaram, de forma espontânea e pormenorizada, ter tido um almoço com aquele, num restaurante, em meados de Agosto de 2020. Contaram, de forma sincera e credível, que o de cujus conversou, falando de assuntos de presente e do passado, convivendo com todos os presentes.
Também a testemunha LF esclareceu que, acompanhado da sua ex-mulher, se deslocou a casa do de cujus no dia 30/08/2020, onde almoçaram e conviveram, conversando sobre diversos assuntos.
No que concerne ao ínsito no ponto 19 - que o de cujus se encontrava com um estado de saúde débil, com as suas capacidades físicas limitadas, nomeadamente com dificuldades de locomoção e equilíbrio – teve por base o teor das declarações do autor, confirmadas pelo depoimento do réu e, bem assim, corroborado pelo teor das declarações testemunhais a que se aludirá infra.
Para prova do facto descrito em 20 foram da maior relevância as declarações claras prestadas pela testemunha notário que exerce a profissão há cerca 30 anos e que presidiu ao acto notarial em crise nos autos, a quem se deu total credibilidade.
A testemunha em causa, prestou o seu depoimento de forma honesta e desinteressada esclarecendo objectivamente todas as formalidades levadas a cabo por si no dia da outorga do testamento: que falou a sós, na sala de actos, com de cujus, que assertivamente se identificou e revelou o objecto do testamento, afirmando querer realizar um legado de usufruto.
Questionada, a testemunha acabou por revelar que o de cujus tencionava legar a plena propriedade do imóvel, tendo sido aquele quem fez notar que, havendo descendentes, havia que salvaguardar a quota disponível.
Afirmou, espontaneamente, que, pese embora não se recordasse das capacidades físicas em que o testador se encontrava, o mesmo se encontrava com plenas capacidades para querer e entender o seu acto, razão pela qual realizou o acto notarial, não considerando necessária a presença de perito.
Também este facto foi corroborado pelo teor das declarações prestadas pelas testemunhas AT e M, testemunhas no acto notarial da outorga do testamento.
A testemunha AT, identificando-se como amiga do casal, esclareceu, de forma coerente, todo o circunstancialismo que rodeou o dia da outorga do testamento. Esclareceu que de cujus lhe pediu que fosse com ele a Lisboa e que, apenas no caminho, lhe explicou o que ia fazer. Afirmou que se deslocaram de táxi até Lisboa, almoçaram num restaurante e, após se dirigiram ao cartório notarial, tendo sido o de cujus quem forneceu a morada ao taxista. Declarou, de forma assertiva, que o de cujus esteve sempre bem.
Também M, conhecida e advogada de profissão, que esclareceu o de cujus acerca do acto notarial e procedeu ao seu agendamento, assegurou que, pese embora cansado e fisicamente mais fragilizado em virtude da doença de que padecia, o mesmo se encontrava bem e com um discurso coerente.
Para prova do estado de saúde físico e psíquico de de cujus, foi também ponderada a restante prova produzida em sede de audiência de julgamento, não se olvidando que grande parte dos depoimentos prestados provieram de pessoas que não presenciaram o acto notarial e que, portanto, não conseguiram relatar o estado de saúde de de cujus no dia da outorga do testamento.
O autor foi ouvido em depoimento de parte e declarações de parte. Esclareceu que privava com regularidade com o seu pai, nomeadamente nos últimos tempos da sua vida, tendo inclusivamente clarificado, cronologicamente, os diagnósticos médicos que lhe foram sido feitos. A partir de Outubro de 2019 começou a sentir que o pai já estava muito débil, não sabendo se era capaz de escrever, pois que há muitos anos que não via nada escrito por ele. Tomou conhecimento, em Agosto de 2020 e após confrontar o relatório da ressonância magnética, de que o pai tinha uma metástase cerebral (que já era desconfiada por via da sintomatologia que apresentava). Não obstante, aduziu tão só que, em Julho de 2020, aquando da outorga do testamento, o pai «atrapalhava-se muito a falar», em conversas que não eram longas, sendo a sua articulação difícil e, por via telefónica, impossível de perceber.
Por seu turno, o réu, ouvido em sede de depoimento de parte, assumiu que o falecido de cujus, por via da doença de que padecia, apresentava problemas físicos (de locomoção e de equilíbrio) mas que, por outro lado, psicologicamente estava bem, conseguia falar e percebia-se bem o que dizia, sem que apresentasse períodos de confusão. Informou o tribunal que conhece as testemunhas do acto notarial, mas que não tinha qualquer conhecimento de que o de cujus o ia realizar.
Quanto às declarações da testemunha LF, amigo do de cujus, o mesmo declarou sobre o estado de saúde do de cujus próximo à data do seu falecimento o fizera ficar mais «recatado e fechado sem si mesmo», mas embora referisse questão mental, a verdade é que apresentava alguma desorientação, mas referindo ainda que falou com o falecido “sobre coisas da vida”, o que acaba por configurar alguma contradição. Aliás, o mesmo declarou que soube que o testamento foi falado e que o de cujus ficou tenso após a conversa – o que acaba igualmente por colocar em crise a aludida “desorientação”. Na verdade, das declarações prestadas pela testemunha LF resultou que, na verdade, naquela data, de cujus se encontrava vígil e capaz de conversar sobre os mais diversos assuntos.
O tribunal não pôde deixar de ponderar as declarações espontâneas e claras das testemunhas J e E, amigos do de cujus, que com ele contactaram em meados de Agosto de 2020, durante um almoço que combinaram, e que esclareceram, de forma sincera, a percepção que tiveram do estado em que aquele se encontrava naquela altura.
A testemunha J esclareceu que, durante a refeição, conversaram sobre assuntos do presente e do passado e que, pese embora o de cujus se esquecesse de palavras e existisse um arrasto na voz, se entendia o que dizia e apresentava um discurso coerente. Informou ainda o tribunal de que, em conversa que mantiveram, de cujus lhe disse que não ia deixar o réu «desamparado».
A testemunha E, no mesmo sentido, esclareceu o tribunal que, durante aquele almoço em meados de Agosto de 2020, de cujus se mostrou cansado, mas mantinha um discurso coerente.
As declarações prestadas pelas testemunhas JR e RM não foram consideradas relevantes pois que estes não privaram presencialmente com o falecido de cujus no Verão de 2020, em contraposição às restantes testemunhas inquiridas.
Não se olvida que os mesmos vieram a confirmar que o de cujus referiu ter casado com o réu, o que não era verdade, podendo aí colocar-se alguma dúvida.
Todavia, cumpre notar que tal contacto foi em data posterior à data da outorga do testamento, e como se afirmou, não se encontra fundamento para duvidar das declarações prestadas seja pelo notário que prestou o seu depoimento quer das duas testemunhas que presenciaram a sua outorga, concatenado com o facto de estas testemunhas terem referenciado que durante esse mesmo almoço, embora fisicamente debilitado, o de cujus manteve um discurso coerente conversando sobre uma diversidade de temas.
A testemunha JR, amigo do autor há 20 anos e colega de casa do mesmo no ano de 2020, informou o tribunal de que o de cujus, no Verão de 2020, já não era a mesma pessoa que havia conhecido em tempos, contando ter assistido a conversas telefónicas entre autor e o seu falecido pai que já não tinham nexo.
Porque o testemunho de JR, se baseou tão só em informações sobre o estado de saúde do de cujus que lhe iam sendo transmitidas pelo autor e num telefonema entre ambos a que assistiu, o tribunal entendeu não ser de atender ao mesmo – denotando-se ainda alguma parcialidade na defesa da posição do autor, de quem é amigo, donde que não logrou inquinar a versão e credibilidade das testemunhas supra elencadas.
Bem assim aconteceu, como se disse supra, relativamente ao testemunho de RM, amigo de infância de de cujus, que esclareceu o tribunal que, na fase terminal da vida do de cujus já não falavam pois que as conversas que mantinham telefonicamente deixaram de ter sentido, já não se percebia o que dizia: «era uma conversa de malucos». Ora, a única percepção que tem assenta no teor de conversas telefónicas tidas, não puderam ser relevadas as suas declarações, que não podem atestar o estado de saúde físico e psíquico do de cujus. Denotou-se ainda uma evidente animosidade ou discordância quanto à relação mantida entre o de cujus e o réu, não demonstrando esta testemunha ainda a necessária equidistância e imparcialidade.
Resultou, pois, na óptica do tribunal, que entre Julho e Agosto de 2020, pese embora a fragilidade física do de cujus, o mesmo mantinha-se lúcido, mantendo conversas dentro da normalidade.
Os factos descritos em (a) a (h) resultaram não provados dada a contrariedade com os factos provados e face à ausência de prova em relação aos mesmos.
Neste particular, apreciando livremente o «parecer psiquiátrico-forense post-mortem de de cujus», datado de 29/09/2023, o tribunal não relevou este elemento de prova.
Realça-se que o documento em causa foi elaborado com base, apenas, nas peças processuais juntas aos autos (e respectivos documentos que as acompanham), bem como em entrevista realizada com o autor. Ali se conclui, entre o mais, que «apesar de não termos tido acesso a outros registos/documentos clínicos e de não termos tido oportunidade de entrevistar pessoas que tenham privado com de cujus nos últimos meses de vida, dúvidas não subsistem de que o mesmo era portador de situação de saúde/anomalia psíquica permanente, progressiva e irreversível, em estádio avançado, com importante impacto na visão, na escrita e na locomoção. Do ponto de vista cognitivo, existem fortes indícios que à data da outorga do testamento existissem défices importantes que dificultariam a análise e implicações do acto testamentário».
Ora, o tribunal não labora com base em suposições, incertezas e fortes indícios (especialmente se baseados na documentação junta aos autos e com acesso exclusivo a esclarecimentos prestados por uma das partes interessadas), mas sim com base em prova que seja segura e consistente. Não se pondo em causa a honorabilidade pessoal e competência técnica da subscritora de tal parecer, o caminho percorrido para chegar à sua conclusão é parcial e redunda num juízo opinativo. A Sr.ª Perita em causa nunca contactou ou acompanhou o de cujus em vida, o que fragilizaria sempre de sobremaneira, a posição aí assumida.
Acresce ainda que, como referido supra, atentando na prova apresentada pelo réu, mormente o depoimento das testemunhas que presenciaram o acto notarial – com particular destaque para a testemunha M, advogada com quem o falecido discutiu a sua pretensão antes da outorga, conjugadamente com o depoimento do Notário que outorgou a mesma, e que estiveram com o mesmo no dia e momento do acto em apreço, os quais declaram unanimemente de e forma segura e calma, o seu estado psíquico. Revela ainda a prova produzida quanto aos convívios mantidos durante o mês de Agosto, dias ou semanas após a sua outorga.
*
Apreciação:
A discussão principal gira à volta do facto 20, das afirmações (d) e (e) e das conclusões tiradas no parecer psiquiátrico junto aos autos.
Para melhor apreciação do valor deste parecer, passa-se a transcrever o mesmo excepto quanto às conclusões, porque o autor já as transcreveu, quanto à transcrição directa que ele faz da petição inicial e contestação (porque correspondem à posição das partes, não a elemento de prova), e quanto às notas, excepto as substanciais; os erros de numeração vêm do próprio parecer; fazem-se algumas simplificações (principalmente quanto aos nomes):
1. PREÂMBULO
O presente parecer foi solicitado pelo autor, filho do falecido e pelo seu mandatário, e baseia-se na entrevista ao autor e ponderação de documentos disponibilizados para análise, com recurso à experiência técnica e formação psiquiátrico-forense para, alicerçada em revisão atinente da literatura científica, e analisando o conteúdo dos elementos disponibilizados, responder à dúvida suscitada.
2. IDENTIFICAÇÃO DO EXAMINANDO (FALECIDO)
[…]
Data de Nascimento: 26/03/1951
Data do Óbito: 01/09/2020 (aos 69 anos)
Estado Civil: Divorciado (vivendo em união de facto)
Habilitações: Licenciatura
Profissão: Reformado (professor)
3. DOCUMENTOS DISPONIBILIZADOS PARA ANÁLISE
3.1 Acção Declarativa Comum [ou melhor: PI, como resulta da transcrição que depois se faz – parenteses deste TRL];
3.2 Contestação;
3.3 Registos Clínicos e de Exames Complementares de Diagnóstico realizados no Hospital;
3.4 Testamento Público […]
3.5 Atestado de Residência emitido pela União das Freguesias […], de 11/08/2020;
[…]
4. EXAME INDIRECTO/DOCUMENTAL
Foram consultadas todas as peças processuais disponibilizadas para análise. São identificadas as peças e fontes documentais consideradas mais pertinentes e citam-se e transcrevem-se alguns dos elementos consultados, por assumirem maior relevância para a especialidade de Psiquiatria, e consequentemente para a devida fundamentação técnico-científica:
Da Acção Declarativa Comum do autor contra o réu [ou melhor: PI - TRL] […]
Da Contestação: […]
Dos registos da Consulta de Pneumologia Oncológica do Hospital […] – 07/02/2020:
“(…) (desde há cerca de 30 anos – carga tabágica de 30 UMA) … seguimento no Hospital desde Julho/2019 até agora. Transferido para H por questões económicas… tumor Neuroendócrino com características de Carcinóide atípico. A lesão estava compreendida ao 1/3 proximal do BP no ângulo com a traqueia, com outra lesão no Br. Intermediário. A lesão principal foi removida para repermeabilização brônquica: penso que terá ficado a do Br. Interm. Fez mais tarde PET DOTA-NOC que para além da lesão pulmonar mostrou múltiplas metástases ósseas (…).
Dos Registos da Consulta Externa Multidisciplinar de Pneumologia Oncológica do Hospital (Elementos Presentes: (seis médicos - 08/02/2020):
“(…) estudo histológico de tumor neuroendócrino com aspectos sugestivos de carcinóide atípico (…) feito no Hospital. Tem PET DOTANOC com lesão no campo pulmonar direito (SUV de 18) e múltiplas metástases ósseas com SUV´s elevados. Há uma imagem a nível cerebeloso duvidosa. A vinda para o H fica a dever-se a “questões financeiras”. Decisão: Se o doente não tiver contra-indicação deverá iniciar com LAR na dose de 10mg/mês e subir a dose se mantiver sintomas ou a doença progrida (…)”.
Da Ressonância Magnética Nuclear Encefálica (Dr. […] – 24/07/2020):
“(…) Informação Clínica: “Tumor da endócrina (carcinóide atípico?). Em tratamento. Perturbações do equilíbrio. Despiste de lesões ocupando espaço a nível crânio-encefálico… lesão expansiva, extra-axial, centrada à hemitenda cerebelosa direita, de limites bem definidos… com maiores eixos ortogonais estimados em 26mm (…) predomínio do componente sólido (…) Observam-se áreas de hipossinal marginal na ponderação T2, assumindo-se representarem prováveis focos hemorrágicos. Após administração endovenosa de gadolínio, observa-se reforço de sinal homogéneo e intenso da lesão, a que se associa reforço do sinal linear e espesso da hemitenda cerebelosa adjacente. Esta Lesão tem expressão supra e infratentorial, e condiciona ligeiro/moderado efeito de massa locorregional: - No compartimento infratentorial justifica apagamento da cisterna cerebelosa superior, moldagem do hemisfério cerebeloso direito, desvio do vérmis para a esquerda e moldagem da metade direita do tecto do 4º ventrículo (incluindo véu medular superior), acompanhado por hipersinal T2/FLAIR do parênquima cerebelosa subjacente. […] No compartimento supratentorial existe moldagem do giro fusiforme direito. Após administração endovenosa de gadolínio, observa-se ainda imagem extra-axial nodular parafalcial direita, de limites bem definidos, e com reforço sinal intenso e homogéneo… admite-se que a hipótese diagnóstica mais provável seja a de infiltração neoplásica secundária paquimeníngea (…) define-se alargamento da sela turca, com maior expressão no pavimento selar… No interior da sela turca, visualiza-se lesão expansiva… de limites bem definidos e contornos regulares, com maiores eixos ortogonais com 15mm no sentido ântero-posterior, 18mm no sentido transversal e 25mm no sentido crânio-caudal…. Após administração endovenosa de gadolínio, observa-se reforço de sinal intenso e homogéneo da lesão. Esta lesão apresenta importante efeito massa locorregional: - superiormente, projecta-se para a cisterna suprasselar condicionando moldagem e desvio póstero-superior do quiasma óptico, que apresenta hipersinal T2 que se entende para o tracto óptico direito. Adicionalmente, condiciona moldagem do complexo artéria comunicante anterior-segmentos A1 da artéria cerebral anterior, que se apresentam desviados superiormente mas permeáveis. - lateralmente, admite-se invasão do seio cavernoso direito, grau II à direita (segundo classificação de KNOSP) (…) Não se observa abaulamento das paredes laterais dos seios cavernosos. Atendendo à doença de base, a hipótese de infiltração secundária tem de ser considerada. Contudo, as [características de sinal da lesão centrada à região selar, impõe o diagnóstico diferencial com a] macroadenoma hipofisário, de possível coexistência nesta doença de base. Observam-se hipersinais T2/FLAIR da substância branca cerebral periventricular e subcortical, compatíveis com leucoencefalopatia microangiopática crónica marcada (Fazekas grau 3). Documenta-se atrofia cerebral cortical difusa… ectasia fusiforme difusa da artéria basilar (dólico-ectasia basilar), que condiciona moldagem anterior da protuberância e do pedúnculo cerebral direito (…)”. [a parte entre parenteses recto foi colocada por este TRL já que faltava na transcrição feita pelo parecer, retirando sentido às frases transcritas – o que já não parece acontecer totalmente noutras faltas…]
[…]
Das Mensagens SMS do companheiro [réu] do falecido para o filho [autor] (14/08/2020):
“Réu:  Olha, fale com seu pai;
            Ele está fora da casinha.
Autor: Tou a trabalhar. Quando sair às 6 e 30 ligo;
            Boa;
            Mas tá tudo bem?
Réu:    Vai lá em casa e converse com ele…
Autor: Não posso só na segunda;
           Sobre?
Réu:    Ente contacte com ele…
Autor: Tou a trabalhar C... Não consegues dizer-me o que se passa por mensagem?
Réu:    Ele está muito confuso.
            Falando coisa com coisa.
Autor: OK;
            Já lhe ligo quando for a pausa”.
Do Relatório do Serviço de Urgência do Hospital (31/08/2020):
“(…) Queixa: Prostração, dispneia e febre desde hoje de manhã (…) Falei com o filho – doente já dependente nas AVD`s mantém vida de relação, mas já com estado confusional avançado. Praticamente em circuito cama cadeirão. Estariam à espera de encaminhamento para neurocirurgia dado metastização cerebral, para eventual radioterapia e de apoio domiciliário. Trazido pela VMER por quadro de prostração, dispneia e febre. Terá iniciado quadro de múltiplos vómitos ontem. Com provável aspiração… com mau diagnostico vital, GCS 6-7 (sem abertura ocular, sem gemido, fuga à dor). Polipneico com tubo orofaríngeo e respiração superficial… Dado quadro de metastização óssea e cerebral, em doente já dependente, privilegiam-se medidas de conforto (…)
5. PARECER DOCUMENTAL
No caso em apreço importa avaliar, ainda que documental e retrospectivamente, se o de cujus se encontrava incapacitado de entender o sentido, conteúdo e alcance de um testamento, ou se não tinha o livre exercício da sua vontade, e se tal facto seria notório (ou conhecido) para terceiros, nomeadamente no dia 27/07/2020, data em que outorgou testamento.
No caso presente, apenas é possível analisar o comportamento do de cujus através do relato da interacção que o mesmo teria com terceiros, nomeadamente familiares, vizinhos e/ou amigos, e ainda com os técnicos de saúde por quem terá sido avaliado e/ou acompanhado, sendo também importante a informação extraída de exames complementares de diagnóstico que tenha realizado. Limitados que estamos na informação a que tivemos acesso – apenas a constante nas peças disponibilizadas – em conformidade com o especificamente solicitado pelo autor, será exclusivamente sobre estas que repousará o raciocínio psiquiátrico-forense. Nesse sentido, passamos a analisar a informação colhida em entrevista com o autor e nos elementos recolhidos da documentação que nos foi disponibilizada:
4.1. Da Descrição do Comportamento e Vontade do de cujus:
Em entrevista com o autor, filho, o mesmo descreve que o “quando o meu pai estava lúcido sempre disse que a casa seria minha e dos meus filhos… desde antes da minha adolescência que falava nisso e disse sempre a mesma a mesma coisa até Março de 2020, quando se iniciou a pandemia” (sic). Ainda segundo o filho, “nessa altura ele começou a falar pouco, mesmo ao telefone… eu ia visitá-lo à mesma, apesar da pandemia, e nessa altura ele já estava fraco… e nessa altura já tinha deixado de ver de um dos olhos, que isso aconteceu deve ter sido em Dezembro de 2019” (sic).
É descrito pelo filho que o de cujus havia sido diagnosticado de uma neoplasia e que no ano 2020 a mesma já se encontrava em fase avançada e com múltiplas metástases. É descrito que o de cujus foi ficando progressivamente mais debilitado e inclusivamente com dificuldades no equilíbrio o que, aliado às contingências condicionadas pela pandemia por COVID-19, fez com que deixasse de sair de casa a não ser para consultas ou tratamentos médicos.
No início do ano 2020 já necessitaria de apoio nas actividades de vida diária, sendo descrito pelo filho que pelo facto de estar a trabalhar remotamente foi possível dar mais apoio ao pai e acompanhá-lo a exames e consultas.
Foi-nos relatado que “o meu pai já estava com desorientação desde o mês de Abril… mudava de tempo e começava a falar da infância… e atrapalhava-se na fala” (sic). Com efeito, no final da Primavera ou início do Verão a situação de dependência era de tal forma que terá sido pedido apoio domiciliário para complementar os cuidados prestados pelo filho e pelo companheiro, já que este último tinha afazeres profissionais na área da restauração.
Foi-nos ainda mostrada uma troca de mensagens entre o autor e o réu no dia 14/08/2020 em que este último solicita que o autor vá ver/falar com o pai porque o mesmo “está muito confuso. Falando coisa com coisa”, indiciando que em Agosto existiriam já períodos confusionais.
Poucos dias antes, em 11/08/2023, havia sido emitido atestado em como o réu e o de cujus viviam em união de facto e comunhão de mesa e habitação; contudo, desconhece-se qual seria o estado mental do de cujus nessa data, uma vez que o mesmo não terá comparecido a tal acto, presumindo-se que por incapacidade física e (porventura) cognitiva.
O filho diz ter sido surpreendido pelo companheiro do pai pouco tempo antes de este falecer, dando-lhe conhecimento que o de cujus havia outorgado testamento. Segundo o filho, após ler o conteúdo do testamento “confrontei o meu pai com o testamento e que lá estava o usufruto da casa... ele confirmou que tinha feito testamento, mas não sabia explicar o que é que tinha ficado escrito” (sic). Considera que o pai foi vítima de chantagem porque o companheiro lhe terá dito que “ou passava a casa para o nome dele ou que o deixava e ia para B” (sic).
Apesar de não termos tido a oportunidade de entrevistar o companheiro do de cujus ou outras pessoas que com ele tivessem privado nos últimos meses de vida, e sobretudo em data próxima da outorga do testamento, é alegado na contestação que, ao contrário do afirmado pelo autor “foi o próprio pai e testador quem o informou que havia feito testamento, dando-lhe conhecimento do respectivo conteúdo”. Alega ainda que “o autor sabe bem que anuiu com a decisão do pai (…) não demostrando ter qualquer dúvida ou objecção quanto ao discernimento e capacidade intelectual do progenitor. Sabe o autor que o pai se recordava da outorga deste testamento, que lhe enunciou os seus termos e beneficiário, demostrando ter plena capacidade e conhecimento para entender o alcance do acto”. Acrescenta ainda que no dia da outorga do testamento “o Notário transcreveu para o testamento a vontade declarada pelo testador.”
Apesar do autor descrever que o pai se encontraria bastante dependente nas actividades de vida diária o que inclusivamente havia motivado o pedido de apoio domiciliário, o réu alega que “sabe o autor que o pai fazia a sua vida social, convivendo com familiares e amigos, e que continuou até ao fim da sua vida, a escrever poesia, demostrando toda a sua capacidade intelectual”. Alega ainda que “No dia em que foi lavrado o testamento aqui em causa, o de cujus dirigiu-se ao notário, plenamente consciente da sua vontade, tendo inclusive nesse mesmo dia almoçado com um casal amigo, com quem manteve uma conversa corrente e coerente”, e ainda que admita que “estamos perante uma pessoa idosa, com problemas de saúde física, o que necessariamente acarreta alterações na forma de escrever/ assinar”, considera que tal não se traduzia na “existência de incapacidade intelectual ou limitação da capacidade de querer ou entender determinado facto ou circunstância”.
4.2 Da Situação de Saúde do de cujus
Em data não concretamente apurada, mas pelo menos desde Julho de 2019, o de cujus seria acompanhado no Hospital onde, após realização de exames complementares de diagnóstico a que não tivemos acesso, lhe foi diagnosticada neoplasia do pulmão, nomeadamente tumor neuroendócrino com características de carcinoma atípico. Estes tumores são raros e têm origem em células neuroendócrinas do pulmão, sendo que cerca de 1/3 são funcionalmente activos, libertando aminas na corrente sanguínea, o que pode dar origem a uma síndrome carcinóide. Em 50% dos casos estão descritos sintomas psiquiátricos, sobretudo depressivos, mas há relatos de sintomatologia psicótica, i.e., alterações da percepção e do pensamento. As alterações psiquiátricas podem dever-se aos efeitos das hormonas produzidas pelo tumor (e pelas metástases), e possíveis consequências da disfunção metabólica sistémica.
Existiriam duas lesões no pulmão tendo sido tentada a repermeabilização brônquica, mas aparentemente não terá sido removida a lesão no Br. Intermediário. Fez mais tarde PET-DOTA-NOC [nota: O PET-CT com análogos da somatostatina (como o DOTANOC) marcados com 68-Gálio ou com 18-Fluor é um método funcional com elevada resolução espacial e grande exactidão na identificação e no acompanhamento dos tumores neuroendócrinos] que revelou múltiplas metástases ósseas.
Por questões financeiras, o de cujus passou a ser acompanhado no Hospital, havendo registo de uma 1ª (?) consulta de Pneumologia Oncológica no dia 07/02/2020, tendo o caso sido levado a Consulta Multidisciplinar de Pneumologia Oncológica, que teve lugar no dia seguinte, em 08/02/2020. Nessa consulta há registo de uma imagem duvidosa também a nível do cerebelo, levantando-se dúvidas quanto à possibilidade da existência de atingimento cerebral, que inclusivamente poderia justificar as alterações de visão e no equilíbrio. Ficou decidido que seria dado início a tratamento com Lanreotida [nota: Derivado sintético da somatostatina, hormona naturalmente presente no organismo, que inibe a libertação de diversas outras hormonas. Os tumores neuroendócrinos podem secretar substâncias na corrente sanguínea que causam os sintomas relacionados à doença. A lanreotida é capaz de reduzir a secreção de tais substâncias e aliviar muitos dos sintomas indesejáveis associados à doença. A lanreotida, possui uma actividade antitumoral que é mediada através de mecanismos que envolvem a ativação de receptores que inibem a proliferação das células e interferem na apoptose (morte celular programada) e por inibição de fatores de crescimento, bem como a inibição da angiogénese (formação de vasos sanguíneos) do tumor], aguardando-se a evolução.
Não tivemos acesso aos registos clínicos das consultas subsequentes, mas tão somente ao resultado da Ressonância Magnética (RM) da Coluna e da RM Cranioencefálica. Esta última foi pedida por existirem alterações do equilíbrio e “para despiste de lesões ocupando espaço a nível crânio-encefálico”, desconhecendo-se se existiriam queixas/dificuldades cognitivas nessa data, mas que se presume que já existissem. Com efeito, a RM revelou a existência de múltiplas lesões cerebrais, tendo inclusivamente sido levantada a suspeita de poder coexistir uma 2ª neoplasia, nomeadamente um macroadenoma hipofisário. Uma das metástases cerebrais condicionava moldagem e desvio do quiasma óptico, havendo também envolvimento do girus fusiforme, o que seria muito provavelmente a justificação da diminuição da acuidade visual de um dos olhos desde o final do ano 2019, conforme descrito pelo filho, indiciando a existência de metástases há vários meses. Para além das várias outras metástases que atingiam várias zonas do parênquima cerebral, e que condicionavam efeito de massa locorregional, estão também descritas alterações da substância branca cerebral periventricular e subcortical, compatíveis com leucoencefalopatia microangiopática crónica marcada (Fazekas 3) [nota: A Escala de Fazekas (Fazekas et al., 1987) é um método utilizado pelos neurorradiologistas para quantificar o grau de lesões hiperintensas em T2 visíveis na substância branca, que varia de 0 a 3, sendo que o grau 3 é o mais grave e implica confluência severa, i.e., amplas áreas de confluência, com lesões únicas maiores que 20mm de diâmetro], estando documentada atrofia cerebral cortical difusa.
Em suma, devido à idade e aos hábitos tabágicos, existiria já um processo neurodegenerativo cerebral em curso e que condicionava já atrofia cerebral difusa, quando o tumor neuroendócrino primitivo metastizou e atingiu outros órgãos, nomeadamente os ossos da coluna e várias áreas do cérebro, não sendo ainda de descartar a hipótese da existência de um 2ª tumor cerebral.
Não tivemos acesso a outros registos clínicos para além da ida ao S. Urgência do Hospital no dia 31/08/2020, onde o de cujus foi levado pelo INEM por prostração, dispneia e febre. Está documentado que nessa data estava “já dependente nas AVDs, mantém vida de relação, mas já com estado confusional avançado. Praticamente em circuito cama cadeirão”. Apesar de não estar descrito há quanto tempo duraria tal estado confusional, admite-se que o mesmo não se havia instalado subitamente, em virtude do atingimento cerebral extenso das metástases cerebrais e da atrofia cerebral descrita na RM realizada em Julho de 2020. Com efeito, o de cujus encontrava-se já em fase terminal e agónica, vindo a falecer no dia seguinte (01/09/2020) pelas 17h.
4.3 Da Capacidade Negocial/Testamentária
A capacidade testamentária, ou seja, a capacidade para executar um testamento válido, pressupõe a compreensão da natureza do acto, da natureza e da extensão dos bens/património do testador, dos beneficiários, do impacto da distribuição dos bens, sendo necessária a ausência de perturbação mental que possa interferir no acto de disposição do património. Nesse sentido, as doações e testamentos são percepcionados como importantes aptidões de natureza financeira. O sistema jurídico português refere que no decorrer de um acto de doação e/ou testamento, o jurista/notário deve proceder à avaliação da capacidade mental da pessoa que pretende fazer o acto. Uma vez que tal acto pode vir a ser contestado no futuro, como sucedeu no caso em concreto, cada vez mais se impõe, como medida preventiva, a necessidade de uma avaliação formal da capacidade aquando do acto testamentário.
Importa enfatizar, que do ponto de vista médico-legal, o mero diagnóstico clínico não implica automaticamente uma ausência ou mesmo significativa diminuição da capacidade civil. Têm aliás sido propostos procedimentos de análise pericial que contemplem uma avaliação da capacidade (cognitiva) propriamente dita, nomeadamente através de um exame neuropsicológico, mas também uma avaliação funcional, que assim permita uma apreciação mais aprofundada das limitações (e dos recursos cognitivo-intelectuais) da pessoa alegadamente (in)capaz. No nosso pais foi inclusivamente aferida uma ferramenta com tal objectivo – o Instrumento de Avaliação da Capacidade Financeira (IACFin).
No caso em concreto, e sendo conhecimento da família – nomeadamente do companheiro – que o de cujus era portador de situação de saúde de natureza oncológica com repercussão neurológica, permanente, progressiva e irreversível, que vinha afectando as suas capacidades para levar a cabo actividades de vida diária, teria sido pertinente ser realizada avaliação contemporânea das capacidades cognitivas e volitivas para o acto que o mesmo se propunha levar a cabo. Com efeito, está descrito que o companheiro teve conhecimento de tal acto, pelo que estamos em crer que deveria ter sido o próprio a acautelar que o de cujus estaria, nessa altura – e nesse dia – em condições para outorgar testamento.
O réu alega que o notário transcreveu para o testamento a vontade declarada pelo testador e que o mesmo não revelou qualquer indício que fizesse o notário suspeitar da sua incapacidade, motivo pelo qual não considerou necessária a apresentação de qualquer declaração médica ou de perito médico, conforme previsto no artigo 67/4 do Código do Notariado, já que tal intervenção não é imperativa nem obrigatória. Dito isto, admite que o de cujus era “uma pessoa idosa, com problemas de saúde física, o que necessariamente acarreta alterações na forma de escrever/assinar.” Acresce que, como já referido, as metástases cerebrais condicionavam inevitavelmente dificuldades visuais, na escrita e na locomoção, que seriam evidentes e notórias, inclusivamente para uma pessoa de normal diligência.
Pelo exposto, consideramos que teria sido fundamental a avaliação contemporânea da capacidade cognitiva e volitiva do de cujus para poder outorgar testamento, por médico/perito que tivesse estado presente em tal acto ou que tivesse emitido declaração contemporânea de que o testador estaria capaz para o mesmo.
Por fim, importará também distinguir entre Capacidade Mental (Mental Capacity) e Capacidade Legal (Legal Capacity). De acordo com a interpretação do Comité da Nações Unidas sobre o artigo 12º do CRPD, o paradigma a seguir é o da universalidade da titularidade de direitos, mesmo na ausência de capacidade cognitiva. Apesar desta posição ser controversa e fortemente contestada pelos psiquiatras (e acreditamos mesmo não ter grande adesão nos magistrados Portugueses), é a posição oficial e defendida pelas Nações Unidas. A este propósito, veja-se por exemplo a posição do Comité das Nações Unidas [nota: Commitee on the Rights of Persons with Disabilities. General Comment on Article 12: Equal Recognition before the Law. 30 March - 11 April 2014. CRPD/C/GC/11/4]: basicamente e grosso modo, defende-se que mesmo quem não tenha capacidade cognitiva, deve manter para os devidos efeitos a capacidade legal. Na mesma linha, mais do que as cognições, são valoradas e interessam as melhores preferências e melhores vontades, sendo que mesmo quando não há acesso directo à vontade propriamente dita, não se deve retornar ao que seria por outrem considerado o melhor interesse daquela pessoa, mas sim a melhor interpretação do que seria a sua melhor preferência. Assim, na dúvida se existe capacidade ou incapacidade, deve ser escolhida a interpretação que mais maximize a preservação e efectividade dos direitos do individuo.
No caso em concreto, e segundo nos descreveu o autor, o de cujus sempre verbalizou o desejo que a casa onde habitava ficasse para os filhos. No nosso entender tal seria desnecessário, em virtude de os filhos serem os únicos e legítimos herdeiros. Admite-se, portanto, que tal desejo se reportaria ao facto de o de cujus não pretender que a casa fosse herdada pela mãe dos filhos e/ou pelo companheiro.
Note-se que o de cujus é descrito como um homem inteligente, informado e organizado, pelo que se presume que, quando teve conhecimento do diagnóstico da situação de saúde de que padecia, pretendesse organizar e dispor do seu património, sendo inclusivamente descrito que  terá procedido à venda de um automóvel vários meses antes do testamento para acautelar a passagem de património para o companheiro. Sendo conhecedor da progressão inexorável da doença de que padecia, e sobretudo no final do ano 2019, quando inclusivamente terá perdido a visão de um dos olhos, seria de prever que tomasse as necessárias diligências para que fosse garantida a sua vontade, não se percebendo, portanto, porque só o vem a fazer numa fase tão avançada da doença e em que já se encontrava tão debilitado.
O réu alega que terá sido o de cujus a informar o filho da outorga do testamento, informação não coincidente com a do autor, que afirma que foi o réu quem o informou de tal acto já depois do mesmo estar consumado. Apesar de extravasar a análise estritamente pericial, questionamo-nos por que motivo não partilhou o autor tal desejo com o filho antes da outorga do testamento, já que é descrito que o mesmo o terá acompanhado assiduamente nos últimos meses de vida.
Pelo exposto, e com os dados de que dispomos, o de cujus terá verbalizado sempre o desejo de deixar a casa para os filhos e netos. Dito isto, fez disposições importantes sem avisar os mesmos e numa altura em que a doença de que padecia se encontrava já numa fase avançada e condicionando incapacidade importante a nível físico, visual, cognitivo e volitivo.
6. CONCLUSÕES
Limitados que estamos na informação a que tivemos acesso, com os elementos a que foi possível aceder para a realização do presente parecer documental, e sobre os quais repousa o nosso raciocínio psiquiátrico-forense, permitem afirmar com razoável certeza, que: […]”
Apreciação:
Quanto ao facto 20 e afirmações (d) e (e): dadas as várias lesões ocupando espaço a nível crânio-encefálico, das quais já decorria, pelo menos, uma atrofia cerebral difusa documentada na ressonância magnética nuclear encefálica de 24/07/2020 (três dias antes do testamento), todas já aforadas nos factos descritos de 8 a 11, realmente não se pode dar como provado o que consta de 20.
(isto apesar de eventualmente se poder descontar uma das lesões dadas como provadas, mas que é uma hipótese não suficientemente comprovada. Está-se a referir aqui a infiltração neoplásica secundária paquimeníngea que no relatório daquela ressonância vinha descrita como hipótese (diz-se: “atendendo à doença de base, a hipótese [..] tem de ser considerada), mas mais à frente diz-se acrescenta-se: “Contudo, as características de sinal da lesão centrada à região selar, impõe o diagnóstico diferencial com a macroadenoma hipofisário, de possível coexistência nesta doença de base.” Note-se que no relatório pericial a parte sublinhada foi omitida, alterando o sentido das frases que permitiam concluir que aquela infiltração secundária era só uma hipótese, ou seja, que poderiam levar a não dar como provado o facto 10)
Do que antecede, não decorre, no entanto, a prova das afirmações contrárias, feitas pelo autor e que o tribunal recorrido deu como não provadas. em (d) e (e), embora se deva acrescentar, por força deles, o seguinte ao facto 10: com atrofia cerebral cortical difusa.
Os elementos médicos e mensagem que constam da conclusão 2 do recurso, foram todos tomados em consideração pela sentença recorrida, e não servem, por si, para mais do que para dar como provado o que consta daqueles factos 8 a 11 (o 10 já com o acrescento acabado de fazer).
O parecer psiquiátrico de que o autor se serve para entender como provadas tais afirmações, não convence do que afirma quanto a isso, no essencial pelas razões referidas na fundamentação da decisão da matéria de facto do tribunal recorrido.
O parecer baseia-se numa situação de facto que não corresponde àquela que o tribunal recorrido deu como provada e que o próprio autor não põe em causa, como resulta do facto 18 - Até ao fim da sua vida, o de cujus conviveu com amigos, nomeadamente tomando refeições com os mesmos – o que foi confirmado por testemunha do próprio autor. Ou seja, na véspera da hospitalização, dia e pouco antes do óbito, mais de um mês depois do testamento, o autor “agendou um almoço para perceber o sucedido e questionar o pai sobre tal”, almoço com o pai/de cujus e pelo menos um casal amigo e o de cujus esteve à conversa, sobre questões da vida, com uma das testemunhas do próprio autor (LF). E em meados de Agosto de 2020, mais ou menos 15 dias depois do testamento, duas testemunhas (J e E), agora do réu, estiveram a almoçar com o de cujus num restaurante, a falar sobre assuntos do presente e do passado, convivendo o de cujus com todos os presentes, como o disseram as duas testemunhas do réu, também elas não postas em causa pelo autor, o que se compreende tendo em conta o almoço ocorrido 15 dias depois, também com convívio, e também o facto de o autor ter aproveitado parte da conversa que elas relataram. E no próprio dia do testamento, duas outras testemunhas do réu – as testemunhas do testamento - estiveram a almoçar e a conversar com o de cujus, num restaurante. E tudo isto é compatível com o diagnóstico primário e de saída, (não transcritos no parecer psiquiátrico) de pneumonite por aspiração de alimento ou vómito do relatório de urgência das 10h39 de 31/08/2020 (doc.9), o qual, por outro lado, não é indiciador de um estado de doença psíquico tardio como causa da morte.
Tudo isto dá uma imagem da vida do de cujus, no mês que antecedeu o óbito, que não tem nada a ver com aquela que o parecer transmite que é uma vida que se passa do cadeirão para a cama (foi também a conversa do filho que serviu para que esta frase constasse de um outro elemento médico).
Ou seja, o parecer baseia-se numa descrição de factos feita pelo próprio autor, em tons carregados, e depois em presunções tiradas dos elementos médicos sintetizados, lidos com esse pano de fundo, e que nada têm de inequívoco tendo em conta o quadro de coisas muito mais amplo obtido pelo tribunal.
E tudo isto ainda sem ter em conta o que foi dito pelo notário e pelas testemunhas do testamento quanto ao que se passou aquando da elaboração deste, que o autor só põe em causa no que se refere ao que foi dito pelo notário e pela advogada, não quanto à terceira, sendo que, em relação ao que diz quanto ao notário e à advogada, o mesmo se poderia dizer, com mais razão, do que consta de um parecer encomendado pelo autor (que aliás não é prova documental ao contrário do que ele diz). Ora, sabido o que se passou no mês a seguir, considera-se perfeitamente possível que o de cujus se tivesse apresentado perante o notário em condições que não lhe levantaram quaisquer dúvidas sobre a integridade das faculdades mentais do testador, ou seja, aquela que é necessária para outorgar um testamento (artigos 173/1c e 67/4 do CN).
Dito de outra perspectiva, face à discussão que já se fez, considera-se que não há nenhum indício que aponte em sentido contrário, pelo que este TRL não vê qualquer razão para, ao abrigo do art.º 662/2-b do CPC, ordenar a produção de novos meios de prova sobre tal situação.
Quanto ao argumento do autor, de que as duas testemunhas do almoço de meados de Agosto disseram que o de cujus lhes disse que tinha casado com o réu, para daí concluir pela confusão do de cujus quanto ao fim da ida ao notário, é evidente, segundo as regras da experiência comum das coisas, que as pessoas [com aplicação ao de cujus] dizem coisas não conformes à realidade pelas mais diversas razões: porque a querem esconder, porque não se querem justificar, porque não lhes apetece dizer a verdade, etc..
Coisa idêntica se pode dizer sobre o argumento do autor de que o de cujus teria manifestado, antes, outra vontade: há imensas razões, que resultam da experiência comum da vida, para que o de cujus dissesse o que consta do facto 17 e apesar disso tenha feito o testamento que fez: para não indispor contra si ou entristecer os seus filhos, para os enganar, para não se estar a justificar, etc.. Para além disso, o testamento nem sequer é incompatível com aquela vontade, pois que a nua propriedade ainda ficou para os filhos (a que virá acrescer, mais tarde, a propriedade).
Por outro lado, o facto de o autor querer provar que o de cujus actuou sobre chantagem emocional do réu, que lhe diria que ou passava a casa para o nome dele ou que o deixava e ia para B, aponta para uma forte ligação afectiva entre o de cujus e o réu (pois que só se pode ameaçar alguém com o abandono, se a pessoa não quiser o abandono), em reforço da presunção que esta relação já permite (é de presumir que os companheiros, tal como os cônjuges, gostam um do outro, senão não eram companheiros), que justificaria a deixa testamentária, ou seja, a alteração da vontade mais antiga. E o facto de o autor acreditar na susceptibilidade do de cujus a tal ameaça também aponta em sentido contrário ao do avançado estado da doença psíquica do de cujus que o tornasse incapaz de entender o sentido daquilo que estava a fazer (pois quem se sente ameaçado com um abandono, revela a consciência de uma ligação afectiva, incompatível com um estado avançado de uma doença psíquica que lhe inibisse o entendimento de uma simples deixa testamentária).
Em suma, considera-se que as afirmações feitas pelo autor, consubstanciadas em (d) e (e), não têm prova suficiente a seu favor – pois que são simples especulações feitas pelo autor com base nas lesões dadas como provadas nos factos 8 a 11, e novas especulações do parecer psiquiátrico, influenciado pela versão de facto apresentada pelo autor, não confirmada, e por hipóteses médicas, aquela e estas servindo de base às presunções da signatária do parecer, apesar da assumida insuficiente base factual (para além de tal parecer omitir, na transcrição, uma frase importante na análise de um exame).
E a prova contrária, principalmente o depoimento do notário e o das duas testemunhas do testamento, para além do revelado por outras testemunhas sobre a vida social do de cujus no mês e meio subsequente ao testamento, poria suficientemente em dúvida aquela prova produzida a favor das afirmações (d) e (e), pelo que elas tinham de ser dadas, como o foram, como não provadas (art.º 346 do CC).
Quanto ao facto 6, a sua negação, pelo autor, no recurso, é apenas um acto de vontade ou de fé, sem qualquer prova que sequer sugira que o que lá consta não se passou. E é também um acto de fé o que consta das afirmações contrárias (b), (c) e (g), sem qualquer prova invocada especificamente para o efeito, disfarçando o autor essa falta de indicação de prova com a impugnação, em conjunto, das decisões sobre os factos 6 e 20 e as afirmações (a) a (g).
Quanto a (a) o autor não arrolou qualquer elemento de prova que vá para além do já dado como provado em 19.
Quanto a (f), o autor não indica qualquer prova, excepto, através do parecer, a afirmação que já tinha feito na PI sobre o assunto.
Em suma, a impugnação é procedente apenas quanto ao facto 20, que se elimina dos factos provados, e parcial quanto a (d) e (e) que leva ao acrescento da parte final do facto 10.
*
Do recurso sobre matéria de direito
A fundamentação de direito do tribunal recorrido foi a seguinte apenas em síntese:
Da nulidade do testamento
O primeiro pedido formulado pelo autor é o de que seja declarado nulo o testamento pelo facto de o testador não ter exprimido cumprida e claramente a sua vontade, nos termos do disposto no art.º 2180 do CC.
O art.º 2180 do CC dispõe que «é nulo o testamento em que o testador não tenha exprimido cumprida e claramente a sua vontade, mas apenas por sinais ou monossílabos, em resposta a perguntas que lhe fossem feitas».
Não obstante os factos provados sob 9, 10 e 11 e 19, não logrou por qualquer forma provar-se que, na data da outorga do testamento, o testador não conseguia falar ou fazer-se entender, nem tão pouco que o testamento foi lavrado com base em respostas dadas apenas por sinais ou monossílabos a perguntas feitas, não sendo o mesmo a expressão cumprida e clara da vontade do testador.
E repare-se, nesta parte, que o autor também não alegou que o testador só se tenha exprimido por sinais, acenos ou monossílabos, mas tão só que não exprimiu claramente a sua vontade.
Do exposto se conclui que o testamento não enferma de nulidade, inferindo-se o peticionado.
Da anulabilidade
Pede o autor, subsidiariamente, que seja anulado o testamento, atento o facto de o testador estar, no momento da sua outorga, incapacitado para entender o sentido e alcance da sua declaração e não se encontrar no livre exercício da sua vontade (cf. art.º 2199 do CC).
Cumpre, assim, analisar se o testador sofria de incapacidade acidental na data em que foi outorgado o testamento.
Relativamente a esta questão rege o art.º 2199 do CC, que preceitua que «é anulável o testamento feito por quem se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória».
O princípio geral da capacidade testamentária activa é o de que «podem testar todos os indivíduos que a lei não declare incapazes de o fazer» (cf. art.º 2188 do CC). A excepção a esta regra está delimitada no art.º 2189 do CC onde se estabelece que «são incapazes de testar: a) os menores não emancipados; b) os maiores acompanhados, apenas nos casos em que a sentença de acompanhamento assim o determine».
No caso de acompanhamento de maior, impõe o mencionado preceito legal que o acompanhamento tenha sido decretado por sentença e que a mesma determine expressamente a incapacidade de testar. Nestas circunstâncias, perante uma incapacidade de gozo, como tal não suprível, é a nulidade a sanção para o testamento outorgado por incapaz (cf. art.º 2190 do CC).
Não existindo qualquer medida de acompanhamento de maior, pode o testamento ser anulado caso se verifique a incapacidade acidental a que alude o já referido art.º 2199 do CC, assente «na falta alegada e comprovada de capacidade do testador, no preciso momento em que lavrou o testamento, fosse para entender o sentido e alcance da sua declaração, fosse para dispor, com a necessária liberdade de decisão, dos bens que lhe pertenciam» (assim, Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, vol. VI, Coimbra Editora, 1998, p. 323).
Em rigor, o que verdadeiramente importa para efeitos de aplicabilidade do art.º 2199 do CC é determinar se o processo de formação da vontade do testador foi, de alguma maneira, perturbado, a ponto de se poder afirmar que a vontade não se formou de um modo normal e são.
No caso sub judice, analisando o estado de saúde do de cujus já supra relatado, pode concluir-se que o mesmo sofria de incapacidade física, estando fisicamente limitado. Contudo, não se pode concluir da mesma forma quanto às suas capacidades psíquicas ou mentais, não havendo razões para acreditar que o testador sofresse de qualquer anomalia psíquica, transitória ou duradoura, que o incapacitasse de entender o sentido da sua declaração ou que lhe inibisse o livre exercício da sua vontade.
Pelo que não se pode concluir que o testador sofria de incapacidade acidental na data de 27/07/2020, data em que foi outorgado o testamento, não sendo este anulável com base em tal pressuposto, assim improcedendo o pedido subsidiário deduzido.
O autor diz o seguinte contra isto:
[…]
10\ O testamento colocado em crise nestes autos é nulo, nos termos do artigo 2180 do Código Civil, pois que o recorrente juntou prova documental de que testador não tinha capacidade de testar, designadamente do foro neurológico e ou psiquiátrico.
[…]
31\ Os factos que são objecto de apreciações e juízos pessoais do autor do documento (in casu, o notário) – como, por exemplo, o facto de o testador manter íntegras as suas faculdades mentais no momento da outorga do testamento não podem ser dadas como provados pelas declarações do notário (art.º 371/1, in fine do Código Civil).
32\ O testador não exprimiu por palavras suas, de forma clara, uma vontade consumada de outorgar o testamento, pois nem sequer tomou consciência que outorgou um testamento, ele pensou que estava a casar com o réu, pelo que o testamento é nulo, nos termos do artigo 2180 do CC.
33\ Caso se considere que o testamento não é nulo neste caso, dúvidas não há de que ele é anulável, nos termos do artigo 2199 do CC.
34\ É, pois, manifesto que o falecido não se encontrava capacitado de entender o sentido e o alcance da declaração, sendo certo que também não tinha o livre exercício da sua vontade.
35\ Como se vem demonstrando e documentando, o falecido não tinha capacidade para testar, pois que a perda de consciência ou de conhecimento de factos e dos actos que estava a praticar era manifesta, pública e notória.
36\ Neste caso, estamos perante uma situação de deficiência psicológica, psicológica e mental do falecido que determinou a sua falta de discernimento e livre exercício da sua vontade de dispor, tal como decorre da jurisprudência pacífica nos tribunais superiores e do artigo 2199 do CC e tal como ensina o ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/03/2017, proc. 490/14.TBTVD.L1-1, que se indica a título explicativo.
37\ A previsão deste art.º 2199 do CC cobre, além de situações transitórias de incapacidade (devidas, por ex., ao consumo de álcool ou de estupefacientes), situações permanentes de incapacidade (v.g., demência notória que não tenha ainda sido judicialmente declarada e até estados que tenham levado a que fosse decretada ou a inabilitação ou a interdição por fundamento distinto de anomalia psíquica), que é o caso dos autos.
38\ O falecido era portador de situação de saúde/anomalia psíquica permanente, progressiva e irreversível, em estádio avançado, com importante impacto na visão, na escrita e na locomoção, sendo certo que, à data da outorga do testamento, existiam défices importantes que dificultariam a análise e implicações do acto testamentário, porquanto, para além das lesões vasculares que condicionavam já atrofia cerebral difusa, a ressonância magnética cerebral do falecido revelou múltiplas metástases cerebrais, dispersas por várias áreas, algumas delas causando efeito de massa locorregional.
39\ Donde, a força probatória deste testamento, quanto à capacidade do testador para testar, deve ser afastada com base na sua falsidade, que desde já se invoca (art.º 372/1 do CC).
40\ Na verdade, o testamento está ferido de falsidade parcial, no segmento relativo à declaração de que dele consta ter sido feita pelo falecido, perante o notário, quanto à sua vontade de instituir o réu, como legatário, por conta da quota disponível, do usufruto vitalício da fracção autónoma em causa, bem como o respectivo recheio.
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Apreciação:
Os factos provados sob 8 a 11 e 21 são suficientes para comprovar que o de cujus tinha uma anomalia psíquica, ao contrário do que diz a sentença recorrida (com a qual, por isso, nesta parte, não se concorda). Mas a existência desta não é suficiente para dizer, como pretende o autor, que o de cujus não tinha capacidade para testar, pois que não há qualquer norma legal a dizer que quem sofre de uma anomalia psíquica não tem capacidade para testar.
É o artigo 2189 do CC, na redacção da Lei 49/2018, de 14/08, em vigor desde 10/02/2019, portanto à data do testamento dos autos, que estabelece a incapacidade para testar e ela só se verifica em relação aos menores não emancipados ou aos maiores acompanhados nos casos em que a sentença de acompanhamento assim o determine.
Como o de cujus não era menor nem maior acompanhado não sofria de nenhuma incapacidade para testar, pelo que por esta via não se pode verificar a nulidade do testamento (a qual está prevista no art.º 2190 do CC como consequência da incapacidade).
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O autor invoca o art.º 371/1 do CC, como se o tribunal tivesse dado como provado, com base no que disse o notário, que o testador tinha integras as suas faculdades mensais.
Mas embora o tribunal de 1.ª instância tenha dado como provado o facto 20, não o fez com base nas normas do art.º 371/1 do CC e, por outro lado, não foi o facto 20 que este acórdão está a utilizar para afastar a incapacidade do testador, até porque o eliminou dos factos provados, mas sim o fundamento dado acima, que não tem nada a ver com ele.
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O autor invoca o art.º 2180 do CC como outro fundamento da nulidade do testamento, pois que o artigo diz que é nulo o testamento em que o testador não tenha exprimido cumprida e claramente a sua vontade, mas apenas por sinais ou monossílabos, em resposta a perguntas que lhe fossem feitas, e o autor diz que é esse o caso. Mas fá-lo com base em factos que pretendeu aditar aos provados [factos não provados sob b e c], sem êxito, pelo que este fundamento também não serve para concluir pela nulidade do testamento.
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O autor diz que, de qualquer modo, o testamento é anulável porque ele foi feito pelo de cujus que se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração e/ou não tinha o livre exercício da sua vontade por qualquer causa, ainda que transitória (art.º 2199 do CC), isto é, no caso, devido a anomalia psíquica de que o de cujus sofria, como decorre dos factos 8 a 11.
Mas a anomalia de que o de cujus sofria (como sofria de facto, já se tendo dito que, nesta parte, não se concorda com a argumentação da sentença recorrida), em consequência das lesões descritas de 8 a 11, não permite, só por si, concluir pela sua incapacidade de entender o sentido da deixa testamentária que fez no notário [a outra hipótese do art.º 2199 do CC está afastada desde logo, porque nada se provou sobre a questão da liberdade do testador, isto é, não se provou a afirmação de facto (f) que ele fazia a este propósito].
A anomalia psíquica pode ser de tal gravidade que pode provocar a incapacidade de entender o sentido da declaração ou não. A anomalia psíquica com tal gravidade é, pois, facto constitutivo do direito à anulação do testamento. Pelo que, é ao autor de uma acção que exerce esse direito que cabe a prova dessa anomalia psíquica com tal gravidade (art.º 342/1 do CC). Como diz o ac. do STJ de 20/06/2023 citado mais à frente, “partindo do princípio de que a capacidade testamentária constitui a regra (art.º 2188 do CC) e a incapacidade a excepção, o ónus da prova da alegada incapacidade cabe, conforme referido supra, a quem impugna o testamento.” Ónus que o autor, no caso, não cumpriu.
Dito de outro modo, quem sofra dos problemas psíquicos que constam dos factos provados sob 8 a 11, pode ficar incapacitado para entender o sentido das declarações que faz num testamento, se a gravidade desses problemas atingir esse limiar. Daí que a lei (artigos 147 e 2189 do CC) preveja a possibilidade de que uma sentença judicial determine que um maior acompanhado é incapaz de testar. Mas também pode não o determinar. No caso, o autor não provou que aqueles problemas atingissem esse limiar de gravidade, como o demonstrou a discussão da matéria de facto e daí que não constem mais factos provados que permitissem a conclusão da incapacidade para testar.
De outra perspectiva, se estivesse em causa uma decisão de maior acompanhado, o juiz de um caso nestas condições, tendo em consideração os problemas psíquicos dados como provados nos factos 8 a 11, mas tendo também em conta o que se passou no notário, apenas posto em causa em termos genéricos pelo autor, e sabendo também tudo o que se passou na vida do de cujus no mês subsequente ao testamento, nunca deveria determinar a incapacidade do de cujus para testar.
Neste sentido, por exemplo, veja-se, ainda no âmbito do anterior regime da interdição e inabilitação, o ac. do TRL de 22/05/2018, proc. 2414/15.2T8CSC.L1-7:
I - A incapacidade acidental, no momento do testamento, para entender o sentido das declarações ou exercer livremente a vontade torna o testamento anulável, incumbindo ao autor, beneficiário da pretendida anulação, o ónus de alegar e provar factos que permitam ao julgador afirmar esse estado de incapacidade.
II - A demência num estado não grave, sem mais pormenorizada caracterização, não gera necessariamente incapacidade permanente, mas mera intermitência nas faculdades de entender e querer, sem afastar períodos de plena lucidez.
III - O documento autêntico que incorpora o testamento dos autos, ao qual não foi oposta (muito menos, provada) falsidade, faz prova plena dos factos que refere como praticados pela notária, assim como dos factos que nele são atestados com base nas percepções desta; o simples facto de a notária, tendo ouvido as declarações da testadora e com ela conversado, não se ter apercebido de qualquer incapacidade da mesma é primeira e qualificada garantia de que a testadora gozava, quando testou, de capacidade de entender, de querer e de adequadamente manifestar a sua vontade.
No mesmo sentido, vejam-se as referências citadas nesse acórdão do TRL:
“[…] podemos dizer, com Pires de Lima e Antunes Varela, que «a simples presença do notário (aditada à das testemunhas que, segundo a lei notarial, devem presenciar o acto) é uma primeira e qualificada garantia de que o testador gozava ainda, no momento em que foi revelando a sua vontade, de um mínimo bastante de capacidade anímica para querer e para entender o que afirmou ser sua vontade (CC anotado, vol. VI, 1998, nota 3 ao art.º 2205).
Secundam-se também as palavras do ac. do TRC de 29/05/2012, proc. 37/11.4TBMDR.C1, que têm no nosso caso toda a pertinência:
‘Sempre se dirá, no entanto, que o facto de o testamento posto em crise ser público mitiga as dúvidas do autor pois que a própria notária que o redigiu não verificou qualquer incapacidade que impedisse a testadora de conhecer o alcance do seu acto, tendo a mesma procedido à sua leitura e à explicação do seu conteúdo, como é de lei e consta do respectivo documento (cf. artigos 46/1-l e 50 do CN). Aliás, se tivesse tido dúvidas sobre a capacidade da testadora de querer e de entender, não teria lavrado o testamento ou poderia fazer intervir no acto um perito médico que abonasse a sanidade mental da outorgante (cf. art.º 67/4 do CN).’
Ou as do ac. do TRL de 26/05/2009, proc. 100/2001.L1-7:
II– A simples presença do notário, que é um funcionário especializado que goza de fé pública, aditada à das duas testemunhas que, segundo o art.º 67/1-a-3 do CN, devem presenciar o acto, é uma primeira e qualificada garantia de que o testador gozava ainda, no momento em que foi revelando a sua vontade, de um mínimo bastante de capacidade anímica para querer e para entender o que afirmou ser sua vontade.
III– Por conseguinte, não pode deixar de se entender que, tendo o testamento sido exarado perante notário, existe uma forte presunção de que o testador tem aptidão para entender o que declara.
IV- Não se trata, pois, da circunstância de o testamento ser um documento autêntico, pois que este só tem força probatória plena quanto às acções ou percepções do respectivo Notário no mesmo mencionadas, únicas que, por isso, só podem ser elididas com base na sua falsidade, nada impedindo que, não obstante o testador tenha sido admitido a testar, se faça a prova, pelos meios comuns, da sua insanidade mental.
V- Do que se trata, no fim e ao cabo, no caso dos autos, é do funcionamento do ónus da prova dos factos integradores do vício invocado, ónus esse que recaía sobre a autora. Logo, será ela a suportar as consequências da falta de prova, que se traduzem em ver desatendida a sua pretensão.
Assim também o ac. do STJ de 20/06/2023, proc. 1235/18.5T8VFR.P1.S1:
I - A incapacidade acidental para testar deve ser apreciada com especial rigor, não sendo suficiente para implementar esse conceito uma simples anomalia ou alteração das faculdades psíquicas e intelectuais do de cujus.
II - Pode dizer-se que a apreciação da incapacidade acidental de testadores de idade avançada constitui um fenómeno actual, tendo em conta o prolongamento da vida a que se assiste, muitas vezes acompanhado pela disseminação de patologias de senilidade susceptíveis de determinar, em diferente medida, episódios de comprometimento psíquico, fraqueza na adopção de decisões ou enfraquecimento da denominada consciência afectiva.
III - Não basta a prova de uma simples anomalia, da mera degradação ou alteração das faculdades psíquicas e intelectuais do testador, sendo antes necessária a prova de que este se encontrava incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade (art.º 2199.º do CC).
IV - Entendendo-se a referência da incapacidade ao momento da feitura do testamento (art.º 2191.º do CC), a causa perturbadora da livre autodeterminação do testador, constituída por uma doença ou por qualquer outra razão, deve reflectir-se directamente na prática desse acto de última vontade, sendo necessário estabelecer como que um nexo causal entre o factor perturbador e o acto que resulta perturbado - o testamento.
Isto tendo em conta que as circunstâncias da outorga do testamento e o período de tempo posterior à elaboração do testamento, revelando o estado de espírito do de cujus, permitiu claramente ler os elementos médicos transcritos como dizendo respeito a uma doença psíquica que, como no caso daquele acórdão do STJ, não deve levar à aplicação da “tese móvel” adoptada pela jurisprudência para outro tipo de situações muito mais graves (em que passaria a caber ao réu, interessado na validade do testamento, fazer a prova de que o testador tinha entendido o sentido da sua declaração).
Sem esquecer que importa “preservar a liberdade de autodeterminação do testador no que respeita ao destino dos seus bens depois da morte” e que “há que levar em devida linha de conta a necessidade de tutelar o querer livre do de cuius perante o risco de abusos por parte de parentes desiludidos” – “as expressões usadas pelo legislador (‘incapacitado de entender o sentido da sua declaração ou não tinha o livre exercício da sua vontade’) demonstram o seu intuito de assegurar a maior tutela possível à conservação da vontade testamentária do de cuius.” (as passagens entre aspas são ainda do referido acórdão do STJ). O que, aliás, perante testadores com doença psíquica, é imposto pelo respeito pelos fins e entendimentos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e do actual regime jurídico do maior acompanhado que lhe deu aplicação.
*
De tudo o que antecede, vê-se que não tem fundamento, a acusação de falsidade parcial imputada ao testamento, pois que não há qualquer facto que confirme que o testador não fez a deixa testamentária em causa.
*
Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas, na vertente de custas de parte, pelo autor.

Lisboa, 20/06/2024
Pedro Martins
Arlindo Crua
Orlando Nascimento