DECISÃO INSTRUTÓRIA
DESPACHO DE NÃO PRONÚNCIA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
INDÍCIOS SUFICIENTES
Sumário

I–A decisão instrutória de não pronúncia, tal como a de pronúncia, deve conter a narração dos factos que em concreto foram determinantes do juízo de levar ou não alguém a julgamento, indicando os factos indiciados e os factos não indiciados.

II–A decisão instrutória não tem de tomar posição sobre todos os factos que foram alegados no RAI, desde que justifique a sua decisão, nomeadamente, referindo a necessidade de expurgar do RAI tudo o que considera constituir conclusões, elementos de prova, factos inócuos e aspectos jurídicos.

III–A prova recolhida em inquérito e instrução é apreciada de acordo com as regras de experiência e a livre convicção do tribunal (art. 127º do CPP).

IV–O critério de que depende a introdução do feito em juízo, que é a finalidade a que se acha vinculada a instrução (art. 286º, nº 1, do CPP) é o da suficiência dos indícios (“de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”).

(Sumário da responsabilidade do relator)

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I.–RELATÓRIO


1.–Inconformada com o despacho de não pronúncia do arguido AA “pela prática, como autor material, na forma consumada, de um crime de denegação de justiça e prevaricação, previsto e punido pelo artº 369º, nºs 1 e 2 do C.P., nem pela prática de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365º, nº 1, do Código Penal”, recorreu a assistente BB, terminando a sua motivação com a extracção das seguintes conclusões (transcrição):

A.O despacho recorrido na fixação da matéria de facto, olvida um grande conjunto de factos relevantes, constantes do requerimento de abertura de instrução [RAI], do qual se destacam alguns que se têm por indispensáveis para a decisão e que se elencam acima em 10. a 19. e que aqui se dão por reproduzidos.
B.O despacho recorrido dá por não provados, nem indiciariamente, um conjunto de factos ali constantes a Fls. 974-976, dos quais, alguns ou se encontram em flagrante oposição às evidência e provas constantes dos autos ou obtidas de depoimento colhido durante a instrução da perita médica do INMLCF e que se elencam acima em 21. a 24. acompanhados da fundamentação probatória constante dos autos e que aqui se dão por reproduzidos.
C.–Alguns dos factos elencados no presente recurso e referidos nas conclusões A. e B. supra que não encontrem suficiente demonstração já presente nos autos, designadamente na fase de inquérito, por nela não se ter produzido qualquer ato de investigação ou de adução de prova, podem carecer de renovação, melhor dizendo, realização de prova testemunhal, tal como requerido pela A. no RAI – Fls. 757 e 829-831.
D.–A não realização desta prova impediu o Tribunal a quo de decidir de direito com toda a factualidade pertinente fixada.
E.–As conclusões sobre a inocência do arguido – e a “culpa” da A. – que o Tribunal a quo exprime não encontram sustentação na matéria de facto, mesmo com a factualidade insuficiente tal como fixada pelo Tribunal, como se demonstra em 25. a 67. supra com abundante demonstração probatória constante dos autos, para a qual se remete V. Exas.
Sendo certo que há douta doutrina que sustenta a tese interpretativa do Tribunal a quo quanto ao elemento subjetivo do crime previsto no artigo 369.º do Código Penal, partilhamos do entendimento de que a previsão do referido comando legal não pretende restringir o tipo subjetivo do ilícito, afinal, os destinatários da norma incriminadora, a Magistrados jurados e polícias. Desde logo pelo elemento literal. A única delimitação (restrição) expressa da norma neste quid é a da qualidade de funcionário do agente. E não devemos entender que o legislador não soube ou não pode expressar-se com rigor quando o faz, isto é, diz-nos o elemento hermenêutico literal que a norma visa os comportamentos objetivos nela expressos de «funcionários» e não de uma subcategoria, diríamos, “judiciária” destes.
Por outro lado, mesmo que se entenda, como entende o Tribunal a quo, que o conceito de funcionário da norma se aplica de forma, a que chamaremos extensiva dentro da interpretação restritiva que perfilham, a polícias em inquérito e a jurados, também deveremos entender nele caber o funcionário que no exercício das suas funções pratica ato que se enquadre na previsão objetiva da norma e que, de forma autónoma ou suficiente, leve necessariamente à instauração de um inquérito-crime, isto é, que constitua per se e com força processual própria bastante o início de inevitável desenvolvimento de processo contra o denunciado. Tal ato preenche integralmente o tipo do ilícito previsto no artigo 369.º do CP, independentemente da interpretação que adotemos sobre o conteúdo interno da qualidade de “funcionário”. São exemplo do que acaba de se dizer o auto de notícia ou a denúncia de crime público (de investigação obrigatória pelo MP sem mediação de queixa ou de impulso externo), como é o caso sub iudice nos presentes autos.
É, neste entendimento, aplicável à conduta denunciada do arguido o crime previsto no artigo 369.º do CP.
F.–Com a matéria constante dos autos e porque nesta fase não se impõe a prova absoluta e definitiva dos factos pertinentes, mas apenas um juízo indiciário da sua verdade que a provarem-se em sede de julgamento determinam a culpa do agente, arguido, pode esse Venerando Tribunal pronunciar o arguido pelos factos constantes do RAI.
G.–Se assim não for entendido, deve o Tribunal ad quem proceder à produção/renovação de prova como se requer adiante, pronunciando, no final, o arguido pelos factos constantes do RAI.
No final da motivação de recurso, a assistente / recorrente requereu “a renovação da prova testemunhal não produzida em sede de instrução, constantes dos requerimentos da A. a Fls. 757 e 829-831” e igualmente requereu “a requisição de perícia médico-legal como se requer a Fls. 756 com remessa do processo clínico completo – Fls. 155-217v – e do RAI, incluindo os seus anexos de Fls. 764v-768v (literatura médico-científica) para apreciação da adequação da atitude terapêutica da A. com as leges artis da medicina à data”.

2.–Admitido o recurso, foram apresentadas respostas pelo arguido e pelo Ministério Público (seguindo a ordem de entrada em juízo).
2.1.-Na sua resposta, o arguido extraiu as seguintes conclusões (transcrição):
1.ª-O recurso interposto pela Assistente tem por objeto a decisão instrutória proferida pelo Tribunal a quo que, e muito bem, decidiu não pronunciar o Arguido pelos crimes de denúncia caluniosa e de denegação de justiça e prevaricação; crimes estes que a Assistente imputava ao Arguido através do seu requerimento de abertura de instrução (“RAI”).
2.ª-Como se deixou demonstrado na presente Resposta, assim entende o Arguido, a decisão instrutória proferida pela MM.ª Juíza de Instrução é certeira, incólume, e não deve ser revogada, não tendo a Assistente logrado munir a Motivação em resposta de qualquer indício ou evidência do contrário. O exercício da Assistente é constantemente conclusivo, pouco fiel aos elementos tidos em consideração pelo Tribunal a quo, e afasta-se do busílis que envolve os autos e que conformou a decisão instrutória.
3.ª-As transcrições do depoimento da Senhora ... CC, subscritora do Parecer (“Consulta Técnico-Científica”) que figura nos autos (fls. 556. e ss.), constantes da Motivação em resposta são incompletas, e do referido depoimento não resulta o que vem alegado pela Assistente.
4.ª-Conforme concluiu (e bem) o Tribunal a quo, do referido depoimento apenas resulta confirmado o que já resultava dos autos, nomeadamente do Inquérito, no sentido de que a Assistente violou as leges artis. – vide, neste particular, o alegado na alínea d) do ponto II. da presente Resposta.
5.ª-Do registo lavrado pela Assistente no Diário da Consulta relativo à utente falecida no dia 01.06.2016 (19h51), não há qualquer indício relativamente: i) ao modo da realização da consulta por meios à distância, leia-se, através de contacto telefónico; ii) à existência de qualquer hemorragia atenta a extração dentária a que a doente foi alegadamente sujeita no dia anterior à referida consulta (31.05.2016); iii) às implicações da alegada “hemorragia ativa” na decisão clínica da Assistente; iv) ao carácter urgente da “marcação”/pedido de exame angio-TAC efetuado pela Assistente.
6.ª-Apenas num segundo registo completamente anómalo, lavrado pela Assistente a 07.04.2017 (cerca de um ano após o óbito da utente) – cf. fls. 400. dos autos – leva a considerar uma alegada extração dentária à utente falecida, sem que do mesmo registo resulte indicada a constatação de qualquer hemorragia.
7.ª-Contudo, a Assistente teve a oportunidade de confrontar a Senhora ... CC quanto a essa alegada hemorragia, tendo a depoente, em sede de esclarecimentos tomados no decurso da Instrução, respondido de modo bastante claro e evidente para aos autos: se a doente tivesse uma hemorragia, teria de ser avaliada no próprio dia, sendo que tal circunstância (hemorragia decorrente de uma alegada extração dentária) não era impeditiva da realização urgente e devida de Angio-TAC, atenta a suspeita imagiológica de TEP, nem da iniciação de terapêutica anticoagulante.
8.ª-Não era impossível que a médica assistente tivesse prescrito a terapia anticoagulante, nem impossível era que a doente se tivesse deslocado ao Hospital (eventualmente, e, caso necessário, com recurso a meios de transporte de doentes) para que fosse realizado exame Angio-TAC e iniciada a terapêutica anticoagulante, o que resultou também claro do depoimento da Senhora ... CC: as leges artis que no caso se impunham observar ditavam que a doente fosse clinicamente avaliada, mandando a cautela que, na impossibilidade de realização do referido exame para confirmação da suspeita imagiológica de TEP, a utente iniciasse terapia anticoagulante.
9.ª-Além de a Assistente não ter promovido a avaliação clínica e imediata da utente, também não referenciou a utente para qualquer colega do Serviço, bem sabendo a própria Assistente que se iria ausentar do território nacional nos dias subsequentes ao alegado «contacto telefónico», sendo certo que tampouco prescreveu, com carácter de urgência, o mencionado Angio-Tac.
10.ª-Ficou absolutamente claro no decurso da Instrução que a Assistente, não obstante alegar no RAI o seu contrário, «marcou» o exame de Angio-Tac com a prioridade «programado», a prioridade mais baixa possível no ....
11.ª-Recorda o Arguido que foi em razão da missiva que a Assistente dirigiu à Senhora LL, datada de de 2019, com conhecimento da Administração do ..., em especial do que resulta do seu ponto 16. - «[n]a minha ausência para participar no congresso anual da ..., uma doente do ensaio clínico FLAURA faleceu por não lhe ter sido instituída terapêutica para embolia pulmonar, nem pelas subinvestigadoras nem pela Diretora do Serviço, após confirmação imagiológica. Propus que o ... deixasse o ensaio, por não ter condições para garantir a segurança dos doentes. A equipa internacional manteve o ... pedindo-me para reforçar essas medidas, o que fiz, passando a dar o meu contacto pessoal a todos os doentes dos ensaios, contratou-se uma entidade externa para execução dos exames de Imagiologia para termos resposta atempada, e passei eu própria, como Investigadora Principal, a escolher a equipa» - que foi decidido, pelo ..., instaurar um processo de inquérito prévio com vista ao apuramento desta (e de outra factualidade versada na referida missiva subscrita pela ora Assistente), tendo-se limitado o Conselho de Administração, numa primeira fase, a designar instrutores para esse efeito.
12.ª-Sucede, porém, que, no âmbito do referido processo de inquérito, concluíram os instrutores pela verificação das várias condutas da Dr.ª BB, aqui Assistente, que poderiam ser tidas como desviantes às leges artis. Atentas essas conclusões – que a Assistente não logrou afastar no decurso da Instrução, antes pelo contrário – decidiu o Arguido, com a concordância dos demais membros do Conselho de Administração, remeter a denúncia, obrigatória, ao Ministério Público, e que está na base da imputação, pela Assistente, dos crimes de denúncia caluniosa e prevaricação ao Arguido.
13.ª-Ficou evidenciado no decurso dos autos que a Assistente, de facto, teve várias condutas, omissivas, desconformes com as leges artis, tal como, de resto, vinha concluído no processo de inquérito prévio. Foram as conclusões do referido processo (e não outro qualquer motivo longínquo que a Assistente procura arremessar constantemente para os autos) que subjazeram e determinaram o envio, pelo Arguido, na qualidade de Presidente do ..., da referida denúncia obrigatória ao MP.
14.ª-Não consente o Arguido, por isso, na acusação vã e insultuosa da sua honra e reputação constante, entre outros lugares, do ponto 14 da Motivação em resposta, repudiando-a, de resto, de forma veemente. O Arguido em momento algum atuou com qualquer intuito persecutório em relação à Assistente, e disso são bem demonstrativos os autos e a decisão instrutória censurada pela Assistente.
15.ª-Conforme já explorado, apesar do arquivamento do crime de homicídio por negligência, resulta bastante claro do Despacho de Arquivamento – aliás, do próprio Despacho, e da decisão instrutória proferida pelo Tribunal a quo – que se concluiu pela violação, pela Assistência, das leges artis, no que tange ao acompanhamento à utente que veio a falecer. Essa violação, em aderência ao que resulta da Consulta técnico-científica requisitada pelo MP no decurso do Inquérito e dos esclarecimentos prestados pela subscritora do referido Parecer, a Senhora ... CC, resultou, em estreita síntese, do facto de a Assistente: i) não ter pedido a realização de um Angio-TAC urgente ou emergente; ii) não ter iniciado ou sequer prescrito, por cautela, terapia anticoagulante.
16.ª-A Instrução apenas teve a virtualidade de confirmar as condutas omissivas da Assistente. Era assim devida a conclusão de que a Assistente, com a sua conduta, não cuidou de observar o dever objetivo que se lhe impunha em observância das leges artis, tal como vinha indicado nas conclusões do processo de inquérito prévio que foi dirigido pelo ..., e que foi devidamente transportado para a denúncia efetuada pelo Arguido.
17.ª-Salienta o Arguido que os factos que motivaram a denúncia obrigatória, subscrita pelo próprio, se encontravam apoiados nas conclusões de um processo de inquérito prévio que correu termos no .... Nem os demais membros do Conselho de Administração, nem o Arguido, que presidia, encontraram razões ponderosas que pudessem afastar a validade e congruência dessas mesmas conclusões, nomeadamente quanto ao apuramento de condutas omissivas da Assistente, em violação das leges artis, em face dos elementos coligidos e das diligências instrutórias havidas no âmbito do processo de inquérito prévio.
18.ª-Essas conclusões foram duplamente confirmadas nos presentes autos, seja no decurso do Inquérito, tal como se encontra materializado no despacho de arquivamento, seja no decurso da Instrução, de que é manifestação evidente a decisão instrutória objeto de censura pela Assistente através do recurso por si interposto: A Assistente não observou as leges artis.
19.ª-O referido relatório, de 43 páginas, dá nota das diligências instrutórias havidas pelos instrutores do processo de inquérito prévio, resultando do mesmo elemento a resposta às alegações vertidas na exposição da Assistente que motivou a instauração do referido processo pelo .... A este respeito, além de terem sido ouvidos vários clínicos, conforme resulta evidente do referido Relatório, desde logo a Dr.ª DD (que vinha visada na exposição da Dr. BB, aqui Assistente, por alegados comportamentos discriminatórios contra a Assistente), os instrutores do processo tomaram posição por escrito quanto à matéria «denunciada» pela Assistente. Contudo, da análise aos elementos oferecidos pela Assistente, e após terem sido efetuadas diligências instrutórias, não foi possível concluir pela prática de assédio moral e laboral contra a Assistente. – cf. facto ff. Do ponto III. do referido Relatório final (p. 39.). É vã e desprovida de adesão à realidade – estilo da Assistente que já remonta ao RAI por si apresentada – a imputação que é feita no n.º 17 da Motivação em resposta. Não atuou o Arguido com qualquer «ânimo persecutório» contra a Assistente, sendo falso o que vem alegado na Motivação em resposta.
20.ª-Como a própria Assistente bem sabe, na sequência da nota de culpa enviada à Assistente e da consequente resposta (defesa), não foi praticada nenhuma diligência instrutória no procedimento disciplinar n.º 23/2019, porque a Assistente iniciou mobilidade no ... com efeitos a de 2020, tendo o procedimento disciplinar que revelava, através da nota de culpa, a intenção do despedimento da Arguida com fundamento em infração disciplinar grave, sido, com fundamento em inutilidade superveniente, arquivado pelo .... – cf. Docs. 1 e 2 anexos ao ofício do Conselho de Administração com a ref.ª …, de …2020, em resposta ao pedido endereçado pela Digníssima Procuradora-adjunta (ref. 128159251, de 09.12.2020). Apenas por isso não foi praticada a decisão final.
21.ª-O Arguido é …, com especialidade de …, tendo sido Diretor de Serviço e não chefe de serviço. Não se entende, contudo, a relevância deste facto para a desinência dos autos. A conduta do Arguido foi exclusivamente determinada pelas conclusões do processo de inquérito prévio que visou o apuramento, entre outra factualidade, de factos relacionados com a assistência hospitalar à utente falecida, sendo certo que desse processo resultaram evidenciados elementos que faziam considerar a existência de indícios de má prática (omissões da Assistente), contrários às leges artis, imputados à ora Assistente, o que deu azo à instauração de procedimento disciplinar com a elaboração de nota de culpa regularmente notificada à Assistente, na qual foi revelada a intenção do despedimento da Assistente com fundamento em falta disciplinar grave.
22.ª-O resultado do Inquérito e da Instrução havidas fazem considerar que o comportamento do Arguido não integra a prática dos referidos crimes, remetendo o Arguido para as conclusões estribadas no despacho de arquivamento e na decisão instrutória quanto à conclusão da violação, pela Assistente, das leges artis – aspeto que, esse sim, foi afirmado na Consulta Técnico-Científica junta ao Inquérito e reafirmado pela perita médica em sede de Instrução. A Assistente parece confundir o ato do Arguido, materializado na subscrição da denúncia, obrigatória, remetida pelo Arguido ao MP com um juízo equivalente ao de uma condenação do foro penal por um tribunal…
23.ª-A Assistente indica a prática dos atos instrutórios que a Assistente, idealmente, configura como necessárias à (re)ponderação da decisão que censura, mas não demonstra – e seria impossível fazê-lo em face da clareza e correção da decisão sob censura – a mesma Assistente de que modo é que esses atos instrutórios se revelariam úteis à Instrução, sendo certo que a mesma Assistente não reagiu no decurso da Instrução, nomeadamente quando a MM.ª Juíza de Instrução lhe indeferiu, através de despacho datado de 24.04.2023, a maioria da prova indicada no RAI por si apresentado. Insiste, por isso, o Arguido, em afirmar que a decisão instrutória se limitou a confirmar o que já havia sido concluído no decurso do Inquérito: que a Assistente, efetivamente, atuou com violação das leges artis.
24.ª-O relevo último dos autos reside no busílis da conduta da Assistente: foram as conclusões do processo de inquérito prévio que determinaram ao Arguido, atento o exercício de funções no ..., mormente na qualidade de Presidente do Conselho de Administração, a subscrição da missiva de denúncia obrigatória onde deu nota da factualidade e conclusões apuradas no âmbito do referido processo de inquérito.
25.ª-Em suma, a factualidade que determinou o envio da missiva, pelo Arguido, na qualidade de Presidente de Conselho de Administração, ao DIAP territorialmente competente – é dizer, as conclusões avançadas pelos Instrutores no âmbito do processo de inquérito prévio – foi confirmada, quanto às omissões da Assistente, enquanto violação das leges artis. É o suficiente para se dizer, com propriedade, que não só o Arguido não se afastou da verdade (i.e., das conclusões obtidas no referido processo de inquérito), como se encontrava numa posição funcional que lhe impunha, perante a verosimilhança das referidas conclusões, a denúncia obrigatória ao MP, para que as autoridades competentes sindicassem o apuramento de eventual responsabilidade criminal em face das condutas omissivas da Assistente.
26.ª-Também a prova pericial constante dos autos foi clara na conclusão de que a Assistente violou as leges artis, conforme se deixou assinalado em II. da presente Resposta, tendo tido a Assistente a oportunidade – de que fez uso – de dirigir as questões que entendeu relevantes, nomeadamente através dos esclarecimentos orais prestados pela Senhora ... CC, subscritora da Consulta Técnico-Científica junta ao Inquérito e que subjazeu à decisão de arquivamento, pelo MP, com a conclusão de que a conduta omissiva da Assistente (violação das leges artis) se verificou, tal como foi identificado no processo de inquérito prévio que correu termos no ... e que determinou a subscrição, pelo Arguido, da denúncia obrigatória que remetera ao MP.
27.ª-Conforme apontam a Doutrina e Jurisprudência, o agente do crime de denegação de justiça e prevaricação não é todo e qualquer «funcionário», mas tão-só o funcionário que ativamente atue no âmbito das circunstâncias referidas (leia-se: nos processos visados) na norma incriminadora. Apenas pode praticar o crime de prevaricação o funcionário público que atue no âmbito de processos de natureza judicial, sendo comummente apontados como possíveis agentes do crime os juízes, os magistrados, os funcionários judiciais e os jurados ou, na fase de inquérito, os polícias. – cf. IV. Da presente Resposta.
28.ª-A tese avançada pela Assistente a respeito do crime de prevaricação não tem qualquer justificação plausível atento o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora e tropeçam no sentido, claro, da letra da lei quando se refere a atos de natureza judicial. Em todo o caso, a conduta incriminadora, por ação ou omissão (promover ou não promover; conduzir; decidir ou não decidir; praticar determinado ato), tem necessariamente de se revelar “contra direito”, isto é, «contra as normas da ordem jurídica positiva, independente das fontes (estadual ou não estadual) e da natureza (pública ou privada, substantiva ou processual), incluindo, naturalmente, os princípios vertidos em normas positivas, designadamente na Declaração Universal dos Direitos do Homem, no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, não tendo a Assistente logrado demonstrar a contrariedade a este núcleo irredutível das «normas da ordem jurídica positiva» relevantes para o tipo em crise.
29.ª-Quanto ao crime de denúncia caluniosa, apenas existe uma denúncia, obrigatória, ao Ministério Público, datada de …2020, subscrita pelo Arguido, na qualidade, à data dos factos, de Presidente do Conselho de Administração do .... Os demais elementos do crime não se encontram preenchidos, nem resulta indiciada qualquer conduta criminosa pelo Arguido, tal como se concluiu na decisão instrutória objeto do presente recurso: a referida denúncia obrigatória não se afasta da verdade.
30.ª-Se o próprio MP concluiu no sentido do incumprimento das leges artis pela ora Assistente, com a admissão, em abstrato, de um aumento do perigo para a vida da utente falecida daí adveniente – em tudo sobreponível com os resultados do processo prévio de inquérito que determinaram, ao Arguido e atenta a sua qualidade de Presidente, à data dos factos, do ..., a denúncia por si remetida ao MP, e ainda com a perícia levado a cabo no Inquérito, confirmada na Instrução – não se vê de que modo é que a decisão instrutória possa ser revogada, no sentido de que o Arguido possa ser pronunciado pelos crimes de denúncia caluniosa e de prevaricação, sendo certo que, conforme vem fazendo notar a jurisprudência, a decisão de pronúncia de ar determinado arguido deve ancorar-se numa «alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação de que de absolvição». – cf. Ac. proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, a 23.05.2018, no âmbito do processo n.º 80/16.7GBFVN.C1 (Rel. ORLANDO GONÇALVES).
31.ª-No caso dos autos, e em face do acervo de elementos constantes do Inquérito e adensados na Instrução, não se vislumbra como provável a hipótese de condenação do Arguido em julgamento, devendo ser confirmada a decisão recorrida.
Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deve ser julgado improcedente, por não provado, o recurso interposto pela Assistente, confirmando-se a decisão instrutória recorrida.”.

2.2.–Na sua resposta, o Ministério Público extraiu as seguintes conclusões (transcrição):
1-A douta Decisão Instrutória não enferma de qualquer erro na apreciação da prova, seja notório ou não notório, designadamente no que respeita aos pontos de facto suficientemente indiciados e não suficientemente indiciados, nem padece de qualquer irregularidade ou contradição;
2-Ainda que a Recorrente possa dela discordar ou até ter outra convicção pessoal, a motivação assenta na convicção do julgador e necessariamente, também, na credibilidade que lhe mereceram determinados meios de prova em detrimento de outros, à luz do parâmetro normativo da livre apreciação, objetiva e racionalmente fundada, não logrando em motivação de recurso apontar qual motivos – legais – para discordar daquela;
3-Pretende a Recorrente censurar, limitar, punir, um facto precedente (a denúncia do Arguido) com base em conclusões tiradas dum juízo técnico-científico (a Consulta Técnico-Científica do INML) que lhe é absolutamente posterior ou consequente. Sem a denúncia dos factos, não poderia o Ministério Público, o Tribunal e até o Assistente colocar as perguntas e obter as respostas, ponderar a Consulta Técnico-Científica, questionar a Sra Perita e alcançar tal juízo;
4-Não cabia – como não cabe – ao arguido, ainda que sendo médico com especialidade em anatomia patológica, substituir-se ao Ministério Público ou até Conselho Médico Legal do INML, que é um órgão colegial, para deixar de denunciar criminalmente uma situação que indicia ao menos uma decisão médica “pouco sensata” que indiciariamente terá aumentado o risco para a vida duma doente, que malogradamente veio a falecer;
5-Obtida a “notícia de crime”, que é qualquer suspeita minimamente razoável e/ou verosímil de se ter verificado crime, compete em exclusivo ao Ministério Público, mediante abertura de inquérito, “investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação”;
6-Ao contrário do que pretende a Assistente, ora recorrente, o princípio da legalidade impõe-se, sempre, independentemente da facilidade ou dificuldade da prova, designadamente por não ter sido realizada atempadamente a autópsia médico-legal;
7-Aquando a denúncia, a decisão clínica, rectius a omissão clínica da Assistente, reconhecidamente pouco sensata e pouco cautelosa, por não prescrever o medicamento anticoagulante, não se apresentava como absolutamente inútil para o desfecho mortal da paciente;
8-Ou seja, não era evidente, no momento da denúncia, a ausência de conexão de risco entre a conduta da Assistente e o resultado morte;
9-Pelo que não era possível ao denunciante – como também não era ao Ministério Público que determinou a abertura do inquérito – afirmar a ausência dessa conexão de risco, outrossim as suspeitas eram razoáveis;
10-No que se acompanha – reforçando - a idêntica convicção do Tribunal quanto à licitude da denúncia obrigatória dos factos pelo Arguido;
11-Aliás, se compreendem os escusados remoques da Assistente (pontos 33, 34 e 35 das motivações de recurso) apontando a mira do recurso mais à “julgadora” do que à decisão, quando lhe atribui um desígnio de censura moral do tipo: “não podemos sancionar-te juridicamente porque não se prova, mas lá que erraste, não há dúvida”;
12-É plenamente fundada, congruente, logicamente sustentada, “não gratuita”, antes absolutamente necessária – na motivação da decisão instrutória – a referência à conduta profissional da Assistente, pericialmente firmada como “insensata”, visto que essa convicção efetivamente “se adensou com o curso da Instrução”, com os esclarecimentos da Sra Perita do INML, e é essencial para avaliar da racionalidade/verosimilhança das “suspeitas” que subjazem à denúncia, cuja ponderação da ilicitude era justamente o thema decidendum da Instrução;
13-Nos crimes negligentes a tentativa não é punível, sendo nos crimes materiais de resultado, como sucede no homicídio por negligência, o desvalor da ação típica penalmente relevante apenas quando lhe seja imputável o resultado típico; porém, o objeto da Instrução sub judice respeita ao momento da denúncia, em que a conduta imprudente, na conjugação com a morte da doente, era já o bastante para a denúncia e abertura de inquérito, no qual pudesse ser averiguada a indiciação quanto aos demais segmentos objetivos e subjetivos da norma incriminadora;
14-Não restava ao Arguido senão proceder à denúncia criminal, material e funcionalmente devida, para cabal apuramento dos factos pelo Ministério Público em Inquérito perante os achados em processo disciplinar, cristalizados na proposta do Instrutor para denúncia dos factos ao Ministério Público;
15-Designadamente pelos factos suscetíveis de consubstanciar a prática de crime (posteriormente até parcialmente confirmados em Inquérito pela Consulta Técnico-Científica do INML e melhor explicitados em esclarecimentos da Sra Perita relatora), a saber, a indiciada falta de cautela das decisões médicas (da Assistente e não só), tendo presente o falecimento da doente e as indiciadas conexões de risco daquelas condutas (omissões) ao resultado;
16-Perante uma denúncia de atuação/omissão médica indiciariamente pouco cautelosa (logo pouco cuidadosa), com possível incidência na saúde e vida da doente, cabia a Ministério Público e não ao denunciante (por muito qualificado que seja) investigar e apurar da causa de morte, apurar do nexo de imputação, da violação do dever de cuidado;
17-A denúncia foi, assim, legítima e necessária, na medida em que teleologicamente orientada à abertura de inquérito, nos termos e pressupostos legalmente previstos, como aliás efetivamente sucedeu;
18-Pois não pode ser ilícita a denúncia que é devida e até realizada no cumprimento dum dever, conforme dispõem o art. 31º nº2 al. c), Código Penal, e o art. 242º nº1 al. b), do Código de Processo Penal;
19-Acresce que o crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art. 369º, n.º1 e n.º2 do Código Penal, é de todo inaplicável ao caso sub judice pelos motivos expressos na douta decisão recorrida que, com a devida vénia, damos por reproduzidos e aderimos;
20-Quanto ao pedido subsidiário de “produção/renovação de prova”, para “melhor dizendo, realização de prova testemunhal, tal como requerido pela A. no RAI”, s.m.o. não pode a Assistente, pela via deste recurso, pretender na prática revogar a decisão de indeferimento de diligências instrutórias, aliás redundantes ou dilatórias, pois que esta é absolutamente irrecorrível conforme dispõe o art. 291º nº2, do Código de Processo Penal;
21-Assim, não merece reparo, devendo ser confirmada a douta decisão recorrida, que decidiu não pronunciar o Arguido, porquanto não se indicia minimamente que tenha cometido qualquer crime, seja de denúncia caluniosa, já que a denúncia foi lícita, seja de denegação de justiça e prevaricação, porque não o poderia cometer, conforme a douta decisão recorrida.
Em consequência deve o recurso ser julgado totalmente improcedente.
Com o que se fará a costumada JUSTIÇA.”.

3.–Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual declarou acompanhar os fundamentos da resposta do Ministério Público no sentido de que o recurso em apreço deve ser julgado improcedente, sendo de manter o despacho de não pronúncia.

4.–Cumprido o disposto no art. 417º, nº 2, do CPP (notificação à assistente / recorrente do parecer do Ministério Público junto desta Relação), nada foi requerido.

5.–Foi realizado o exame preliminar, aí se determinando que a questão processual invocada pela assistente / recorrente seria decidida no acórdão a proferir.

Importa, portanto, apreciar tal questão, o que se fará de seguida.

A assistente / recorrente, notificada do parecer do Ministério Público junto desta Relação, para sobre ele se pronunciar, veio requerer (através de requerimento com a refª 669351, com registo de 03/01/2024, e de requerimento com a refª 692296, com registo de 24/05/2024) o seguinte:
a.-Ser notificada da resposta do MP às alegações da Recorrente, à qual adere o referido Parecer, sendo-lhe renovado prazo para pronúncia após a notificação ora requerida;
b.-Ser igualmente notificada do teor de eventual resposta do Arguido/Recorrido às mesmas alegações, bem como de quaisquer outras peças ou documentos relevantes entretanto juntos aos autos após o despacho de admissão do recurso, último acto de que foi notificada ou tomou conhecimento.
c.-Que seja dado acesso ao processo via Citius, através do seu mandatário forense, aqui signatário.

A pretensão da assistente / recorrente, no que respeita às notificações, revela-se manifestamente improcedente, em face dos elementos processuais constantes dos autos (não se mostrando necessário ouvir os demais sujeitos processuais sobre tal questão).
Vejamos.
A assistente / recorrente, na pessoa do seu ilustre mandatário, informa que foi notificada do despacho de admissão do recurso.
Tal notificação surge evidenciada nos autos através da refª 146865201, de 16/10/2023, e da refª 146865245 [email], de 16/10/2023).
O arguido / recorrido e o Ministério Público apresentaram as respectivas respostas ao recurso da assistente / recorrente (registos de 16/11/2023 e 17/11/2023, respectivamente).
Em 21/11/2023, foi proferido despacho no qual, além do mais, foi determinado o cumprimento do disposto no art. 413º, nº 3, do CPP e a oportuna subida dos autos a este Tribunal.
A notificação deste despacho surge evidenciada nos autos através da refª 147705079, de 23/11/2023, e da refª 147705120 [email], de 23/11/2023), aí se mencionando o envio das respostas (ao recurso) recebidas e constando tais respostas dos anexos a tal notificação.
A assistente / recorrente, na pessoa do seu ilustre mandatário, informa que não foi notificada deste despacho (sendo que tal notificação conteria, em anexo, as respostas aos recursos).
A assistente / recorrente, na pessoa do seu ilustre mandatário, informa que foi notificada do despacho que ordenou o cumprimento do disposto no art, 417º, nº 2, do CPP.
Tal notificação surge evidenciada nos autos através da refª 20862356, de 12/12/2023.
A análise das várias notificações efectuadas à assistente / recorrente, na pessoa do seu ilustre mandatário, permite concluir pela uniformidade de tais notificações, não se vislumbrando razão para a invocação da ausência de notificação do despacho que ordenou ser dado conhecimento das respostas ao recurso apresentadas (constando tais respostas em anexo a tal notificação).
É patente a semelhança desta forma de notificação com a notificação do despacho que admitiu o recurso e que a assistente / recorrente afirma ter recebido.
E a assistente / recorrente foi igualmente notificada do despacho que ordenou o cumprimento do disposto no art. 417º, nº 2, do CPP.
Em suma, improcede a pretensão da assistente / recorrente, no que respeita às pretendidas notificações.
No que se refere ao acesso ao Citius, será questão a tratar pela Secretaria.

É o que se decide.

6.–Foram colhidos os vistos legais e os autos foram submetidos à conferência.

7.–Nada obsta ao conhecimento do recurso.
*

II.–FUNDAMENTAÇÃO

1.–Delimitação do objecto do recurso.
Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, onde sintetiza as razões do pedido, que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do tribunal superior (art. 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
O essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (sendo certo que os recursos servem para apreciar questões e não razões e não visam criar decisões sobre matéria nova), excetuadas as questões de conhecimento oficioso.
Face às conclusões extraídas pela Recorrente da motivação apresentada, as questões a conhecer por este tribunal são as seguintes (pela sua ordem de precedência lógica):
a)-Nulidade da decisão instrutória (de não pronúncia), por omissão de pronúncia;
b)-Da produção / renovação de prova não produzida em sede de instrução;
c)-Existência de indícios suficientes da prática pelo arguido / recorrido dos crimes que lhe são imputados pela assistente / recorrente.

2.–Decisão recorrida.
É o seguinte o teor da decisão recorrida (transcrição):

“DECISÃO INSTRUTÓRIA
Declaro encerrada a instrução – artº 306º, nº 1 do C.P.P..
*

Teve lugar o inquérito, que iniciou na sequência de denúncia obrigatória por AA, na qualidade de Presidente do Conselho de Administração do Hospital …, contra BB, visando a investigação da eventual prática por esta de crime de ofensa à integridade física por negligência ou até de homicídio por negligência, vistas as conclusões vertidas no procedimento interno prévio de inquérito nº …/2019.
Por seu lado, BB igualmente apresentou denúncia contra diversos médicos do ... e os respectivos membros do Conselho de Administração, a fls. 248 e ss., pugnando pela investigação dos factos aí denunciados, de entre eles, o por si alegado com referência ao mesmo procedimento interno prévio de inquérito nº …/2019, bem como ainda ao procedimento prévio de inquérito nº …/2019, elencando factos susceptíveis de integrar o cometimento de crimes de injúria e/ou difamação, denúncia caluniosa, prevaricação e denegação de justiça, conforme esparsamente se logra extrair da denúncia.
Após as diligências de investigação tidas por necessárias e pertinentes, culminou o inquérito com a decisão, pelo Ministério Público, de proferir despacho de arquivamento, constante de fls. 707-717, por ter o M.P. entendido não se mostrar verificada a existência de indícios suficientes da prática pela arguida BB de um crime de homicídio por negligência ou de qualquer outro, bem como, qualificando a factualidade alegada por BB como crime de difamação agravada, por caducidade do direito de queixa quanto a este crime.
*

Não se conformando com este arquivamento, a assistente BB veio requerer a abertura de instrução, com os fundamentos constantes do seu R.A.I., pugnando pela pronúncia de AA, na qualidade de Presidente do Conselho de Administração, pela prática de um crime de denegação de justiça e prevaricação, previsto e punido pelo artº 369º, nºs 1 e 2 do C.P., em concurso aparente com a prática de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artº 365º, nº 1 do C.P..
Alega a assistente, em resumo, que o despacho de arquivamento, de forma abrangente, arquivou o procedimento criminal relativamente a todos os crimes em causa no conjunto dos dois inquéritos, sem que expressamente se tenha debruçado sobre a sua denominada extensão da denúncia, contra AA, constante de fls. 356 e ss., a quem concretamente imputou a prática de um crime de prevaricação em concurso aparente com a prática de um crime de denúncia caluniosa.
No essencial, ora contra AA, a assistente reitera a alegação factual e de direito que constava da denúncia de fls. 248 e ss., então contra diversos médicos e os membros do Conselho de Administração do ..., ainda que agora directamente visando o respectivo Presidente e a este concretamente imputando factos relativos à imputação subjectiva dos referidos dois tipos legais.
Termina impetrando a pronúncia de AA pela prática de um crime de denegação de justiça e prevaricação, previsto e punido pelo artº 369º, nºs 1 e 2 do C.P., em concurso aparente com a prática de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artº 365º, nº 1 do C.P..
*

Foi requerida pela assistente a realização de perícia forense no sentido de apurar a causa da morte da falecida ou a impossibilidade de a verificar, bem como indicando outros quesitos relativos à morte e nexo de causalidade entre decisões médicas/terapêuticas e a causa da morte, o que o Tribunal indeferiu.
Requereu a (re)inquirição de testemunhas.
-
O Tribunal entendeu realizar as seguintes diligências probatórias:
- interrogatório do arguido, que fez uso do seu direito a não prestar declarações (artº 61º, nº 1, al. d) do C.P.P.);
- inquirição da relatora da consulta técnico-científica;
- junção de documentos na sequência de requerimentos da assistente e do arguido, cfr. fls. 848, 904 e 943-951.
- inquirição de três testemunhas (EE, FF e GG).
-
Por requerimento atravessado aos autos a fls. 867-885, o arguido, a douto punho, para além de apresentar as suas considerações quanto aos tipos legais imputados no RAI para concluir pela impossibilidade da sua subsunção no caso, olhando à matéria factual que considera indiciariamente apurada e não apurada, vem arguir a nulidade do despacho que recebeu a fase de instrução por, no essencial, considerar não poder haver lugar à fase de instrução em virtude de ter inexistido, no seu parecer, verdadeiro inquérito, relativamente aos tipos de crime em apreço no RAI e quanto à pessoa do arguido, logo padecendo a presente instrução de falta de objecto.
-
Teve lugar a realização de debate instrutório.
No seu decurso, não foi requerida a produção de qualquer outra prova indiciária suplementar.
O M.P. e o arguido concluíram pela prolação de despacho de não pronúncia e a assistente pela decisão de pronúncia, nos termos requeridos no RAI.
*

O tribunal é o competente e a assistente tem legitimidade para requerer a abertura de instrução.
O processo é o próprio e não enferma de nulidades que o invalidem totalmente.
*

Da alegada (pelo arguido) nulidade do despacho que declarou aberta a instrução por falta de promoção do processo pelo M.P. – artºs 119º, al. b) e 122º do C.P.P./falta de inquérito – artºs 119º, al. d) e 122º do C.P.P./insuficiência de inquérito – artºs 119º, al. d) e 122º do C.P.P.:
Por requerimento atravessado aos autos a fls. 867-885, o arguido, a douto punho, vem arguir a nulidade do despacho que recebeu a fase de instrução por, no essencial, considerar não poder haver lugar à fase de instrução em virtude de ter inexistido, no seu parecer, verdadeiro inquérito, relativamente aos tipos de crime em apreço no RAI e quanto à pessoa do arguido, logo padecendo, conclui, a presente instrução de falta de objecto.
Cumpre apreciar e decidir:
Nos termos do artº 119º do C.P.P., constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais, b) a falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º e d) a falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade.

Como é bom de ver, no caso dos autos, não assiste qualquer razão no alegado pelo arguido, senão vejamos:
O M.P. promoveu o inquérito e levou por diante as diligências tidas por necessárias e suficientes para a conclusão de arquivamento a que chegou.
Não se olvide que na denominada extensão da denúncia por parte da assistente, de 15-2-2021 (fls. 356 e ss.), no essencial está em causa a mesma matéria de facto, o mesmo episódio de vida, que vinha já por si inicialmente denunciada/o em 25-5-2020 (fls. 248), ainda que se tenha imputado a factualidade em concreto ao ora arguido Presidente do Conselho de Administração do Hospital …, bem como se tenha afinado a imputação jurídica para a consideração, quanto a este, do cometimento dos crimes de denegação de justiça e prevaricação em concurso aparente com o crime de denúncia caluniosa.
Nos termos do artº 262º, nº 1, do C.P.P., o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem a decisão sobre a acusação.
Assim, a atividade material do inquérito consiste, no essencial, nas diligências investigatórias com vista ao apuramento dos factos, devendo no final do inquérito o M.P. qualificar os mesmos com base na lei substantiva criminal.
O que distingue o inquérito das outras fases do processo penal é que no mesmo se define o acervo factual nuclear que se manterá tendencialmente estável durante as fases processuais posteriores.
O Ministério Público, no despacho final do inquérito, deverá pronunciar-se quanto à indiciação ou não dos factos investigados durante o inquérito e, com base nos mesmos, concluir pelo preenchimento dos mesmos de um ou vários tipos legais de crime.
Não se pode confundir a qualificação jurídica, com o objecto do inquérito, uma vez que este é conformado pelos concretos factos investigados, não pela sua qualificação jurídica, de livre apreciação pela competente autoridade judiciária, na fase do inquérito o M.P., e na fase de instrução, o J.I.C., sem prejuízo de poder o assistente requerer a abertura de instrução por considerar que a factualidade que denunciou, ainda assim, configura a prática de outro(s) crime(s) que pretende seja apreciada pelo J.I.C..
Saliente-se que, a este respeito, se afigura que o arguido, com o devido respeito e salvo melhor opinião, faz uma confusão quanto a estas questões, referindo que existiu um despacho final de arquivamento quanto ao crime de difamação agravada, mas que o mesmo não abrangeu os crimes de denúncia caluniosa e prevaricação.
Está em causa uma situação em que a assistente apresentou uma denúncia, bem como um posterior “aditamento” à mesma, mas cujo conteúdo essencial é o mesmo, por determinados factos, tendo o Ministério Público no despacho final de inquérito, arquivado o procedimento quanto aos mesmos por entender que configuravam a prática de um crime de difamação agravada e que havia caducado o direito de queixa quanto ao mesmo.
Por sua vez, a assistente, por entender que esses mesmos factos se subsumiam a um crime de denegação de justiça e prevaricação, apresentou RAI com vista a que se dessem tais factos como indiciados e se pronunciasse o arguido por estes crimes.
Analisemos então se assiste razão ao arguido quanto às nulidades invocadas.
No que respeita à nulidade prevista no art.º 119.º, alínea b), do CPP, relativa à falta de promoção do processo pelo Ministério Público, a mesma respeita à «falta de execução de actos necessários e adequados ao exercício da sua função processual, tais como a falta de dedução de acusação em casos de crimes públicos ou semipúblicos (vide assento do STJ 1/2000)».
Ora, analisados os autos, constata-se que o Ministério Público se pronunciou quanto aos factos constantes do requerimento de abertura de instrução, ainda que de forma pouco extensa, porque entendeu que, atendendo à qualificação jurídica que deu aos factos, se verificava a caducidade do direito de queixa quanto ao crime, enquanto causa de extinção do procedimento criminal. Não obstante, cumpriu o dever que sobre si impende de encerrar o inquérito e pronunciar-se sobre os factos objeto do mesmo, com a prolação de um despacho de acusação ou arquivamento, conforme prescreve o art.º 276.º do CPP.
Nesta medida, resta julgar improcedente a arguição pelo arguido da nulidade insanável prevista no art.º 119.º, alínea b) do C.P.P..
Relativamente à nulidade prevista no art.º 119.º, alínea d), do CPP, relativa à falta de inquérito, respeita aos «casos em que não obstante queixa ou participação, ou seja a prática de acto que legitima a intervenção do MP, ele omita a prática de quaisquer actos próprios dessa fase (…). O que caracteriza esta nulidade é a completa omissão de actos de inquérito».
Ora, analisados os autos, verifica-se que após a denúncia da assistente, bem como do respetivo “aditamento”, houve lugar à inquirição da assistente, bem como dos denunciados que foram interrogados na qualidade de arguidos. Após essas diligências, foi proferido despacho de arquivamento quanto aos factos denunciados (tanto na denúncia original, como no “aditamento”, conforme é expressamente referido naquele despacho), ainda que por caducidade do direito de queixa relativamente ao considerado tipo de crime.
Assim sendo, foram praticados atos de inquérito, pelo que também se julga improcedente a arguição da nulidade prevista no art.º 119.º, alínea d), do CPP.
Por último, cumpre verificar se se verifica a nulidade sanável prevista no art.º 120.º, alínea d), do CPP, respeitante à insuficiência do inquérito, por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios.
Ora, o MP tem a obrigatoriedade de proferir despacho de encerramento do inquérito, arquivando ou acusando o arguido pelos factos que nele foram investigados e subsumindo os mesmos ao tipo legal de crime que entenda por mais adequado.
Houve lugar à prolação de despacho de encerramento do inquérito, tendo o MP se pronunciado e determinado o arquivamento do processo no que respeita aos factos denunciados pela assistente, por entender que os mesmos se subsumiam ao crime de difamação agravada e que havia caducado o direito de queixa quanto a este crime.
Não se olvide o regime estabelecido nos artigos 303º, nºs 3 a 5, mormente este nº 5, e 358º, mormente seu nº 3, e 359º do C.P.P., sendo a qualificação jurídica dos factos uma realidade mutável ao longo dos autos, com, evidentemente, salvaguarda dos direitos, sobretudo de contraditório, por parte do arguido.
Ora, tendo o MP se pronunciado sobre tais factos, não pode ser assacada a insuficiência do inquérito, uma vez que foi praticado acto legalmente obrigatório do mesmo.
A esta luz, improcede também a arguição da nulidade prevista no art.º 120.º, n.º 2, alínea d), do C.P.P..
Em face do que antecede e seu corolário lógico, inexiste nulidade do despacho que determinou o recebimento e prosseguimento da presente fase de instrução.
*

Inexistem outras nulidades, excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
*

Prescreve o artigo 286.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que a “instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento”.
Dispõe por sua vez o artigo 308.º do Código de Processo Penal que “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos (...)”
Para aferir do que se deva entender por indícios suficientes cumpre atentar no artigo 283.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, o qual tem vindo a ser entendido pela jurisprudência e doutrina no sentido de reputar por suficientes “aqueles elementos que, logicamente relacionados e conjugados, formam um conjunto persuasivo, na pessoa que os examina, sobre a existência do facto punível, de quem foi o seu autor e da sua culpabilidade” - Acórdão da Relação de Coimbra de 10.04.85, in CJ, Ano X, 1985, Tomo II, pag. 81.

Como se refere ainda no Acórdão da Relação do Porto de 20 de Outubro de 1993 (in CJ, ano XVIII, tomo IV, página 261): “I– Nas fases preliminares do processo, não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos, antes tão-só indícios, sinais, de que um crime foi cometido por determinado arguido, constituindo as provas reunidas nessa fase pressuposto, não da decisão de mérito, mas da decisão processual da prossecução dos autos para julgamento. II– De todo o modo, tendo em conta as gravosas consequências da simples sujeição de alguém a julgamento, exige-se que a acusação e pronúncia assentem numa alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, numa probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.”

“Indícios suficientes são referências factuais, sinais objectivos de suspeita, indicações de vestígios, enfim, elementos de facto trazidos pelos meios legais probatórios ao processo, que conjugados e relacionados criam a convicção de que, a manterem-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a condenação do arguido pelo crime que lhe é atribuído.” – Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28-1-1997, in Bol. do Min. da Just., 463, página 661.
“Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido da certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido. [...] A lei não se basta, porém, com um mero juízo subjectivo, antes exige um juízo objectivo fundamentado nas provas dos autos. Da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito e na instrução há-de resultar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável de que o arguido seja responsável (…)” (Cfr.Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Volume III, Editorial Verbo, 2.ª edição, 2000, página 179.).
Importa assim que exista um juízo de prognose quanto à provável aplicação ao arguido, em julgamento, de uma pena ou medida de segurança, nos termos do art. 283.º, n.º 1 e 2, do Código do Processo Penal.
“Os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável que a sua absolvição” – como ensina o Professor Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, Vol. I, pág. 133.
*

Voltando ao caso que nos ocupa, vejamos quais os factos, com interesse para a decisão, que se podem considerar indiciariamente apurados do RAI da assistente e resultado do inquérito e da presente instrução:
- Em … de 2020, AA, na qualidade de presidente do Conselho de Administração do Hospital …, apresentou denúncia obrigatória contra BB denunciando factos susceptiveis de integrar a prática de crime de homicídio ou de ofensa à integridade física por negligência, sem prejuízo da qualificação que a autoridade judiciária viesse a entender.
- BB foi ouvida nas qualidades de testemunha, assistente e como arguida.
- BB é … desde …, especialista de … desde …, com o grau de … e a categoria de … da carreira … do ... desde ....
- Prestou serviço da sua especialidade, … com perfil de …, na ..., atual ..., do ... entre ... e ....
- Em ... de ... de 2016, no contexto de um ensaio clínico, designado de …, que corria no âmbito do serviço, e de que a assistente era a Investigadora Principal, a assistente assistiu a doente HH [MLG] – processo clínico n.º ... –, incluída no referido ensaio clínico, em consulta prevista no protocolo do ensaio.
- Tratava-se de uma doente de 78 anos e com uma neoplasia do pulmão, acompanhada de um quadro clínico próprio da idade.
- Nessa data registou no processo clínico que a doente tem TAC marcada para o dia ... de ... de 2016.
- A doente realizou a TAC nesse mesmo dia.
- GG relatou a TAC no dia ... de ... de 2016, e tendo constatado suspeita de TEP, avisou pessoalmente o serviço de oncologia.
- No mesmo dia ... de ... de 2016 a assistente registou no processo clínico da doente, atendendo à suspeita de TEP, pedido de angio-TAC programado para confirmação de diagnóstico e eventual necessidade de anticoagulação crónica.
- Em ... de ... de 2019 a assistente dirigiu ao ... uma carta em que rescindia o contrato de trabalho com o Hospital, alegando e justificando ser sujeita a assédio laboral, justa causa de rescisão do contrato pelo trabalhador, com efeitos à data em que a LL pusesse termo à situação de mobilidade e lhe conferisse colocação no ... Hospitalar de origem, ou outro.
- No dia ... mês a assistente foi chamada a prestar declarações no processo de inquérito prévio – Inq. …2019 – que havia sido mandado instaurar em ... do mesmo ano.
- Este inquérito prévio veio a ser arquivado em ... de ... de 2020.
- Em ... de ... de 2019, com o fito de averiguar os factos constantes da carta de rescisão da assistente, foi decidido instaurar novo inquérito prévio – Inq. …/2019 visando a ora assistente.
- Nele se pretendeu apreciar as circunstâncias da morte da doente.
- A denúncia do arguido, a constituição da assistente como arguida, a pendência por mais de trinta meses de um processo por homicídio, causou a esta desgaste reputacional e moral, com reflexos na sua carreira, no seu desempenho profissional e pessoal e na sua saúde.
*

Com interesse para a decisão da presente instrução ficaram por indiciar os seguintes factos, constantes do RAI da assistente e resultado do inquérito e da presente instrução:
Que
- O arguido bem sabia que lhe estava vedado por lei agir contra uma trabalhadora por esta ter denunciado situações de assédio laboral.
- Também sabia não ser legítimo agir contra a assistente pelos factos constantes da nota de culpa, ou, no mínimo, proceder apenas e só contra esta por esses factos.
- No entanto assim procedeu, sempre com animus dolendi, movido por um objetivo persecutório contra a assistente.
- O mesmo intuito com que dirigiu ao DIAP da Amadora a denúncia-crime dos presentes autos.
- Onde, para contornar a inexistência de queixa, exigida pelo n.º 4 do artigo 148.º do Código Penal, qualificou os mesmos atos, como homicídio negligente.
- O arguido não podia ignorar que não é possível estabelecer um nexo de causalidade entre uma omissão de prescrição no dia ... e uma morte por paragem cardiorrespiratória no dia 6.
- Não podia ignorar que não é possível determinar a causa de morte de uma doente (i) idosa, (ii) com várias patologias e (iii) a participar num ensaio clínico com um medicamento novo, (iv) que entra na Urgência em paragem cardiorrespiratória, sem realização de autópsia e respetivos exames e análises complementares, em competente serviço de Anatomia Patológica ou de Medicina Legal.
- O arguido não podia ignorar que entre a última interacção da assistente com a doente, em ... à noite, e o seu falecimento, a ... à tarde, pelo menos três médicos intervieram com a doente, e desde a suspeita de TEP em ..., pelo menos mais quatro médicos, além da A., tiveram acções e/ou omissões em interacção com a doente.
- O arguido não quis que se averiguasse dos procedimentos em todo este período, com o intuito de criar a ilusão de que a morte da doente foi consequência directa e necessária de um acto clínico da assistente cinco dias antes.
- O arguido não podia ignorar que a prescrição de medicação anticoagulante não era exigida no quadro clínico como definido na noite de ..., como até era desaconselhada pela literatura científica internacional.
- E que, portanto, a decisão da assistente era conforme às leges artis, o que exclui qualquer responsabilidade a título de negligência médica.
- O arguido bem sabia que uma tal denúncia estaria condenada à improcedência em processo penal, como veio a acontecer.
- Não só se conformou com a possibilidade de a pendência de um processocrime por homicídio negligente contra uma médica, num meio pequeno como é o da oncologia, lhe traria grandes dissabores e enorme desgaste reputacional pessoal e profissional, como a quis e conseguiu.
- O arguido ao remeter ao DIAP da Amadora uma infundada denúncia-crime contra a assistente actuou com a estrita intenção de a prejudicar, na sequência de actos internos no ... de idêntica natureza e com o mesmo objectivo.
- Agiu com dolo direto, em plena consciência da ilicitude dos seus actos e bem sabendo que tal comportamento lhe estava ética e legalmente vedado.
*

Não se seleccionou qualquer outra factualidade, porquanto não assumir relevância para o objecto dos autos e a decisão a proferir pelo Tribunal, assumindo natureza argumentativa, conclusiva ou de Direito ou referir-se a eventuais causas da morte da doente, que não se averigua na presente instrução.
*

Os factos supra enumerados como indiciariamente provados e não provados assim resultaram com FUNDAMENTO na conjugação segundo juízos de normalidade e as regras da experiência comum do tipo de situações, de toda a prova constante dos autos, seja produzida em inquérito, seja a que veio a ter lugar em sede de instrução.
O arguido fez uso do seu direito de não prestar declarações (artº 61º, nº , al. d) do C.P.P.).
O Tribunal tomou esclarecimentos à subscritora da Consulta Técnico-Científica, CC, desta resultando, sem que dúvida alguma assome ao Tribunal ou a qualquer intérprete, que a assistente omitiu a realização urgente de Angio-TC pulmonar, bem como o início de medicação anticoagulante, levando ao aumento do risco quanto à vida da doente, que veio a falecer.
Resulta do despacho de arquivamento, que esta decisão por parte do M.P. se deveu à circunstância de, não tendo havido autópsia médico-legal, logo não ter sido possível determinar se a morte da doente se deveu ou não, como consequência necessária e directa, de não ter a arguida cumprido com as leges artis da medicina, mais, tendo a consulta médico-científica (fls. 556-558) referido expressamente (fls. 557) que teria sido mais prudente solicitar a realização urgente de Angio-TC pulmonar para confirmar se realmente existia TEP e a sua extensão e decidir a terapêutica, no caso de ser totalmente impossível realizar o exame no próprio dia, mandava a cautela que a doente iniciasse anticoagulação, o que, em ...-...-2023 (fls. 843-844) expressamente reiterou a respectiva subscritora CC, logo não se poder excluir a verificação de outra(s) causa(s) de morte da doente e qual a determinante do resultado final.
Assim, o despacho de arquivamento, na senda das conclusões da consulta médico-legal, assim decidiu arquivar em virtude de não se ter comprovado que as imputadas omissões da assistente (não realização urgente do exame de imagem e omissão de imediato início de anticoagulação) foram as determinantes da morte da doente, por não ser possível excluir outras causas de morte da mesma, dada a omissão de realização de autópsia médico-legal.
Porém, resulta de tal despacho e dos autos, o que decorria já do inquérito, e se adensou com o curso da instrução, não só fruto dos esclarecimentos prestados por CC, como do conteúdo de prova documental junta ao longo da instrução (v.g. fls. 848, para além de toda a restante) que estas omissões efectivamente são imputáveis à assistente, ainda que não se lhe possam imputar como causais da morte da doente.
As testemunhas II e EE, ao contrário da inicial previsão do Tribunal quando decidiu admitir o seu testemunho, afinal, em nada contribuíram para esclarecimento do objecto dos autos, já que se limitaram a procurar firmar a existência da alegada “perseguição” contra a assistente e contra si próprios, designadamente por parte de DD, sequer revelando conhecimento directo que qualquer facto relativo aos presentes autos, que lhes foi referido pela assistente, demonstrando-se que estas testemunhas e a assistente, em sede de procedimentos disciplinares, reciprocamente testemunharam a favor uns dos outros.
Nenhum contributo de relevo estas testemunhas revelaram para o objecto dos presentes autos.
A testemunha GG não compareceu em nenhuma das duas datas designadas para sua inquirição, prosseguindo a instrução para realização do debate instrutório.
Da concatenação dos esclarecimentos prestados, com a restante prova junta aos autos e análise efectada pelo Tribunal, não resulta efectivamente evidente que a mantida convicção do arguido fosse no sentido da falsidade da imputação, apenas para que contra a assistente fosse instaurado procedimento criminal, visando unicamente que fosse a mesma prejudicada ou até beneficiar outrem.
Resulta verosímil que o arguido estivesse convicto da justiça da denúncia efectuada, desde logo em razão das conclusões vertidas no processo de inquérito prévio, que se consolidaram com as conclusões da consulta médico-legal e ainda mais se adensaram em resultado da presente instrução, com os esclarecimentos prestados pela sua subscritora e documentação junta aos autos.
Relativamente ao desgaste reputacional e moral da assistente com a pendência dos presentes autos, mostra-se o mesmo evidente das regras da experiência comum, ainda que não seja o mesmo imputável a conduta criminosa do arguido.
*

Do enquadramento jurídico:

Do crime de denúncia caluniosa:

Manuel da Costa Andrade, Comentário Conimbricense do C.P., Coimbra Editora, Tomo III, p. 519 e ss..
Nos termos do artº 365º, nº 1 do C.P. quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crimes, com intenção de que contra ela se instaure procedimento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
Se a conduta consistir na falsa imputação de contra-ordenação ou falta disciplinar, o agente é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
Trata-se de um crime que sistematicamente se encontra inserido Capítulo III, do Título V, do Código Penal, onde se encontram previstos, os crimes contra a realização da Justiça, dentro dos crimes contra o Estado.
Porém, não tem sido líquido que o(s) bem(s) jurídico(s) tutelado(s) se cinja(m) a um bem jurídico público – prevenção de actividade inútil e infundada dos meios jurisdicionais contra pessoas inocentes -, levantando-se quem defenda que, acima de tudo, está em causa a defesa da honra e consideração do visado com a denúncia falsa, restando para os bens jurídicos públicos uma tutela reflexa e complementar.

Este entendimento é o deste Tribunal.

O tipo objectivo preenche-se sempre que
- alguém denuncie ou lance suspeita,
- por qualquer meio,
- perante autoridade,
- ou publicamente,
- com a consciência da falsidade da imputação,
- denunciar ou lançar a suspeita sobre determinada pessoa,
- da prática por esta de crime,
- ou de infracção contra-ordenacional ou disciplinar, no caso do nº 2, do artº 365º,
- com intenção de que contra ela se instaure procedimento criminal, contra-ordenacional ou disciplinar.
É necessário que se comprove que a pessoa denunciada não cometeu o crime, a contra-ordenação ou a infracção disciplinar que lhe foi imputado(a) na denúncia e basta que o conteúdo essencial da imputação se afaste da verdade.
Subjectivamente verifica-se este ilícito penal quando o agente actua com dolo. E com dolo duplamente qualificado – pela consciência da falsidade da imputação e, complementarmente, com intenção de que contra o visado seja instaurado procedimento.
-
O crime de denúncia caluniosa ora imputado a AA decorre da denúncia obrigatória por este apresentada contra a assistente BB, para averiguação de eventual prática de crime de homicídio por negligência ou de crime de ofensa à integridade física por negligência ou de outro melhor ajuizado pela competente autoridade judiciária.
Sobre os factos denunciados por AA foi proferido o despacho de arquivamento relativamente tal factualidade, por não terem sido reunidos elementos de prova da prática de crime pela ora aqui assistente.
Resulta do despacho de arquivamento que esta decisão se deveu à circunstância de, não tendo havido autópsia médico-legal, logo não ter sido possível determinar se a morte da doente se deveu ou não, como consequência necessária e directa, de não ter a arguida cumprido com as leges artis da medicina, mais, tendo a consulta médico-científica (fls. 556-558) referido expressamente (fls. 557) que teria sido mais prudente solicitar a realização urgente de Angio-TC pulmonar para confirmar se realmente existia TEP e a sua extensão e decidir a terapêutica, no caso de ser totalmente impossível realizar o exame no próprio dia, mandava a cautela que a doente iniciasse anticoagulação, o que, em ...-...-2023 (fls. 843-844) expressamente reiterou a respectiva subscritora CC.
Assim, o despacho de arquivamento, na senda das conclusões da consulta médico-legal, assim decidiu arquivar em virtude de não se ter comprovado que as imputadas omissões da assistente (não realização urgente do exame de imagem e omissão de imediato início de anticoagulação) foram as determinantes da morte da doente, por não ser possível excluir outras causas de morte da mesma, dada a omissão de realização de autópsia médico-legal.
Porém, resulta de tal despacho e dos autos, o que decorria já do inquérito e se adensou com o curso da instrução, não só fruto dos esclarecimentos prestados por CC, como do conteúdo de prova documental junta ao longo da instrução (v.g. fls. 848) que estas omissões efectivamente são imputáveis à assistente, ainda que não se lhe possam imputar como causais da morte da doente, pelo que foi/é plenamente plausível a denúncia, obrigatória, apresentada por AA, na qualidade de Presidente do ....
Nesta conformidade, a conclusão impõe-se: não será o arguido pronunciado por este tipo de ilícito.
Desde logo encontra-se manifestamente afastada a consciência da falsidade da imputação, antes, perante AA, se vislumbrava forte possibilidade da sua veracidade.
O procedimento criminal por homicídio e/ou ofensa negligente quanto à assistente foi arquivado por não se poder afastar a possibilidade de ocorrência de outras causas da morte da doente, não se tendo apurado, para além de qualquer dúvida, que não foi efectivamente devida às omissões da assistente.
O arguido AA não será pronunciado pelo crime de denúncia caluniosa.
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Do crime de denegação de justiça e prevaricação:
Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 5.ª Edição atualizada, 2022, p. 1269.
O artº 369º, nº 1, do CP, prevê o crime de denegação de justiça e prevaricação, dispondo que o funcionário que, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contraordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar ato no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 120 dias.
Se o facto for praticado com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém, o funcionário é punido com pena de prisão até 5 anos (nº 2).
Os bens jurídicos protegidos pela norma incriminadora são a realização da justiça, na sua vertente da integridade dos órgãos de administração de justiça (tribunais em sentido amplo, incluindo os juízes, os magistrados do MP, os funcionários judiciais e os jurados) e dos órgãos de colaboração na administração da justiça (polícias), e, concomitantemente, os interesses individuais do visado pelo ato ilegal do funcionário.
No que respeita ao grau de lesão do bem jurídico protegido e ao modo de afectação do objecto da acção, trata-se de um crime de dano e de mera atividade, respetivamente.
Trata-se, ainda, de um crime específico próprio, uma vez que somente podem ser agentes do crime os juízes, os procuradores da república, os funcionários judiciais, os jurados, bem como, na fase de inquérito, os polícias.
No que respeita ao tipo subjetivo de ilícito, só preenche o tipo legal a atuação com dolo direto, em virtude de o agente ter de actuar conscientemente.
No tipo qualificado é necessária a verificação da especial intenção de prejudicar ou de beneficiar alguém.
Volvendo ao caso concreto, e atendendo que não só o arguido não integra uma das categorias de pessoas que podem ser agentes do crime em análise, mas também que não foram dados como indiciariamente provados os restantes elementos típicos do mesmo, sejam objectivos, sejam subjectivos, resta concluir que o seu comportamento não integra a prática de um crime de denegação de justiça e prevaricação, tal qual como previsto no artº 369º, nº 1, do C.P..
*
Concluindo,
O juiz só deve pronunciar se existir uma possibilidade razoável de condenação, devendo esta possibilidade ser mais positiva do que negativa; tendo formado a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido; havendo uma maior probabilidade de condenação, do que de absolvição.
Da análise e conjugação de toda a prova constante destes autos e ao longo da fase instrutória, este Tribunal foi-se convencendo pela maior probabilidade da absolvição do arguido, no caso da sua submissão a julgamento, do que da respectiva condenação, relativamente aos crimes que lhe são imputados no RAI.
*
Pelo exposto, e nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 308.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, o Tribunal decide não pronunciar o arguido AA, pela prática, como autor material, na forma consumada, de um crime de denegação de justiça e prevaricação, previsto e punido pelo artº 369º, nºs 1 e 2 do C.P., nem pela prática de um crime de denúncia caluniosa, previsto e punido pelo artigo 365º, nº 1 do Código Penal.
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Custas pela assistente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s - artºs 515º, nº 1, al. a) do C.P.P. e 8º, nº 2 do R.C.P..
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Estatuto Coactivo:
Com a presente decisão extingue-se o mesmo – TIR prestado – artº 214º, nº 1, al. b) do C.P.P..
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Notifique.
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Após trânsito, proceda às necessárias diligências para arquivamento dos autos.”.

3.–Apreciação do mérito do recurso.

Apreciando as questões colocadas para decisão pela Recorrente.

3.1.Da alegada nulidade da decisão instrutória (de não pronúncia), por omissão de pronúncia.
Como primeira pretensão recursiva (conclusão A), a assistente / recorrente afirma que o despacho recorrido, na fixação da matéria de facto, olvida um grande conjunto de factos relevantes, constantes do requerimento de abertura de instrução, destacando nos pontos 10 a 19 factos que tem como indispensáveis para a decisão.
O Ministério Público / recorrido sustenta não enfermar a decisão instrutória de qualquer vício relativo aos pontos de facto suficientemente indiciados e não suficientemente indiciados.
O arguido / recorrido sustenta que a decisão instrutória é certeira, incólume e não deve ser revogada.
Está em causa uma invocação de nulidade da decisão instrutória, por omissão de pronúncia, que importa conhecer.
A)-A finalidade da instrução, de acordo com o disposto no art. 286º, nº 1, do CPP (norma que é corolário da estrutura acusatória do processo penal português), é constituída pela «comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não da causa a julgamento».
Enquanto fase jurisdicional (no sentido da actividade processual aí desenvolvida ser materialmente judicial e não materialmente policial ou de averiguação), ainda que facultativa, a instrução compreende a prática dos actos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento.
A instrução consubstancia uma fase de controlo da actividade pretérita (o inquérito) onde germinou a decisão de acusar ou de arquivar, de modo a apurar se tal decisão deve ser mantida ou não (se a mesma se comprova ou se, ao invés, não se comprova).
A instrução não é um pré-julgamento, nem tão pouco se traduz numa forma de completar ou ampliar a investigação feita no inquérito e, por isso, também não pode constituir um novo inquérito.
A sua configuração legal, jurisprudencial e doutrinal como comprovação judicial da decisão de deduzir ou não acusação tomada pelo Ministério Público impõe que a instrução requerida pelo assistente (em face de uma decisão de arquivamento do inquérito pelo Ministério Público) não se transforme numa fase que faculte a este sujeito processual uma verdadeira “carta branca” para a defesa dos seus interesses.
O assistente, quando é o requerente da instrução, tem de indicar, no requerimento de abertura de instrução (RAI), em súmula, as razões de facto e de direito da sua discordância relativamente ao arquivamento do inquérito e, sempre que disso for caso, indicar os actos de instrução que pretende que o juiz leve a cabo, os meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e os factos que, através de uns e de outros, espera provar, devendo também deduzir uma acusação com factos concretos que preencham os crimes que imputa ao arguido (cfr. art. 287º, nº 2, do CPP, com remissão para o art. 283º, nº 3, als. b) e d), do CPP).
As razões de facto e de direito que fundamentam a discordância do assistente, para serem aptas e idóneas à abertura e realização da instrução, têm de estar directamente relacionadas com o arquivamento do inquérito, evidenciando que seria caso de acusar e não de arquivar.
O que se compreende, uma vez que a dedução de acusação pelo Ministério Público, como deve pugnar o assistente no RAI, depende de no inquérito terem sido recolhidos indícios suficientes de o acusado ter cometido o crime ou crimes denunciados.
Repete-se, a instrução não se destina à realização de outro (novo) inquérito ou a complementar o inquérito já efectuado, a menos que se entenda, erroneamente, que deve ser o juiz a levar a cabo os actos previstos no nº 1 do art. 262º do CPP na fase de instrução (cfr. Ac. STJ, de 31/05/2023; relatora: Maria do Carmo Silva Dias; in www.dgsi.pt, cuja exposição temos seguido de perto).

É certo que o Código de Processo Penal prevê a possibilidade do juiz efectuar diligências prévias ao debate instrutório e de os sujeitos processuais as requererem. Mas essas diligências não visam substituir a “investigação” do inquérito. Destinam-se a dissipar e esclarecer eventuais dúvidas existentes no espírito do juiz (e não na perspectiva subjectiva das partes) sobre a decisão que vai tomar (cfr. Ac. RG, de 01/02/2010; relator: Fernando Monterroso; in www.dgsi.pt). Por isso se afirma que o poder de investigação “autónoma” conferido ao juiz de instrução pelo art. 288º, nº 4, do CPP, mormente o poder de ordenar a realização de diligências probatórias (provas novas ou repetição das provas produzidas no inquérito), tem como critério a necessidade ou indispensabilidade de tais diligências para a realização das finalidades da instrução.

B)–À luz das considerações jurídicas atrás expostas, importa agora analisar a questão do conteúdo da decisão instrutória (em ligação com os factos vertidos no RAI e com os actos que o juiz de instrução entendeu praticar em vista da decisão final), com reflexo no caso em apreciação.
De acordo com o disposto no art. 308º, nº 2, do CPP, conjugado com o art. 283º, nº 3, do CPP, o despacho de não pronúncia que conhece do mérito da causa deve conter, além do mais, a discussão dos indícios e a narração dos factos suficientemente indiciados e, principalmente, dos factos que não estão suficientemente indiciados.
A narração dos referidos factos é fundamental porque é sobre eles que incide o efeito preclusivo decorrente do princípio ne bis in idem.

A decisão instrutória (de não pronúncia) que não contenha tais factos é nula (sem prejuízo de se admitir que o juiz de instrução possa usar da faculdade de remissão para os factos e as incriminações enunciadas no requerimento de abertura de instrução – cfr. art. 307º, nºs 1 e 3, do CPP), podendo tal nulidade ser arguida e conhecida no recurso interposto do despacho de não pronúncia (art. 379º, nº 2, por identidade de razão). Já a omissão da discussão dos indícios no despacho instrutório constitui uma irregularidade resultante da violação do disposto no art. 97º, nº 5, do CPP (uma vez que este elemento da decisão instrutória não está incluído no art. 308º, nº 2, do CPP, conjugado com o art. 283º, nº 3, do CPP) (cfr. Paulo Pinto Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, Vol. II, 5ª Ed., 2023, pags. 232 e 233 e Pedro Soares de Albergaria, anotação ao art. 307º do CPP, in “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo III, 2021, pags. 1288 a 1290).
Como referido, a assistente / recorrente entende que a decisão instrutória recorrida não se pronuncia sobre um grande conjunto de factos relevantes, alegados no RAI, sendo que a consideração de tais factos levaria à pronúncia do arguido (daí que os mesmos sejam indispensáveis para a decisão).

A decisão instrutória (de não pronúncia) recorrida contém a narração dos factos que fundamentam a respectiva decisão.

A decisão recorrida começa por enumerar “os factos, com interesse para a decisão, que se podem considerar indiciariamente apurados do RAI da assistente e resultado do inquérito e da presente instrução” (agrupando-os em 16 pontos factuais).
De seguida, a decisão recorrida menciona que “com interesse para a decisão da presente instrução ficaram por indiciar os seguintes factos, constantes do RAI da assistente e resultado do inquérito e da presente instrução” (agrupando-os em 15 pontos factuais).
Depois, a decisão recorrida menciona que “não se selecionou qualquer outra factualidade, porquanto não assumir relevância para o objecto dos autos e a decisão a proferir pelo Tribunal, assumindo natureza argumentativa, conclusiva ou de Direito ou referir-se a eventuais causas da morte da doente, que não se averigua na presente instrução”.
Finalmente, a decisão recorrida expõe os fundamentos para a fixação dos factos indiciariamente provados e não provados (questão que à frente será melhor analisada).

A questão que se coloca é a de saber se tal narração é suficiente ou se padece do vício de omissão de pronúncia.

Desde já adiantamos que, em nosso entender, não existe o apontado vício de omissão de pronúncia.
A decisão instrutória decidiu não pronunciar o arguido pelos crimes de denúncia caluniosa, denegação de justiça e prevaricação, cuja prática lhe era imputada pela assistente no RAI.
Para atingir tal resultado, a decisão recorrida analisou com detalhe os fundamentos invocados pela assistente no requerimento de abertura de instrução, incluindo os factos aí alegados e as correspondentes incriminações penais, e procedeu à fixação / narração dos factos entendidos como relevantes para a fundamentação da decisão.
As normas dos arts. 308º, nº 2 e 283º, nº 3, al. b), ambos do CPP, não prescrevem o dever de individualizar exaustivamente, no elenco dos factos indiciados e não indiciados constantes da decisão instrutória, cada um dos factos articulados pela assistente no RAI.
Quer dizer, a circunstância de não constarem do elenco dos factos indiciados e não inidicados todos os factos alegados no RAI não conduz à nulidade da decisão instrutória por omissão de pronúncia.
Na verdade, apenas é exigível a narração dos factos que fundamentem a decisão (que sejam relevantes para a decisão instrutória a proferir), devendo tal narração ser sintética e expurgada de factos conclusivos, referências a elementos de prova, aspectos jurídicos ou factos que se considerem inócuos para a decisão instrutória.

A assistente / recorrente pretende que sejam considerados na decisão instrutória factos com o seguinte teor: “A A. nunca foi ouvida sobre o teor desta matéria denunciada.” (nº 10 da motivação de recurso)”, “Não foram efectuadas quaisquer diligências investigatórias ou instrutórias sobre a matéria […].” (nº 11 da motivação de recurso), “O denunciado nunca foi localizado, ouvido ou constituído arguido, sobre qualquer matéria em causa nos autos.” (nº 11 da motivação de recurso), “Para contornar a prescrição do procedimento disciplinar por factos ocorridos havia cerca de três anos e meio, invocou-se a possibilidade de tais factos configurarem crime de ofensas corporais.” (nº 18 da motivação de recurso), “O arguido, à época, não estava seguro de que houvesse matéria que justificasse denúncia-crime.” (nº 18 da motivação de recurso).
Como é evidente, estes “factos” não constituem verdadeiros factos, não podendo ser equacionada a sua inclusão nos factos indiciariamente provados e não provados da decisão instrutória.
Por outro lado, a assistente / recorrente pretende que sejam considerados na decisão instrutória factos que são claramente inócuos para tal decisão: factos elencados nos nºs 13, 14, 15, 16, 17, 18 e 19 da motivação de recurso.
Vejamos.
Como é referido no relatório da decisão instrutória recorrida, o inquérito dos presentes autos (NUIPC 1809/20.4T9AMD) teve início com uma denúncia por parte de AA (ora arguido / recorrido), na qualidade de Presidente do Conselho de Administração do Hospital ..., contra BB (ora assistente / recorrente), visando a investigação de eventual prática por esta de crime de ofensa à integridade física por negligência ou até de homicídio por negligência, vistas as conclusões vertidas no procedimento interno prévio de inquérito nº 23/2019.
Por seu turno, BB (ora assistente / recorrente) igualmente apresentou denúncia contra diversos médicos do ... e os respectivos membros do Conselho de Administração (NUIPC 4967/20.4T9LSB, que foi objecto de apensação ao referido Proc. nº 1809/20.4T9AMD), elencando factos susceptíveis de integrar o cometimento de crimes de injúria e/ou difamação, denúncia caluniosa, prevaricação e denegação de justiça.
Após inquérito, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, por ter entendido (i) não se mostrar verificada a existência de indícios suficientes da prática pela arguida BB (ora assistente / recorrente) de um crime de homicídio por negligência ou de qualquer outro e (ii) a factualidade alegada por BB (ora assistente / recorrente) dever ser qualificada como crime de difamação agravada e ter ocorrido a caducidade do direito de queixa quanto a este crime.
Não se conformando com este arquivamento, BB (ora assistente / recorrente) requereu a abertura de instrução, pugnando pela pronúncia de AA, na qualidade de Presidente do ..., pela prática de um crime de denegação de justiça e prevaricação, em concurso aparente com a prática de um crime de denúncia caluniosa.
Acompanhando a argumentação do Ministério Público junto da 1ª Instância, expressa na resposta ao recurso, o objecto da instrução está relacionado, tão só, com a racionalidade / verosimilhança das “suspeitas” que subjazem à denúncia efectuada pelo arguido / recorrido.
Neste enquadramento, que é o objecto da presente instrução, a alegação factual da assistente / recorrente (acima referida), relativa à inexistência de indícios suficientes da prática por esta de um crime de homicídio por negligência, revela-se inócua.
A assistente / recorrente centra a sua pretensão instrutória, em grande medida, na renovação da sua defesa face à imputação de eventual conduta negligente, quando tal questão já foi objecto de decisão de arquivamento.
Contudo, o que verdadeiramente está em causa é saber se, no momento da denúncia, o arguido tinha ou não motivos para a apresentar, sendo certo que para tanto bastava haver notícia, como havia, conforme concluiu o Ministério Público (no despacho de arquivamento) e o Juiz de Instrução (na decisão instrutória), de actuação / omissão médica indiciariamente pouco cautelosa (logo pouco cuidadosa), com possível incidência na saúde e vida da doente.
Logo, a factualidade relacionada com a defesa da assistente / recorrente face à imputação criminosa que lhe foi feita na denúncia apresentada pelo arguido / recorrido assume relevância secundária e, por esse motivo, os factos alegados pela assistente / recorrente, acima referidos, revelam-se irrelevantes.

De igual modo, o facto de o arguido ser “médico com a especialidade de anatomia patológica, tendo sido chefe do respectivo Serviço no ..., e membro do ...” não assume relevância, porquanto, como também refere, e bem, o Ministério Público, “perante os achados em processo disciplinar, cristalizados na proposta do Instrutor para denúncia dos factos ao Ministério Público por factos susceptíveis de consubstanciar a prática de crime, (…) não restava ao Arguido senão proceder à denúncia criminal, material e funcionalmente devida, para cabal apuramento dos factos pelo Ministério Público em Inquérito”.
Em suma, a matéria de facto indiciariamente provada e não provada foi fixada em função da sua relevância para a decisão instrutória que veio a ser proferida, de acordo com a finalidade da instrução acima assinalada.
Assim, nesta parte, improcede a pretensão recursiva da assistente / recorrente (i.e., improcede a alegada nulidade da decisão instrutória, por omissão de pronúncia).
*

3.2.–Da produção / renovação de prova não produzida em sede de instrução.
Como segunda pretensão recursiva (conclusões C, D e G), a assistente / recorrente alega que a não realização da prova que requereu no RAI (prova testemunhal e perícia médico-legal, com remessa do processo clínico completo, incluindo os seus anexos (literatura médico-científica) impediu o tribunal a quo de decidir de direito com toda a factualidade pertinente fixada.
A terminar a sua motivação de recurso, a assistente / recorrente pede (a título subsidiário) a produção / renovação da prova testemunhal e da prova pericial que não foi produzida em sede de instrução, a levar a cabo pelo tribunal ad quem.

A assistente / recorrente não pretende, segundo cremos, a revogação pelo tribunal ad quem da decisão da juíza a quoque indeferiu as diligências probatórias cuja realização foi requerida no RAI.
De resto, tal pretensão sempre seria julgada improcedente, em face da irrecorribilidade de tal decisão, prevista no art. 291º, nº 2, do CPP.
Mas, ao pedir a produção / renovação de tais provas pelo tribunal ad quem, a assistente / recorrente pretende tornear a mencionada irrecorribilidade, fixada na lei, como que a pretender “fazer entrar pela janela aquilo que não consegue fazer entrar pela porta”.
A única situação em que seria possível configurar a necessidade de ponderação da produção de tais provas é aquela em que o tribunal de recurso determinasse a nulidade da decisão instrutória, por exemplo, por omissão de pronúncia, com consequente injunção à juíza a quo no sentido de elaboração de nova decisão instrutória, com salvaguarda, como é habitual nestes casos, da possibilidade de a juíza a quo proceder a novas diligências de prova com vista à prolação da nova decisão instrutória.
Contudo, acima se decidiu não padecer a decisão instrutória recorrida de qualquer vício que determine a sua nulidade, nomeadamente, o vício de omissão de pronúncia.
Acresce que a chamada à colação do regime da renovação da prova pelo tribunal de recurso está igualmente votada ao insucesso.
Como é sabido, a renovação da prova pela Relação é inadmissível quando a prova cuja renovação se requer tenha sido requerida pelo recorrente junto do tribunal de 1ª instância e, após indeferimento, não tenha havido impugnação da decisão de indeferimento.
Por outro lado, segundo entendimento jurisprudencial e doutrinário pacífico, os vícios elencados nas diversas alíneas do nº 2 do art. 410º do CPP só se aplicam às sentenças e, por conseguinte, não são aplicáveis às decisões instrutórias. E o art. 430º, nº 1, do CPP, apenas prevê a renovação da prova na Relação se se verificarem tais vícios.
Assim, nesta parte, improcede a pretensão recursiva da assistente / recorrente (i.e., produção / renovação de prova não produzida em sede de instrução).
*

3.3.– Da existência de indícios suficientes da prática pelo arguido / recorrido dos crimes que lhe são imputados pela assistente / recorrente.
Como terceira pretensão recursiva (conclusões B, E e F), a assistente / recorrente defende a existência de erro de julgamento quanto aos factos que foram considerados não suficientemente indiciados (que se encontram em flagrante oposição às evidências e provas constantes dos autos ou obtidas de depoimento colhido durante a instrução da perita médica do INML), alegando ainda que “as conclusões sobre a inocência do arguido – e a “culpa” da A. – que o tribunal a quo exprime não encontram sustentação na matéria de facto”, pedindo que o arguido seja pronunciado pelos factos constantes do RAI.
O arguido / recorrido sustenta, em síntese, que a decisão instrutória é certeira, incólume e não deve ser revogada, não tendo a assistente logrado munir a motivação do recurso de qualquer indício ou evidência do contrário, mostrando-se a alegação da assistente constantemente conclusiva, pouco fiel aos elementos tidos em consideração pelo tribunal a quo e afastada do busílis que envolve os autos e que conformou a decisão instrutória. Defende o arguido que a conduta do arguido foi exclusivamente determinada pelas conclusões do processo de inquérito prévio que visou o apuramento, entre outra factualidade, de factos relacionados com a assistência hospitalar à utente falecida, tendo tais conclusões determinado o arguido, no exercício das suas funções de Presidente do ..., a subscrever a missiva de denúncia obrigatória onde deu nota da factualidade e conclusões apuradas no âmbito do referido processo de inquérito. Defende ainda o arguido não ser aplicável aos factos em apreciação o crime de denegação de justiça e prevaricação.
O Ministério Público / recorrido sustenta, em síntese, que não restava ao arguido senão proceder à denúncia criminal, material e funcionalmente devida, para cabal apuramento dos factos pelo Ministério Público em inquérito perante os achados em processo disciplinar, cristalizados na proposta do Instrutor para denúncia dos factos ao Ministério Público. Defende também que o crime de denegação de justiça e prevaricação é de todo inaplicável ao caso sub judice pelos motivos expressos na decisão recorrida.
Vejamos.
Uma decisão de não pronúncia equivale a uma decisão absolutória, para os efeitos do disposto no art. 425º, nº 5, do CPP.

Assim, em apreciação do recurso interposto de despacho de não pronúncia, pode o tribunal de recurso, em caso de confirmação da decisão de 1ª instância sem qualquer declaração de voto, limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada (cfr. Ac. RC, de 25/10/2023; relator: João Abrunhosa; in www.dgsi.pt e jurisprudência aí citada).

A decisão recorrida é uma decisão instrutória de não pronúncia.
Analisada a decisão instrutória recorrida (confrontando-a com a motivação do recurso da assistente), entendemos que a mesma não merece censura, tendo o Juiz a quo fundamentado correctamente a sua decisão de facto e de direito, enunciando os factos juridicamente relevantes enunciados no RAI, considerando-os indiciariamente provados e não provados (conforme já foi analisado), justificando a sua decisão de facto, com análise crítica da prova existente nos autos, e concluindo pela ausência de indiciação suficiente da prática pelo arguido / recorrido dos crimes que lhe eram imputados no RAI.
Não obstante, importa tecer algumas considerações complementares.
O critério de que depende a introdução do feito em juízo, que é a finalidade a que se acha vinculada a instrução (art. 286º, nº 1, do CPP) é o da suficiência dos indícios (“de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”).
Os indícios reconduzem-se às provas colhidas no inquérito e na instrução (e aos factos que pretendem demonstrar) e a sua suficiência reconduz-se a uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.

Segundo o Ac. STJ, de 21/05/2003 (relator: Henriques Gaspar; in www.dgsi.pt): “Indícios suficientes são os elementos que, relacionados e conjugados, persuadem da culpabilidade do agente, fazendo nascer a convicção de que virá a ser condenado; são vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer de que há crime e de que alguém determinado é o responsável, de forma que, logicamente relacionados e conjugados formem um todo persuasivo da culpabilidade; enfim, os indícios suficientes consistem nos elementos de facto reunidos no inquérito (e na instrução), os quais, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, mantendo-se em julgamento, terão sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado.”.

Nas palavras de Figueiredo Dias (in “Direito Processual Penal”, Volume 1, 1974, pág. 133): “Os indícios só serão suficientes, e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”.

A)–A assistente imputou ao arguido a prática de um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art. 365º, nº 1, do Código Penal.
Estatui o normativo citado que:
«1-Quem, por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente, com a consciência da falsidade da imputação, denunciar ou lançar sobre determinada pessoa a suspeita da prática de crime, com intenção de que contra ela se instaure procedimento, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.».

Estamos perante um tipo legal que, simultaneamente, confere protecção a dois tipos de bens jurídicos. Com a proibição protege-se a realização da justiça e do mesmo passo o bom-nome, a honra e consideração do caluniado.

São elementos típicos do mencionado ilícito:

Elementos objectivos:
a)-Denunciar ou lançar suspeita da prática de crime sobre pessoa determinada;
b)-Denúncia por qualquer meio, perante autoridade ou publicamente;
c)-A falsidade da denúncia ou suspeita;

Elementos subjectivos:
d)-O agente ter consciência da falsidade da imputação veiculada na denúncia;
e)-A intenção de ver instaurado procedimento contra a pessoa visada na denúncia.

Como refere a decisão recorrida, o crime de denúncia caluniosa que a assistente imputa ao arguido decorre da denúncia (obrigatória) por este apresentada contra aquela para averiguação de eventual prática de crime de homicício por negligência ou de crime de ofensa à integridade física por negligência ou de outro melhor ajuizado pela competente autoridade judiciária.
Os factos denunciados pelo arguido foram investigados e o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento quanto aos mesmos, por não terem sido reunidos elementos de prova da prática de crime pela aqui assistente (ali arguida).
Contudo, como é evidente, o arquivamento do inquérito instaurado em virtude da denúncia do arguido não faz com que este tenha incorrido na prática de um crime de denúncia caluniosa.

O ponto essencial é o de saber se se verificava a falsidade da denúncia e se o arguido tinha consciência da falsidade da imputação veiculada na denúncia.

A decisão instrutória entendeu que foi / é plenamente plausível a denúncia, obrigatória, apresentada pelo arguido, na qualidade de Presidente do conselho de Administração do ....

Quer dizer, a decisão instrutória concluiu não existir fundamento para afirmar que o arguido denunciou a assistente dolosamente por factos falsos.

Para atingir conclusão, a decisão instrutória seguiu dois caminhos.

Um primeiro caminho é centrado na ausência de falsidade (ao menos parcial) dos factos denunciados, com remissão para as considerações vertidas no despacho de arquivamento (na senda das conclusões Consulta Técnico-Científica junta aos autos) e para o que se adensou com o curso da instrução (esclarecimentos à subscritora da Consulta Técnico-Científica, CC, e prova documental junta ao longo da instrução), salientando a decisão instrutória, a tal propósito, que o arquivamento (da denúncia feita pelo arguido) se deveu à circunstância de não ter sido possível determinar se a morte da doente se deveu ou não, como consequência necessária e directa, de não ter a ali arguida (e aqui assistente) cumprido com as leges artis da medicina, dado não ter sido realizada autópsia médico-legal. Quer dizer, a decisão instrutória refere a existência de omissões por parte da assistente (não realização urgente do exame de imagem e omissão de imediato início de anticoagulação) e refere não se ter comprovado que tais omissões foram as determinantes da morte da doente (por não ser possível excluir outras causas de morte da mesma, dada a omissão de realização de autópsia médico-legal).
Aceita-se não ser decisiva (em linha com o que acima se expôs a propósito da 1ª pretensão recursiva da assistente / recorrente), para a decisão instrutória de não pronúncia, a questão agora analisada (ausência de falsidade (ao menos parcial) dos factos denunciados), uma vez que tal ausência de falsidade (ao menos parcial) dos factos denunciados só com o decorrer do inquérito crime (e da instrução) é que veio a ser apurada, não existindo tal apuramento no momento da apresentação da denúncia pelo arguido, sendo certo que o objecto da instrução estava relacionado com a racionalidade / verosimilhança das “suspeitas” que subjazem à denúncia efectuada pelo arguido / recorrido.
De qualquer modo, o tratamento que foi feito na decisão recorrida da questão da ausência de falsidade (ao menos parcial) dos factos denunciados não merece reparos, em face da correcta ponderação que aí é feita dos meios de prova produzidos no inquérito e na instrução (atrás já referidos), em conformidade com as regras da lógica e da experiência e à luz do parâmetro normativo da livre apreciação da prova, não sendo os argumentos invocados pela assistente / recorrente suficientes para pôr em crise a decisão.

Um segundo caminho é centrado na falta de consciência da falsidade da imputação veiculada na denúncia ou, dito doutro modo, na convicção da legitimidade e licitude da denúncia.
É afirmado na decisão instrutória resultar verosímil que o arguido estivesse convicto da justiça da denúncia efectuada (encontrando-se manifestamente afastada a consciência da falsidade da imputação), desde logo em razão das conclusões vertidas no processo de inquérito prévio.
Também nesta matéria, a decisão recorrida não merece qualquer reparo, em face da correcta ponderação que aí é feita dos meios de prova existentes nos autos, em conformidade com as regras da lógica e da experiência e à luz do parâmetro normativo da livre apreciação da prova, não sendo os argumentos invocados pela assistente / recorrente suficientes para pôr em crise a decisão.
Sejamos claros, perante o que foi apurado nos inquéritos prévios (Inquérito Interno nº 8/2019 e Inquérito Disciplinar nº 23/2019), com existência de proposta do Instrutor para denúncia dos factos ao Ministério Público por serem susceptíveis de consubstanciar a prática de crime, não restava ao arguido senão proceder à denúncia criminal, material e funcionalmente devida, para cabal apuramento dos factos pelo Ministério Público em inquérito (conforme é referido, e bem, pelo Ministério Público junto da 1ª Instância, na resposta ao recurso).
Não cabia ao arguido substituir-se ao Ministério Público ou ao Conselho Médico-Legal do INML, na tarefa de apuramento dos factos revelados no mencionado inquérito interno, sendo totalmente descabido impor ao arguido (denunciante) a realização de uma investigação pessoal para apurar a causa da morte da doente, apurar a eventual existência de uma violação do dever de cuidado dos médicos do hospital ou até apurar a dificuldade ou facilidade da prova dos factos, antes de ponderar a apresentação da denúncia.
A conduta do arguido foi exclusivamente determinada pelas conclusões do processo de inquérito prévio que visou o apuramento, entre outra factualidade, de factos relacionados com a assistência hospitalar à utente falecida, tendo tais conclusões determinado o arguido, no exercício das suas funções de Presidente do Conselho de Administração do ..., a subscrever a missiva de denúncia obrigatória onde deu nota da factualidade e conclusões apuradas no âmbito do referido processo de inquérito (conforme é referido, e bem, pelo arguido, na resposta ao recurso).
Em suma, a decisão recorrida concluiu correctamente que o arguido não tinha consciência da falsidade da imputação veiculada na denúncia, sendo igualmente correcta a conclusão no sentido de que o arguido agiu na convicção da legitimidade e licitude da denúncia.
Assim, nesta parte, improcede a pretensão recursiva da assistente / recorrente (i.e., existência de indícios suficientes da prática pelo arguido / recorrido de um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art. 365º, nº 1, do Código Penal).

B)–A assistente imputou ao arguido a prática de um crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art. 369º, nºs 1 e 2 do Código Penal.
Nesta parte da apreciação do recurso, importa remeter para os fundamentos da decisão instrutória (de não pronúncia) impugnada, de harmonia com o disposto no art. 425º do CPP, com os quais se concorda: atendendo que não só o arguido não integra uma das categorias de pessoas que podem ser agentes do crime em análise, mas também que não foram dados como indiciariamente provados os restantes elementos típicos do mesmo, sejam objectivos, sejam subjectivos, resta concluir que o seu comportamento não integra a prática de um crime de denegação de justiça e prevaricação, tal qual como previsto no art. 369º, nº 1, do CP.
Assim, nesta parte, improcede a pretensão recursiva da assistente / recorrente (i.e., existência de indícios suficientes da prática pelo arguido / recorrido de um crime de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo art. 369º, nºs 1 e 2 do Código Penal).

III.–DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 9ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pela assistente BB, mantendo-se nos seus precisos termos a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça (art. 513º, nºs 1 e 3, do CPP e art. 8º, nº 9, do RCP, por referência à Tabela III anexa).
Notifique.
Certifica-se que foi dado cumprimento ao disposto no art. 94º, nº 2, do CPP.


Lisboa, 20 de Junho de 2024


Nuno Matos - (Relator)
Maria Ângela Reguengo da Luz - (1ª Adjunta)
JJ - (2ª Adjunta)


(acórdão assinado electronicamente)