PROCEDIMENTO CAUTELAR
RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DA POSSE
EFEITO ANTECIPATÓRIO
POSSE
USUFRUTO
IMÓVEL
NUA-PROPRIEDADE
HERANÇA
Sumário

I - O procedimento cautelar de restituição provisória de posse possui natureza antecipatória, pois assegura a satisfação provisória do possuidor, traduzindo-se num mecanismo de defesa da posse, do qual aquele se serve contra actos de esbulho violentos, de forma a garantir, célere e eficazmente, a reconstituição ou reposição da situação possessória anterior e impedir o persistir de um estado danosos e agravante dos danos;
II - O processo judiciário de defesa da posse destina-se, assim, á protecção do estado de facto que constitui a essência da posse contra qualquer acto que signifique uma ameaça, ou uma violação à existência da relação material, acautelando a perturbação do seu exercício e obrigando á restituição do objecto possessório sempre que o possuidor dele tenha sido esbulhado, salvaguardando, deste modo, o processo possessório aquele estado de facto, enquanto não for demonstrado que não corresponde a uma concreta relação jurídica ;
III – mostrando-se indiciariamente provado que a Requerente de tal procedimento cautelar ocupa o imóvel (para além do mais) enquanto usufrutuária do direito correspondente a ½ do mesmo, de que é nua proprietária a herança do falecido marido, estando tal imóvel, assim, em regime de compropriedade, sendo a Requerida titular da plena propriedade da demais ½, resulta existir uma posição possessória (ou equiparada) que merece tutela jurídica ;
IV - à posição de usufrutuária testamentariamente legada, e ainda que apenas incida sobre ½ de tal imóvel, são aplicáveis as regras da compropriedade, pelo que é perfeitamente lícito à Requerente servir-se da totalidade da coisa, e não apenas de parte (o art.º 1406º, do Cód. Civil);
V - efectivamente, inexistindo acordo sobre o uso do imóvel (legalmente admissível, entendendo-se, todavia, que o acordado em sede de divórcio, entre o falecido e a Requerida, relativamente à atribuição do imóvel enquanto casa de morada de família, não poderá subsistir ao óbito daquele), vigora o princípio do uso integral da coisa por parte de qualquer um dos comproprietários, com a limitação decorrente, in casu, da concorrência do direito da demais comproprietária (a ora Requerida), que igualmente terá o direito de legitimamente a usar, quando para tal manifestar concreta intencionalidade ;
VI - todavia, o acesso a tal uso, que nunca havia sido operado desde a ocorrência do divórcio e do acordo operado com o então cônjuge marido (mesmo após o decesso deste), nunca poderia ser operacionalizado nos termos indiciariamente provados, esbulhando violentamente a posse da Requerente usufrutuária (para além de herdeira e cabeça de casal da herança, titular de ½ sobre tal imóvel);
VII – com efeito, caso pretendesse servir-se igualmente do imóvel comum, e na impossibilidade de eventualmente obter qualquer acordo sobre o uso com a ora Requerente, dispunha a Requerida dos meios de tutela judicialmente existentes para fazer valer a sua pretensão, mostrando-se, assim, totalmente ilegítimo e injustificado o adoptado recurso à acção directa, de forma a violentamente esbulhar a posse exercida pela Requerente;
VIII – assim, tal restituição provisória na posse do imóvel deve ser sob a sua totalidade, e não sob qualquer parcela ideal do mesmo.
Sumário elaborado pelo Relator – cf., nº. 7 do art.º 663º, do Cód. de Processo Civil

Texto Integral

ACORDAM os JUÍZES DESEMBARGADORES da 2ª SECÇÃO da RELAÇÃO de LISBOA o seguinte [1]:

I – RELATÓRIO

1 – M…, residente na Rua …, cabeça de casal da herança aberta por morte de seu marido, J…, veio intentar a presente providência cautelar de restituição provisória de posse contra:
L…, residente na Rua …, e também actualmente na Rua …, deduzindo o seguinte petitório:
1) Deve o presente procedimento ser julgado procedente por provado e, consequentemente ser a Requerida condenada a entregar de imediato à Requerente o imóvel identificado no artigo 13º, alínea A) item 1) deste petitório, livre de pessoas e dos seus bens pessoais, e dele se mantendo afastada até trânsito em julgado do Inventário nº 10991/22.5T8SNT em curso;
2) Deve ser julgada procedente, por provada a exceção de abuso de direito – venire contra factum proprium;
3) Deverá ser a requerida condenada ao pagamento da quantia de €1.000,00 (mil euros) desde Fevereiro de 2024 até final, e bem assim dos danos que eventualmente se verifiquem aquando da entrega judicial do imóvel;
4) Requer-se a não audição da Requerida por manifesta probabilidade de delapidação e deterioração dos bens, nos termos do artigo 366º do CPC;
5) Requer-se seja nomeada fiel depositária a Requerente;
6) Mais se requer seja decretada a Inversão do Contencioso uma vez que se verificam os requisitos de que o mesmo depende, nos termos do art.º 369º nº 1 do CPC”.
Alegou, em suma, o seguinte:
=> Em 21/12/2015, casou civilmente com o falecido J…, sob o regime imperativo da separação de bens;
=> Todavia, desde o início de 2015 que reside no imóvel sito na Rua ...;
=> O que sucedeu, em tal estado de casada, até ao falecimento de seu marido, ocorrido em Dezembro de 2021;
=> tal imóvel era propriedade do falecido e da sua ex-mulher (a ora Requerida) tendo sido atribuído a J… como casa de morada de família, no respetivo divórcio;
=> por testamento, por conta da sua quota disponível, J... legou à ora Requerente, então, sua mulher, o usufruto de todos os seus bens (incluindo tal imóvel);
=> a ora Requerente é cabeça de casal nos autos de Inventário que correm termos para partilha dos bens que ficaram por óbito do identificado J...;
=> sendo que a Requerida habita com os seus filhos, desde o início de 2014, num outro imóvel;
=> após 14 de dezembro de 2021, data da morte do falecido J..., o imóvel passou a ser usado exclusivamente pela cabeça de casal, ora Requerente, aí habitando de modo permanente;
=> em 2023, a ora Requerente deslocou-se a França, tendo vindo a prolongar a sua estadia em virtude de doença do seu genro, que veio entretanto a falecer;
=> tendo-se apercebido que, em Janeiro de 2024, a ora Requerida se encontrava a ocupar tal casa, sem qualquer autorização dos demais herdeiros;
=> desde o início de 2015 que tal imóvel constitui a casa de morada da Requerente, no qual se encontram os seus pertences pessoais e outros bens móveis;
=> não possuindo qualquer outra residência em Portugal;
=> pretende voltar à sua habitação acompanhada da sua filha;
=>para poder ocupar a casa, a Requerida arrombou a sua fechadura, procurando manter-se na ocupação de tal casa;
=> pelo que foi esbulhada da sua posse sobre o imóvel, com violência, pela Requerida;
=> pretendendo que tal imóvel lhe seja entregue livre de pessoas, e a Requerida condenada em manter-se afastada do mesmo até trânsito em julgado do inventário em curso.
A Requerente juntou documentos e arrolou testemunhas, tendo o procedimento cautelar sido instaurado em 28/02/2024.
2 – Designada data para a inquirição da prova testemunhal arrolada, veio esta a ocorrer conforme acta datada de 05/04/2024.
3 – Em 10/04/2024, foi proferida decisão, em cujo DISPOSITIVO consta o seguinte:
“IV - DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos julga-se procedente o presente procedimento cautelar de restituição provisória de posse e, em consequência, ao abrigo do disposto pelo art. 378º, do Código de Processo Civil, decide-se ordenar a restituição provisória, à Requerente, da posse de ½ do prédio urbano sito na Rua …, freguesia de …, composto de casa de r/c para habitação e garagem; dependência para arrecadação e coelheira e logradouro, com a área total de 640 m2, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o número … da referida freguesia de …, inscrito na matriz predial urbana com o artigo … da mesma freguesia;
absolvendo-se, a Requerida, do demais peticionado contra si.
Mais se decide dispensar a Requerente do ónus de propositura da ação principal - art. 369º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Custas pela Requerente (art. 539º, nº 1, 1ª parte, do Código de Processo Civil).
Registe e notifique, sendo a Requerida, após a realização da providência decretada, nos termos do art.º 366º, nº 6, do Código de Processo Civil; e para os efeitos dos arts. 370º e 372º, do Código de Processo Civil; e, bem assim, oportunamente - após o trânsito da presente decisão - nos termos e para os efeitos do art.º 371º, nº 1, do Código de Processo Civil”.
4 – Notificada de tal decisão, em 30/04/2024, veio a Requerente apresentar requerimento de clarificação da decisão proferida, “dado que a restituição provisória da posse a ocorrer no dia 09 de Maio será a correspondente à quota-parte pertencente à Requerida, sendo o imóvel entregue na sua totalidade à Requerente livre de pessoas”.
5 – Conhecendo acerca desse requerimento, em 02/05/2024, foi proferido o seguinte despacho:
“Requerimento da Requerente de 30-4-2024:
Na verdade, não se vê que a decisão careça de esclarecimento.
A ora Requerente, M..., conforme alegado, revela ser compossuidora do imóvel dos autos, na proporção de metade; sendo, a outra compossuidora, por se mostrar ser comproprietária do imóvel, a ora Requerida, L..; a Requerente foi esbulhada da posse sobre o imóvel; e, conforme decidido, deverá ser restituída à posse sobre esse mesmo imóvel, na proporção do seu direito: metade (½).
Assim, nada mais a decidir.
Notifique”.
6 – Inconformada com o decidido, a Requerente interpôs recurso de apelação por referência à decisão prolatada.
Apresentou, em conformidade, as seguintes CONCLUSÕES (que ora se transcrevem, na íntegra):
“1 – A Apelante foi notificada da sentença em crise a qual julgou procedente o procedimento cautelar de restituição provisória de posse e, em consequência, ordenou a restituição provisória, à Apelante, da posse de ½ do prédio urbano sito na Rua....
2 – A sentença em crise deu como não provados determinados factos, que também os considerou como provados, entrando assim numa clara contradição.
3 – A Apelante com a presente providência cautelar de restituição provisória de posse, pretendia sim a restituição da totalidade do imóvel, e não apenas a restituição de 1/2, pois esta proporção já lhe seria atribuída em virtude da sua qualidade de cabeça de casal e administradora da herança aberta por óbito de seu falecido marido J... e como usufrutuária, como alias consta do pedido.
4 – A Apelante em finais de dezembro de 2014 regressou a Portugal de forma a cuidar do falecido J..., passando a residir no imóvel, propriedade daquele.
5 – Em 2015 a Apelante casou civilmente com o falecido J..., passando a residir na referida morada, fazendo do imóvel a sua habitação exclusiva e permanente, recebendo aí os seus familiares e amigos.
6 - O imóvel sito na Rua... ficou atribuído ao falecido J... como casa de morada de família em consequência do divórcio que decorreu sob o número 4841/15.6T8SNT – Juízo de Família e Menores de Sintra – Juiz 2 contra a Apelada, dado que procedeu ao pagamento da totalidade do preço da aquisição.
7 – O falecido J... instaurou ação cível de enriquecimento sem causa sob o nº 1852/18.3T8SNT – Juízo Central Cível de Sintra – Juiz 4 contra a Apelada, uma vez que, apesar de a mesma constar no registo predial como proprietária de ½ do referido imóvel, o que é facto é que foi aquele quem procedeu ao pagamento da totalidade do preço com capitais próprios.
8 – A Apelada em inícios de 2014 abandonou a casa de morada de família, tendo passado a residir no imóvel sito na Rua …, propriedade de seu filho menor JS…, pois foi-lhe doado pelo seu falecido Pai J....
9 – Entretanto, em 14 de dezembro de 2021 faleceu o Sr. J..., no estado de casado com a Apelante, tendo procedido a outorga de testamento público, constituindo o usufruto de todos os bens e direitos de que fosse titular a favor da Apelante.
10 – A Apelante, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de seu falecido marido, procedeu à participação do imposto de selo, bem como outorga da escritura de habilitação de herdeiros.
11 – A Apelante procedeu ainda a incidente de habilitação de herdeiros no processo de enriquecimento sem causa e instaurou o competente processo de inventário, atendendo à existência de herdeiros menores.
12 – A Apelada na qualidade de Ré no processo de enriquecimento sem causa foi notificada do incidente de habilitação de herdeiros, tendo tido conhecimento da existência do testamento e seu conteúdo.
13 – A Apelada também tem perfeito conhecimento do processo de inventário que corre termos sob o número 10991/22.5T8SNT junto do Juízo Local Cível de Sintra – Juiz 4, dado que seus filhos foram citados para os referidos autos, tendo apresentado reclamação contra a relação de bens, tendo o tribunal a quo acesso a tal informação e estado do processo, pelo que não se percebe como é que este facto foi dado como não provado na decisão em crise.
14 – A Apelada nunca se opôs à utilização do imóvel por parte da Apelante, pois sabia perfeitamente que se tratava da casa de morada de família, era usufrutuária e cabeça de casal da herança aberta por óbito de J....
15 – A Apelante sempre residiu no imóvel sito na Rua..., procedendo à sua manutenção e conservação, pagamento dos fornecimentos de água, eletricidade, gás e telecomunicações, através de débito direto e recebendo ali toda a sua correspondência.
16 – Pelo que, não se percebe os factos dados como não provados na sentença em crise, pois no ponto 29 da decisão em crise deu como provado o pagamento dos referidos fornecimentos e de imediato nos factos dados como não provados refere que não ficou provado que a Apelada beneficia dos referidos consumos.
17 – Ora, é mais que evidentemente que se a Apelante procede aos pagamentos dos referidos fornecimentos através de débito direto e se é a Apelada quem se encontra no imóvel, a mesma beneficia dos referidos consumos o que resulta de raciocínio logico.
18 – Entretanto, em meados de 2023 a Apelante deslocou-se a França, atendendo a que seu genro se encontrava bastante debilitado face a doença oncológica prolongada, tendo acabado por falecer.
19 – Face a tal sucedido, a Apelante decidiu ficar mais um tempo em França para dar apoio e auxílio a sua filha, pois num curto espaço de tempo perdeu seu Pai e seu marido.
20 – No referido período, o imóvel sito na Rua............, ficou ao cuidado de familiares de forma a verificarem o seu estado, limpeza de jardim e recebimento de correspondência.
21 – Só que, em outubro de 2023, os referidos familiares decidiram ausentar-se do país, não podendo cuidar do referido imóvel.
22 – Assim, em Janeiro de 2024, dado que a Apelante pretendia regressar a Portugal em Abril deste ano, a mesma remeteu as chaves dos portões de aceso ao referido imóvel para o gabinete dos seus Mandatários, de forma a poderem verificar o seu estado e jardim.
23 – Aquando do recebimento das chaves, a Dra. P… deslocou-se ao imóvel, tendo verificado que os estores se encontravam abertos e existiam brinquedos no pátio do imóvel, o que estranhou, pois até finais de dezembro de 2023 os estores estavam fechados.
24 – Contudo, tentou inserir nas fechaduras as chaves dos portões e verificou que as mesmas não procediam à sua abertura, pois as fechaduras tinham sido trocadas, ao que tocou à campainha e apareceu a Apelada.
25 – A Apelada não tinha as chaves de acesso ao imóvel, tendo-se introduzido no mesmo, sem autorização e consentimento da Apelante, pois bem sabia que ali residia aquela e que nunca se opôs ao uso do imóvel, não se coibindo de praticar atos que ofendiam a posse da Apelante.
26 - Este esbulho foi, ainda, violento, porque a Ré colocou, ainda, novas fechaduras na porta de acesso ao imóvel, e, como escreveu o Relator António Sobrinho num acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães “Na ação cautelar de restituição provisória de posse, quando a atuação do esbulhador sobre a coisa esbulhada é de molde a, na realidade, tornar impossível a continuação da posse, seja através de obstáculos físicos ao acesso à coisa, seja através de meios que impedem a utilização pelo possuidor da coisa esbulhada, estaremos perante um caso de esbulho violento;”.
27 – A Apelante tinha os seus pertences pessoais dentro do referido imóvel, assim como todos os bens móveis pertencentes à herança aberta por óbito de J....
28 – A decisão em crise não efetuou uma correta análise da prova documental e testemunhal produzida em sede de inquirição de testemunhas, a qual foi clara, precisa, objetiva e concisa, pois o imóvel era habitado única e exclusivamente pela Apelante.
29 - Ora, e no entendimento da Apelante, deveria constar da decisão proferida que a mesma é usufrutuária da quota-parte pertencente à herança aberta por óbito de seu falecido marido J..., devendo ser restituída provisoriamente a quota-parte (1/2) pertencente à Apelada, por efeito do direito de usufruto e da detenção da posse da totalidade do imóvel.
30 - A Apelante é usufrutuária da quota-parte pertencente à herança aberta por óbito de J... e cabeça de casal, usando o imóvel desde pelo menos dezembro de 2014, o qual constitui a casa de morada de família, não tendo colocado em causa a compropriedade existente.
31 - Tendo o falecido J... o direito de uso passou a ser exercido exclusivamente pela Apelante, dado tratar-se da casa de morada de família, mantendo-se a posse por detenção desta e comprovado abandono da mesma por parte da Apelada, uma vez que voluntariamente o declarou no processo de divórcio.
32 - Neste sentido, refere Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Volume III, Coimbra Editora, Limitada, 1972, pág. 324 que;
Em primeiro lugar, há que respeitar o que houver sido acordado entre os interessados. Este acordo tanto pode constar do título constitutivo da compropriedade, como resultar de acordo posterior, ditado pelo consenso unânime dos interessados ou pela simples maioria dos consortes, nos termos em que esta decide sobre a administração da coisa”.
33 - Ainda a propósito deste meio, António Lima Araújo e Fernando Reboredo Seara explicam que “o constituo possessório consiste na conversão de uma posse em detenção, em consequência da realização de dois atos jurídicos simultâneos;
Um principal e outro acessório: um ato jurídico que tenha como consequência e transferência de posse daquele que até ali era o seu titular, e depois um outro em virtude do qual seja considerado como detentor. O anterior possuidor passa, então, a ser considerado como um simples detentor ou possuidor precário”, in “Direitos Reais”, págs. 215 a 217.
34 - Também neste sentido, cfr. Luís Menezes Leitão, Direitos Reais, Almedina, 2011, 2ª edição pág. 141 e seguinte e Menezes Cordeiro, pág. 136 e seguintes, defendem que, “a perda da posse pode ocorrer em virtude de abandono verificando-se acessão do elemento material (corpus) ou do elemento intencional (animus) em que se traduz a posse podendo em certos casos ocorrer a cessação de ambos elementos. O abandono consiste na situação inversa do apossamento. Neste caso o possuidor abdica da sua posse sob a coisa, sustentando Pire Lima e Antunes Varela que tal sucede após a posse de um ano e um dia por terceiros – sic”.
35 - Em suma, para que ocorra a aquisição da posse por constituto possessório é necessário, como o próprio nome indica, que, subjacente à alienação do direito real, haja “um acordo” no sentido de manutenção da
detenção da coisa pelo antepossuidor ou por terceiro, entre o possuidor titular que aliena o seu direito real, in casu, o direito de propriedade, e a adquirente desse mesmo direito, cfr. Acórdão do TRP de 04/12/2007. Como quer que seja, o adquirente do direito de propriedade sobre a coisa adquire a posse da mesma, não obstante a detenção sobre ela continue a ser exercida pelo anterior possuidor ou por terceiro, mediante acordo nesse sentido, como sucedeu comprovadamente nos autos de divórcio.
36 - Como recurso à figura dogmática do constituto possessório, decidiu-se no Acórdão do TRC de 09/01/2019 que “se o proprietário, que habitava uma fração habitacional, por contrato de compra e venda titulado por escritura pública, tiver vendido a mesma, mas continuando a residir nela com consentimento e autorização dos adquirentes, o que resulta é que aquele perdeu a posse, por ausência do elemento intencional (solo animo), pois que, de sujeito da posse, se converteu em detentor”.
37 - Pode ser afirmado, à luz das normas substantivas, que a posse, enquanto poder de facto exercido sobre a coisa, é protegida pelo sistema jurídico porque corresponde, por princípio, à aparência da titularidade do direito correspondente, tendo significando, que aquele que exerce aqueles poderes de facto sobre a coisa correspondentes ao exercício do direito real é, tudo o indica, segundo as regras da experiência comum, o verdadeiro titular do direito real.
38 - Ademais, é sob esta perspetiva que se deve compreender a presunção consagrada no artigo 1268º, n.º 1 do CC de que o possuidor é o titular do direito (real) correspondente ao exercício do direito sobre a coisa.
39 - Através da posse tutela-se, no fundo, a exteriorização ou a aparência do direito, relevado pela retenção e fruição da coisa, independentemente da averiguação da sua titularidade e, consequentemente, sempre que ocorra o exercício fáctico de poderes sobre a coisa, o titular passa a beneficiar da proteção possessória.
40 - As razões desta proteção prendem-se com a defesa da paz pública e da continuidade do exercício das posições jurídicas.
Como explica Menezes Leitão, “Efetivamente, se alguém, pela violência, resolver perturbar ou mesmo subtrair-lhe essa coisa, o Direito, para reprimir essa situação, não necessita da efetiva demonstração de que o lesado é titular de direitos reais sobre a coisa. O simples facto de se encontrar a exercer poderes sobre ela é suficiente para que ordem jurídica lhe permita a manutenção ou a restituição da coisa, independentemente da discussão sobre a efetiva titularidade do direito”, in “Direitos Reais”, 2009, pág. 109 e Acórdão do TRG de 15/06/2022, processo n.º 3883/21.7T8VCT-A.G1.
41 - No caso concreto, a Apelante desde 2014 que detém o direito de uso do imóvel identificado nos autos, bem como a sua posse face ao acordo estabelecido no processo de divórcio ocorrido entre o falecido J... e a Apelada e ainda após a morte deste, face à qualidade de usufrutuária e à qualidade de cabeça de casal e administradora da herança.
42 - Assim atentos os factos dados como provados e o prolongamento no tempo por parte da Apelada da sua intenção de não exercício da posse sobre o imóvel, a qual, conforme facto dado como provado no ponto 5, está posta em questão e aguardar decisão judicial, com todo o respeito que é muito, suscita-se-nos a necessidade de clarificar e exprimir que a restituição provisória da posse de ½ do imóvel, será a quota-parte pertencente à Apelada, pois a Apelante é usufrutuária da restante quota-parte, pertencente à herança aberta por óbito de J... e pelo animus verificado durante vários anos e sem oposição daquela.
43 - De salientar, que o tribunal a quo considerou que estavam preenchidos os pressupostos para o decretamento da providência cautelar, porquanto tanto a posição da Apelante de cabeça de casal, como a posição de administradora da herança e usufrutuária lhe atribuem posse do imóvel, artigos 757º do CPC e 2088º do CC.
44 - Da articulação do artigo 2088º, n.º 1 com o artigo 1286º ambos do CC, resulta que, em relação ao compossuidor, o cabeça de casal, embora não possa recorrer à ação de manutenção de posse, pode, porém, utilizar sempre contra ele, tal como em relação a terceiro, a ação de restituição de posse. É de reconhecer legitimidade ao autor, como cabeça de casal, para solitariamente, deduzir um pedido de restituição de posse (Acórdão do TRE de 21/11/1991, BMJ, 411-675).
45 – Enquanto a Apelada se mantiver no imóvel, a Apelante não poderá aceder ao mesmo, não o poderá administrar ou até fazer uso da sua posse. A Apelante desde finais de 2014 detém a posse do imóvel na sua totalidade, cfr. Acórdãos 0826514 do TRP e do TRC de 12/09/2023, processo n.º 2320/23.7T8VIS.C1.
46 - Face ao exposto, o Tribunal a quo não podia deixar de decretar a restituição provisória de posse da totalidade do imóvel sito na Rua..., assim como não deveria ter dado como não provados os factos constantes da decisão em crise, dado que os mesmos já tinham sido dados como provados.
47 - A sentença em crise deve, pois, ser revogada e substituída por outra que ordene a restituição provisória da posse da totalidade do imóvel sito na Rua...”.
7 – O recurso foi admitido por despacho de fls. 256, datado de 08/05/2024, como de apelação, com subida nos próprios autos, de imediato e com efeito devolutivo.
8 – Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar, valorar, ajuizar e decidir.

**
II – ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO
Prescrevem os nºs. 1 e 2, do art.º 639º do Cód. de Processo Civil, estatuindo acerca do ónus de alegar e formular conclusões, que:
1 – o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 – Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
Por sua vez, na esteira do prescrito no nº. 4 do art.º 635º do mesmo diploma, o qual dispõe que “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”, é pelas conclusões da alegação da Recorrente Apelante que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Pelo que, no sopesar das conclusões expostas, a apreciação a efectuar na presente sede determina apurar se deve ser decretada a peticionada restituição provisória da posse da totalidade (e não apenas de ½) do imóvel sito na Rua..., composto de casa de r/C para habitação e garagem, dependência para arrecadação e coelheira e logradouro, com a área total de 640 m2, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de … sob o número …, da referida freguesia de …, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., da mesma freguesia.
Na pretensão recursória apresentada, a Apelante delimita o objecto de apreciação nos seguintes termos:
1. DA EVENTUAL PERTINÊNCIA DA MODIFICABILIDADE DA DECISÃO PROFERIDA SOBRE A MATÉRIA DE FACTO, nos quadros do art.º 662º, do Cód. de Processo Civil, o que determina a aferição:
I) Da factualidade não provada:
=) da contradição entre o facto provado 29. e o facto não provado 2.;
=) o facto não provado 1. deve passar a figurar como provado,
o que implica a REAPRECIAÇÃO DA PROVA;
2. Seguidamente, aferir acerca da SUBSUNÇÃO JURÍDICA EXPOSTA NA DECISÃO RECORRIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS (inicialmente ou fruto das alterações infra em apreciação), o que implica apreciação do ENQUADRAMENTO JURÍDICO DA CAUSA; nesta, conhecer-se-á fundamentalmente acerca da seguinte questão:
I) Deve a determinada restituição provisória da posse reportar-se à totalidade do imóvel em equação, ou apenas à posse de 1/2 do mesmo?

**

III - FUNDAMENTAÇÃO

A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Na decisão recorrida/apelada, foi considerado como INDICIARIAMENTE PROVADO e relevante o seguinte (procedeu-se à correcção de lapsos de redacção; assinalou-se com * os factos objecto de impugnação; consta a negrito a factualidade ora alterada):
1. A ora Requerente, em 21 de dezembro, de 2015, casou civilmente com o ora falecido J..., sob o regime imperativo da separação de bens.
2. A Requerente, desde o início do ano de 2015, já residia com o ora falecido J... no imóvel sito na Rua....
3. O imóvel urbano sito na Rua..., composto de casa de r/c para habitação e garagem; dependência para arrecadação e coelheira e logradouro, com a área total de 640 m2, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o número 7803 da referida freguesia de Algueirão Mem Martins e inscrito na matriz predial urbana com o artigo 1059 da mesma freguesia, foi atribuído ao falecido J... como casa de morada de família, em consequência de divórcio que decorreu sob o número 4841/15.6T8SNT no Juízo de Família e Menores de Sintra – Juiz 2, por iniciativa de J... contra a aqui Requerida.
4. A propriedade deste imóvel ora descrito mostra-se inscrita na 1ª Conservatória do Registo Predial de Sintra, Freguesia de …, sob o nº …, em nome de J..., então, casado com L…, no regime imperativo da separação de bens; e em nome de L..., então, casada com J..., no regime imperativo da separação de bens, por ter sido adquirida por compra a Santa Casa da Misericórdia de Sintra (Ap. 205 de 2013/02/28).
5. J…, então, casado, com M... interpôs contra L…, ação judicial formulando o seguinte pedido: sentença que reconheça o enriquecimento sem causa da Ré à custa do Autor e ser a Ré condenada a pagar ao Autor a quantia de 100.000,00 euros; e o pedido subsidiário: ser reconhecido a perda do benefício obtido pela Ré em virtude do casamento e ser ordenado o cancelamento da referida aquisição registada a favor da Ré devendo ser reconhecida a totalidade do direito de propriedade ao Autor; invocando, o aí Autor, ademais, ter pago, exclusivamente, a expensas suas, o valor de aquisição do imóvel.
6. A Requerida habita com os seus dois filhos menores, JS… e MA…, desde inícios de 2014 no imóvel sito na Rua …, em …, imóvel doado pelo falecido J... ao menor JS....
7. No dia 14 de dezembro de 2021 faleceu o Sr. J... no estado de casado com a Requerente.
8. O ora falecido J... deixou um testamento público lavrado no dia 24 de julho de 2017, exarado de folhas 63 a folhas 64 verso do Livro de Testamentos número 4, do Cartório Notarial de Sintra (Mem Martins), a cargo da Notária M…, onde legou, por conta da sua quota disponível, a sua mulher, ora Requerente, o usufruto de todos os bens e direitos de que tenha titularidade à data da sua morte.
9. A ora Requerente outorgou na qualidade de cabeça de casal da herança por morte de seu marido J..., na escritura de Habilitação de Herdeiros, lavrada no dia 14 de janeiro de 2022 no Cartório Notarial de Sintra – Dra. A… -, exarada de folhas 25 a 26 do Livro de Escrituras diversas 181.
10. A ora Requerente, na qualidade de cabeça de casal da herança por morte de seu marido J..., na escritura de Habilitação de Herdeiros acima referida, declarou que seu falecido marido, J..., deixou o testamento acima referido, tendo-lhe sucedido como seus herdeiros legitimários:
- sua esposa, M...;
- sua filha MC...;
- seu filho JS...;
- e sua filha MA...
11. A ora Requerente, nessa qualidade de Cabeça de Casal, procedeu à declaração de bens no Serviço de Finanças respetivo.
12. A ora Requerente instaurou processo de inventário que corre termos sob o número 10991/22.5T8SNT no Juízo Local Cível de Sintra – Juiz 4.
13. No referido processo de Inventário a Requerente relacionou do seguinte modo os bens, imóveis e móveis integrantes o acervo da herança aberta por óbito de J...:
A) Imóveis
1) ½ do prédio urbano sito na Rua..., freguesia de ..., composto de casa de r/c para habitação e garagem; dependência para arrecadação e coelheira e logradouro, com a área total de 640 m2, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o número … da referida freguesia de …, inscrito na matriz predial urbana com o artigo … da mesma freguesia e com o valor patrimonial tributário de €77.515,94 (setenta e sete mil quinhentos e quinze euros e noventa e quatro cêntimos),
2) Prédio rústico sito na freguesia de …, designado de Corga dos Laços, composto de pinhal e mato, com a área de 990 m2, confronta a Norte com CG, a Sul com MM, a Nascente com JA e a Poente com Caminho, descrito na Conservatória do Registo Predial de Oleiros sob o número ……. da freguesia de Estreito, inscrito na matriz predial rústica com o artigo ... da referida freguesia de Estreito – Vilar do Barroco, que teve origem no artigo … da extinta freguesia de Estreito, com o valor patrimonial tributário de €7,23 (sete euros e vinte e três cêntimos);
3) Prédio rústico sito na freguesia de ..., designado de Corga do Laço, composto de pinhal e mato, com a área de 6700 m2, confronta a Norte com GL, a Sul com MR, a Nascente com JA e a Poente com Caminho, descrito na Conservatória do Registo Predial de Oleiros sob o número ... da freguesia de Estreito, inscrito na matriz predial rústica com o artigo ... da referida freguesia de Estreito – Vilar do Barroco, que teve origem no artigo … da extinta freguesia de Estreito, com o valor patrimonial tributário de €69,50 (sessenta e nove euros e cinquenta cêntimos);
B) Bens Móveis
4) Revolver de defesa n.º 691202 de marca Ruby Extra Punção Espanhóis, Calibre 32, com o livrete n.º 92896, série C;
5) Carabina de Recreio n.º 81600 de marca E. Guisasola Punção Espanhóis, Calibre 9 MM, com o livrete n.º 79656, série E;
6) Pistola de Defesa n.º 780.917 de marca Unceta Y CA., S.A. “Astra” Punção Espanhóis, Calibre 6,35, com o livrete n.º 53281, série B;
7) ½ do depósito à ordem na conta n.º 45544739025 do Banco Millennium BCP, cujo valor à data do óbito do falecido J... era de €5.813,01 (cinco mil oitocentos e treze euros e um cêntimo).
14. Não se mostra realizada a partilha dos bens deixados por óbito de J....
15. Após 14 de dezembro de 2021, data da morte do falecido J..., o imóvel sito na Rua............, passou a ser usado exclusivamente pela ora Requerente, M..., ali habitando e recebendo familiares e amigos, fazendo do mesmo a sua habitação exclusiva e permanente.
16. Entretanto, em meados do ano de 2023 a Requerente decidiu deslocar-se a França a fim de acompanhar sua filha, cujo marido se encontrava doente.
17. Sucede que, durante a sua estadia em França e face a doença prolongada, faleceu o seu genro, tendo a Requerente prolongado a sua estadia de forma a dar apoio a sua filha.
18. O imóvel onde habitava a Requerente ficou ao cuidado de familiares de forma a verificarem do estado deste.
19. Em outubro de 2023 tais familiares iriam ausentar-se do país e não conseguiam deslocar-se ao imóvel.
20. Face a essa comunicação e por a Requerente não consegui regressar de imediato a Portugal, solicitou a intervenção dos seus Advogados no sentido de visualizar o estado do imóvel.
21. Nessa sequência, a Dra. P… deslocou-se várias vezes ao imóvel e verificou do seu exterior que o mesmo se encontrava fechado e sem sinais de usurpação.
22. No início de janeiro de 2024, a Requerente remeteu para o escritório do signatário as chaves de acesso aos portões do imóvel, de forma a que se pudesse verificar o estado do imóvel.
23. Após a receção das chaves de acesso aos portões do imóvel, a Dra. P… no dia 29 de janeiro de 2024 deslocou-se ao imóvel, de forma a verificar o estado do imóvel e apercebeu-se que os estores se encontravam abertos.
24. Tentou proceder a abertura do portão de acesso à entrada principal do imóvel, e as chaves não abriram o portão.
25. Tocou, então, à campainha indagando a ora Requerida quanto à razão de ali estar, e a ora Requerida respondeu que a casa era sua e que ia continuar a habitá-la.
26. Enquanto viveram juntos e durante o seu casamento, a Requerente e seu ora falecido marido sempre habitaram a casa em apreço.
27. A Requerente tem no referido imóvel os seus pertences pessoais e outros bens móveis, sendo a única habitação que tem em Portugal.
28. Sem dispor deste imóvel, a ora Requerente não está em condições de regressar a Portugal, de onde saiu pelas razões sobreditas.
29. É a Requerente quem procede ao pagamento dos fornecimentos de água, eletricidade, gás e telecomunicações, através de débito na sua conta bancária. *
30. A Requerida introduziu-se no imóvel sem qualquer autorização da ora Requerente ou demais herdeiros do falecido J..., procedendo à mudança de fechaduras; e passando a dispor dos bens móveis da Requerente e pertença da herança aberta por óbito de J... que aí se encontravam.
31. A Requerente pretendia regressar a Portugal nesta primavera juntamente com a sua filha MC….
32. A Requerida não tinha qualquer chave de acesso ao imóvel.
33. A Requerida sabe que, no contexto do seu divórcio com o ora falecido J..., foi atribuída a este último, a casa de morada de família coincidente com o imóvel dos autos.
34. A ora Requerida sabia que o imóvel era habitado pela agora Requerente.
35. A ora Requerida beneficia de consumos de água, eletricidade e de uso do mesmo imóvel.

------

E, foram considerados como INDICIARIAMENTE NÃO PROVADOS, os seguintes factos considerados relevantes (corrigem-se os lapsos de redacção e assinalou-se com * os factos objecto de impugnação):
1. A Requerida conhece perfeitamente o processo de inventário n.º 10991/22.5T8SNT no qual consta da existência de testamento e usufruto de todos os bens e direitos a favor da Requerente. *
2. Que os consumos identificados em 35. se computem, pelo menos, no montante mensal de 1.000,00 € * [2].
**

B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO


I) Da REAPRECIAÇÃO da PROVA GRAVADA decorrente da impugnação da matéria de facto

A impugnação da matéria de facto reporta-se, basicamente ao seguinte:
- Existe contradição entre o facto provado 29. e o facto não provado 2.;
- Por outro lado, o facto não provado 1. deve passar a figurar como provado.

Prevendo acerca da modificabilidade da decisão de facto, consagra o artigo 662º do Cód. de Processo Civil os poderes vinculados da Relação, estatuindo que:
“1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
2 - A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”.

Para que tal conhecimento se consuma, deve previamente o recorrente/apelante, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir o ónus a seu cargo, plasmado no artigo 640º do mesmo diploma, o qual dispõe que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º” (sublinhado nosso).
Não se desconhece que “para negar a admissibilidade da modificação da decisão da matéria de facto, designadamente quando esta seja sustentada em meios de prova gravados, não pode servir de justificação o mero facto de existirem elementos não verbalizados (gestos, hesitações, posturas no depoimento, etc.) insusceptíveis de serem recolhidos pela gravação áudio ou vídeo. Também não encontra justificação a invocação, como factor impeditivo da reapreciação da prova oralmente produzida e da eventual modificação da decisão da matéria de facto, da necessidade de respeitar o princípio da livre apreciação pelo qual o tribunal de 1ª instância se guiou ou sequer as dificuldades de reapreciação de provas gravadas em face da falta de imediação”.
Pelo que, poderá e deverá a Relação “modificar a decisão da matéria de facto se e quando puder extrair dos meios de prova, com ponderação de todas as circunstâncias e sem ocultar também a livre apreciação da prova, um resultado diferente que seja racionalmente sustentado” [3].
Reconhece-se que o registo dos depoimentos, seja áudio ou vídeo, “nem sempre consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no tribunal a quo. Como a experiência o demonstra frequentemente, tanto ou mais importante que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, sendo que a mera gravação dos depoimentos não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que porventura influenciaram o juiz da 1ª instância.
Na verdade, existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador”.
Efectivamente, e esta é uma fragilidade que urge assumir e reconhecer, “o sistema não garante de forma tão perfeita quanto a que é possível na 1ª instância a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e de onde é legítimo aos tribunais retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo”.
Todavia, tais dificuldades não devem justificar, por si só, a recusa da actividade judicativa conducente à reapreciação dos meios de prova, ainda que tais circunstâncias ou fragilidades devam ser necessariamente “ponderadas na ocasião em que a Relação procede à reapreciação dos meios de prova, evitando a introdução de alterações quando, fazendo actuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados[4] (sublinhado nosso).
------

- Da contradição entre o facto provado 29. e o facto não provado 2.

Relembremos a factualidade em equação:

Facto Provado 29.: “É a Requerente quem procede ao pagamento dos fornecimentos de água, eletricidade, gás e telecomunicações, através de débito na sua conta bancária”;
Facto não provado 2.: “A ora Requerida beneficia de consumos de água, eletricidade e de uso cujos valores são, pelo menos, de €1.000,00, por mês”.

Referencia a Apelante Impugnante existir clara contradição no que concerne à presente factualidade e aludidos pagamentos, pois, tendo-se provado que era a Requerente a proceder aos pagamentos através de débito directo na sua conta bancária, resulta como óbvio que será a Apelada a beneficiária, pois é esta quem presentemente habita o imóvel.
Assim, aquele facto nº. 2 não deveria ser dado como não provado.

Apreciando:

Parece evidente assistir parcial razão à Impugnante.
Efectivamente, o ponto 2. considerado indiciariamente como não provado, apenas o poderá ser relativamente ao indicado montante mensal, pois, habitando presentemente a Requerida o imóvel em equação, e sendo as despesas de água, electricidade, gás e telecomunicações suportadas pela Requerente, através de débito na sua conta bancária, não pode aquele ponto factual não provado manter-se com a indicada redacção.
O que determina, nesta parte, num juízo de parcial procedência da impugnação, as seguintes alterações:
- o aditamento de um novo ponto factual provado, a figurar sob o nº. 35., com a seguinte redacção:
“35. A ora Requerida beneficia de consumos de água, eletricidade e de uso do mesmo imóvel;
- o ponto factual não provado identificado sob o nº. 2 passa a ter a seguinte redacção:
2. Que os consumos identificados em 35. se computem, pelo menos, no montante mensal de 1.000,00€”.

- Do facto não provado 1. dever passar a figurar como provado

É a seguinte a factualidade questionada:
Facto não provado 1.: “A Requerida conhece perfeitamente o processo de inventário n.º 10991/22.5T8SNT no qual consta da existência de testamento e usufruto de todos os bens e direitos a favor da Requerente”.

Alega a Impugnante que o referenciado no ponto factual 1. não provado não tem correspondência com a realidade, pois a Apelada tem perfeito conhecimento do processo de inventário por morte de J... e da existência do testamento pelo mesmo outorgado a favor da Recorrente.
Acrescenta que a Recorrida teve inclusive intervenção no processo de inventário, onde apresentou reclamação à relação de bens, em nome dos seus filhos menores, o que é possível comprovar por consulta ao processo que corre termos no mesmo Tribunal.
Adita, ainda, que a mesma Apelada teve conhecimento da existência do testamento em dois processos que indica, face à dedução dos competentes incidentes de habilitação de herdeiros por parte da Apelante

Apreciando:

A Recorrente Impugnante alude a três diferenciados processos no âmbito dos quais a Recorrida terá tido conhecimento do processo de inventário e, como consequência, do teor do testamento que terá estabelecido o usufruto de todos os bens e direitos a favor da Requerente.
Todavia, apesar daquela referência, não junta as competentes peças processuais de tais autos donde se deva concluir pelo aludido conhecimento.
O que, aliás, é expressamente afirmado na motivação aposta na decisão apelada, onde se consignou que “Quanto ao facto não provado constante do ponto 1, o Tribunal não contou com qualquer meio de prova que permitisse afirmá-lo; sendo certo que se desconhece se a ora Requerida foi citada nesses autos de Inventário, mormente, em representação de seus dois filhos menores”.
Donde, não o tendo feito, nem tendo concretamente indicado e especificado qualquer outra fonte probatória donde decorra a concreta prova de tal factualidade, indefere-se, neste segmento, a impugnação apresentada, mantendo-se o facto 1. não provado nos seus precisos termos.


II) Do ENQUADRAMENTO JURÍDICO da causa

A sentença apelada começou por enunciar os três requisitos para a procedência da providência cautelar de restituição provisória de posse, nomeadamente:
a) a posse ou a situação jurídica equiparada;
b) o esbulho, que ocorre quando alguém é privado, total ou parcialmente, contra a sua vontade, de exercício de retenção ou fruição do objecto possuído ou da possibilidade de continuar esse exercício;
c) privação da posse por meio de violência.
Relativamente ao primeiro dos requisitos – a posse -, referenciou que a Requerente é herdeira do anterior comproprietário/possuidor, sendo que a posse é susceptível de integrar a massa hereditária por morte do possuidor, de modo que estão legitimados para a instauração da presente providência os próprios herdeiros do anterior possuidor.
Pelo que a Requerente tinha a posse correspondente à sua qualidade de herdeira do possuidor.
A tal posse, acresce a posse da Requerente na qualidade de usufrutuária, conforme destinado em sede de testamento deixado pelo falecido marido, comproprietário do imóvel, em benefício da Requerente.
Acrescendo, ainda, a posse da Requerente correspondente à qualidade de cabeça de casal.
Apurou-se que, desde o início de 2015, a Requerente vive no imóvel em apreço, primeiro com o falecido J... e, após o óbito deste, sozinha.
No que concerne aos demais requisitos – esbulho e violência -, entendeu-se que a Requerente foi esbulhada, consubstanciando-se o esbulho na mudança de fechaduras da fracção e na ocupação do imóvel em que habitava.
Considerou-se existir esbulho, pois tal conduta privou a Requerente de fruir da fracção e foi violento, implicando o exercício de força física sobre a coisa objecto de esbulho, com vista a consumar este. Efectivamente, a Requerente mostra-se coarctada na sua liberdade de determinação e, deste modo, impedida de aceder e fruir do imóvel objecto do esbulho.
Resulta, assim, indiciariamente assente que:
a) a Requerente foi esbulhada do imóvel que possuía;
b) que tal esbulho revestiu-se da violência prevista para este procedimento cautelar,
o que conduz ao total preenchimento dos requisitos deste procedimento cautelar especificado, determinando-se “a restituição provisória, à Requerente, da posse de ½ do prédio urbano sito na Rua..., freguesia de …, composto de casa de r/c para habitação e garagem; dependência para arrecadação e coelheira e logradouro, com a área total de 640 m2, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o número … da referida freguesia de …, inscrito na matriz predial urbana com o artigo… da mesma freguesia”.

A Requerente não se conforma com o decidido, pretendendo a restituição da “totalidade do imóvel, e não apenas a restituição de 1/2, pois esta proporção já lhe seria atribuída em virtude da sua qualidade de cabeça de casal e administradora da herança aberta por óbito de seu falecido marido J... e como usufrutuária, como alias consta do pedido”.
Acrescenta que a Requerida “nunca se opôs à utilização do imóvel por parte da Apelante, pois sabia perfeitamente que se tratava da casa de morada de família, era usufrutuária e cabeça de casal da herança aberta por óbito de J...”, sendo que a “Apelante sempre residiu no imóvel sito na R..., procedendo à sua manutenção e conservação”.
Aduz, ainda, que no seu entendimento “deveria constar da decisão proferida que a mesma é usufrutuária da quota-parte pertencente à herança aberta por óbito de seu falecido marido J..., devendo ser restituída provisoriamente a quota-parte (1/2) pertencente à Apelada, por efeito do direito de usufruto e da detenção da posse da totalidade do imóvel”, acrescentando que usa “o imóvel desde pelo menos dezembro de 2014, o qual constitui a casa de morada de família, não tendo colocado em causa a compropriedade existente”.
Assim, tendo falecido “J... o direito de uso passou a ser exercido exclusivamente pela Apelante, dado tratar-se da casa de morada de família, mantendo-se a posse por detenção desta e comprovado abandono da mesma por parte da Apelada, uma vez que voluntariamente o declarou no processo de divórcio”.
Pelo que, atenta a factualidade provada “e o prolongamento no tempo por parte da Apelada da sua intenção de não exercício da posse sobre o imóvel”, surge a necessidade de “clarificar e exprimir que a restituição provisória da posse de ½ do imóvel, será a quota-parte pertencente à Apelada, pois a Apelante é usufrutuária da restante quota-parte, pertencente à herança aberta por óbito de J... e pelo animus verificado durante vários anos e sem oposição daquela”.
Pelo que, conclui, não podia o Tribunal a quo deixar de “decretar a restituição provisória de posse da totalidade do imóvel sito na Rua ...”.

Analisemos.

- da providência cautelar de restituição provisória de posse

Prevendo acerca de um dos procedimentos cautelares especificados ou nominados, prescreve o art.º 377º, do Cód. de Processo Civil, que “no caso de esbulho violento, pode o possuidor pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência”.
Acrescenta o normativo seguinte – 378º -, acerca dos termos em que a restituição é ordenada, que “se o juiz reconhecer, pelo exame das provas, que o requerente tinha a posse e foi esbulhado dela violentamente, ordena a restituição, sem citação nem audiência do esbulhador”.
Por fim, o art.º 379º, nº. 1, do mesmo diploma, salvaguardado a defesa da posse mediante providência não especificada, estatui que “ao possuidor que seja esbulhado ou perturbado no exercício do seu direito, sem que ocorram as circunstâncias previstas no artigo 377.º, é facultado, nos termos gerais, o procedimento cautelar comum”.
A correspondência substantiva dos presentes normativos, no âmbito da tutela possessória, encontra-se plasmada nos artigos 1277º a 1279º, do Cód. Civil, dispondo o primeiro, acerca da acção directa e defesa judicial (defesa da posse), que “o possuidor que for perturbado ou esbulhado pode manter-se ou restituir-se por sua própria força e autoridade, nos termos do artigo 336.º, ou recorrer ao tribunal para que este lhe mantenha ou restitua a posse”.
Acrescenta o nº. 1 do art.º 1278º, estatuindo acerca da manutenção e restituição da posse, que “no caso de recorrer ao tribunal, o possuidor perturbado ou esbulhado será mantido ou restituído enquanto não for convencido na questão da titularidade do direito”, aduzindo o normativo seguinte, acerca do esbulho violento, que “sem prejuízo do disposto nos artigos anteriores, o possuidor que for esbulhado com violência tem o direito de ser restituído provisoriamente à sua posse, sem audiência do esbulhador”.

A restituição provisória constitui, assim, “um meio de defesa da posse (….), ao serviço do possuidor, contra actos de esbulho violentos”, pelo que, “considerando o carácter excepcional que é atribuído à autotutela de direitos subjectivos”, garante-se a “reconstituição da situação possessória anterior (…), de modo célere e eficaz”, e faculta-se ao lesado “a devolução da posse”, assim se impedindo “a persistência da situação danosa e o agravamento dos danos”.
Desta forma, os possuidores, “ao menos enquanto não forem convencidos da existência de uma posição jurídica que se sobreponha ao exercício dos seus poderes, são merecedores de tutela jurisdicional pelo simples facto de publicamente se apresentarem como titulares dos bens”.
Configura-se, assim, como uma medida cautelar “através da qual os tribunais podem revelar a sua função social na defesa de interesses juridicamente protegidos, o que ressalta com mais evidência quando o esbulho incide sobre prédio destinado a habitação ou ao exercício de uma actividade económica, casos em que a actuação ilícita do esbulhador é susceptível de causar graves prejuízos a exigir a reposição urgente da anterior situação”.
E, apesar de intimamente ligado à tutela possessória, nada impede que o presente procedimento cautelar seja aproveitado “como instrumento adequado a tutelar, a final, o direito de propriedade ou outro direito real posto em causa com a conduta do requerido” - António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Procedimentos Cautelares Especificados, IV Volume, Almedina, 2ª Edição Revista e Actualizada, pág. 24 e 25.
Ora, um dos pressupostos da admissibilidade de recurso ao presente procedimento cautelar, com natureza antecipatória, pois assegura a satisfação provisória do possuidor, é a qualidade de possuidor do requerente. O que nos conduz, ainda que abreviadamente, á análise do instituto da posse.

- do conceito e natureza do instituto da posse

Conceptualizando a sua noção, prescreve o art.º 1251º do Cód. Civil, que “posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”.
Afigurando-se como aparência jurídica, a posse é configurada como “um direito provisório, enquanto que a propriedade e outros direitos reais são definitivos. A posse não constitui um ónus sobre a coisa. Os direitos do possuidor aproximam-se do proprietário, mas são, ao mesmo tempo menos fortes do que os deste. Perante o proprietário é sempre uma posição debilitada” - Guerra da Mota, Manual da Acção Possessória, Vol. I, Athena Editora, Porto 1980, pág. 21.
Esta realidade é, porém, susceptível de tutela jurídica, começando por aparecer “como uma realidade jurídica (ou com consequências jurídicas) primária, mal conformada, envolvida num ambiente caótico, mas destinada a matéria única, pródiga e fecunda de todo o direito patrimonial”, justificando-se a sua protecção “porque a lei quer combater a defesa privada, a fraude, a violência, etc.; intervindo contra o esbulhador ou perturbador em nome da paz social, que, por ser interesse colectivo, é o que a lei directamente protege”, configurando-se assim a tutela possessória como a “protecção da paz em geral, oposição á justiça privada, que uma sociedade medianamente organizada não pode tolerar” - Idem, pág. 22 e 23.
O processo judiciário de defesa da posse destina-se, assim, á protecção do “estado de facto que constitui a essência da posse contra qualquer acto que signifique uma ameaça, ou uma violação à existência da relação material, proibindo as ameaças á sua existência, a perturbação do seu exercício e impondo a restituição do objecto da posse sempre que o possuidor dele tenha sido esbulhado”, mantendo, deste modo, o processo possessório “a relação material, o estado de facto, enquanto não se demonstrar, embora no próprio processo (….) que ele não corresponde a uma relação jurídica” - Manuel Rodrigues, A Posse, Coimbra, 1996, Almedina, pág. 324.
  De acordo com a doutrina e jurisprudência dominantes, no direito português foi consagrada a concepção subjectiva da posse - cf.. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, pág. 5; Mota Pinto, Direitos Reais, pág. 189; Henrique Mesquita, Direitos Reais, pág. 69, segs.; Orlando Carvalho, RLJ, 122º, p. 65, segs.; Penha Gonçalves, Direitos Reais, 2ª ed., pág. 243.
Desta forma, será necessário que se concretizem no caso concreto dois elementos, um material designado por corpus e outro psicológico com o nome de animus.
O corpus traduz-se na realização de actos materiais (detenção, fruição, ou ambos conjuntamente) praticados sobre a coisa com o exercício de certos poderes sobre a mesma - vide Mota Pinto, ob. cit., pág. 180 -, ou no domínio de facto sobre a coisa, traduzido no exercício efectivo de poderes materiais sobre ela, ou na possibilidade física desse exercício - vide Henrique Mesquita, ob. cit., pág. 66 e 67.
Por sua vez, o animus traduz na intenção por parte do sujeito interessado em se comportar como titular do direito real correspondente aos actos praticados, ou na intenção de exercer sobre a coisa como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto - acerca do animus e corpus da posse, cf.., o douto Acórdão do STJ de 12/02/87, in BMJ, n.º 364, pág. 855 e segs.. Esses actos materiais que o sujeito desenvolve correspondem ao exercício dos poderes que compõem o conteúdo de um direito real. O interessado actua com a vontade de criar a convicção nas outras pessoas que é o titular do direito a que corresponde a actividade que realiza. A aquisição de um direito real por intermédio do instituto da usucapião tem, assim, por base dois elementos essenciais, que consistem no exercício duma actividade possessória por parte do sujeito interessado e a necessidade de haver decorrido um determinado período de tempo em que se efective tal posse [5].
Relativamente aos caracteres da posse, encontram-se os mesmos elencados nos artigos 1258º a 1262º do Cód. Civil, prescrevendo o primeiro dos normativos que aquela “pode ser titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta”, sendo que os demais normativos definem e conceptualizam tais espécies.
E, por posse titulada, deve entender-se a “fundada em qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente, quer do direito do transmitente, quer da validade substancial do negócio jurídico” – cf., art.º 1259º do Cód. Civil. Sendo que, por modo legítimo de adquirir não pretende afirmar-se qualquer juízo de validade ou procedência, mas antes um juízo de existência e susceptibilidade de, em abstracto, atribuir ou constituir um direito, sendo que, os vícios de forma determinam, inquestionavelmente, a falta de título da posse.

 - Da defesa da posse e do ónus probatório na tutela possessória

Através da tutela e da acção possessória pretende-se a “manutenção do estado de facto e, como este é afinal a base de todos os efeitos da posse, é frequente dizer-se que a acção possessória, em rigor um elemento da relação jurídica possessória, é o efeito principal da posse”. E, acrescenta-se, ser “claro que uma das razões porque o estado de facto é tutelado por lei, é porque esta parte do princípio que ele corresponde a um estado de direito ; mas como a defesa possessória é independente da existência da relação jurídica que a posse traduz, sucede haver quem defenda um estado de facto que sabe não traduzir um estado de direito” [6].
A acção possessória revela-se ou reveste-se de várias modalidades, consoante a natureza do acto violador da posse, urgindo in casu ter em consideração a acção de restituição da posse, a qual é definida como aquela que é “concedida ao possuidor que foi esbulhado do uso da coisa possuída, a fim de lhe ser restituída e indemnizado dos prejuízos”, ocorrendo a situação de esbulho quando “o possuidor era privado inteiramente da coisa, ou parte dela, de sorte a não poder continuar a exercer em toda a sua amplitude os seus direitos de possuidor” - Guerra da Mota, ob. cit., pág. 35.  Através desta acção, consagrada no citado art.º. 1277º, o possuidor “goza de um direito cujo conteúdo consiste em impor respeito à sua situação, quando se veja inquietado, ou em definitivo, prejudicado de algum modo, inclusive pelo esbulho”, assim se legitimando o direito de accionar, sendo certo que o esbulho, para ser violento, não tem que ser exercido sobre pessoas, podendo-o ser sobre as coisas - Idem, pág. 39. Neste artigo 1277º como que se conflui ou articula o “interesse do Estado na manutenção da paz jurídica com o interesse do possuidor em que se respeite a sua posse (…)” – cf., pág. 44.

No âmbito do ónus probatório da acção de restituição possessória, é essencial que a parte autora afirme, e prove, a sua situação possessória, incumbindo ao demandado impugná-la, procurando demonstrar “a inexistência de relação entre a parte autora e o objecto que diz possuído, ou também tentando destruir a afirmação de que essa posse vem sendo gozada de um modo independente. Procurará o demandado demonstrar que a relação possessória se processa na clandestinidade, provém de mera tolerância do proprietário ou nasceu da violência”.
Como segundo elemento da afirmada pretensão, surge a necessidade de alegação, e prova, da existência de esbulho, o qual pode ser total ou parcial relativamente ao objecto esbulhado, sendo evidente que “a privação do exercício da detenção ou fruição da coisa só constitui esbulho se for ilícita” - Ibidem, pág. 133 e 134 ; enquanto o possuidor conservar “a retenção material da coisa ou a fruição real do direito, há simples turbação ; quando as lesões da posse produzem a privação ou perda da retenção ou fruição, estamos perante o facto do esbulho”.
Assim, efectuada tal prova, independentemente da intencionalidade ou requisito psicológico presente na conduta do esbulhador, o julgador ordenará que o demandante seja reposto na posse, decisão esta que “supõe sempre um momento declarativo: o reconhecimento da posse. O Juiz, porém, ao expressar tal declaração e ao reconhecer que mediaram actos de perturbação ou esbulho, sanciona a posse do Autor como direito interdictal face aos restantes sujeitos processuais. Na acção de manutenção impõe o Juiz ao demandado que se abstenha dos actos perturbadores, ou, no caso do esbulho, que o Autor volte a entrar na sua posse” - Ibidem, pág. 136 [7].
Deste modo, na tutela possessória (e com maior ênfase na acção principal possessória) o possuidor deve provar a sua posse reportada aos seguintes elementos:
“a) momento inicial ou facto de aquisição;
b) qualidade que caracteriza a sua origem;
c) continuação dela por todo o tempo prefixado na lei;
d) qualidade que ela reveste durante o seu curso.
Esta prova, segundo as regras gerais, incumbe ao autor; mas a tarefa, que poderia ser difícil, é-lhe largamente facilitada, por uma série de presunções legais, derivadas duma prática multisecular, e que, embora juris tantum, importam a inversão do ónus da prova, cumprindo ao réu a prova dos factos em contrário”. Como exemplo, aduz a situação da presunção de não-precaridade, donde decorre presumir-se que o possuidor possui em nome próprio – cf., o nº. 2 do art.º. 1252º - Guerra da Mota, ob. cit., pág. 235 e 236.   

Todavia, a tutela possessória “assenta num juízo provisório no que concerne à aferição do direito, condicionado à não sobreposição de uma situação jurídica invocada pela parte contrária correspondente á titularidade de um direito real de gozo ou a melhor posse”.
Pelo que, se a provisoriedade já é uma característica ínsita aos procedimentos cautelares, no que concerne à restituição provisória da posse “essa característica surge redobrada: por um lado, o seu deferimento está subordinado à prova sumária da posse ; por outro, a medida fica condicionada a que não seja suscitada, com sucesso, a questão da titularidade do direito real que faça decair a simples protecção do direito aparente.
Deste modo, devido à sua própria natureza, a medida apenas persiste se e enquanto a situação de posse prevalecer no confronto com a posição jurídica do requerido. Deixará de subsistir se o requerente decair na questão da qualidade de verdadeiro possuidor ou quando, apesar dessa qualificação, for dada prevalência ao requerido”.
Acresce que o paradigma da tutela possessória relaciona-se, conforme definição do instituto, “com o exercício de poderes de facto sobre coisas corpóreas susceptíveis de constituírem objecto de direitos reais de gozo”.
Todavia, “ainda que falte a titularidade de qualquer desses direitos reais, a simples prova dos poderes de facto que normalmente correspondem à sua exteriorização, é suficiente para motivar a procedência da pretensão cautelar, sem embargo do disposto no art. 1253º do C.C.” - Abrantes Geraldes, Temas da Reforma…. ob. cit., pág. 30 e 31.

- Do esbulho

Já supra enunciámos que o segundo pressuposto ou requisito cujo preenchimento é necessário para a procedência do presente procedimento cautelar, traduz-se no esbulho, o qual, sendo difícil de delimitar relativamente aos actos de mera turbação, “mostra-se imprescindível para definir o âmbito da intervenção das acções de manutenção relativamente às acções de restituição de posse de que a restituição provisória é instrumental”.
A delimitação opera no sentido de que “o esbulho abarca os actos que impliquem a perda da posse, ao passo que os actos de turbação, embora situados para além das simples ameaças dirigidas ao possuidor, não assumem proporções que impeçam a sua conservação” - Idem, pág. 42.
Na definição de Manuel Rodrigues - ob. cit., pág. 363 - configura-se uma situação de esbulho “sempre que alguém foi privado do exercício da retenção ou fruição do objecto possuído, ou da possibilidade de o continuar”.
A noção de esbulho é definida, em síntese, no sumariado no douto aresto da RC de 23/04/2024 – Relatora: Sílvia Pires, Processo nº. 298/23.6T8MBR.C1, in www.dgsi.pt -, referindo-o como o “ato através do qual um terceiro priva um possuidor da fruição do objeto possuído, não sendo necessário que essa privação abranja a totalidade do bem possuído, mas que a privação corresponda a uma perda completa da possibilidade de utilização do bem, impedindo a sua disponibilidade física pelo possuidor”.

- Da violência

O último dos pressupostos do presente procedimento cautelar exige ou demanda a existência de comportamentos do requerido que traduzam actos de violência.
Doutrinária e jurisprudencialmente têm existido divergências no preenchimento do presente conceito.
Assim, enquanto parte entende que “a violência relevante deve ser necessariamente exercida contra a pessoa do possuidor”, outros entendem que “basta a violência exercida sobre a coisa, designadamente quando esteja ligada à pessoa do esbulhado ou quando dela resulte uma situação de constrangimento físico ou moral”.
Acrescenta o mesmo Autor, após identificar doutrina e jurisprudência acolhedora de ambas as teses, que “sendo o esbulho uma das formas através das quais se pode adquirir a posse, a sua qualificação como violento deve ser o resultado da aplicação do art.º 1261º do CC, com o que somos transportados, por expressa vontade do legislador, para o disposto no art.º 255.º do CC, norma que integra na actuação violenta tanto aquela que se dirige directamente à pessoa do declaratário (leia-se, do possuidor), como a que é feita através do ataque aos seus bens” - Abrantes Geraldes, Temas da Reforma….ob. cit., pág. 44 a 47 [8] [9].

Assim, “apurada sumariamente a existência de posse (ou de uma situação equiparada) e a verificação do esbulho violento, a lei confere a imediata tutela antecipada, funcionando esta como uma espécie de reprovação da actuação ilícita violadora de interesses juridicamente tuteláveis do possuidor” – Idem, pág. 54.
Nas palavras de Moitinho de Almeida – Restituição da Posse, pág. 117 -, “o benefício da providência é concedido ao possuidor, não em atenção ao perigo de dano iminente, mas como compensação da violência de que o possuidor foi vítima”.

Nas palavras do douto aresto da RE de 19/06/2014 – Relator: Francisco Xavier, Processo nº. 268/14.5TBSLV-E1, in www.dgsi.pt -, “a posse e o direito de propriedade (ou a compropriedade) não se confundem, pois que apenas a primeira se defende através do contencioso possessório previsto no artigo 1277º e segs. do Código Civil, e a segunda mediante a reivindicação prevista no artigo 1311º, ou mesmo com recurso à acção directa a que alude o artigo 1314º, todos do mesmo código.
Também se concorda que a posse é protegida apenas por se presumir que, por detrás dela, existe na titularidade do possuidor o direito real correspondente. E que no contencioso possessório, onde se inclui o procedimento cautelar de restituição provisória da posse, não se exige, ao autor ou requerente a alegação ou prova do domínio ou mesmo a sua plausibilidade, mas sim os factos constitutivos da posse, sendo suficiente a demonstração do corpus, porque, em caso de dúvida, presume-se o animus (cf. n.º2 do artigo 1252º do Código Civil)”.
Apreciando os requisitos da presente providência cautelar, sumariou-se no douto Acórdão da RG de 15/06/2022 – Relatora: Conceição Sampaio, Processo nº. 3883/21.7T8VCT-A.G1, in www.dgsi.pt – facultar a lei ao possuidor, “em caso de esbulho violento, um meio simples e rápido de ser restituído provisoriamente à sua posse, evitando, por esta via, a tentação à ação direta.
II - Neste caso, a proteção conferida ao possuidor traduz-se numa tutela provisória, destinada unicamente a manter determinada situação de facto, enquanto não se provar quem é o verdadeiro titular do direito real correspondente.
III - Por isso, demonstrada a posse, o esbulho e a violência, o circunstancialismo que envolveu a transmissão do bem, a alegada simulação ou outras figuras congéneres com vista a atacar a sua validade, são matéria a apreciar na ação principal, extravasando o objeto próprio da providência, tendo em conta os seus específicos pressupostos”.
Efectivamente, acrescenta-se, “através da posse tutela-se, no fundo, a exteriorização ou a aparência do direito, relevado pela retenção e fruição da coisa, independentemente da averiguação da sua titularidade e, consequentemente, sempre que ocorra o exercício fáctico de poderes sobre a coisa, o titular passa a beneficiar da proteção possessória”.
Conforme expressamente referenciado em douto aresto da RP de 26/11/2012 – Relator: Manuel Domingos Fernandes, Processo nº. 220/12.5TJPRT-B.P1, in www.dgsi.pt –, a protecção conferida ao possuidor traduz-se “numa tutela provisória, destinada unicamente a manter determinada situação de facto, enquanto não se provar quem é o verdadeiro titular do direito correspondente (cfr. o art. 1278.º, do C.Civil).
Assim, ainda que falte a titularidade desse direito, a simples prova dos poderes de facto que normalmente correspondem à sua exteriorização é suficiente para motivar a procedência da pretensão cautelar. Sendo que, é fundamentalmente no âmbito da acção declarativa que se fará a discussão alargada das razões invocadas por cada uma das partes, podendo inserir-se aí a questão da titularidade do direito que se sobreponha à mera situação de facto deduzida pelo requerente. Deste modo, os efeitos provisórios converter-se-ão em definitivos através da decisão final transitada em julgado, se esta se mostrar favorável ao autor; extinguir-se-ão se a decisão definitiva lhe for desfavorável”.

- do preenchimento dos pressupostos da presente providência cautelar nominada

No presente recurso não se discute acerca do preenchimento dos enunciados factos constitutivos ou pressupostos da presente providência cautelar. Assim, aceita a Requerente Apelante usufruir de uma posição possessória e ter ocorrido esbulho violento relativamente ao imóvel que constituía a sua residência. O que o Tribunal a quo sancionou, julgando procedente o presente procedimento cautelar de restituição provisória da posse.
A discordância reside, antes, no âmbito ou amplitude da restituição ordenada: a decisão recorrida determinou a restituição provisória, à Requerente, da posse de ½ do prédio urbano em equação, reclamando esta que tal restituição provisória da posse deve antes reportar-se à totalidade do mesmo imóvel.
Apreciemos.

Tendo em atenção a factualidade provada, bem como a demais prova documental junta, procuremos reconstituir cronologicamente a factualidade eventualmente relevante para a solução da questão em controvérsia.
Assim temos que:
- conforme escritura pública de doação datada de 21/11/2006, J..., por si e na qualidade de procurador da então mulher T…, declarou doar à Santa Casa da Misericórdia de Sintra, “com reserva para ambos do usufruto simultâneo e sucessivo, o prédio urbano, destinado à habitação, situado na Rua …, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o número … do livro B – noventa e seis, ali registado a favor dos doadores conforme inscrição número oitenta e dois mil quinhentos e cinquenta e um, do livro G – cento e vinte e quatro, inscrito na respectiva matriz sob o artigo …, com o valor patrimonial de 17.862,16€, correspondendo à nua propriedade transmitida o valor patrimonial de 14.289,73€ (…)” ;
- a outorgante Santa Casa da Misericórdia de Sintra declarou aceitar tal contrato, comprometendo-se, em contrapartida de tal doação, a prestar aos doadores os serviços enunciados na mesma escritura de doação – cf., fls. 81 e 82 dos presentes autos;
- após o óbito da sua mulher T… o mesmo J... intentou contra a Santa Casa da Misericórdia de Sintra acção declarativa sob a forma de processo ordinário – Processo nº. 66/08.5TCSNT -, no qual deduziu o seguinte petitório:
seja decretada a resolução do contrato de doação relativo ao prédio urbano sito na Rua …, inscrito na matriz sob o art.º … da freguesia de … e descrito sob o nº. … do livro 96 da 1ª Conservatória do Registo Predial de Sintra;
Seja ordenado o consequente cancelamento do registo de aquisição da nua-propriedade a favor da Ré, efectuado mediante apresentação nº. 38, de 2007/02/16”;
- tal acção veio a ser julgada improcedente, por sentença de 15/09/2011, posteriormente confirmada por Acórdão desta Relação de Lisboa de 15/05/2012 - cf., fls. 83 a 98 dos presentes autos;
- em 26/02/2013, foi celebrada escritura pública de compra e venda, entre a Santa Casa da Misericórdia de Sintra (primeira outorgante) e J... e mulher L............  (segundos outorgantes), casados sob o regime de separação de bens, declarando que a primeira outorgante é “nua proprietária” do imóvel supra identificado, “do qual é usufrutuário o segundo outorgante J...”;
- mediante tal escritura, nas qualidades em que outorgam, a Santa Casa da Misericórdia de Sintra, pelo preço de 53.000,00€, vendeu aos segundos outorgantes, “em comum e partes iguais, o identificado prédio (nua propriedade), livre de ónus e encargos”, tendo tal escritura sido outorgada “em execução da transacção celebrada entre as partes contratantes, constante do documento anexo (…)” cf., fls. 102 a 104 dos presentes autos;
- o que determinou o teor da inscrição predial referenciada no facto provado 4.;
- posteriormente, em 06/05/2015, tal imóvel foi atribuído, por acordo, ao cônjuge marido J..., no âmbito do processo de divórcio, conforme referenciado no facto provado 3. ;
- em 21/12/2015, a ora Requerente casou com J..., sob o regime imperativo da separação de bens – cf., facto provado 1.;
- por testamento datado de 24/07/2017, J... “legou, por conta da sua quota disponível, a sua mulher, ora Requerente, “o usufruto de todos os bens e direitos de que tenha titularidade à data da sua morte” - cf., facto provado 8.;
- tendo o mesmo J... falecido em 14/12/2021, no estado de casado com a Requerente - cf., facto provado 7.;
- a Requerente residiu, juntamente com o J..., no identificado imóvel, desde o início de 2015 e, após o óbito deste, passou a fazê-lo de forma exclusiva, “ali habitando e recebendo familiares e amigos, fazendo do mesmo a sua habitação exclusiva e permanente” - - cf., factos provados 2. e 15..

Atento o exposto, podemos referenciar o seguinte:
- aquando da outorga do contrato de compra e venda da nua propriedade do imóvel, datado de 26/02/2013, apenas ingressa na titularidade da Requerida ½ da nua propriedade de tal imóvel;
- enquanto que, sendo então o J... titular do usufruto sob a totalidade do mesmo, relativamente à metade da nua propriedade que adquire, extingue-se o usufruto, por reunião deste e da propriedade na mesma pessoa – a alínea b), do nº. 1, do art.º 1476º, do Cód. Civil -, mantendo-se na demais metade adquirida pela ora Requerida;
-  assim, em 06/05/2015, quando é efectuado acordo nos autos de divórcio relativamente à atribuição da casa de morada de família (em que se traduzia o imóvel ora em equação), esta é efectuada em plena consonância com a titularidade do usufruto do então cônjuge marido (pleno proprietário de ½ do imóvel e usufrutuário da demais ½) ;
- tal situação manteve-se até ao óbito do J..., ocorrido em 14/12/2021, data em que se operou a extinção do usufruto do mesmo sobre a ½ do imóvel de que a ora Requerida era nua proprietária – a alínea a), do nº. 1, do art.º 1476º, do Cód. Civil -, a qual passou, assim, a ter a qualidade de plena proprietária de tal ½ do imóvel;
- assim, operada tal extinção, relativamente ao legado testamentário efectuado a favor da ora Requerente, e no que concerne a tal imóvel, o usufruto apenas pode incidir sobre a ½ de que o falecido J... era comproprietário (sendo que a demais ½ da plena propriedade do mesmo imóvel é pertença da ora Requerida);
- sendo este o título donde decorre a alegada posse da Requerente, enquanto usufrutuária de ½ do mesmo imóvel, ou seja, usufrutuária da ½ do imóvel da qual o falecido marido era comproprietário;
- o que implica reconhecer-se inexistir qualquer transmissibilidade do direito à atribuição da casa de morada de família, operada em sede de divórcio, crendo-se que o mesmo não perdura para além da vida do cônjuge a quem é atribuído.

Temos, deste modo, uma situação em que a Requerente, relativamente ao equacionado imóvel:
Ø é usufrutuária do direito correspondente a ½ do mesmo, de que é nua proprietária a herança, estando tal imóvel, assim, em regime de compropriedade, sendo a Requerida titular da plena propriedade da demais ½;
Ø é herdeira do falecido J..., a quem havia sido atribuído, em divórcio, o mesmo imóvel, enquanto casa de morada de família, no qual a Requerente continuou a viver mesmo após o óbito daquele;
Ø é cabeça de casal na herança aberta por óbito do mesmo falecido marido, tendo relacionado nos pendentes autos de inventário o mesmo imóvel na proporção de ½.

Estatui o art.º 1255º, do Cód. Civil, prevendo acerca da sucessão na posse, que “por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o momento da sua morte, independentemente da apreensão material da coisa”.
No que concerne especificamente à posse dos herdeiros sobre os bens que integram a herança, “a qual após a morte do possuidor continua nos seus sucessores (artigo 1225.º e 2050.º do Código Civil) [4], apesar de nos encontrarmos perante uma posse “jurídica”, porque não exige a prática de atos materiais, qualquer dos herdeiros, além da ação de petição de herança (artigo 2075.º e seg. do Código Civil), pode utilizar os meios de defesa da posse relativamente a cada um dos bens da herança (artigos 1276.º e seg.), inclusivamente contra o cabeça de casal que não se encontre no exercício dos poderes de administração (artigo 2088.º, n.º 2, do Código Civil), sendo subsidiariamente aplicável a uma situação de composse, o que sucede sempre que se verifica uma pluralidade de herdeiros, o disposto no artigo 1406.º do Código Civil.
Daí que seja compreensível e adequada a aplicação subsidiária, com as necessárias adaptações, do disposto no artigo 1406.º do Código Civil à utilização pelos herdeiros dos bens da herança em proveito próprio, nos casos em que o cabeça de casal não exerça os seus poderes de administração sobre os bens da herança, face à ausência de uma previsão específica no direito sucessório deste tipo de situações.
Na hipótese sub iudice, não se provou que tenha existido qualquer acordo expresso entre a Autora e o Réu sobre a utilização dos bens da herança, pelo que este último só os poderia utilizar desde que não os empregasse para fim diferente daquele a que os mesmos se destinavam e não privasse a outra consorte do uso a que igualmente tem direito.
A utilização de uma fração predial destinada à habitação, atenta a privacidade inerente a tal uso, não permite que a mesma possa ser utilizada, em simultâneo, por herdeiros com diferentes agregados familiares. No entanto, a sua utilização por um dos herdeiros só determina uma privação do uso pelos outros consortes, para os efeitos do artigo 1406.º do Código Civil, se ela contrariar a vontade manifestada de algum deles lhe dar outra utilização. Enquanto não se manifestar uma vontade de utilização do bem incompatível com o uso exclusivo que vem sendo feita pelo co-herdeiro em seu proveito não é possível concluir que esse uso tenha sido excludente do direito de uso dos demais herdeiros. A privação só ocorre com a existência de uma vontade não satisfeita.
Mas, manifestada uma oposição a esse uso, a manutenção daquela ocupação passa a ser ilícita, uma vez que priva o herdeiro contestatário da posse de um bem comum, devendo este, e apenas ele, ser indemnizado da privação sofrida”.
Donde, ter-se sumariado que a “utilização de um imóvel da herança pelo cabeça de casal para sua habitação não integra um ato de administração da herança.
II. A utilização por qualquer herdeiro dos bens da herança em proveito próprio, nas situações em que o cabeça de casal não exerça os seus poderes de administração sobre os bens da herança, deve considerar-se sujeita ao regime do artigo 1406.º do Código Civil, face à ausência de uma previsão específica no direito sucessório deste tipo de situações.
III. A utilização de um determinado bem da herança por um dos herdeiros só determina uma privação do uso pelos outros consortes, para os efeitos do artigo 1406.º do Código Civil, se ela contrariar a vontade manifestada de algum deles lhe dar outra utilização” – assim, o douto Acórdão do STJ de 21/04/2022 – Relator: João Cura Mariano, Processo nº. 2691/16.1T8CSC.L1.S1, in www.dgsi.pt.

Por sua vez, no âmbito da administração da herança, que pertence ao cabeça de casal até à sua liquidação e partilha, aduz o nº. 1, do art.º 2088º, do Cód. Civil, prevendo acerca da entrega de bens, que “o cabeça-de-casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de acções possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído”.
Referencia Abrantes Geraldes – ob. cit., pág. 31 e 50 – que “apesar de não ser legítimo invocar a posse exercida sobre herança indivisa, isso não afasta a sua incidência sobre cada uma das coisas corpóreas que a integram (art. 2088º do CC), o bastante para se abrirem as portas da tutela possessória ao cabeça-de-casal ou aos sucessores-possuidores”.
Assim, “depois de aberta a herança, será aplicável o disposto no art. 2088º do CC, que confere legitimidade indirecta ou extraordinária ao cabeça-de-casal, enquanto administrador dos bens da herança, para intentar acções possessórias”, figurando do lado passivo “o esbulhador (ou os seus herdeiros) ou quem estiver na posse da coisa e tenha conhecimento do esbulho violento, nos termos do art. 1281º, nº. 2, do CC”.
Acrescenta Cristina Pimenta Coelho – Código Civil Anotado, Vol. II, 2017, Almedina, Coord. Ana Prata, pág. 995 – atribuir o presente normativo ao cabeça de casal “o poder de exigir, quer dos próprios herdeiros quer de terceiros, a entrega dos bens da herança que estão sujeitos à sua administração”, podendo, assim, usar “de ações de reivindicação ou de ações possessórias contra qualquer pessoa que possua ou detenha bens da herança”.
Deste modo, foi entendimento do legislador que, “para poder desempenhar devidamente as suas funções de liquidação e partilha da herança, o cabeça de casal deveria dispor da detenção material dos bens em causa ainda que, nos termos legais, os herdeiros e legatários se considerem possuidores desde o momento da abertura da sucessão (v. art. 1255º)”.
Relativamente à posse dos herdeiros, referenciou-se no douto Acórdão da RP de 11/03/2021 – Relator: Joaquim Correia Gomes, Processo nº. 14116/20.3T8PRT.P1, in www.dgsi.pt –, que a jurisprudência vem salientando, insistentemente, “de que é exemplo o Ac. STJ de 02/dez./2004 (Cons. Custódio Montes), que “Por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores, os quais apenas passam a possuir em nome próprio a partir da inversão do título” (1), sendo “Um dos casos típicos de inversão do título da posse é ter havido partilha de facto” (2). Deste modo, na sucessão da posse dos bens do acervo hereditário, não existe uma sucessão individualizada, ou seja, por cada herdeiro, mas antes uma sucessão coletiva, que é da herança.
No caso em apreço e atenta a noção de posse, enquanto poder de facto juridicamente relevante, onde se actua em termos de um direito real, não encontramos nos factos indiciariamente provados qualquer um donde decorra a existência dessa posse por parte de D… e F…. O que existe é uma presunção de propriedade a favor dos mesmos, decorrente da inscrição do registo predial a seu favor (4.º factos provados), que tem consagração legal no artigo 7.º do Código de Registo Predial. Mas posse e direito de propriedade são realidades jurídicas distintas que não se devem confundir.
No que concerne ao período que antecede a partilha, a jurisprudência tem-se posicionado, como sucedeu com o Ac. do STJ de 30/jan./2013 (Cons. Álvaro Rodrigues), que “até à partilha, os co-herdeiros de um património comum, adquirido por sucessão mortis-causa, não são donos dos bens que integram o acervo hereditário, nem mesmo em regime de compropriedade, pois apenas são titulares de um direito sobre a herança (acervo de direitos e obrigações) que incide sobre uma quota ou fracção da mesma para cada herdeiro, mas sem que se conheça quais os bens concretos que preenchem tal quota”. Mais se acrescentou que “É pela partilha (extrajudicial ou judicial e, neste caso, através do processo de inventário-divisório) que serão adjudicados os bens dessa universalidade que é herança e que preencherão aquelas quotas”. Neste alinhamento, o Ac. TRC de 14/out./2014 (Des. Catarina Gonçalves) sustentou o seguinte: “Presumindo-se que a posse continua em nome de quem a começou (art. 1257º, nº 2, do C.C.) e determinando o art. 1255º do mesmo diploma que, por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores, independentemente da apreensão material da coisa, deverá presumir-se que a posse exercida por um sucessor/herdeiro do inicial possuidor, após a morte deste, não é uma posse nova mas mera continuação da posse inicial que, como tal, não é exercida em nome próprio, mas sim em nome da herança aberta por óbito do possuidor inicial, ainda que os demais sucessores não tenham praticado qualquer acto material sobre a coisa”.

Incidindo sob o imóvel objecto de posse o regime da compropriedade, urge apreciar este, e analisar como se articula relativamente ao uso da coisa comum.
Definindo a noção de compropriedade, estatui o art.º 1403º, do Cód. Civil, que:
“1. Existe propriedade em comum, ou compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultâneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa.
2. Os direitos dos consortes ou comproprietários sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes; as quotas presumem-se, todavia, quantitativamente iguais na falta de indicação em contrário do título constitutivo”.
Definindo a posição dos comproprietários, prescreve o nº. 1, do art.º 1405º, do mesmo diploma, que “os comproprietários exercem, em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular; separadamente, participam nas vantagens e encargos da coisa, em proporção das suas quotas e nos termos dos artigos seguintes”.
Acrescenta o art.º 1406º, ainda do Cód. Civil, estatuindo a propósito do uso da coisa comum, que:
“1. Na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito.
2. O uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título”.
Referenciam Pires de Lima e Antunes Varela – Código Civil Anotado, Vol. III, Coimbra Editora, 2ª Edição Revista e Actualizada, pág. 345 e 346 – que o direito de propriedade traduz-se “sempre num poder autónomo sobre uma coisa: desde que respeite as limitações que o oneram, o proprietário exerce os seus poderes de modo soberano, com total independência. Na compropriedade, porém, os contitulares perdem quase por completo a autonomia que caracteriza o domínio. Com excepção do poder de uso (e mesmo este tem de conformar-se com o disposto no nº. 1 do art. 1406º), todos os demais poderes compreendidos no direito de propriedade só podem ser exercidos com a colaboração dos demais consortes, nos termos fixados na lei”.
Acrescentam os mesmos Autores – Idem, pág. 356 a 359 – que o transcrito art.º 1406º “trata do uso da coisa comum, sendo o uso como utilização directa da coisa ou como aproveitamento imediato das aptidões naturais dela, conceito distinto da fruição, que visa fundamentalmente a utilização da coisa como instrumento de produção (de frutos, proventos, etc.): cfr. artigo 1305º”.
Assim enquanto que relativamente à fruição “o artigo 1405º, 1, consagra a regra da proporcionalidade (em relação à quota de cada comproprietário”, já no que concerne “ao uso, o artigo 1406º admite o princípio da solidariedade: a cada um dos comproprietários, seja qual for a sua quota, é lícito servir-se dela, utilizá-la na totalidade e não apenas em parte”.
Todavia, a possibilidade “de uso integral da coisa, como se, nesse aspecto, o contitular da propriedade fosse titular único da coisa, vale apenas como princípio supletivo (…). Em primeiro lugar, há que respeitar o que houver sido acordado entre os interessados. Este acordo tanto pode constar do título constitutivo da compropriedade, como resultar de acordo posterior, ditado pelo consenso unânime dos interessados ou pela simples maioria dos consortes, nos termos em que esta decide sobre a administração da coisa. A maioria, porém, nunca poderá privar qualquer dos consortes, sem o respectivo consentimento, do uso da coisa a que tem direito. Apenas lhe será lícito disciplinar esse uso, de modo a evitar conflitos e choques de interesses entre os vários comproprietários”.
Acrescentam existirem casos em que “os comproprietários harmonizam os seus interesses conflituantes no uso da coisa comum, mediante uma divisão material do gozo dela. Sem chegarem a uma divisão da coisa, que ponha termo à compropriedade, os condóminos podem acordar em usar, separadamente, as dependências em que dividem a casa comum, ou os vários lotes do terreno em que repartem para o efeito o prédio rústico comum”.
Porém, “na falta de acordo, vigora o princípio do uso integral da coisa. Este princípio está, porém, sujeito a duas limitações: a que é imposta pelo fim da coisa e a que resulta da concorrência do direito dos demais consortes”, ou seja, “pela necessidade de facultar aos outros consortes a possibilidade de igualmente se servirem dela”.
Acresce que segundo o transcrito nº. 2, do art.º 1406º, “o uso da coisa comum por um dos comproprietários não traduz uma posse que exceda o âmbito da sua quota. Trata-se de uma consequência lógica do princípio exarado no nº. 1, que permite ao comproprietário usar a coisa (subentende-se toda a coisa) seja qual for a quota correspondente ao seu direito na contitularidade”, assim se traduzindo o que é afirmado no Código Italiano, no sentido de “que o participante não pode estender o seu direito sobre a coisa comum em prejuízo dos outros” (sublinhado nosso). 
Por sua vez, Rodrigues Bastos – Notas ao Código Civil, Vol. V, 1997, Rei dos Livros, pág. 171 e 172 – referencia que “cada um dos comproprietários tem o direito de usar livremente da coisa comum, com a condição de não mudar o seu destino nem causar prejuízo ou dificuldade à posse dos outros (…)”.
Acrescenta que o uso directo da coisa comum, em caso de conflito, tem a solução mais dificultada, apesar das limitações que a lei impõe aos respectivos participantes “de não impedir aos outros consortes usar a coisa comum segundo o direito que lhe pertence”, o que também se traduz na obrigação de “respeito pelas utilizações da coisa que os outros participantes tenham legítimo interesse em realizar” (sublinhado nosso).
Em idêntico sentido, defende Elsa Sequeira Santos – Código Civil Anotado, ob. cit., pág. 217 e 218 – que o uso da coisa comum é matéria, “na prática, muito delicada, pois facilmente se percebe que a existência de vários sujeitos com direito a usar a mesma coisa pode potenciar conflitos”, pelo que, para os evitar, “é aconselhável a existência de acordo entre todos os comproprietários destinado a regular o uso da coisa”.
Todavia, inexistindo acordo, “são dois os limites à utilização dos comproprietários: devem respeitar o fim a que a coisa se destina e não impossibilitar o uso pelos demais. Caso a coisa não esteja a ser usada, pode um dos consortes passar a usá-la sozinho na totalidade, p. ex., na compropriedade de uma casa devoluta, pode um dos consortes ir habitá-la, enquanto nenhum outro manifestar a intenção de também o fazer” (sublinhado nosso).
Relativamente às consequências expostas no n.º 2, do mesmo art.º 1406º, acrescenta que “só a coisa em si, e não a quota ideal, pode ser usada, pelo que se coloca a questão de saber se os comproprietários têm posse sobre a coisa, e a resposta só pode ser positiva. A norma estatui, contudo, que o uso da coisa comum – leia-se, da totalidade da coisa – não constitui posse exclusiva do consorte que faça tal uso, nem posse da quota superior à sua, correspondendo apenas a uma posse equivalente à sua quota. Ainda que um comproprietário pratique actos materiais apenas sobre uma parte da coisa correspondente à sua quota, não adquire posse sobre aquela parte, mas apenas, à semelhança do que sucede com a propriedade, sobre uma quota ideal da coisa comum”. E, tal só “deixará de ser assim em caso de inversão do título da posse”.

A propósito do uso, por parte dos comproprietários, de imóvel destinado a habitação, referenciou-se no douto Acórdão do STJ de 15/02/2007 – Relator: Bettencourt de Faria, Processo nº. 06B4630, in www.dgsi.pt -, que “os comproprietários, sendo iguais as respectivas quotas, usufruem a coisa objecto da compropriedade de modo igual, o que significa que o gozo de cada um tem de ser limitado por forma a obter essa igualdade.
Com efeito, os art.ºs 1405º nº 1 e 1406º nº 1 do C. Civil dispõem que os comproprietários participam separadamente nas vantagens e encargos da coisa, na proporção das suas quotas. No entanto é lícito a cada um deles servir-se da totalidade dessa coisa, desde que não prive os restantes consortes do uso a que têm direito.
No caso em apreço, temos que a coisa é uma casa de habitação. Deste modo, o uso da coisa traduz-se em servir ela de residência dos seus proprietários. Acontece que o local de residência tem de ter entre as suas características a da privacidade, que não se coaduna com a residência simultânea de diversas pessoas pertencentes a agregados familiares diferentes numa casa de tipo unifamiliar.
Daqui resulta que, na falta de acordo, aliás ressalvado pelo citado artº 1406º nº 1, é problemático o uso pelos comproprietários de uma unidade habitacional”.

Assim, quer se entenda a posição da ora Requerente:
- como herdeira do falecido marido J..., no recurso a meio de defesa possessório, relativamente ao concreto bem da herança;
- actuando enquanto cabeça de casal da mesma herança, numa pretensão de efectiva administração também do bem em equação;
- enquanto usufrutuária do direito correspondente a ½ do mesmo imóvel, de que é nua proprietária a herança, estando tal imóvel, assim, em regime de compropriedade, sendo a Requerida titular da plena propriedade da demais ½,
é certo existir uma posição possessória (ou equiparada) que merece tutela jurídica.
E, fundamentalmente no que concerne à posição de usufrutuária testamentariamente legada, e ainda que apenas incida sobre ½ de tal imóvel, conforme verificámos, sendo aplicáveis as regras da compropriedade, é perfeitamente lícito à Requerente servir-se da totalidade da coisa, e não apenas de parte.
Efectivamente, inexistindo acordo sobre o uso do imóvel (entende-se que o acordado em sede de divórcio, entre o falecido e a Requerida, relativamente à atribuição do imóvel enquanto casa de morada de família, não poderá subsistir ao óbito daquele), vigora o princípio do uso integral da coisa por parte de qualquer um dos comproprietários, com a limitação decorrente, in casu, da concorrência do direito da demais comproprietária (a ora Requerida), que igualmente terá o direito de legitimamente a usar, quando para tal manifestar concreta intencionalidade.
Todavia, o acesso a tal utilização, que nunca havia sido operado desde a ocorrência do divórcio e do acordo operado com o então cônjuge marido (mesmo após o decesso deste), nunca poderia ser operacionalizado nos termos indiciariamente provados, esbulhando violentamente a posse da Requerente usufrutuária (para além de herdeira e cabeça de casal da herança, titular de ½ sobre tal imóvel).
Efectivamente, caso pretendesse servir-se igualmente do imóvel comum, e na impossibilidade de eventualmente obter qualquer acordo sobre o uso com a ora Requerente, dispunha a Requerida dos meios de tutela judicialmente existentes para fazer valer a sua pretensão, mostrando-se, assim, totalmente ilegítimo e injustificado o adoptado recurso à acção directa, de forma a violentamente esbulhar a posse exercida pela Requerente.
Assim, tal restituição provisória na posse do imóvel deve ser sob a sua totalidade, e não sob qualquer parcela ideal do mesmo, o que determina, juízo de procedência das conclusões recursórias apresentadas, conducente à alteração da decisão recorrida, no sentido de que, na procedência do procedimento cautelar de restituição provisória de posse, “decide-se ordenar a restituição provisória, à Requerente, da posse do prédio urbano sito na Rua..., freguesia de …, composto de casa de r/c para habitação e garagem; dependência para arrecadação e coelheira e logradouro, com a área total de 640 m2, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o número …. da referida freguesia de …, inscrito na matriz predial urbana com o artigo … da mesma freguesia”.
*
Nos quadros do art.º 539º, nºs. 1, 1ª parte e 2, do Cód. de Processo Civil, as custas da presente apelação são da responsabilidade da Requerente/Recorrente.
***
IV. DECISÃO
Destarte e por todo o exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em:
a) Julgar procedente o recurso de apelação interposto pela Apelante/Recorrente/Requerente M..., em que figura como Recorrida/Apelada/Requerida L...;
b) Em consequência, decide-se:
I) Alterar a decisão recorrida, no sentido de que, na procedência do procedimento cautelar de restituição provisória de posse, “decide-se ordenar a restituição provisória, à Requerente, da posse do prédio urbano sito na Rua..., composto de casa de r/c para habitação e garagem; dependência para arrecadação e coelheira e logradouro, com a área total de 640 m2, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o número … da referida freguesia de …, inscrito na matriz predial urbana com o artigo …. da mesma freguesia”;
II) Mantendo-se, quanto ao demais, a mesma decisão.

Custas da presente apelação a cargo do Recorrente/Apelante/Requerente – cf., art.º 539º, nºs. 1, 1ª parte e 2, do Cód. de Processo Civil.

--------
Lisboa, 20 de Junho de 2024
Arlindo Crua
Inês Moura
Higina Castelo
_______________________________________________________
[1] A presente decisão é elaborada conforme a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, salvaguardando-se, nas transcrições efectuadas, a grafia do texto original.
[2] Originalmente, o presente facto tinha a seguinte redacção: “2. A ora Requerida beneficia de consumos de água, eletricidade e de uso cujos valores são, pelo menos, de €1.000,00, por mês”.
[3] Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 285.
[4] Idem, pág. 285 a 287.
[5] Nas palavras do douto Acórdão do STJ de 07/06/2005 – Doc. nº SJ200506070016076, Relator: Fernandes Magalhães -, “a posse na sua força jurísgena aspira ao direito, tende a converter-se em direito.
Daí que o ordenamento não somente a proteja, como a reconheça como um caminho para a dominialidade, reconstituindo, através dela, a própria ordenação definitiva. É o fenómeno da usucapião, cuja "ratio" Heck vislumbra no valor do conhecimento (Erkentnisverten) que a posse é.
 A usucapião é, no que importa agora considerar, uma forma originária de aquisição do direito de propriedade e requer que a posse tenha certas características, que seja, de algum modo, "digna" do direito a que conduz. O que nela se homenageia, é menos a posse em si do que o direito que a mesma indicia, que é a prefiguração do direito a cujo título se possui”.
Acrescenta, citando Orlando de Carvalho – Introdução à Posse, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 122º, pág. 67 -  “donde a exigência, em qualquer sistema possessório de uma posse em nome próprio, de uma intenção de domínio, e uma intenção que não deixe dúvidas sobre a sua autenticidade”.
[6] Manuel Rodrigues, ob. cit., pág. 326.
[7] Refere Manuel Rodrigues – ob. cit., pág. 336 e 337 – que quem alegar a posse, em acção ou excepção, “há-de provar a sua existência – é princípio geral de direito. E como a posse é constituída por uma detenção exercida no próprio interesse, aquele que a invoca terá de demonstrar que detém o objecto, ou que outrem o detém por ele, e que a detenção é exercida em seu proveito, se não tiver em seu favor alguma presunção, ou então que adquiriu a posse de quem tinha possuído”.
[8] Referenciam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa – Código de processo Civil Anotado, Vol. I, 2019, Almedina, pág. 446 -, que o entendimento mais adequado a uma efectiva tutela dos direitos é o que inclui “no conceito de «violência» não apenas a que é exercida contra a própria coisa mas também, e de uma forma que nos parece inteiramente justificada, a que é exercida contra o possuidor, sem exclusão sequer dos atos intimidatórios que se repercutam na manutenção da paz pública que a providência visa finalisticamente assegurar”.
[9] Conforme sumariado no douto Acórdão da RC de 22/10/2019 – Relatora: Maria Catarina Gonçalves, Processo nº. 5236/17.2T8CBR-D.C1, in www.dgsi.pt -, ocorre esbulho violento sempre que “o possuidor seja privado do objecto da posse por via de uma acção ou ameaça dirigida à sua pessoa ou por via de acção física exercida sobre as coisas (por via da sua construção, alteração ou destruição) desde que esta acção funcione como modo adequado de coagir (física ou moralmente) o possuidor a abster-se dos actos de exercício da posse, seja porque essa acção impede, em termos físicos, que o possuidor tenha contacto com a coisa possuída (traduzindo dessa forma uma coacção física por implicar uma total impossibilidade de o possuidor executar a sua vontade de exercer os poderes de facto sobre a coisa), seja porque traduz um acto intimidatório que cria algum receio no espírito do possuidor e que o determina a abster-se de exercer qualquer poder efectivo sobre a coisa (correspondendo, dessa forma, a uma coacção moral em virtude de tal actuação ser determinada pelo receio de um mal que lhe possa advir caso actue de outra forma)”.