NULIDADE DA SENTENÇA
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
PRISÃO PREVENTIVA
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANO BIOLÓGICO
RESSARCIBILIDADE
Sumário

1.- A nulidade da sentença por oposição da decisão nela contida e dos seus fundamentos (art.º 615.º, n.º 1, al. d) do CPC) constitui um vício estrutural da sua elaboração, consubstanciado na circunstância de o juiz invocar um conjunto de fundamentos que, de acordo com a lógica, levariam a um resultado, mas acabar por concluir pelo resultado oposto.
II.- Outrossim, tal vício ocorre quando há contradição entre o raciocínio expresso pelo juiz na fundamentação da decisão, mas já não quando o antagonismo interceda entre o elenco de factos provados propriamente ditos e a decisão, já que, sendo aqueles factos o terreno de apreciação do caso à luz do direito aplicável, qualquer incompatibilidade entre a sua significância jurídica e a apreciação efetiva que o juiz faça deles envolve erro de julgamento.
III.- Em matéria de indemnização dos danos decorrentes de sujeição a medida de coação de prisão preventiva que se veio a revelar injustificada, nem do art.º 27.º, n.º 5 da CRP, nem do art.º 5§ 5 da CEDH, resulta que o Estado esteja inexoravelmente constituído no dever de indemnizar o lesado que, apesar de a ela sujeito, não veio a ser condenado; o mesmo é dizer que a prisão preventiva e o arquivamento do inquérito, a não pronúncia em instrução ou a absolvição em julgamento não constituem ‘condição suficiente’ da obrigação de indemnizar.
IV.- Uma tal obrigação, a cargo do Estado Português, pressupõe, à luz do disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 225.º do CPP, a efetiva demonstração, pelo lesado, de que não praticou o crime ou que atuou a coberto de uma causa de exclusão da ilicitude, demonstração essa que, não tendo sido feita no próprio processo criminal, deve sê-lo em ação cível adrede instaurada, em cumprimento do ónus da prova decorrente do disposto nos art.ºs 342.º, n.º 1 e 487.º do CC.
V.- Com o valor da indemnização a atribuir a lesado pelos danos não patrimoniais que sofreu visa-se compensá-lo realmente pelo mal causado, pelo que o mesmo deve ter um ‘alcance significativo’ e não meramente ‘simbólico’.
VI.- A privação da liberdade por prisão preventiva, fundada em factos que a pessoa a ela sujeita não praticou, estando esta, por conseguinte, inocente, representa, mesmo não havendo fundamento para se pôr em causa a lisura da atuação do sistema de justiça, uma violação de todo indesejável do valor absoluto da liberdade, pelo que constitui um fator determinante de fixação da compensação a atribuir ao lesado à luz da equidade (art.ºs 494.º e 496.º, n.º 4 do CC).
VII.- Outrossim, uma tal compensação só será real e efetiva mediante a fixação de um valor pecuniário que permita que o lesado, não só supere emocionalmente o impacto negativo que a privação da liberdade lhe causou, como, também, que lhe permita sentir o reconhecimento do Estado de que foi cometida uma grave injustiça contra si.
VIII.- Na circunstância em que, devido à privação da liberdade por prisão preventiva injustificada, o lesado ficou impedido de usufruir de serviços (‘passeios turísticos’) que planeara e pagara com antecedência, o verdadeiro dano indemnizável não é a despesa suportada, mas o próprio serviço em si mesmo considerado, sendo este, portanto, o ‘dano real’ e ‘concreto’ verdadeiramente sofrido, servindo as despesas suportadas com a aquisição do serviço tão só de medida ou de expressão pecuniária desse dano.
IX.- A impossibilidade de usufruir dos serviços é, pois, a perda - o dano emergente (art.º 564.º, n.º 1 do CC) -, de que o lesado deve ser ressarcido, sendo que, não sendo a respetiva reposição natural possível, esse ressarcimento terá de passar pela atribuição ao mesmo do montante pecuniário equivalente (art.º 566.º, n.º 1 do CC).
X.- O dano biológico, independentemente da repercussão que possa ter na capacidade de trabalho do lesado ou simplesmente no seu bem estar biofísico e psíquico e, por conseguinte, independentemente da sua ressarcibilidade enquanto dano patrimonial ou não patrimonial, constitui um ‘dano autónomo’ que representa uma perda na aptidão funcional do lesado.
XI.- Há dano biológico quando, devido ao facto lesivo, o lesado viu a sua ‘capacidade laboral comprometida’ e sofreu ‘trauma psicológico incapacitante para o exercício das suas actividades laborais’, sendo que tais consequências, associadas que estão à aptidão para o trabalho, repercutem-se na sua capacidade de ganho, sendo ressarcíveis como dano patrimonial, mediante indemnização a fixar, não sendo possível aferir o seu valor exato, com recurso à equidade, dentro dos limites provados (art.º 566.º, n.º 3 do CPC).

Texto Integral

.- Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa os Juízes Desembargadores abaixo identificados,

I.- Relatório
(…) instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra o Estado Português, pedindo que, pela sua procedência, seja o Réu condenado a pagar-lhe:
i.- a quantia de €53.111,22 a título de indemnização dos danos emergentes;
ii.- a quantia de €352.800,00, a título de indemnização do dano biológico;
iii.- a quantia de €250.000,00, a título de indemnização dos danos não patrimoniais;
iv.- os juros de mora, sobre tais quantias pecuniárias, desde o evento danoso até integral pagamento.
Para tanto, e em síntese, alega – valendo-nos, por razões de economia processual, do que, a esse respeito, foi exposto na sentença recorrida – o seguinte.
‘No dia 14-05-2019 o Autor e a esposa apanharam um voo em (…), com escala em (…), tendo (…) como destino final.
À chegada a Lisboa, foi detido, a pretexto de a mala despachada em seu nome conter produto estupefaciente.
A sua detenção ocorreu por erro da PSP, que não acompanhou o trânsito da mala para que fosse localizado o verdadeiro responsável.
Foi sujeito a primeiro interrogatório judicial perante o Juiz 2 do Juízo de instrução criminal da comarca de Lisboa, tendo-lhe sido aplicada a medida de coação de prisão preventiva.
No inquérito, delegado na PJ – UNCTE, o seu patrono juntou vários documentos que confirmavam as suas declarações aquando da detenção e do interrogatório judicial, comprovando que a mala que continha o produto estupefaciente não era sua.
Mais solicitou a realização de várias diligências probatórias que não mereceram acolhimento pelo MP.
No dia 30-06-2019 a (…) emitiu uma reportagem sobre o caso do Autor, o que motivou que a PJ elaborasse relatório informando sobre a reportagem e novas provas que ela trazia, ignorando que tais provas já constavam dos autos.
Na mesma data, procedeu-se à inquirição do inspetor da PJ colocado no Serviço de Prevenção e Investigação do Aeroporto de lisboa, que corroborou as alegações do Autor e o equívoco na sua detenção do mesmo.
Em 03-07-2019, o Ex.mo Senhor Procurador-Adjunto promoveu o pedido de revogação da prisão preventiva do Autor, sob a alegação de que as imagens do Aeroporto de (…) e de (…) demonstravam que o Autor e sua convivente nunca tiveram contacto com a mala, colocando em dúvidas a participação do Autor no evento.
Na mesma data, o Ex.mo Sr. Juiz de Instrução criminal revogou a prisão preventiva do Autor, determinando a sua imediata libertação, efectivada de imediato.
A investigação prosseguiu e, em 19-12-2019, o Ex.mo Senhor Procurador-Adjunto reconheceu a falta de indícios da prática de crime por parte do Autor, determinando o arquivamento do inquérito em relação a ele.
Foi, assim, vítima de prisão ilegal, mediante erro grosseiro ou, ao menos, temerário na análise dos pressupostos de facto, tendo sido comprovada a sua inocência.
Pretende ser indemnizado pelos prejuízos que sofreu, já que teve que contratar advogados no Brasil e em Portugal, suportou despesas de alimentação, higiene, transporte, acomodação da sua esposa durante o período de prisão, com o processo e com acomodações e passeios que havia contratado quando planeara a viagem à Europa.
Viu, ainda, diminuída a sua capacidade laboral fruto do impacto traumático oriundo da sua privação da liberdade, bem como danos não patrimoniais pelos vexames e humilhações que passou com tal prisão, do que também deverá ser ressarcido.’
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Citado, contestou o Réu Estado Português, representado pelo Ministério Público, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Por exceção, invocou a exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal em razão da matéria e a perentória de caducidade do direito de ação.
Por impugnação, pôs em causa os factos alegados pelo Autor e o efeito jurídico que este deles pretende extrair e concluiu que a indemnização peticionada era excessiva.
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Replicou o Autor, batendo-se pela improcedência das exceções dilatória e perentória invocadas e concluindo como havia feito na petição inicial.
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Findos a fase dos articulados, foi proferido:
.- despacho a fixar em €655.911,22 o valor da causa;
.- despacho a julgar improcedente a exceção dilatória de incompetência absoluta do tribunal deduzida pelo Réu;
.- decisão a julgar improcedente a exceção perentória de caducidade do direito de ação também deduzida pelo Réu.
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Realizada a audiência prévia, nela foi proferido despacho saneador tabelar e despacho a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova, o que não mereceu reclamação das partes.
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Teve lugar a audiência de discussão e julgamento.
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Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, julgando a ação parcialmente procedente, reconhecendo-se o dever do Réu Estado Português de indemnizar o Autor no montante de €98.183,26, sendo:
a.- €50.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais;
b.- €27.183,56, a título de indemnização por danos patrimoniais;
c.- €21.000,00, a título de indemnização do dano biológico.
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Inconformado com esta decisão, dela veio o Réu interpor o presente recurso, invocando a nulidade da sentença recorrida e, assim não se entendendo, batendo-se pela sua revogação, com a consequente absolvição do mesmo do pedido.
Para o efeito, formulou as seguintes conclusões:
“1ª- A decisão de condenação do R. Estado Português com fundamento no preenchimento da al. c) do artigo 225.º do C.P.P. mostra-se em manifesta oposição com os respetivos fundamentos de facto, na medida em que estes, apontando para um quadro de dúvidas sobre a prática pelo A. do crime determinante da prisão preventiva, imporiam, como consequência lógica, a improcedência da ação.
2ª- Com efeito, de acordo com a matéria assente, tanto o pedido de revogação da prisão preventiva como o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público resultam das dúvidas existentes sobre se o A. cometeu o crime e não da demonstração que não o cometeu.
3ª- Também não resulta da matéria assente que o A. tivesse sido induzido em erro quando recebeu a etiqueta da mala ou que tivesse sido vítima de uma organização criminosa que utilizou o seu nome para fazer inserir no avião a bagagem com o produto estupefaciente.
4ª - Deteta-se, pois, contradição entre as premissas de facto da decisão e o seu dispositivo, sendo certo que essas contradições resultam à evidência da simples leitura do texto da sentença recorrida, padecendo a mesma de nulidade, nos termos do disposto no artigo 616.º, n.º 1, al. c) do C.P.C.
5ª- Sem prejuízo, sempre se dirá que ao sustentar-se na sentença recorrida que “Concluído o inquérito mostraram-se afastados todos e qualquer indícios de envolvimento do arguido na prática do crime, ficando claro para o Tribunal que o A. foi vítima de uma organização criminosa que utilizou o seu nome para fazer inserir no avião a bagagem com o produto estupefaciente.”, a Mmª Juiz a quo laborou em erro de julgamento, quanto à verificação dos pressupostos previstos da al. c) do n.º 1 do artigo 225.º do C.P.P.
6ª- Com efeito, tal asserção conclusiva não encontra apoio no acervo dos factos provados e não provados, face às dúvidas existentes sobre se o A. participou no plano de introdução da cocaína em território nacional – vide factos provados n.ºs 42, 43 e 49, para além de não anular, nem excluir, tão pouco, os fundamentos invocados pelo Mm.º JIC aquando da aplicação e revogação da prisão preventiva – vide facto provado n.º 44.
7ª- De acordo com o Mmº JIC, o A. foi sujeito à medida de prisão preventiva pela circunstância de ter consigo a etiqueta de identificação da mala que transportava a cocaína e que o habilitaria a levantá-la ou a reclamá-la no destino. Ora, tendo ficado provado que o A. tinha em seu poder, efetivamente, a etiqueta correspondente ao registo daquela mala, sem que a entrega da mesma lhe tivesse sido feita com base em erro - vide facto provado n.º 12 – resulta à evidência que não foram abaladas, nem dissipadas, as dúvidas existentes sobre o envolvimento do A. nos factos que determinaram a sua prisão preventiva.
8ª – Impunha-se, por isso, em mera decorrência dos factos provados, concluir que o A. não logrou demonstrar os pressupostos do direito invocado.
9ª – Por outro lado, afigura-se clara a redação da al. c) do n.º 1 do artigo 225.º do C.P.P. quanto à opção do legislador em responsabilizar o Estado, pelo risco inerente à privação da liberdade, apenas nos casos em que fique comprovado que o arguido não cometeu o crime.
10.ª- A alegada exigência deve ser entendida como um requisito que permite consolidar a ausência de ilicitude e culpa do agente e, bem assim, tornar inequívoca a injustiça do dano causado pela privação da liberdade, sendo esta a razão última da imposição ao Estado Português da obrigação de indemnizar o lesado.
11ª – No caso em apreço, o A. viu o inquérito arquivado por insuficiência de indícios da prática do crime.
12 ª- A Mmª Juiz a quo não podia requalificar os fundamentos daquele despacho de arquivamento, relegando-os para a esfera de previsão do artigo 277.º, n.º 1 do C.P.C., e com base nessa apreciação concluir que o A. fez prova de que não cometeu o crime.
13ª- Acresce que na presente ação não foram carreados novos elementos de prova que afastassem o A. do local do crime ou que identificassem outro agente da autoria dos factos, não tendo as declarações de parte do A., nem o depoimento da sua esposa, almejado suplantar as dúvidas existentes sobre a participação do A. nos factos que determinaram a sua prisão preventiva.
14ª- Neste contexto, não pode vingar a apreciação efetuada na sentença recorrida, quer sobre os termos concretos do arquivamento do inquérito, quer sobre os elementos de prova coligidos na ação, por preterição, nomeadamente, do disposto nos artigos 368.º, 371.º e 372.º, todos do Código Civil e dos artigos 219.º da C.R.P. e 53.º, 225.º, n.º 1, al. a) e 277.º, todos do C.P.P.
15ª- Sem prejuízo do acima exposto, verifica-se, de todo o modo, que o quantum indemnizatório fixado a título de danos não patrimoniais é excessivo, atentos os valores relativos que os tribunais têm vindo a estabelecer para danos mais relevantes e valiosos, a extensão e a gravidade das sequelas sofridas e a ausência de culpa do R. Estado Português na produção dos danos verificados, pelo que deve ser reduzido equitativamente, sob pena de violação do disposto nos artigos 483.º e 496.º do CC.
16ª- No que concerne ao quantum indemnizatório fixado a título de danos patrimoniais, deve ser excluída a parcela relativa às despesas com os passeios que o A. havia contratado, no valor de 1.876,61 euros, considerando que não resultaram da prisão preventiva, indo contra a orientação do artigo 562.º do Código Civil.
17ª- A opção de indemnizar tais despesas carecia de fundamentação e de prévia indagação sobre se o A. teve ou não possibilidade de exigir o seu reembolso ou teve ou não a possibilidade de reafetar as despesas a outra finalidade, circunstâncias essas que, a terem-se verificado, sempre excluiriam a obrigação de reparação.
18ª- Quanto ao invocado dano biológico, devem ser eliminados da matéria de facto assente os pontos n.ºs 56 e 59 por serem conclusivos e genéricos, encerrando juízos valorativos sobre as implicações da prisão preventiva na saúde e na atividade laboral do A., sob pena de preterição do disposto no artigo 607.º, n.º 4 do C.P.C.
19ª- A mera referência a trauma psicológico contante no ponto 59. dos factos provados não permite compreender o alcance da lesão em causa, nem de que forma e em que grau interferiu na realização das tarefas profissionais a que se dedicava o A., e/ou se também interferiu nas suas tarefas domésticas ou pessoais.
20ª- A expressão “incapacita para o exercício das atividades laborais” constante na parte final do mencionado ponto 59. também não explicita tão pouco quais os atos ou tarefas profissionais atingidas pela alegada lesão, desconhecendo-se de que forma e em que termos o desempenho profissional do A. é alegadamente afetado. O mesmo sucedendo com a expressão “tendo a sua capacidade laboral comprometida”, constante da segunda parte do ponto 56. dos factos provados.
21ª- De todo o modo, o R. Estado Português não se conforma com o quantum indemnizatório do alegado dano biológico, por ser manifestamente exagerado e sem respaldo em parâmetros ou critérios minimamente objetivos.
22ª – Com efeito, o A. pode cometer a terceiros a prática de atos e tarefas do espetro funcional dos que vinha exercendo e não se mostra razoável, atenta a normalidade da vida, que o A., com 71 anos, tivesse a expetativa de manter uma atividade produtiva muito para além do patamar da idade de reforma, circunstâncias que não foram devidamente ponderadas na sentença recorrida.
23ª- Por outro lado, não se justifica na sentença recorrida o recurso ao critério da esperança média de vida, sabendo-se que está em causa um alegado défice funcional atinente ao exercício de uma atividade profissional.
25ª- Também não se divisa qual o raciocínio lógico subjacente à fixação de 3.000,00 euros anuais como valor da base do cálculo da indemnização, assentando o quantum indemnizatório fixado numa matriz argumentativa de contornos indefinidos que resvala, por isso, numa certa arbitrariedade.
26ª - Por todo o exposto, não estando reunidos os pressupostos do alegado dano biológico, deve a sentença recorrida ser revogada, por preterição das normas dos artigos 494.º e 496.º do C.C. e absolvido o R. Estado Português do pedido, sendo que, assim não se entendendo, sempre deverá ser reduzido o quantum indemnizatório fixado a título de dano biológico, em função das circunstâncias do caso concreto.”
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O Autor respondeu ao recurso e, simultaneamente, pediu, nos termos do disposto no art.º 636.º, n.º 1 do CPC, a ampliação do seu objeto, formulando, para o efeito, as seguintes conclusões:
.- “Ante o exposto, requer seja negado provimento ao Recurso de Apelação interposto, tendo em vista a ausência de nulidade na sentença proferida, a qual está em consonância com a fundamentação de facto elencada, sendo que o mero inconformismo com a solução jurídica dada após a interpretação dos factos de maneira diversa da pretendida pelo Recorrente não é elemento capaz de justificar o provimento de recurso com base no art.º 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC;
.- Subsidiariamente, caso assim não se entenda, requerer a ampliação do âmbito do recurso, nos termos do art.º 636.º do CPC, de modo a serem apreciados pelo Tribunal ad quem os fundamentos acima expostos, relativos ao pedido de indemnização por conta da prisão ilegal e pautada em erro grosseiro ou temerário, negados pela sentença proferida e que certamente acarretarão a manutenção do dever de indemnizar por parte do Recorrente, na forma da lei.”
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O Ministério Público respondeu ao pedido de ampliação do recurso formulado pelo Autor, batendo-se por que lhe fosse negado provimento, formulando, para o efeito, a seguintes conclusões:
1ª – O R. Estado Português não pode ser responsabilizado pela «ilegalidade» da prisão preventiva imposta ao Recorrido, porquanto o regime previsto na al. a) do n.º 1 do artigo 225.º do C.P.P. pressupõe a existência de uma decisão judicial que declarou a ilegalidade da privação da liberdade com os fundamentos dos artigos 220.º, n.º 1 e 222.º, n.º 2 do C.P.P. e, em consequência, revogou a privação da liberdade - e tal pressuposto, como afirmado na douta sentença recorrida, não se verifica no caso em apreço;
2.ª – Com efeito, a revogação da prisão preventiva imposta ao arguido deveu-se às dúvidas suscitadas pelo Ministério Público sobre o envolvimento do arguido no cometimento do crime (face ao resultado das diligências de investigação desenvolvidas após a aplicação das medidas de coação) e não à ilegalidade da privação da liberdade;
3ª - A decisão judicial que decretou a prisão preventiva mostra-se fundamentada, quer no tocante ao ilícito indiciado, quer quanto às exigências cautelares verificadas, não cumprindo nesta sede sindicar a bondade de tais fundamentos, considerando que nenhum vício foi apontado à mesma pela jurisdição competente;
4ª – Por outro lado, ao contrário do que sustenta o Recorrido, também não existe erro grosseiro ou temerário na apreciação dos pressupostos de facto que estiveram na base da sua prisão preventiva, nos termos previstos na b) do n.º 1 do artigo 225.º do C.P.P., não se surpreendendo no arquivamento qualquer juízo nesse sentido;
5ª – Ao tempo do decretamento da prisão preventiva do Recorrido – que é o que releva –, os elementos probatórios existentes formavam um todo consistente e persuasivo da sua participação nos factos sob investigação: concorrendo nesse sentido a apreensão da mala contendo 10.900 gr de cocaína no local dos factos e a ligação do Recorrido à referida mala – através da posse da etiqueta registada no terminal de bagagens em seu nome e que o habilitava a reclamar a mesma.
6ª – Não é, pois, detetável qualquer falta de correspondência entre os motivos de facto em que o julgador baseou a sua decisão e a realidade então espelhada no processo, nem, muito menos, uma desconformidade de tal forma ostensiva e indesculpável que para ela não resvalaria um juiz dotado de médios conhecimentos, normal experiência e razoável ponderação e cautela;
7ª – Assim, ao concluir que a prisão preventiva do Recorrido não assentou em erro grosseiro – com o recorte concetual desenhado pela doutrina e pela jurisprudência –, a sentença recorrida fez uma adequada interpretação do disposto na al. b) do nº 1 do artigo 225.º do C.P.P., não tendo incorrido em violação deste preceito.”
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O recurso foi admitido em 1.ª instância como apelação, com subida nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e assim recebido nesta Relação, que, no despacho proferido nos termos da alínea a) do n.º 1 do art.º 652.º do CPC, o considerou corretamente admitido e com o efeito legalmente previsto.
Neste último despacho, admitiu-se, também, a ampliação do objeto do recurso requerida pelo Autor/Recorrido nos termos do art.º 636.º, n.º 1 do CPC, alterando-se, assim, a decisão da 1.ª instância proferida sobre tal pedido, que o admitira como recurso subordinado.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II.- Das questões a decidir
O âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos art. ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente.
Isto, com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr., a este propósito, o disposto nos art. ºs 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC).
Neste pressuposto, as questões que, neste recurso, importa apreciar e decidir são as seguintes, de acordo com a sua precedência lógica:
i.- da nulidade da sentença recorrida por oposição da decisão nela contida e dos seus fundamentos (art.º 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC);
ii.- da verificação dos pressupostos da obrigação de indemnizar o Autor/Recorrido por parte do Réu/Recorrente, à luz da alínea c) do n.º 1 do art.º 225.º do CPP;
.- na negativa quanto ao ponto ii,
iii.- da verificação dos pressupostos da obrigação de indemnizar o Autor/Recorrido por parte do Réu/Recorrente, à luz das alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 225.º do CPP;
iv.- do quantum indemnizatório fixado quanto aos danos não patrimoniais sofridos pelo Autor/Recorrido;
v.- da ressarcibilidade, enquanto dano patrimonial, do valor de €1876,61 despendido pelo Autor/Recorrido a título de ‘passeios’;
vi.- da verificação do dano biológico e, na afirmativa, da medida do seu ressarcimento.
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III.- Da Fundamentação
III.I.- Na sentença proferida em 1.ª Instância e alvo deste recurso foram considerados provados os seguintes factos:
1.- O Autor é sócio de uma sociedade comercial cujo nome fantasia é (…), a qual tem sede (…).
2.- No dia 23/11/2018 a esposa do Autor, (…), efetuou reservas de viagens pelo sítio electrónico da companhia aérea TAP, com o seguinte itinerário: (…).
3.- O valor das passagens, considerando as taxas, foi de (…), o qual foi pago por meio de cartão de crédito da titularidade de (…), sendo o valor parcelado em 6 parcelas mensais e sucessivas de (…), não estando incluídas bagagens de porão.
4.- Entre a reserva das passagens e a realização do voo o Autor teve confirmado diagnóstico de (…), o que lhe estava a causar dificuldades na fala e na locomoção.
5.- A 07.05.2019 a esposa do Autor acedeu ao sítio eletrónico da TAP para proceder ao check-in, verificando que o voo incluía uma escala em (…) (doc. fls. 111/116).
6.- A 13.05.2019 o Autor efetuou, junto do banco (…) a compra de 2.000,00€ (dois mil euros).
7.- O Autor havia adquirido em 26/08/2018 a quantia de €1.770 junto de agente de câmbio registado.
8.- Relativamente ao ano de 2018, o Autor declarou imposto de (…).
9.- A 14/05/2019 o Autor e a sua esposa dirigiram-se ao aeroporto de (…) por meio de veículo cadastrado no aplicativo Uber, chegando ao aeroporto às 14:50 p.m..
10.- Na ocasião, o Autor vestia camisa azul e calça escura e carregava consigo um casaco castanho, uma mochila preta e uma mala, aparentemente de tamanho pequeno, da cor verde escuro.
11.- Chegado à porta de embarque, foi-lhes solicitado o envio das bagagens para o porão, sendo a mala do Autor etiquetada com a identificação G3 145357, tendo sido comunicado ao Autor que apenas receberia a bagagem no destino final, ou seja, em (…).
12.- Chegado ao aeroporto de (…), já na sala de embarque, cerca das 20h00, o nome do Autor foi anunciado no altifalante do aeroporto, sendo-lhe solicitado o comparecimento na porta de embarque, onde foi informado que havia um problema com a etiqueta da sua bagagem despachada em (…) e que esta fora substituída, sendo entregue ao Autor nova etiqueta, cuja identificação era TP626235.
13.- Após desembarcar do avião, em Lisboa, o Autor e a sua esposa passaram pelos procedimentos do SEF, tendo-se dirigido ao setor de alimentação do aeroporto enquanto aguardavam o voo com destino a Paris.
14.- Por volta das 14h00, o Autor e a sua esposa foram abordados pelas autoridades policiais portuguesas, sob alegação de que havia um problema com a bagagem do Autor, solicitando a entrega dos bilhetes de embarque e passaportes e os acompanhassem para uma zona mais reservada.
15.- Os polícias portugueses apresentaram ao Autor uma mala de cor azul, completamente diferente da que havia sido despachada por ele, a qual continha a mesma etiqueta de identificação que havia sido entregue em Fortaleza ao Autor e a descrição “BULK”, escrita à mão, tendo o Autor refutado a propriedade da mala, indicando as características da sua verdadeira mala e relatado o ocorrido em relação às etiquetas de identificação.
16.- Na posse de tais informações, os polícias localizaram as verdadeiras malas do Autor e da sua esposa, revistando-as na presença destes nada localizando de ilícito.
17.- Os bilhetes de embarque e passaportes do Autor e da sua esposa foram devolvidos e estes foram autorizados a seguir viagem.
18.- Já dentro do avião com destino a Paris, o Autor e a sua esposa foram informados pela tripulação de que não podiam seguir viagem e que deviam desembarcar e acompanhar os polícias que os esperavam à porta.
19.- O Autor e a sua esposa foram colocados numa viatura da polícia que os aguardava e conduzidos para uma sala no aeroporto de Lisboa, onde os esperavam mais agentes.
20.- Nessa sala, foi aberta a mala azul acima referida sendo que dentro daquela foram localizados 10 pacotes contendo produto estupefaciente, o qual, após teste rápido, reagiu positivo para cocaína.
21.- Foi dada voz de prisão ao Autor, tendo-lhe sido apreendidos os seguintes bens:
(…).
22.- A autuação foi lavrada pelo agente da PSP-Cometlis, (…), que descreveu os factos tal como descrito no facto provado n.º 22 da sentença proferida, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
23.- Após a detenção, o Autor foi encaminhado para o Estabelecimento Prisional da Polícia Judiciária de Lisboa, sendo informado que, no dia seguinte, seria presente a Juiz para realização de primeiro interrogatório judicial e decisão acerca das medidas de coação a serem adotadas.
24.- A esposa do Autor foi libertada sem qualquer explicação, sendo-lhe entregue notificação para comparecer no Tribunal no dia seguinte para participação em ato processual.
25. Foi atribuído ao inquérito o NUIPC 38/19.4SJLSB, tendo o MP requerido o 1º interrogatório judicial do arguido, por considerar indiciada a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, cometido em co-autoria material, p. e p. pelo art.º 21.º, n.º 1 do DL 15/93 de 22/01, com referência à tabela I-B anexa ao mesmo diploma legal, considerando indiciados os seguintes factos:
(…).
26.- Na mesma data, (…), procedeu-se a 1º interrogatório judicial de arguido detido, realizado perante o Juiz 2 do Juízo de Instrução Criminal de Lisboa.
27.- O Juiz de Instrução Criminal considerou estar indiciada a prática de crime de tráfico de estupefacientes, cometido em co-autoria material, p. e p. pelo art.º 21.º, n.º 1 do DL 15/93 de 22/01 com referência à tabela I-B anexa ao mesmo diploma; verificados os perigos de continuação da atividade criminosa, de fuga e de perturbação do decurso do inquérito, concluindo pela aplicação das medidas de coação de TIR e de prisão preventiva.
28.- Após a decretação da prisão preventiva, o Autor foi encaminhado ao estabelecimento prisional junto da PJ, lá permanecendo até ao dia 30/05/2019, quando foi transferido para o estabelecimento Prisional de Caxias.
29. No âmbito do inquérito policial, foi delegada a competência para a investigação na PJ – UNCTE e determinada a perícia na memória interna do telemóvel de propriedade do Autor
e a inquirição dos agentes da PSP (…), sendo designado, aos 31/05/2019, o Senhor Inspetor (…) para a realização das investigações.
30.- A 12/06/2019, foi negado ao patrono do Autor acesso ao Inquérito Policial, o qual tramitava em segredo de justiça.
31.- A 17/06/2019, o Autor, por intermédio de seu patrono, requereu a junção de diversos documentos, designadamente:
(…)
32.- Além dos documentos juntos, o patrono do Autor solicitou, ainda, a inquirição da esposa do Autor como testemunha, a realização de prova pericial de modo a apurar se havia algum vestígio de impressão digital do Autor na mala ou nos estupefacientes localizados, a prova pericial de escrita do Autor, para verificar se a palavra “Bulk” na mala havia sido manuscrita pelo Autor, a prova pericial médico legal ao Autor, de modo a atestar o diagnóstico de aneurisma cerebral e a expedição de carta rogatória ao Brasil, para requerer que as autoridades brasileiras atentassem a veracidade dos vídeos acostados e que as companhias aéreas enviassem a lista de tripulantes dos voos utilizados pelo Autor.
33.- Em que o Exmo. Sr. Procurador-Adjunto (…) aceitou a junção de documentos e o pedido de realização de perícia de vestígios lofoscópicos, indeferindo os demais pedidos por entender que “tais diligências não revestem interesse para a descoberta da verdade material” (fls. 145).
34.- A 19/06/2019, o patrono do Autor solicitou a junção de novos documentos (fls. 147/150), que demonstravam a aquisição das passagens aéreas em data muito anterior, com pagamento parcelado, as certidões que demonstravam os bons antecedentes criminais do Autor, que jamais teve quaisquer problemas criminais e os comprovantes de aquisição lícita dos valores apreendidos.
35.- Solicitou-se, ainda, a realização de perícia ao telemóvel do Autor, bem como a realização de avaliação e perícia à personalidade do Autor, com avaliação/consequência a nível emocional e psíquico no Autor decorrentes da injusta privação da liberdade.
36.- Por fim, reiterou-se o pedido de diligência junto das companhias aéreas, para inquirição dos tripulantes e funcionários, tendo em vista que a etiqueta foi por eles emitida e a mala com estupefacientes viajou no compartimento destinado à tripulação.
37.- Novamente, houve o indeferimento dos pedidos por parte do Exmo. Sr. Procurador-Adjunto (…), que somente se manifestou expressamente acerca da inquirição das tripulações, afirmando não haver interesse para a descoberta da verdade material.
38.- A 02/07/2019, houve a junção aos autos de diversas trocas de e-mail entre os inspetores da P.J. e a companhia aérea TAP, onde a funcionária da TAP, (…), a 26 de Junho de 2019, refere “…tiveram conexão com o voo TP36, (…), constando ainda no bilhete o percurso (…). Por razões que não conseguimos identificar, em (…), a etiqueta G3145727 foi trocada para a etiqueta TP626235, pelo funcionário do handlig Agent” DNATA, com o user 700701, identificado no sistema como (…)”.
39.- Em 30/06/2019, a (…), emissora (…) de maior audiência, também presente em Portugal, exibiu no programa semanal (…), uma reportagem sobre o caso do Autor, na qual são exibidas as mesmas imagens e provas que já estavam nos autos e que até então o Ministério Público sequer tinha levado em consideração, as quais evidenciam que a mala azul não era do Autor.
40.- No dia 01/07/2019, o Sr. Coordenador de Investigação Criminal elaborou informação, juntando fotogramas daquela reportagem e concluindo que nenhuma das malas despachadas pelo Autor e sua esposa é aquela onde foi encontrado o estupefaciente.
41.- Na mesma data, houve a inquirição do Inspetor da Polícia Judiciária colocado no Serviço de Prevenção e Investigação do Aeroporto de Lisboa há mais de 10 (dez) anos, (…), o qual conclui: “todo este procedimento foge ao típico transporte de estupefaciente, fazendo pressupor que se possa tratar de uma eventual utilização indevida da identificação do passageiro (…) para o transporte de cocaína, sem que este tenha conhecimento. Perguntado, refere que este modus operandi não é inédito e que a breve análise dos dados disponíveis conduz a essa ideia, ou seja, o conjunto do material para já recolhido indicia que uma organização criminosa a operar em solo brasileiro, nomeadamente em (…), possa ter recorrido a esta forma de exportação do produto estupefaciente, utilizando a cobertura de uma viagem “lícita” de um casal.”
42.- A 02/07/2019, o Sr. Coordenador de Investigação Criminal (…), apresentou ao Inquérito NUIPC 38/19.4SJLSB, informação, na qual conclui que “Surgem fortes dúvidas de que o detido (…) tivesse efetivo conhecimento de estar a ser utilizado para a introdução de uma mala com dez (10) embalagens de produto suspeito de ser estupefaciente, e que após a realização do teste rápido DIK12 deu resultado POSITIVO de um produto suspeito de ser cocaína, com o peso de dez mil e novecentos gramas (10.900g), em território nacional, ou francês (o que possivelmente nunca vai ser confirmado em virtude da extemporânea actuação do OPC autuante).
43.- No dia 03/07/2019, o Sr. Procurador-Adjunto (…)promoveu a revogação da medida de prisão preventiva a que o Autor se encontrava sujeito, referindo que “concatenados os novos elementos de prova recolhidos com as regras da experiência comum, colocam-se sérias dúvidas sobre se o arguido tenha participado num plano de introdução de cocaína em território nacional, por via aérea e que tenha incorrido na prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21º, n.º 1 do DL 15/93.
44.- Na mesma data, o Exmo. Sr. Juiz de Instrução Criminal revogou a prisão preventiva do Autor, determinando a sua imediata libertação, efetivada de imediato.
45.- Ainda aos 03/07/2019, foi efetivada a inquirição do (…), agente responsável pela autuação do Autor.
46.- A 03/09/2019, procedeu-se à análise pericial do telemóvel do Autor, sua propriedade.
47.- Em 22/11/2019, a PJ – UNCTE elaborou relatório final.
48.- Em 23/11/2019 é junto aos autos relatório do exame lofoscópico donde resulta que “não se revelaram quaisquer vestígios com valor identificativo, pelo que o exame é considerado
negativo”.
49.- Com data de 19/12/2019, é proferido despacho pelo Sr. Procurador-adjunto (…), que conclui “impõe-se determinar o arquivamento dos autos por falta de indícios suficientes da prática, pelo arguido, do referido crime de tráfico de estupefacientes. Inexistem nos autos quaisquer elementos que conduzam à identificação dos agentes do aludido ilícito criminal, sendo certo que as diligências investigativas se mostram completamente exauridas.
Em consequência determina-se o arquivamento do inquérito, por:
1. Falta de indícios suficientes da prática, pelo arguido, do referido crime de tráfico de estupefacientes – art.º 277º, n.º 2 do CPP;
2. Falta de indícios suficientes das identidades dos agentes do referido crime – idem, ibidem.
50.- O Autor teve que contratar advogados (…), suportando honorários no valor de (…).
51.- O Autor pagou honorários aos advogados que contratou em Portugal, (…), no valor de €6.948,00.
52.- Durante o período em que o Autor esteve em prisão preventiva, a esposa deste manteve-se em Portugal, tendo que assumir despesas de alojamento, no valor de €3.470.
53.- A esposa do Autor assumiu despesas de alimentação, higiene, vestuário, fotografias e transporte na quantia de €82,94.
54.- O Autor teve que suportar as despesas com os passeios que havia contratado quando planeou a viagem e que, devido à prisão preventiva, não usufruiu, no valor de €1.876,61.
55.- Enquanto esteve em prisão preventiva, o Autor necessitou de vestuário no montante de €70,20 e de €50 em dinheiro para utilizar no estabelecimento prisional.
56.- Na sequência da privação de liberdade, o Autor apresenta sintomas de choro fácil e isolamento social, tendo a sua capacidade laboral comprometida.
57.- A 12/07/2019, logo que retornou ao (…), o Autor procurou apoio psiquiátrico consultando (…), pagando pela consulta o valor de (…).
58.- O Autor consultou o Psicólogo clínico (…).
59.- O Autor encontra-se medicado com psicotrópicos, apresentando trauma psicológico decorrente da prisão preventiva, que o incapacita para o exercício das suas atividades laborais.
60.- O Autor tinha, à data da prisão preventiva, (…) anos de idade, exercendo atividade profissional na sociedade da qual é socio.
61.- Ao longo da privação da sua liberdade, o Autor vivenciou momentos de incerteza, desconforto e humilhação.
***
III.II.- Na sentença proferida em 1.ª Instância e alvo deste recurso não foram considerados provados os seguintes factos:
a.- Que o Autor tenha adquirido euros, em 04.06.2019 e em 12.06.2019, no valor de €1000,00 e €4.500,00, respetivamente.
b.- Que o Autor tenha suportado o valor de €1.283 respeitante a passagem aérea do seu
advogado.
c.- Que o Autor tenha suportado o custo do hotel (…), em Lisboa, para alojamento do seu advogado, no valor de €225.
d.- Que o Autor tenha suportado o custo de pen drive para enviar imagens ao (…), bem como custos com tal envio.
e.- Que o Autor auferia mensalmente cerca de (…).
**
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III.II.- Do objeto do recurso
1.- Da nulidade da sentença recorrida por oposição da decisão nela contida e dos seus fundamentos 
Argui o Réu/Recorrente a nulidade da sentença recorrida, estribado no argumento de que a decisão nela contida está em oposição com os seus fundamentos.
De acordo com o disposto no art.º 615.º, n.º 1, al. c) do CPC, a sentença é, de facto, nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.
Como escrevia Alberto dos Reis, verifica-se o vício em apreço quando “a construção da sentença é viciosa, pois os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto” (in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra, 1984, p. 141).
O vício em causa corresponde, assim, como se referiu no Acórdão do STJ de 09-03-2022, a um “vício estrutural da própria sentença, por contradição entre as suas premissas, de facto e/ou de direito, e a conclusão, de tal modo que esta deveria seguir um resultado diverso” (Acórdão proferido no processo n.º 4345/12.9TCLRS-A.L1.S1, disponível na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).
Enquanto vício estrutural da sentença, não se confunde, como expressivamente salientam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta”.
Isto é, segundo os mesmos Autores, “quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e esse seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontrámo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para a determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se” (in Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 4.º edição, p. 737 e 737).
De salientar que a nulidade em apreço ocorre quando há contradição entre o raciocínio expresso pelo juiz na fundamentação da decisão, mas já não quando o antagonismo interceda entre os factos provados propriamente ditos e a decisão.
Nesses casos, servindo os factos provados de base ou terreno para a apreciação do caso à luz do direito aplicável, qualquer incompatibilidade entre a significância jurídica daqueles factos e a apreciação efetiva que o tribunal deles faça na sentença, envolve, como se referiu no Acórdão do STJ de 11-01-2018, “erro de natureza jurídica que, comprometendo o acerto da fundamentação nessa parte, se repercute no mérito do aresto, sem beliscar, todavia, a sua regularidade formal” (Acórdão proferido no processo n.º 779/14.2TBEVR-A.E1.S1, disponível na internet, no mesmo sítio supra referenciado; neste mesmo sentido, v., ainda, Acórdãos do STJ de 18-01-2018, no processo n.º 25106/15.8T8LSB.L1.S1 e de 03-03-2021, no processo n.º 3157/17.8T8VFX.L1.S1, ambos disponíveis no mesmo local).

In casu, o Réu/Recorrente sustenta a invocação da nulidade da sentença recorrida na circunstância de os fundamentos de facto que a integram apontarem para um quadro de dúvidas sobre a prática, pelo Autor/Recorrido, do crime determinante da prisão preventiva, pela qual aqui pretende ser ressarcido, que, como consequência lógica, imporia a improcedência da ação.
Ou seja, na ótica do Recorrente, a ‘matéria assente’ constante da sentença recorrida não evidencia a ‘inocência’ do Autor/Recorrido, mas apenas dúvidas sobre se o mesmo cometera o crime que lhe fora imputado, pelo que, tendo o tribunal a quo concluído que a atribuição da indemnização ao Autor/Recorrido pressupunha a demonstração daquela inocência, haveria contradição entre ‘as premissas de facto da decisão’ e o seu ‘dispositivo’.
Ora, da simples enunciação da questão feita pelo Réu/Recorrente resulta que não há qualquer nulidade atendível.
Assim, e desde logo, o suposto vício da sentença recorrida emergiria do facto de a decisão contida na sentença recorrida estar em oposição com o elenco de factos provados dela constante (com a ’matéria assente’), o que, na esteira da jurisprudência acima referida em último lugar, afasta, por si só, a nulidade em apreço.
Saber se a leitura que o tribunal a quo fez dos factos provados e se a significância jurídica que deles extraiu sustenta ou não a decisão tomada é algo que, como é bom de ver, contende com o acerto da fundamentação e da decisão à luz do direito aplicável e não com a aferição da sua regularidade formal.

Acresce que, independentemente de se concordar ou não com a interpretação que o tribunal a quo fez dos factos provados, o certo é que a explanação que fez dessa interpretação foi expressa em termos lógicos e intrinsecamente coerentes entre si.
Com efeito, relativamente à questão que se prende com o facto de o Autor/Recorrido ter feito prova da sua inocência, o tribunal a quo fundamentou a sua decisão no sentido dessa inocência com base em argumentos do seguinte teor:
.- “(…) decorre dos elementos recolhidos naquele processo crime que foram outros os agentes do crime, embora não se tenha apurado a sua identidade, tendo os autos sido arquivados, também, “por falta de indícios suficientes das identidades dos agentes do referido crime”;
.- “Da análise do processo crime, e bem assim dos factos que nestes autos resultaram provados, resulta que não há quaisquer indícios do envolvimento do arguido, tendo ficado afastados os indícios existentes à data do 1º interrogatório, pelo que há que concluir, não obstante o arquivamento nos termos do n.º 2 do art.º 277º do CPP, que não foi o arguido o agente do crime;”
.- “(…) mesmo que se considere que o arquivamento do processo crime, nos termos em que o foi, não comprova que o arguido não praticou o crime, temos que considerar que face à factualidade julgada assente nestes autos, o Autor logrou provar que não praticou o crime que determinou a sua prisão preventiva”;
.- “Efectivamente, resulta que o arguido adquiriu passagem aérea para si e sua esposa, com destino a (…), com escala em Lisboa, muitos meses antes da viajem; a escala do avião em (…) apenas foi conhecida do A. e sua esposa no momento do check in, em data próxima ao voo”;
.- “O A. e sua esposa viram as bagagens de mão serem enviadas para o porão com a indicação de que teriam que as recolher em Lisboa; tinham hotéis e passeios agendados para o período das férias, programando um stopover de 4 dias em Lisboa, antes de regressar (…);
.- “Adquiriram através dos meios oficiais euros que lhes permitissem suportar as despesas da viagem, o A. é empresários apresentando rendimentos que lhe permitiam, sem esforço, efectuar a viagem;
.- “Todos estes factos são compatíveis com uma viagem de turismo de um casal, fugindo, em absoluto, à viagem de um “correio de droga”; “Foi realizado exame pericial ao telemóvel do arguido da qual não resultou qualquer elemento que ligasse o arguido ao crime de tráfico de estupefacientes”; e “Não fosse a intercepção pela PSP no aeroporto de Lisboa, o A. e sua esposa teriam seguido viagem para (…) onde recolheriam as suas bagagens, sem que tivessem conhecimento de qualquer outra bagagem que, em seu nome, tivesse viajado de (…)para Lisboa”;
“.- O A. e sua esposa apresentaram, desde o primeiro momento a mesma versão dos factos, compatível com as demais provas recolhidas sendo manifesto, face aos elementos recolhidos que o A. não foi o A. do crime de tráfico de estupefacientes.”
Ou seja, o tribunal a quo sustentou a conclusão, no plano jurídico, de que o Autor/Recorrido não cometera o crime que lhe fora imputado com base na sua interpretação das peças processuais dos autos de inquérito a que o mesmo foi sujeito, bem como naquilo que resulta dos próprios factos que, em sede de decisão da matéria de facto, reputou provados.
Fê-lo, outrossim, e como se disse já, de forma coerente e lógica, percebendo-se perfeitamente qual foi a linha de raciocínio que seguiu para alcançar a conclusão que justificou a decisão tomada.
Podemos discordar dela no sentido de saber se foi ou não bem tomada tendo presente o direito aplicável ou mesmo se os factos provados eram suficientes para suportá-la, mas a linha de pensamento seguida, além de perfeitamente apreensível, é coerente com o substrato de facto constante da sentença.
O quadro com que nos deparamos não é, pois, um em que ‘o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência’ (o tribunal a quo argumenta a inocência do Autor/Recorrido e retira as conclusões que pressupõem essa inocência), mas sim um outro em que o juiz do julgamento ‘entendendo que dos factos apurados resultava determinada consequência jurídica, exprimiu-a na fundamentação’.
A haver vício, tal vício consistirá, assim, em erro de julgamento, mas não na falha estrutural da construção da sentença recorrida que a verificação da nulidade arguida pressuporia.

Argumenta o Réu/Recorrente que, “no local próprio da sentença”, isto é, na “enumeração dos factos provados, não consta que o Autor não tenha cometido o crime, nem do conjunto da matéria de facto não provada se infere como não provado que o Autor cometeu o crime”.
Mais uma vez, tal argumentação não pode ter acolhimento, enquanto argumento fundamentador da nulidade invocada.
Na verdade, uma expressão como a aventada pelo Réu/Recorrente, assim como que “o Autor não tenha cometido o crime”, encerra em si um conteúdo marcadamente valorativo ou mesmo conclusivo, pelo que não é da sua inclusão no elenco de factos provados que resultará a conclusão de que a pessoa a quem o crime fora imputado o não cometeu e estava inocente.
Tal constatação emergirá, sim, do conjunto de factos provados, enquanto expressão de acontecimentos da realidade exterior, na sequência da sua análise e perspetivação à luz do direito aplicável.
E foi exatamente isso, como se viu, o que o tribunal a quo fez na sentença recorrida, ou seja, analisou os factos provados, interpretou-os no sentido de que evidenciavam que o Autor/Recorrido não praticara o crime, já que este havia sido praticado por terceiros sem conexão com ele e exprimiu essa conclusão.
Se o fez correta ou incorretamente é questão a avaliar de seguida, no plano da subsunção dos factos ao direito aplicável, mas não nesta, atinente à simples regularidade formal da sentença enquanto peça processual.
Improcede, pois, a arguição da nulidade em apreço.
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2.- Da verificação dos pressupostos da obrigação de indemnizar à luz da alínea c) do n.º 1 do art.º 225.º do CPC
O quadro com que nos deparamos neste recurso é o seguinte.
O Autor/Recorrido, no dia (…), foi detido por órgão de polícia criminal e sujeito, no dia seguinte, no âmbito do inquérito criminal com o NUIPC 38/19.4SJLSB, a 1.º interrogatório judicial de arguido detido, no Juízo de Instrução Criminal de Lisboa, Juiz 2.
Realizado o interrogatório, o Juiz de Instrução Criminal, considerando estar indiciada a prática, pelo mesmo, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo art.º 21.º, n.º 1 do DL 15/93 de 22/01, com referência à tabela I-B anexa ao mesmo diplomam bem como as devidas exigências cautelares, sujeitou-o, além do TIR, à medida de coação de prisão preventiva.
O Autor/Recorrido permaneceu privado da liberdade, sujeito a tal medida de coação, desde a referida data até 3 de julho de 2019, altura em que tal medida de coação foi, após promoção do Ministério Público nesse sentido, revogada por despacho judicial adrede proferido, fundamentado nas sérias dúvidas de que, em face dos novos elementos de prova entretanto recolhidos, o mesmo tivesse praticado o crime que lhe fora imputado.
Prosseguindo o inquérito os seus termos normais, nele veio a ser proferido pelo Ministério Público, com data de 19-12-2019, despacho de arquivamento nos termos do disposto no art.º 272.º, n.º 2 do CPP, por falta de indícios suficientes da prática, pelo Autor/Recorrido enquanto arguido, do crime de tráfico de estupefacientes que lhe foram imputado.
Na sentença recorrida, considerando-se que estavam verificados os pressupostos da obrigação de indemnizar o Autor/Recorrido pela privação da liberdade a que foi sujeito, previstos na alínea c) do n.º 1 do art.º 225.º do CPP, condenou o Réu/Recorrente Estado Português a indemnizá-lo dos prejuízos sofridos com esse facto.
É contra tal decisão que o Réu/Recorrido se insurge neste recurso, manifestando a posição de que, contrariamente ao decidido, não estão verificados os pressupostos da obrigação de indemnizar previstos no preceito em apreço, designadamente, a demonstração efetiva, pelo Autor/Recorrido, de que não praticou o crime que lhe foi acusado.
É essa, pois, a questão que aqui importa analisar e decidir.

Dispõe o citado art.º 225.º, n.º 1, alínea c) do CCP que quem tiver sofrido detenção, prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação pode requerer, perante o tribunal competente, indemnização dos danos sofridos quando se comprovar que o arguido não foi agente do crime ou atuou justificadamente.
Este preceito, que foi introduzido pela Lei n.º 47/2007, de 29/08, consagra o direito de indemnização por danos sofridos em consequência (além do mais) de prisão preventiva válida e regular nos pressupostos da sua aplicação, isto é, cuja aplicação tenha respeitado a Constituição e a lei.
Pressupõe, como decorre do elemento literal, que o lesado comprove que não foi o agente do crime ou que atuou a coberto de uma causa de exclusão da ilicitude, em ação de responsabilidade civil autónoma e posterior ao processo criminal, a instaurar no competente tribunal da esfera da jurisdição cível.
Na sua previsão não cabem os casos em que a irregularidade da prisão preventiva é aferida mediante análise reportada ao momento da sua efetiva aplicação, com a sindicância do juízo de prognose póstuma do juiz que a aplica quanto à culpabilidade do arguido, mas sim os casos em que, mediante um juízo ex post (na dita ação autónoma e posterior), se reconhece que o arguido não praticou o crime ou que atuou justificadamente.
O normativo em análise, como, de resto, todo o preceito em que se insere, “visou dar cumprimento à injunção constitucional do n.º 5 do art.º 27.º da Constituição, aditado na revisão constitucional de 1982”, segundo o qual “a privação da liberdade contra o disposto na Constituição e na lei constitui o Estado no dever de indemnizar o lesado nos termos que a lei estabelecer”.
Conjuga-se, por outro lado, “com as exceções ao direito à liberdade admitidas nos termos do n.º 3 do mesmo artigo, abrangendo, desse modo, também os casos em que a privação da liberdade é determinada por ato da função jurisdicional, como sucede com a imposição de prisão preventiva”.
E corresponde, assim, “a uma situação particular de responsabilidade civil do Estado por danos causados por decisões de juízes (…), que não se confunde com a do clássico erro judiciário (…) e cujos contornos mais precisos devem ser definidos pelo legislador” (v. , neste sentido, Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 284/2020, de 28/05, proferido no processo n.º 1170/17).
Trata-se aqui de um direito também reconhecido pela Convenção Europeia dos Direitos Humanos, em cujo art.º 5.º § 5 se prescreve que qualquer vítima de prisão ou detenção em condições contrárias às disposições deste artigo tem direito a indemnização.
Como quer que seja, quer o n.º 5 do art.º 27.º da Constituição, quer este último preceito da CEDH, evidenciam que a compensação por danos decorrentes de prisão preventiva nele prevista cobre apenas situações em que a privação da liberdade seja inconstitucional, ilegal ou contrária à Convenção, pelo que nenhum deles impõe, por si só, o dever de indemnizar o arguido absolvido anteriormente sujeito àquela medida de coação.
Ou seja, “a imposição de prisão preventiva, conjugada com a posterior absolvição, não é condição suficiente do dever de indemnizar, de acordo com aqueles dois preceitos”, o que significa que “ao menos prima facie, a compensação daquele risco, que uma vez materializado se traduz no sacrifício do direito à liberdade justificado pela necessidade de salvaguardar certos valores fundamentais, não é diretamente salvaguardados por nenhuma daqueles dois preceitos” (v. o citado Acórdão do Tribunal Constitucional).

Não deixa de ser controverso, contudo, o âmbito de proteção do preceito em apreço.
Na verdade, interpretado literalmente, o reconhecimento do direito à compensação nele previsto exigiria a prova, no processo criminal ou na posterior ação cível adrede instaurada para a sua obtenção, da inocência do arguido ou da atuação deste a coberto de uma causa de exclusão da ilicitude.
O mesmo é dizer que, para a atribuição da indemnização em causa, não bastaria a não condenação do arguido no processo criminal, decorrente, ou do arquivamento do inquérito ou da não pronúncia do arguido por falta de indícios da prática do crime que lhe foi imputado, ou, mesmo, da sua absolvição em julgamento por força do princípio in dubio pro reo.
Pelo contrário, o direito à indemnização em apreço pressupõe a prova efetiva da inocência.
Tal interpretação, de acordo com uma posição, é indefensável e conduziria mesmo à sua inconstitucionalidade, por violação do princípio da presunção de inocência consagrado no art.º 32.º, n.º 2 da Constituição, ou mesmo, do da igualdade, consagrado no art.º 13.º, n.º 1 da lei fundamental – nomeadamente, nos casos de absolvição em julgamento por força do in dubio pro reo, já que, não se aceitando o direito indemnizatório pela simples absolvição com este fundamento, redundaria em distinção ilegítima relativamente a outros casos de absolvição baseada nos respetivos fundamentos.
No sentido desta posição, escreveu-se expressivamente no Acórdão do STJ de 02-02-2023 que o arguido “não tem de provar que está inocente, a acusação é que tem de provar que é culpado e quando não lograr consegui-lo o réu é declarado inocente para todos os efeitos legais”.
Segundo o mesmo Acórdão, “[s]ó há, em face da lei, duas alternativas possíveis: culpado ou inocente sem possibilidade de qualquer terceira alternativa de suspeita ambígua de que seja culpado, ainda que se não tenha conseguido demonstrar que praticou o crime”, pelo que o preceito em análise “consagra expressamente hoje (…) a responsabilização do Estado, em casos de privação de liberdade, sempre que o réu venha a ser absolvido”.
Dito de outro modo, “[n]ão importa que tenha sido absolvido porque demonstrou que não praticou o crime, ou porque não ficou provado que o praticou, nem se exige que a decisão que determinou a prisão esteja ferida de qualquer nulidade, invalidade ou excesso”, tratando-se “simplesmente de o Estado, em nome da comunidade, assumir que este é o custo do compromisso entre os direitos individuais dos cidadãos, o direito fundamental à liberdade, com assento constitucional, e os imperativos sociais de protecção das vítimas, prevenção e perseguição dos criminosos, e garantia de segurança que, também no texto constitucional, vai a par da liberdade”, não sendo, em conclusão, “legítima qualquer dúvida sobre a qualidade da inocência de um réu quando, em processo-crime, não foi provada a sua culpa” (Acórdão proferido no processo n.º 4978/16/4T8VIS.C1.S1, disponível na internet, no sítio com o endereço www.dgsi.pt).
Segundo outra posição, a prova, pelo arguido, do não cometimento do crime ou de que atuou justificadamente é, à luz da alínea c) do n.º 1 do art.º 225.º do CPP, “condição” de concessão da indemnização nele prevista.
Como se referiu no Acórdão da Relação de Lisboa de 30-09-2014, se “no acórdão absolutório (penal) se chegar à conclusão de que o arguido não praticou o crime ou que actuou justificadamente nenhuma questão se suscitada quanto ao dever de indemnizar. Pelo contrário, se nesse acórdão se suscitarem dúvidas sobre se o arguido cometeu o crime e sendo absolvido apenas em obediência ao princípio «in dubio pro reo» (…) também não há dúvidas de que a indemnização só será devida se o arguido provar (na acção de indemnização) que efectivamente não praticou o crime ou que actuou justificadamente”.
O Tribunal Constitucional já apreciou esta questão.
Assim, no Acórdão n.º 185/2010 (in DR, II-S, de 13-09-2019) julgou não inconstitucional a norma em apreço, quando interpretada no sentido de se não considerar injustificada a prisão preventiva aplicada a um arguido que vem a ser absolvido com fundamento no princípio in dubio pro reo.
Todavia, no já acima citado Acórdão n.º 284/2020 (in DR, II-S, de 08-07-2020), infletiu a sua orientação, concluindo pelo juízo de inconstitucionalidade da alínea c) do n.º 1 do art.º 225.º do CPP, se interpretado no sentido de se não considerar que não foi agente do crime ou atuou justificadamente o arguido a quem foi aplicada a medida de coação preventiva e que vem a ser absolvido com fundamento no principio in dubio pro reo.

Sopesados os argumentos subjacentes a ambas as orientações, reputamos a segunda orientação acima exposta, que exige a efetiva demonstração da inocência do arguido como condição determinante da atribuição da indemnização em causa, como a mais conforme ao espírito da solução legal compreendida no normativo em apreço, sem que com ela seja ofendida a lei fundamental.
Na verdade, o preceito em apreço é claro ao exigir que a compensação pela privação da liberdade decorrente da prisão preventiva aplicada seja atribuída quando houve uma efetiva comprovação da inocência ou da atuação justificada.
Isto é, como se referiu no Acórdão da Relação de Lisboa de 07-12-2021, “o legislador não estabeleceu (…) que a concessão da indemnização ao sujeito a prisão preventiva dependeria da respetiva não acusação, não pronúncia ou absolvição final no processo crime”, sendo que, pelo contrário, “[f]ez depender essa concessão da demonstração de que o arguido não foi o agente do crime ou que atuou justificadamente” (Acórdão proferido no processo n.º 4064/18.2T8SNT.L1-7, disponível na internet, no sítio acima referenciado).
Outrossim, apesar da evidência de que impor-se ao lesado sujeito a prisão preventiva o ónus da prova da inocência constitui uma exigência acrescida que, as mais vezes, é de difícil concretização, também não seria, como se referiu neste último aresto, citando o sobredito Acórdão da Relação de 30-09-2014, “razoável que o Estado fosse condenado a indemnizar todos os arguidos presos preventivamente e que depois fossem absolvidos, ou (…) não acusados ou não pronunciados”.
De referir, ainda, que, como acima se viu, quer do art.º 27.º, n.º 5 da Constituição, quer do art.º 5.º§ 5 da CEDH, não resulta, como reconhecido pelo Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 284/2020, que o Estado esteja inexoravelmente constituído no dever de indemnizar o arguido a quem foi aplicada uma prisão preventiva mas não venha a ser condenada, na certeza de que, como se referiu naquele aresto, “a imposição de prisão preventiva, conjugada com a posterior absolvição, não é condição suficiente do dever de indemnizar”.
Pelo contrário, a lei fundamental e a Convenção reconhecem ao legislador ordinário uma larga margem de conformação da solução a adotar quanto à temática em questão; ponto é que, na solução perfilhada, se preserve o núcleo essencial do direito à liberdade e do princípio que lhe está associado do direito à indemnização em caso de violação ilegítima desse direito por parte do servidor do Estado.
Ora, a solução legal acolhida no normativo em apreço tem na sua origem, mais uma vez segundo o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 284/2020, que o “risco” associado ao juízo que presidiu à aplicação da medida de coação “não deve correr exclusivamente por conta do indivíduo privado da liberdade a título cautelar, mas ser repartido por todos os membros da comunidade (…), uma vez e na medida em que são eles os beneficiários (…) do sacrifício imposto àquele”; o mesmo é dizer que, porque “a privação da liberdade a título cautelar se veio a revelar materialmente injustificada, é justo que o dano sofrido pelo indivíduo e a ele imposto para salvaguarda de bens que a todos interessam não o onere exclusivamente e seja igualmente compensado por todos”.
Uma tal razão de ser do preceito não só não é incompatível, como, pelo contrário, sustenta a exigência de que a compensação prevista no normativo em análise pressuponha a demonstração de que a aplicação da medida de coação foi injustificada.
De outro modo, e como se concluiu no Acórdão da Relação de Guimarães de 20-04-2023”, “seria aceitar que a absolvição era condição suficiente para a indemnização por prisão preventiva, o que é recusado pelo Tribunal Constitucional e em momento algum correspondeu à opção do legislador” (Acórdão proferido no processo n.º 1741/22.7T8BRG.G1, disponível na internet, no sítio com o endereço acima referenciado).
Nesta mesma linha de raciocínio, aponta também Maia Costa, citado com propriedade e pertinência na sentença recorrida, ao afirmar que “só a absolvição que resulte de comprovação da inocência do arguido, por não ter praticado o crime ou por ter agido justificadamente, mas já não a absolvição decorrente do funcionamento do princípio in dubio pro reo, pode fundamentar o pedido de indemnização”,  na certeza de que “a comprovação da inocência do arguido em julgamento permite qualificar como ilícita a actividade investigatória do Estado, o mesmo não acontecendo no caso da absolvição por dúvidas, em que, quando muito, poderia imputar-se ao estado uma responsabilidade pelo «risco» na prossecução da actividade de investigação criminal, um risco que é inerente à própria investigação” (in Código de Processo Penal Comentado, 2014, p. 914).
Em suma, a obrigação de indemnizar a cargo do Estado Português à luz da alínea c) do n.º 1 do art.º 225.º do CPC exige a prova de que o lesado sujeito a prisão preventiva e que não veio a ser condenado no processo-crime correspondente não cometeu o crime que lhe foi imputado ou que atuou justificadamente, prova essa que deve ser feita no próprio processo-crime ou então na ação cível a propor posteriormente, em cumprimento, aliás, do ónus da prova decorrente do disposto nos art.ºs 342.º, n.º 1 e 487.º do CC.

In casu, a solução da questão em apreço que acaba de ser perfilhada foi a expressamente preconizada pela 1.ª instância e é, também, aquela que é defendida pelo Réu/Recorrente na sua peça recursória, nada havendo, pois, que dizer a esse respeito.
O ponto da divergência do Réu/Recorrente reside na questão de saber se, como era ónus seu, o Autor/Recorrido logrou provar que não praticou o crime que lhe foi imputado e, posto que o recurso não incidiu sobre a decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida, se a prova da sua inocência resulta do elenco de factos provados constante da sentença recorrida.
A este respeito, devidamente analisados os factos provados, é a conclusão de que essa prova da inocência foi feita aquela a que chegamos, sufragando-se as conclusões expendidas pela 1.ª instância na sentença recorrida a esse respeito.
Vejamos.

O Autor/Recorrido foi sujeito à medida de coação de prisão preventiva no pressuposto da prática, pelo mesmo, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo art.º 21.º do D.L. n.º 15/93, de 22/01.
Tal crime ter-se-ia materializado no facto de, numa mala, cuja etiqueta de identificação lhe havia sido entregue no aeroporto de (…), em substituição daquela que, no aeroporto de origem da viagem, (…), lhe havia sido entregue em referência à mala que neste aeroporto despachara, terem sido localizados 10 pacotes contendo produto estupefaciente que se revelou ser cocaína.
Sucede que a mala “do Autor”, que este transportara para o aeroporto de (…) e aqui despachara, era uma mala de “cor verde escuro” (v. facto provado n.º 10), enquanto que a mala na qual foi detetada a presença do produto estupefaciente era “azul” e “completamente diferente da que havia sido despachada por ele” (v. facto provado n.º 15).
Tais divergências quanto ao objeto em causa foram imediatamente destacados pelo Autor, tendo este “refutado a propriedade da mala”, além de indicar “as características da sua verdadeira mala” (v. facto provado n.º 15), o que levou a que a polícia portuguesa que confrontou o Autor num primeiro momento tivesse “localizado as verdadeiras malas do Autor e de sua esposa”, revistando-as na presença destes, “nada localizando de ilícito” (v. facto provado n.º 16).
Ou seja, dos factos provados, tal como se mostram redigidos, resulta claramente que o juízo decisório da 1.ª instância a eles respeitante foi o de que, uma coisa era a mala que o Autor transportava - que era a sua “verdadeira” mala - e que outra era aquela em que foi detetada a presença de produto estupefaciente - que era “completamente diferente da que havia sido despachada” pelo Autor -, na certeza de que se a primeira lhe pertencia, a segunda era-lhe estranha.
Assim, e porque, como se viu, o Réu/Recorrido não impugnou a decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida, aceitando, assim, aquilo que acaba de ser referido, forçoso é concluir, tal como se concluiu naquela sentença, que, “embora não se tenha apurado a sua identidade”, “foram outros os agentes do crime” que não o Autor/Recorrido, nenhuma ligação tendo este à mala que continha o produto estupefaciente.
A esta conclusão se chega, também, da análise dos factos resultantes dos diversos elementos constantes do inquérito criminal.
Na verdade, como deles resulta, o Autor, aquando da vicissitude atinente às malas acima referida, estava a realizar com a sua esposa uma viagem cujas passagens aéreas foram adquiridas muitos meses antes da viagem - designadamente, em 23-11-2018, quando a viagem em questão nos autos decorreu em 14-05-2019 - e pagas com recurso a cartão de crédito da esposa do Autor - a qual nunca foi constituída arguida (v. factos provados n.ºs 2 e 3).
Outrossim, a escala em (…) – onde ao Autor/Recorrido foi entregue a etiqueta da mala contendo o produto estupefaciente – só em 07-05-2019 é que foi dada a conhecer, designadamente, através da esposa do Autor, no momento em que a mesma acedeu ao sítio eletrónico da TAP para proceder ao check-in, verificando, então, que o voo contemplava aquela escala (v. facto provado n.º 5).
Finalmente, o Autor e a sua esposa, como se refere na sentença recorrida, “tinham hotéis e passeios agendados para o período das férias” e programado “um stopover de 4 dias em Lisboa, antes de regressarem (…)”.
O quadro com que nos deparamos em face de tal elenco de factos - que, repita-se, não foi posto em causa no recurso -, não pode deixar de ser outro que não o de um casal a realizar uma viagem planeada com larga antecedência e que, por circunstâncias totalmente alheias à sua vontade, se viu envolvido num evento da autoria de pessoa(s) não identificada(s), aproveitando-se das circunstâncias relacionadas com o Autor, para a prática de um crime.
De resto, como também se afirmou na sentença recorrida, “realizado exame pericial ao telemóvel” do Autor “não resultou qualquer elemento que ligasse o arguido ao crime de tráfico de estupefacientes” e “não fosse a interceção pela PSP no aeroporto de Lisboa, o Autor e sua esposa teriam seguido viagem para (…) onde recolheriam as suas bagagens, sem que tivessem conhecimento de qualquer outra”.
Os factos provados constantes da sentença recorrida evidenciam, por conseguinte, que o Autor/Recorrido não praticou os factos que, no processo-crime, lhe foram imputados e que suportaram a sua sujeição à medida de coação de prisão preventiva.

Argumentou o Réu/Recorrente, para contrariar esta conclusão, e como já acima se fez referência, que, “no local próprio da sentença”, isto é, na “enumeração dos factos provados, não consta que o Autor não tenha cometido o crime, nem do conjunto da matéria de facto não provada se infere como não provado que o Autor cometeu o crime”.
Na sua perspetiva, da sentença recorrida não resulta provado, por conseguinte, que o Autor/Recorrido não tivesse praticado o crime.
Tal argumentação, contudo, não tem cabimento, reiterando-se aqui tudo quanto, a propósito, já se disse atrás.
Na verdade, uma expressão como a aventada pelo Réu/Recorrente, assim como que “o Autor não tenha cometido o crime”, tem conteúdo marcadamente valorativo ou conclusivo, pelo que não é da sua inclusão no elenco de factos provados que resultará a conclusão de que o Autor/Recorrido o não cometeu e que estava inocente.
Tal conclusão emergirá, sim, do conjunto dos factos provados constante da decisão recorrida sobre as circunstâncias da atuação do Autor/Recorrido.
Ora, dessas circunstâncias resulta, como acaba de se ver, que o mesmo não praticou o crime que lhe foi imputado e que legitimou a sua sujeição à medida de coação mais gravosa, o que basta para afastar o argumento expendido pelo Réu/Recorrente.

Mais argumenta o Réu/Recorrente que a conclusão de que o Autor/Recorrido não praticou o crime de tráfico de estupefacientes não pode ser alcançada, porque não anula, nem exclui, os fundamentos invocados pelo Juiz de Instrução Criminal que aplicou a prisão preventiva.
Ou seja, segundo o Réu/Recorrente, de acordo com o despacho de aplicação da medida de coação, o Autor/Recorrido foi sujeito a prisão preventiva pela circunstância de ter consigo a etiqueta de identificação da mala que transportava a cocaína e que o habilitaria a levantá-la ou a reclamá-la no destino.
Assim, tendo ficado provado que tinha em seu poder, efetivamente, a etiqueta correspondente ao registo daquela mala, sem que a entrega da mesma lhe tivesse sido feita com base em erro, resultaria à evidência que não foram abaladas, nem dissipadas, as dúvidas existentes sobre o envolvimento do Autor nos factos que determinaram a sua prisão preventiva, o que levaria à conclusão de que o mesmo não logrou demonstrar os pressupostos do direito invocado.
Tal argumento é, contudo, manifestamente improcedente.
Desde logo, porque se trata de argumento que, em si mesmo, serviria para afastar o juízo decisório da 1.ª instância quanto à matéria de facto, quando o recurso não versou sobre esse segmento da decisão, constituindo apenas recurso em matéria de direito.
Depois, porque os factos provados, objetivamente considerados, evidenciam, como se viu, que o Autor/Recorrido não praticou o crime que lhe fora imputado, pelo que é irrelevante para o caso o juízo indiciário que, no despacho aplicativo da prisão preventiva, tenha sido feito sobre a verificação dos indícios da prática do crime.
Ou seja, os argumentos utilizados no despacho do Juiz de Instrução Criminal tinham a sua razão de ser aquando da decisão de aplicação da prisão preventiva, servindo, nomeadamente, de suporte do juízo de prognose póstuma sobre a culpabilidade do Autor enquanto arguido, mas perderam essa mesma razão de ser a partir do momento em que, nesta ação, se provou que o Autor não praticou o crime.
Improcede, pois, a argumentação em apreço.

Argumentou, finalmente, o Réu/Recorrente, por um lado, que o tribunal a quo, ao dar como provado que o Autor não praticou o crime, “requalificou” ilegitimamente o despacho de arquivamento do inquérito, transformando-o num despacho proferido com base no n.º 2 do art.º 277.º do CPP, num outro proferido com base no n.º 1; por outro lado, que na presente ação não foram carreados novos elementos de prova que afastassem o Autor do local do crime ou que identificassem outro agente da autoria dos factos, não tendo as declarações do Autor ou o depoimento da sua esposa logrado suplantar as dúvidas sobre a participação do primeiro nos factos que determinaram a sua prisão preventiva.
Tais argumentos não têm, contudo, razão de ser.
Quanto ao primeiro, porque o tribunal a quo sustentou a conclusão de que o Autor não praticou o crime que lhe foi imputado no elenco de factos que, de acordo com o seu juízo decisório contido na decisão da matéria de facto, julgou provados e não no despacho de arquivamento proferido no inquérito, pelo que tal despacho, qualquer que tenha sido o seu fundamento legal, é irrelevante para a definição do direito aplicável ao presente caso.
Quanto ao segundo, porque se trata de considerações sobre a suficiência da prova produzida em julgamento que só podiam ter cabimento em sede de impugnação da decisão da matéria de facto que o Réu/Recorrente aqui não deduziu, pois que limitou o seu recurso à simples reapreciação da matéria de direito.

Em conclusão, dos factos provados resulta que o Autor/Recorrido não praticou o crime que lhe fora imputado no processo-crime, pelo que está verificado o pressuposto da obrigação de indemnizar previsto na alínea c) do n.º 1 do art.º 225.º do CPP.
Nenhuma censura merece, assim, a conclusão do tribunal a quo nesse sentido.
Resta dizer que, em face desta constatação, prejudicada fica a apreciação da questão, suscitada (subsidiariamente) pelo Autor/Recorrido no seu pedido de ampliação do objeto do recurso, de saber se, além do sobredito fundamento da obrigação de indemnizar, também estavam verificados os fundamentos previstos nas alíneas a) e b) do mesmo preceito.
***
3.- Do quantum indemnizatório fixado quanto aos danos não patrimoniais
Insurge-se o Réu/Recorrente contra o quantum indemnizatório fixado na sentença recorrida quanto aos danos não patrimoniais sofridos pelo Autor/Recorrido, isto é, o valor de €50.000,00 (à razão de €1.000,00 diários), que reputa excessivo.
Vejamos.
Os danos não patrimoniais são, por natureza, prejuízos insuscetíveis de avaliação pecuniária por atingirem bens, valores ou interesses que não integram o património do lesado.
Como se referiu no Acórdão da Relação de Coimbra de 03-02-10, os danos em causa são “os que afectam bens não patrimoniais (bens da personalidade), insusceptíveis de avaliação pecuniária ou medida monetária, porque atingem bens, como a vida, a saúde, a integridade física, a perfeição física, a liberdade, a honra, o bom nome, a reputação, a beleza, de que resulta o inerente sofrimento físico e psíquico, o desgosto pela perda, a angústia por ter de viver com uma deformidade ou deficiência, os vexames, a perda de prestígio ou reputação, tudo constituindo prejuízos que não se integram no património do lesado, apenas podendo ser compensado com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo mais uma satisfação do que uma indemnização” (Acórdão disponível na internet, no sítio com o endereço supra referenciado).
Tais danos são reparáveis, sendo que, com tal reparação, o que se pretende é, como referia Vaz Serra, “dar ao lesado uma satisfação ou compensação do dano sofrido, uma vez que, sendo esta uma ofensa moral, não é susceptível de equivalente” (in BMJ, 83, 83).
Por isso mesmo, a lei só manda atender aos danos não patrimoniais cuja gravidade justifique a tutela do direito (art.º 496º, n.º 1 do Código Civil).
O respetivo montante indemnizatório haverá de ser apurado, como prescrito no art.º 496.º, n.º 3 do CC), em função de um juízo de equidade, tendo em conta os fatores referidos no art.º 494º do mesmo código, designadamente, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e quaisquer outras circunstâncias cuja apreciação se justifique.
O que se pretende com a fixação da indemnização em causa é, no essencial, garantir ao lesado que, mercê dessa indemnização, este, em termos objetivos, se sinta realmente compensado pelo dano sofrido.
Como se referiu, a propósito, no acórdão do STJ de 29-01-08  “o valor de uma indemnização neste âmbito deve visar compensar realmente o lesado pelo mal causado, donde resulta que o valor da indemnização deve ter um alcance significativo e não ser meramente simbólico, para assim se intentar compensar a lesão sofrida, proporcionando aos ofendidos os meios económicos capazes de fazer esquecer, ou pelo menos mitigar, o abalo moral suportado” (Acórdão disponível na internet, no mesmo sítio acima referenciado).

O critério norteador da fixação do quantum indemnizatório por danos não patrimoniais é, como se viu, a equidade, pelo que se mostra essencial aferir qual a praxis que, nessa matéria, tem sido seguida pela jurisprudência em casos congéneres ao dos autos.
Assim, no Acórdão do STJ de 11-10-2010, fixou-se em €15.000,00 o valor da compensação por danos não patrimoniais, num caso de privação da liberdade por 4 meses, no âmbito de prisão preventiva cuja aplicação veio a ser julgada ilegal por erro grosseiro.
No Acórdão do STJ de 12-06-2017, fixou-se a compensação em €30.000,00, tendo por base uma prisão preventiva que perdurou por 2 meses e 7 dias e que veio a ser julgada ilegal.
No Acórdão do STJ de 2 de fevereiro de 2023, fixou-se em €15.000,00 o valor da compensação por danos não patrimoniais, num caso de privação da liberdade durante 325 dias; com afastamento do lesado do convívio, em situação de liberdade, com a filha e com a neta, Natal e Páscoa incluídos; sem prova de que, no meio prisional, tenha sofrido “agruras, desentendimentos ou perigo” provindo de outros reclusos.
Finalmente, no Acórdão do STJ de 25-05-2023, fixou-se em €20.000,00 o valor da compensação, num caso de privação da liberdade por 276 dias, no âmbito de uma medida de coação de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica e com autorização do arguido de, durante algumas horas, sair de casa por razões de trabalho (todos estes Acórdãos estão disponíveis na internet, no sítio já acima referenciado).

In casu, o Réu/Recorrente não questiona que o Autor/Recorrido tenha sofrido danos de natureza não patrimonial e que tais danos sejam ressarcíveis em função da sua gravidade, questionando apenas o montante indemnizatório fixado pela 1.ª instância, que reputa excessivo.
As circunstâncias que, tendo presente os factos provados e o disposto no art.º 494.º do CC acima citado, importa considerar aqui são as seguintes.
O Autor, por força da medida de coação a que foi sujeito, esteve privado da liberdade durante 50 dias, sendo que tal privação da liberdade, em se tratando de prisão de preventiva, ocorreu em meio prisional, num primeiro momento, até ao dia 30-05-2019, no estabelecimento prisional junto da Polícia Judiciária e, depois, no estabelecimento prisional de Caxias.
À data dos factos o Autor contava (…) anos de idade, exercia atividade profissional na sociedade de que era sócio, tinha sofrido recentemente um (…), que lhe causou dificuldades na fala e na locomoção e a sua privação da liberdade ocorreu no contexto de uma viagem que estava a fazer juntamente com a sua esposa com intuitos de lazer.
Sendo de nacionalidade (…), a sua prisão ocorreu em país estrangeiro, onde só contava com a presença da esposa, que, para o efeito, teve de permanecer em Portugal.
A privação da liberdade do Autor teve repercussão internacional, sendo divulgada como reportagem pelo canal televisivo (…), quer (…), quer em Portugal.
Ao longo da privação da sua liberdade, vivenciou momentos de incerteza, desconforto e humilhação e, em virtude do sucedido, apresenta sintomas de choro fácil e isolamento social, sendo que, logo que regressou ao (…), procurou apoio psiquiátrico e psicológico, estando medicado com psicotrópicos.
A aplicação da medida de coação de prisão preventiva teve por base a consideração da existência de indícios suficientes de que o Autor/Recorrido praticara um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo art.º 21.º do D.L. 15/93, de 22/01, que é um crime de extrema gravidade e que causa significativa apreensão e forte repulsa na sociedade.
O Autor/Recorrido provou que não praticou tal crime.
Ora, perante estes dados de facto, afigura-se-nos que o valor da compensação arbitrado em 1.ª instância para ressarcimento dos danos não patrimoniais sofridos pelo Autor/Recorrido se mostra adequado e equitativo.
Assim, em primeiro lugar, mas decisivamente, importa considerar que o Autor/Recorrido esteve privado da liberdade, sujeito a prisão preventiva, por factos que não praticou, ou seja, apesar da sua inocência.
Tal circunstância, mesmo não havendo fundamento para se pôr em causa a lisura da atuação do sistema de justiça no presente caso, não deixa de representar uma violação de todo indesejável de um valor absoluto como é o da liberdade e que aqui não pode ser menosprezado.
Do que se trata aqui é, como se viu, da compensação de um dano e uma tal compensação, no presente caso, só se concretizará mediante a atribuição de uma indemnização que, não só permita que o Autor/Recorrido, com o valor pecuniário correspondente, supere emocionalmente o impacto negativo que a situação dos autos lhe causou, como, também, que sinta o reconhecimento do Estado Português de que foi cometida uma injustiça quanto a si.
Por outro lado, em segundo lugar, do que se trata aqui é de uma privação da liberdade vivenciada em estabelecimento prisional, que implicou, inclusive, a transferência do Autor/Recorrido de um primeiro estabelecimento prisional para outro.
Além da privação da liberdade propriamente dita, temos, pois, não só uma privação da liberdade em ambiente emocionalmente hostil, como com forte impacto na sua rotina profissional, social e familiar diária.
Acresce, em terceiro lugar, que se trata da privação da liberdade em país estrangeiro, de um cidadão que, com (…) anos de idade, não era jovem e que acabara de sofrer das consequências de um (…), o que o limitou fisicamente, o mesmo é dizer que se trata de privação da liberdade de uma pessoa em situação de especial fragilidade e vulnerabilidade.
De referir, ainda, em quarto lugar, o facto de se tratar de vicissitude ocorrida num contexto de viagem conjugal de lazer planeada com larga antecedência, o que exponencia a frustração e a incompreensão pelo evento vivenciado, circunstância esta exacerbada pela visibilidade pública que o caso teve no país de origem do Autor/Recorrido, (…), mas também em Portugal.
Finalmente, e em quinto lugar, o evento acarretou consequências para o estado emocional do Autor que perduram no tempo e que ainda hoje comprometem o seu modo de vida pessoal.
Tudo conjugado, e relembrando-se que o valor da indemnização a atribuir a este título ‘visa compensar realmente o lesado pelo mal causado’, devendo ter, por isso, “um alcance significativo e não ser meramente simbólico’, reputamos equitativo o valor de €50.000,00 fixado na sentença recorrida.
Nenhuma censura merece, por conseguinte, tal decisão, improcedendo a pretensão do Réu/Recorrente a esse respeito.
*
4.- Da ressarcibilidade, enquanto dano patrimonial, do valor de €1.876,61 despendido pelo Autor/Recorrido a título de ‘passeios’
O Autor/Recorrido foi sujeito a prisão preventiva no decurso de uma viagem que, com a sua esposa, estava a fazer com fins de lazer.
Quando planeou a viagem, adquiriu ‘passeios’ de que, devido à prisão preventiva, não usufruiu, sendo que, com a aquisição desse serviço, despendera o valor de €1.876,61.
Na sentença recorrida, considerando-se que se tratava de dano patrimonial, condenou-se o Réu/Recorrente a ressarci-lo de tal valor.
O Réu/Recorrente insurge-se, contudo, contra a decisão recorrida nessa parte, entendendo que a despesa em causa não é, no caso, ressarcível porque:
.- constitui despesa anterior ao evento lesivo, contraída no pressuposto de que este não ocorreria, pelo que não tem causa nesse evento lesivo;
.- não há elementos que permitam saber se o Autor teve ou não possibilidade de exigir o seu reembolso ou teve ou não a possibilidade de reafetar a despesa a outra finalidade.
Ora, a pretensão do Réu/Recorrente não tem fundamento.
Na verdade, dispõe o art.º 562.º do CC que quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
Por seu turno, dispõe o art.º 566.º, n.º 1 do CC que a indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
Decorre de tais dispositivos legais que, em matéria de ressarcimento do dano causado, vigora o princípio da restauração natural.
Ou seja, como referem Pires de Lima e Antunes Varela estabelece-se nele “como princípio geral, o dever de reconstituir a situação anterior à lesão”, o mesmo é dizer “o dever de reposição das coisas no estado em que estariam se não se tivesse produzido o dano”.
Objeto da indemnização é, assim, “o dano real ou concreto” (a perda ou deterioração da coisa, a violação do bom nome, etc.), pelo que a indemnização em “dinheiro” tem caráter “subsidiário”, ou “excepcional, embora seja a forma mais vulgar de indemnizar, por impossibilidade de reconstituir o estado anterior à lesão” (in Código Civil Anotado, Vol. I, 1987, p. 581; sublinhados nossos).
De outro passo, o fito do legislador nestes casos é, de acordo com os mesmos Autores, o da reposição natural, mas “à custa do responsável, visto ser esse o meio mais eficaz de garantir o interesse capital da integridade das pessoas, dos bens ou dos direitos sobre estes” (ibidem, p. 582; sublinhado nosso).
No caso dos autos, o verdadeiro dano sofrido pelo Autor/Recorrido não foi a despesa suportada com os passeios que pretendia efetuar e, mercê da prisão preventiva, não efetuou, mas os próprios passeios em si mesmo considerados.
Esse foi o “dano real e concreto” que sofreu, servindo as despesas suportadas em vista da aquisição do serviço de medida ou expressão pecuniária desse dano.
Ora, devido à privação da liberdade a que foi sujeito, o Autor/Recorrido ficou impedido de usufruir dos serviços em causa, o que traduz uma perda - um dano emergente (art.º 564.º, n.º 1 do CC) - de que deve ser ressarcido.
A reposição natural dessa perda não é, contudo, possível, pelo que o seu ressarcimento terá de passar pela atribuição ao mesmo do montante pecuniário equivalente, por decorrência do disposto no n.º 1 do art.º 566.º do CC.
E foi isso exatamente o que foi feito na sentença recorrida, isto é, na impossibilidade de se repor o Autor/Recorrido na situação que estaria não fosse o evento danoso, atribuiu-se-lhe o montante pecuniário equivalente, no valor de € 1.876,61.
E atribuiu-se-lhe fazendo recair sobre o Réu/Recorrente a obrigação correspondente, enquanto sujeito passivo da obrigação de indemnizar, nos termos fixados pela alínea c) do n.º 1 do art.º 225.º do CPP.
Nenhuma censura merece, por conseguinte, se sentença recorrida, improcedendo a pretensão do Réu/Recorrente em análise.
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5.- Da verificação do dano biológico e, na afirmativa, da medida do seu ressarcimento
Na sentença recorrida julgou-se que, mercê da prisão preventiva a que o Autor/recorrido foi sujeito, este sofreu um dano biológico, por cujo ressarcimento lhe fixou o valor de €21.000,00, tendo presente o seguinte critério: €3.000,00 por cada ano de vida ativa previsível do Autor, no pressuposto de, tendo este (…) anos de idade à data dos factos, tal período estender-se até aos 78 anos de idade.
O Réu/Recorrente insurge-se contra este segmento da sentença recorrida, batendo-se, ou pela sua revogação, pelo facto de, do elenco de factos provados, não haver elementos concretos e suficientes que permitam concluir pela verificação do dano em causa; ou pela redução do montante indemnizatório fixado, que, na sua perspetiva, seria excessivo.
Vejamos.

O ‘dano biológico’, independentemente da incidência que tenha sobre a capacidade de trabalho da vítima, reporta-se essencialmente à violação da integridade física e psíquica da pessoa, com repercussão ao nível somático e funcional do lesado e, reflexamente, na sua vida pessoal e profissional.
Trata-se, assim, de um dano que contende, não propriamente com a capacidade da vítima de obter rendimentos do seu trabalho, mas com a “diminuição ou lesão da integridade psico-física da pessoa, em si e por si considerada, e incidindo sobre o valor homem em toda a sua concreta dimensão” (v., neste sentido, João António Álvaro Dias, in “Dano Corporal, Quadro Epistemológico e Aspectos Ressarcitórios”, Coimbra, 2001, p. 272).
Neste pressuposto, o dano biológico, no contexto da nomenclatura usualmente associada aos danos tradicionais (os danos patrimoniais e os danos não patrimoniais), constitui, como referido no Acórdão do STJ de 05-07-2017, um “dano autónomo”, considerado em vista “de uma função reparadora ao nível do lesado em manter um exercício funcional idêntico ou com a mesma amplitude e desenvoltura que faria se não tivesse sofrido a lesão corporal que determina a obrigação de indemnizar” (Acórdão proferido no processo n.º 4861/11.0TAMTS.P1.S1, citado na sentença recorrida e disponível na internet, no sítio já acima referenciado).
O dano biológico é o dano que, como se disse, incide sobre o próprio corpo da vítima considerada como pessoa humana, daí resultando a dúvida sobre se, não dizendo respeito à respetiva capacidade de ganho, constitui um dano patrimonial ou um dano não patrimonial.
A esse respeito, e seguindo de perto o Acórdão da Relação de Guimarães de 27-02-12, a jurisprudência tende a atribuir cariz patrimonial ao dano biológico, sendo certo que, como se referiu no Acórdão do STJ de 27-10-09, citado no mesmo aresto da Relação de Guimarães, “mesmo não havendo uma repercussão negativa no salário ou na actividade profissional do lesado (…) pode verificar-se uma limitação funcional geral que terá implicações na facilidade e esforços exigíveis, o que integra um dano futuro previsível segundo o desenvolvimento natural da vida, em cuja qualidade se repercute”.
Não é de descurar, porém, a possibilidade de enquadramento do dano biológico como um dano não patrimonial, pois que, como se referiu no mesmo acórdão do STJ, a incapacidade em apreço, “desde que não se repercuta directa – ou indirectamente – no estatuto remuneratório profissional ou na carreira em si mesma e não se traduza, necessariamente, numa perda patrimonial futura ou na frustração de um lucro, traduzir-se-á num dano moral”.
Deste modo, na linha da jurisprudência expendida neste último aresto, entendemos que o dano biológico poderá ser ressarcido, quer pela via do dano patrimonial, quer pela via do dano não patrimonial.
Tudo dependerá das especificidades do caso concreto, sendo que, como ali se referiu, a “situação terá de ser apreciada casuisticamente, verificando se a lesão origina, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida e, só por si, uma perda da capacidade de ganho ou se traduz, apenas, uma afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, para além do agravamento natural resultante da idade (sublinhado nosso).

Revertendo ao caso em apreço, os factos provados relevantes para a apreciação da questão em apreço são os seguintes:
.- facto provado n.º 56: “Na sequência da privação de liberdade o A. apresenta sintomas de choro fácil e isolamento social, tendo a sua capacidade laboral comprometida”;
.- facto provado n.º 59: “O A. encontra-se medicado com psicotrópicos apresentando trauma psicológico decorrente da prisão preventiva, que o incapacita para o exercício das suas actividades laborais”.
Em face de tais factos, concluímos que está verificado o dano biológico.
Na verdade, o dano biológico, independentemente da repercussão que possa ter na capacidade de trabalho do lesado ou simplesmente no seu bem estar biofísico e psíquico, é um dano que se traduz numa ofensa da aptidão funcional do lesado.
Ora, “capacidade laboral comprometida” e “trauma psicológico [… incapacitante] para o exercício das suas atividade laborais” constituem expressões reveladoras de afetação funcional do Autor/Recorrido, nomeadamente, no que diz respeito à aptidão para o desempenho da sua atividade profissional.
Argumenta o Réu/Recorrente que tais afirmações constituem uma formulação “vaga, genérica e imprecisa” do dano, “gerando dúvidas sobre o tipo de lesão concretamente sofrida pelo Autor e sobre as específicas incidências no seu dia a dia profissional”, pelo que, não traduzindo propriamente ‘factos’, seriam irrelevantes do ponto de vista jurídico, no quadro do disposto no art.º 607.º, n.º 4 do CPC.
Discorda-se, contudo, desta linha de raciocínio.
Na verdade, “capacidade laboral comprometida” e “trauma incapacitante para o exercício das atividades laborais” constituem afirmações com inequívoca base factual, traduzindo uma realidade do mundo exterior, isto é, o efeito, a consequência ou o impacto real na vida de uma pessoa decorrente de um evento lesivo.
Não se confundem, por isso, com conclusões valorativas ou mesmo com conceitos de cariz normativo que, à luz do preceito citado pelo Ministério Público, não possam ser atendidos na definição do direito aplicável ao caso.
É certo que se trata de expressões pouco desenvolvidas no que à caracterização e quantificação da afetação funcional diz respeito, mas não deixam de traduzir, em função da base factual que exprimem, a afetação funcional de que o Autor/Recorrido ficou a padecer e, portanto, o dano biológico.
A insuficiente caracterização e concretização da afetação resultante dos factos provados refletir-se-á na quantificação do dano biológico, mormente na definição do quantum indemnizatório a atribuir ao lesado, mas não afasta a verificação do dano em si mesmo considerado, que é o que aqui está em causa.
Ora, o Réu/Recorrente não impugnou a decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida, já que, como se disse já acima, e resulta expressamente do introito da sua peça recursória, o presente recurso versa exclusivamente sobre “matéria de direito” (v. o último § de fls 2 do recurso).
Outrossim, apesar de, na 18.ª conclusão, pugnar pela eliminação dos factos provados com os n.ºs 56 e 59, fá-lo, não porque discorde do juízo decisório da 1.ª instância quanto à apreciação da prova respeitante a eles, mas por, reputando-os “conclusivos” e “genéricos”, considerar que seria inadmissível a sua inclusão naquele elenco de factos, à luz do art.º 607.º, n.º 4 do CPC, o que, como se viu, não se verifica.
Concluímos, pois, que os factos em causa, comprometendo a capacidade laboral do Autor/Recorrido, exprimem o dano biológico por ele sofrido, nenhuma censura merecendo a sentença recorrida ao assim ter concluído.
Resta, pois, quantificá-lo.

O que resulta da factualidade apurada é que o Autor/Recorrido, em consequência do facto lesivo, viu a sua “capacidade laboral comprometida” e sofreu “trauma psicológico que o incapacita para o exercício das suas atividades laborais”.
Tais factos revelam uma afetação associada à sua capacidade para o trabalho, pelo que representam uma consequência com repercussão efetiva na capacidade de ganho e de obtenção de rendimento do lesado e, portanto, uma repercussão patrimonial.
Há, pois, que quantificar o dano biológico sofrido pelo Autor/Recorrido como dano patrimonial.
O valor do dano futuro emergente da desvalorização funcional deve ser aferido em termos de equidade, de acordo com o que dispõe o art.º 566.º, n.º 3 do Código Civil.
No caso, é escassa a matéria de facto relativamente a aspetos como o grau de desvalorização funcional de que o Autor/Recorrido ficou a padecer padeceu ou a repercussão efetiva da desvalorização no rendimento obtido pelo mesmo, decorrente do exercício da sua atividade profissional.
Os factos a considerar são, assim, aqueles que, no essencial, foram considerados na sentença recorrida, isto é:
.- o facto de a desvalorização sofrida pelo Autor/Recorrido representar a necessidade de maior dispêndio de esforço e energia, decorrente de uma maior fragilidade a nível emocional, para o exercício da atividade laboral;
.- o facto de o Autor ser sócio de uma sociedade comercial, da qual retira o seu rendimento;
.- o facto de o Autor ter, à data da prisão preventiva, (…) anos de idade.
Ora, dado que se trata aqui da fixação de indemnização pelo défice funcional e, assim, na limitação funcional geral daí resultante, há que considerar, ainda, aspetos como a esperança média de vida humana, na certeza de que, como se referiu no acórdão do STJ de 14-09-2010,  “as necessidades básicas não se esgotam no dia em que se deixa de trabalhar, por motivo da sua passagem à situação de reforma” (Acórdão disponível na internet, no sítio já acima referenciado).
A esse respeito, julga-se adequada a consideração, feita na sentença recorrida, de um período de vida ativa de 78 anos de idade.
E tendo presentes os demais factos acima destacados, reputamos equitativa a indemnização também fixada na sentença recorrida, de €3.000,00 anuais, até ao final do período de vida ativa do Autor/Recorrido, num total, portanto, de €21.000,00.
Impõe-se, em face do exposto, confirmar a sentença recorrida quanto à verificação e quantificação do dano biológico, com a consequente improcedência do recurso também nesta parte.
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Porque vencido, suportará o Réu/Recorrente as custas da apelação (art.ºs 527.º e 529.º do CPC).
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IV.- Decisão
Pelo exposto, decide-se julgar totalmente improcedente o recurso e, consequentemente, confirmar, na íntegra, a sentença recorrida.
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Custas pelo Réu/Recorrente.
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Lisboa, 20 de junho de 2024
José Manuel Correia
Arlindo José Colaço Crua
Higina Castelo