PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO
TRIBUNAL COMPETENTE
CRIANÇA EM HOSPITAL
REJEITADA PELOS PROGENITORES
Sumário

1. A residência da criança recém nascida, deixada pelos pais na instituição hospitalar onde nasceu, não pode ser ficcionada como sendo a da mãe, para efeitos de atribuição da competência territorial ao tribunal;
2. Competente em razão do território, para tramitar o processo de promoção e protecção no caso de menor, nascido em instituição hospitalar, que aí permanece à data da propositura do processo, por ter sido rejeitado pelos pais, é o tribunal da área territorial em que a mesma instituição está situada.»

Texto Integral

Acordam as Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório
A Procuradora da República instaurou Procedimento Judicial Urgente, com vista à aplicação de medida de promoção e protecção à criança, nascida a 14.04.2024, filha de A de B, o que fez ao abrigo do disposto nos artigos 91.º, n.º 4 e 92.º, da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro (Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo).
Alegou, para tanto, que a menor, encontra-se hospitalizada na Maternidade Alfredo da Costa Unidade Local de Saúde São José, com alta clínica e sem alta social, tendo os pais manifestado a vontade de encaminhar a filha para adopção e recusando-se a receber a criança.
A mãe A encontra-se a viver temporariamente em quarto de amigos na zona de O… e o pai reside na Estrada…
Ambos os pais são naturais da Índia, encontram-se em Portugal há mais de 1 ano e mantiveram uma relação extraconjugal.
Não têm ocupação profissional estável em Portugal, realizando trabalhos esporádicos em áreas como a restauração.
Alega que, dada a situação de perigo para a vida e integridade física, iminente e actual em que a criança se encontra, e com a finalidade de a retirar da situação de perigo em que está (entregue aos cuidados hospitalares e sem possibilidade de ir para o agregado familiar dos pais) a Maternidade Alfredo da Costa prestou-lhe todos os cuidados médicos necessários e adequados, proporcionando-lhe as condições que permitiram proteger e promover a sua saúde, segurança e bem estar integral, realizou o parto e manteve a criança nos Serviços de Urgência, a fim de lhe serem assegurados todos os cuidados necessários.
Em face da posição assumida pelos pais, cumpre dar um projecto de vida a menina, retirando-a de imediato do ambiente hospitalar e porventura proceder ao seu encaminhamento para futura Adopção.
Conclui requerendo:
O processo seja averbado como Procedimento Judicial Urgente – artigo 92.º da L.P.C.J.P.;
Se profira decisão provisória para a imediata protecção desta criança, aplicando uma das medidas de promoção e protecção previstas no artigo 35.º da L.P.C.J.P. nos termos do artigo 92º, n.º 1 da L.P.C.J.P.;
Se aplique a título provisório, a medida de promoção e protecção, de acolhimento residencial em entidade que disponha de instalações e equipamento adequados ao quadro clínico da criança, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 34.º, n.º 1, 35.º nº 1, al. f) e n 2.º, 37.º, 49.º e 50.º e 91.º e 92.º da L.P.C. J.P.;
Que o processo siga os seus termos como processo judicial de promoção e protecção, ao abrigo do disposto no artigo 92.º nº 3 da L.P.C.J.P, designando-se dia para declarações aos pais do jovem e Sras. Técnicas responsáveis da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa;
(v) Se solicite à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a elaboração informação/relatório sumário indispensável e, bem assim, posterior relatório social, com definição do projecto de vida para a criança, remetendo-se-lhe cópia do expediente que se anexa e solicitando a disponibilização imediata de vaga em instituição apropriada à criança, retirando-a de imediato da maternidade, onde se encontra.
*
Veio, então, a ser proferido despacho, em 2-5-2024 do seguinte teor (que se transcreve corrigindo os lapsos de escrita):
« (…)
A Criança visada nos presentes autos nasceu a 14.04.2024 e encontra-se, desde então, e até ao presente, no Hospital Maternidade Dr. Alfredo da Costa, com alta Clínica, mas sem alta social, porquanto, os seus Progenitores não a pretendem assumir pelas razões pessoais aduzidas pela DMMP, no seu requerimento inicial, e, em conformidade, sugerem que a Criança siga para adoção.
A Criança no presente não está em perigo de vida, e inexiste qualquer risco e/ou receio iminente para a sua vida atual e presente, pois até se encontra na Maternidade, com todos os devidos recursos e condições para ser devidamente cuidada e tratada, e, em conformidade, acautelada a sua vida, saúde, integridade física, emocional e psicológica.
A questão coloca-se, na circunstância de uma Maternidade não ser um local para a bebé permanecer, após a alta clínica da mesma e da sua Mãe, e não é também, o local para a Criança viver e crescer. E o problema, surge, pela circunstância acrescida desta Criança estar a ser rejeitada por ambos os Progenitores que não a querem assumir e consentem que siga para adoção por razões de ordem pessoal de parte a parte. Impõe-se, portanto, analisar e diagnosticar o caso concreto desta bebé, e em consequência, determinar o seu projeto de vida, e se efetivamente, todas as condições e subsequentes conclusões apuradas determinam que efetivamente siga para adoção, pois há também que averiguar da situação da família materna e paterna, e se, querem mesmo que a Criança siga para adoção. O que deve ser realizado em processo de promoção e proteção e de acordo com os trâmites legais fixados para o efeito, designadamente, solicitando-se relatório social que analise a situação concreta e na sequência da análise e estudo ponderado sobre o caso, se sugira eventual CAR adequada e com as exigências necessárias para uma Criança de tão tenra idade, ou se, porventura a família alargada a quererá assumir. Aliás, enquanto, não se propuser acolhimento seja de que índole for, adequado e preparado para receber esta Criança com mês e meio, o melhor e o sítio mais protetor onde a mesma deve e pode estar, em face das circunstâncias conhecidas é precisamente na Maternidade onde se encontra, por forma a beneficiar de todos os cuidados devidos e inclusive os de saúde, caso algum problema dessa ordem surja, até porque, com a rejeição da sua Mãe, nem deve estar a ser amamentada, carecendo até de cuidados especiais e de quem sabe, quanto à sua alimentação, no momento.
Sem prejuízo do que se deixa exarado, mais cumpre referir que, a Maternidade é um local de Saúde onde a Mãe foi assistida no parto e onde nasceu a Criança aqui visada, mas tal, não corresponde e não pode definir a sua residência.
Em conformidade, e conforme informado no requerimento inicial, verifica-se que a Mãe da Criança tem residência em Odivelas, que pertence à Comarca de Lisboa Norte e o Pai da Criança tem residência em Coruche, que pertence a Santarém. Pelo que, entende-se, pelas razões acima aduzidas que não há lugar à intervenção judicial de urgência, sem prejuízo, confirma-se que os autos têm de seguir para os propósitos requeridos pela DMMP, como promoção e proteção. E, assim sendo, este Tribunal de acordo com o preceituado no artº 79º da LPCJP é incompetente em razão do território.
Valorando as circunstâncias da atual vivência da menor e atenta às normas legais que regulam a matéria, e considerando a sua tenra idade de 1 mês e meio, e que, em situação de normalidade e de não rejeição por parte da sua Progenitora estaria junto à mesma e a ser amamentada e a residir com esta, declara-se que o presente tribunal é incompetente, em razão do território, (incompetência relativa) para os ulteriores trâmites processuais, verificada que está esta a exceção dilatória (de conhecimento oficioso a todo o tempo), e ordena-se, que, os autos sejam prontamente remetidos ao Tribunal de Família e Menores competente – Juízo de Família e Menores de LOURES da Comarca de Lisboa Norte (cfr. artºs. 102º, 104º, 105º nº 3, 278º nºs 1 al. e) e 2, 576º nºs 1 e 2, 577º al. a) e 578º todos do Código de Processo Civil, ex vi do artº 79º nº. 1 da LPCJP e 9º do RGPTC).
Sem tributação.
Registe e Notifique.
Dê baixa da presente decisão no Citius.
Oportunamente, remeta.
D.N.» (sublinhado nosso)
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A Sra. Procuradora, notificada de tal decisão em 3-5-2024, atravessa nos autos, no mesmo dia, requerimento que termina com o seguinte pedido:
«Assim sendo, sem prejuízo do recurso que o Ministério Público irá interpor da decisão ora em causa, vem o Ministério Público , face aos factos já descritos na p. i., os quais se dão aqui por reproduzidos e que configuram uma situação de perigo para a criança …, bem como ao abrigo do disposto nos artigos 79º, nº 3, 91º e 92º da LPCJP, requer a V. Exa.
- se digne proferir decisão provisória e cautelar para a imediata proteção desta criança, aplicando-lhe a título provisório, a medida de promoção e proteção, de acolhimento familiar ou residencial em entidade que disponha de instalações e equipamento adequados à situação desta criança, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 34.º, n.º 1, 35.º nº 1, al. f) e n 2.º, 37.º, 49.º e 50.º e 91.º e 92.º da L.P.C. J.P.»
*
Sequentemente, e ainda no próprio dia 3-5-2024, é proferida decisão nos seguintes termos:
«Tomei conhecimento do requerimento trazido aos autos pelo MP.
***
Em face do mesmo e sem prejuízo da incompetência territorial já declarada pela Ex.ma Juiz de Turno importa proferir decisão nos termos do art.º 37º da LPCJP.
Está indiciariamente provado que:
1. …, nascida em 14.04.2024 é filha de A e B.
2. Os pais informaram que não a pretendem receber, uma vez que a mesma nasceu de uma relação extraconjugal que mantiveram e que é desconhecida dos seus familiares na Índia, país de onde são originários.
3. Pretendem que a criança seja encaminhada para adopção.
4. Não existem outros familiares a quem a criança possa ser entregue.
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A factualidade apurada resulta da prova documental junta aos autos.
Do Direito
Verifica-se que a criança a quem estes autos se reportam se encontra em hospital público, tendo alta clínica, mas não alta social. Com efeito, pelas razões acima indicadas, os pais não pretendem recebê-la, não sendo conhecido mais ninguém que, no seu meio familiar ou social, a possa receber.
Importa acautelar a situação jurídica da criança e proporcionar-lhe um ambiente seguro e sadio, que lhe preste todos os cuidados de bem-estar, afecto e segurança emocional que constituem a base do desenvolvimento de um ser humano equilibrado.
Ora, o acolhimento residencial, em LIJ adequado à sua idade e características será a única medida apta a, por ora, a retirar de tal situação de perigo para a sua integridade física/vida/saúde, bem como assegurar todos os cuidados e a afeição adequados à sua idade, proporcionando-lhe as condições que permitam proteger e promover a sua saúde, bem-estar e crescimento saudável.
Assim, na ausência de qualquer alternativa no meio natural de vida, no presente momento, não podemos deixar de considerar que deve ser aplicada a medida de acolhimento residencial a título cautelar, por ser a solução que lhe salvaguarda a integridade física/vida e bem-estar, estabilidade e equilíbrio pessoal, de imediato. Não obstante a via do acolhimento ser a ultima ratio na solução a dar a este tipo de situações, resulta claro que é, no caso e no presente momento, a única solução apta a proporcionar à criança em causa estabilidade física e emocional, um tecto e um ambiente protector numa instituição que assuma características correspondentes à satisfação das necessidades daquele e adequada às suas especificidades.
A este respeito, o artigo 3.º da LPCJP estipula que “a intervenção para a promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando (...)” esteja “em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento (...)”, abrindo-se assim caminho à aplicação de uma qualquer das medidas previstas no artigo 35.º, n.º 1, da citada lei, aplicação essa sempre com observância dos princípios basilares da proporcionalidade, responsabilidade parental e prevalência da família - cf. artigo 4.º, alíneas f), g) e h) da LPCJP.
Comparada aquela disposição com a que constitui a sua fonte no Código Civil, o artigo 1918.º, e conjugada com a que funda a inibição e limitação do exercício das responsabilidades parentais, artigos 1913.º e 1915.º do mesmo diploma legal, transparece com manifesta clareza a intenção legislativa de reservar estas últimas medidas para as infracções culposas dos deveres próprios do exercício do poder paternal ou pelo menos para as suas omissões evidentes.
Aqui chegados e reconduzindo-nos ao caso vertente, importa considerar, tanto quanto possível, o quadro base subjacente ao decretamento de uma medida no âmbito dos artigos 3.º, 34.º e 35.º da citada LPCJP, socorrendo-nos para tal do interesse superior da criança e considerando-a, tal qual deve ser considerado, como sujeito autónomo de direitos - cf. artigo 4.º, al. a), da LPCJP: “Interesse superior da criança e do jovem - a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem (...).
Por seu turno, o artigo 37.º da LPCJP dispõe que as medidas provisórias são aplicáveis nas situações de emergência, considerada como uma situação de perigo actual ou eminente que afecte a saúde, segurança, formação ou desenvolvimento da criança ou enquanto se procede a diagnóstico da situação da criança e à definição do seu acompanhamento subsequente.
É precisamente esta a situação em apreço – existência de perigo actual e concreto para o bem-estar e integridade física/vida/saúde das crianças – colocando em perigo o saudável desenvolvimento das mesmas. Tal perigo assenta na manutenção da sua situação de indefinição jurídica, por um lado. Por outro lado, como acima se escreveu cabe encontrar dentro do quadro jurídico português desde já solução que acautele os cuidados e bem-estar a que esta criança tem direito, cuidados específicos que a sua idade exige, pelo que se impõe a intervenção judicial.
A colocação apresenta-se, aliás, como a única medida aplicável, face à idade, as necessidades básicas e ausência, por parte dos pais ou outros familiares, de condições para as receber de imediato, sem prejuízo do que vier a ser avaliado ulteriormente.
Decisão:
Pelo exposto, ao abrigo do disposto no artigo 37.º da LPCJP, de modo a acautelar o bem-estar, enquanto se efectuarem diligências para definir o seu projecto de vida e sem prejuízo do que vier a ser apurado em sede de revisão da medida de promoção e protecção no âmbito dos presentes autos, decide-se aplicar a …, nascida em 14.04.2024 e filha de A e B a medida cautelar de promoção e protecção de acolhimento familiar ou, não existindo vaga, acolhimento residencial, ao abrigo do disposto nos artigo 35.º, n.º1 alínea f) e 2, 37.º, ambos da LPCPJ, pelo período de seis meses, devendo prosseguir os ulteriores trâmites legais do processo judicial de promoção e protecção. (…)»
*
Em 8 de Maio, o Ministério Público, não obstante a decisão proferida em 3-5-2024, atravessa nos autos requerimento de interposição de recurso por inconformidade com a decisão de 2.5.204, concluindo:
« IV. Em conclusão:
1.
O presente recurso é interposto do despacho proferido pela Mª Juíza que se encontrava de turno no Juízo de Família e Menores de Lisboa, datado de 2-05-2024, o qual indeferiu a aplicação de uma medida cautelar e provisória à criança …, nascida a 14.04.2024, nos termos do disposto nos artigos 91.º, n.º 4 e 92.º, da Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro (Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo), por entender que a criança não se encontrava em perigo para a vida, e determinou ainda a remessa dos autos ao Juízo de Família e Menores de Loures, por entender que face à residência dos progenitores era esse o Tribunal competente.
2.
O sistema de promoção e proteção desenvolve-se através da aplicação de medidas de promoção e proteção, previstas na respetiva lei, que visam, para além do mais, afastar as crianças e jovens da situação de perigo em que se encontrem [cf. art.º 34º, al. a), da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo] e que podem ser aplicadas pelo tribunal a título cautelar, enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente (cf. art.º 37º, n.º 1, da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo), sempre que se esteja perante situação de perigo atual de grave comprometimento da integridade física ou psíquica da criança ou do jovem, que determine a necessidade da sua aplicação imediata [cf. art.º 5º, al c), do mesmo diploma legal].
3.
A finalidade da medida cautelar é, assim, a de garantir a segurança da criança ou do jovem e providenciar-lhe uma situação de bem-estar numa ocasião em que se não mostra ainda definido, de forma estabilizada, projeto de vida adequado e sustentável. A sujeição de uma criança ou de um jovem a uma medida cautelar visa ainda a prossecução do seu superior interesse.
4.
No artigo 3º, nº 2 da LPCJ enunciam-se, a título de exemplo, diversas situações que integram o conceito de perigo e que, consequentemente, legitimam a intervenção por parte do Estado e da comunidade para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo.
5.
No caso concreto mostram-se verificadas as situações de perigo previstas nas alíneas a) e c) do mencionado normativo legal.
6.
Efetivamente, o Ministério Público, no requerimento inicial que apresentou nestes autos e no qual requereu a instauração de procedimento judicial urgente a favor desta criança, ao abrigo do disposto nos artigos 91º e 92º da LPCJP, elencou um conjunto de factos que chegaram ao seu conhecimento por comunicação efectuada pelos Serviços Sociais da Maternidade Alfredo da Costa, os quais eram passíveis de subsunção aos critérios previstos neste artigo 3º, da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, referindo esta comunicação, nomeadamente, que a criança se encontrava sem qualquer apoio dos seus progenitores, que verbalizaram não pretender assumir os seus cuidados e que pretendiam que a mesma fosse encaminhada para adoção, encontrando-se a criança com alta clínica mas sem alta social no Hospital por falta de enquadramento familiar onde pudesse ser colocada, configurando-se assim uma situação em que esta criança não recebia os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal, estando desamparada, sem que os pais quisessem ter interferência no seu destino, para além de se encontrar em perigo por estar internada num hospital e se encontrar privada dos cuidados básicos, nomeadamente os cuidados de afeição adequados à sua idade e à sua situação pessoal, sendo que a situação de perigo em que se encontrava era atual e intensa, capaz, por isso, de comprometer, de forma grave, a integridade psíquica e física da mesma.
7.
No caso concreto, e também como é do conhecimento geral, os hospitais são locais inapropriados e de natureza perigosa para hospedar/acolher qualquer pessoa, e muito menos uma criança recém-nascida, cujo organismo ainda não assumiu as defesas físicas que lhe permitem resistir a certo tipo de infeções e contágios.
8.
Como muito bem se refere no estudo “O impacto do risco social num internamento pediátrico”, publicado in https://repositorio.chporto.pt/handle/10400.16/1508, que estudou vários casos de internamentos de crianças com critérios clínicos de alta clínica com adiamento da alta hospitalar por motivos sociais, são muitas as situações em que estas crianças ganham infeções pelo facto de se encontrarem em meio hospitalar. No estudo em causa, em catorze casos ocorreram seis infecções nosocomiais e um traumatismo crânio-encefálico, pelo que se pode verificar que a incidência de infeções hospitalares é elevada e de grande risco para uma criança recém-nascida.
9.
Para além do mais, o internamento de um bebé num contexto hospitalar (quando não existe necessidade clínica, veja-se) vai totalmente contra a necessidade que a criança tem dos estímulos afetivos e relacionais de que carece para o seu saudável desenvolvimento, pois o pessoal médico, de enfermagem e auxiliares de ação medica, não tem vocação, formação, competências ou sequer tempo e disponibilidade para proporcionar estes estímulos à criança.
10.
E também nos parece que a refutação da posição assumida pelo Ministério Público merecia uma melhor, mais clara e mais concreta fundamentação por parte da Mª Juíza neste despacho, parecendo-nos que essa refutação deveria ter passado por uma indicação das concretas razões da sua discordância, nomeadamente pelo conhecimento que a Mª Juíza poderia eventualmente ter sobre a situação concreta da saúde e da acomodação da criança naquele hospital, isto se esses outros elementos indiciassem, efetivamente, uma ausência de situação de perigo para a vida da criança, o que nos parece que não foi feito neste despacho em concreto pela Mª Juíza, pois salvo o devido respeito, parece-nos que a Mª Juíza se bastou com uma não concordância muito genérica e abstrata sobre a situação da criança naquele (ou noutro qualquer) hospital.
11.
Os fatos trazidos no requerimento do Ministério Público configuram uma situação de emergência a justificar uma atuação urgente por parte das entidades competentes de acordo com o artigo 91º, nº 1 da LPCJ e a aplicação de uma medida cautelar e provisória.
12.
A aplicação, a título cautelar, da medida requerida pelo Ministério Público revelava-se fundamental à tutela do interesse desta criança, consubstanciando-se como a única medida ao alcance do tribunal para, na presente fase processual, debelar o perigo em que se encontrava.
13.
A decisão recorrida, ao não sancionar tal entendimento, não se mostra compaginável com os preceitos legais aplicáveis, quer quanto à obrigação de proteger esta criança de qualquer fator de perigo atual, quer quanto á necessidade de fundamentação do despacho, que na nossa opinião, não foi devidamente cumprida, cfr. artigo 154º CPC.
14.
No entanto, reconhece-se que tal desiderato foi, entretanto, atingido, pelo que se admite, nesta parte, que o Ministério Público perdeu o interesse em agir.[1]
15.
O tribunal territorialmente competente para a aplicação das medidas de promoção e proteção a esta criança é o Tribunal de Família e Menores de Lisboa.
16.
Na realidade, quando não for possível determinar a residência da criança – e veja-se que a legislação se refere a residência da criança e não à residência dos pais - é competente o tribunal do lugar onde a mesma se encontre, cfr. artigo 79º, nº 2 da LPCJP, (sendo que, de qualquer das formas, era ao tribunal do lugar onde a criança fosse encontrada, no caso concreto Lisboa, que cabia a competência para tomar as medidas necessárias à sua proteção imediata (artigo 79º, nº 3 da LPCJP).
17.
O conceito de residência previsto no artigo 79º, nº 1 da LPCJP, determinante para se aferir o tribunal territorialmente competente para aplicação das medidas de promoção e proteção requeridas pelo Ministério Público no caso concreto, não pode confundir-se com um qualquer conceito formal de domicílio legal dos progenitores da criança.
18.
O conceito de residência de uma criança deve ser entendido e preenchido de uma forma substancial e não formal, entendendo-se a residência da criança como aquele lugar em que a criança está efetivamente radicada, ou o lugar ao qual a criança está intrínseca e efetivamente ligada, por ser esse o lugar onde a criança tem (ou no caso concreto de uma criança recém nascida poderá com toda a probabilidade vir a ter) a sua vida organizada e onde a criança desenvolve efetiva e habitualmente a sua vida, em termos de maior permanência e estabilidade, estando-lhe associado um carácter voluntário e relativamente duradouro, afastando-se da noção de domicílio legal.
19.
No caso concreto, a morada dos progenitores não se constitui como um critério válido e legal para se fixar a competência territorial do tribunal que deve decidir o caso concreto desta criança, uma vez que os progenitores, à data da propositura da ação, verbalizavam que não pretendiam assumir a criança aos seus cuidados e queriam que a mesma fosse encaminhada para adoção, não sendo previsível que esta criança alguma vez viesse a residir com os seus progenitores biológicos.
20.
Parece-nos que a Mª Juíza de Turno se devia ter socorrido da regra supletiva que consta do nº 2 deste artigo 79º da LPCJP, segundo a qual, não sendo possível determinar-se a residência da criança, é competente o tribunal do lugar onde a criança for encontrada, sendo que, no caso concreto a competência territorial cabia ao Juízo de Família e Menores de Lisboa, pois a criança encontrava-se em hospital sediado em Lisboa.
21.
A decisão de que se recorre é contrária ao interesse da criança e, nessa medida, ilegal, já que contraria comandos fundamentais da intervenção de promoção e proteção: atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança – cf. art. 4º, al. a), da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, mostrando-se, além disso, contrária ao comando constitucional ínsito ao art. 69º, da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual o Estado deve proteção às crianças devendo prosseguir o seu superior interesse, para além de que viola as regras de competência territorial definidas na LPCJP, nomeadamente as constantes do artigo 79º, nº 1 e 2 deste mesmo diploma legal.
22.
Assim, salvo o devido respeito por posição diversa, entende-se que a decisão sob recurso não pode manter-se vigente na ordem jurídica, pelas razões enunciadas, devendo a mesma ser revogada e substituída por outra que, tendo em vista o afastamento da criança da situação de perigo em que se encontra, determine a manutenção a …, nascida a 14.04.2024, a título cautelar, da medida de promoção e proteção de acolhimento familiar, pelo período de três meses, nos termos do conjugadamente disposto nos arts. 3º, n.ºs 1 e 2, al. a), b), c) e f), 4º, al. a), 34º, al. a), 35º, n.º 1, al. f), 37º, n.º 1 da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo que foram violados pela decisão recorrida e ainda que determine que a competência para a aplicação das medidas de promoção e proteção a esta criança seja atribuída ao J3 do Juízo de Família e Menores de Lisboa, ao abrigo do disposto no artigo 79º, nº e nº 2 da LPCJP, que foi igualmente violado pela decisão ora recorrida.
fazendo-se, deste modo, a costumada JUSTIÇA.»

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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido.
Mostrando-se cumpridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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2. Objecto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas suas conclusões, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. arts. 635º, nº 4, 639º, nº 1, e 662º, nº 2, todos do Código de Processo Civil), sendo que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cf. art.º 5º, nº3 do mesmo Código).
Em causa nestes autos está, unicamente, decidir se o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Família e Menores é o territorialmente competente para conhecer da causa.

3. Questão Prévia
Nas suas alegações recursivas o Ministério Público, ao longo de quase sete páginas, debruça-se sobre o segmento do despacho que decidiu pela não aplicação de medida cautelar de acolhimento residencial ou familiar à bebé, fundamentando o seu inconformismo, segmento que lhe mereceu, a final, uma conclusão de 14 (catorze pontos), sendo que no 14º  conclui « No entanto, reconhece-se que tal desiderato foi, entretanto, atingido, pelo que se admite, nesta parte, que o Ministério Público perdeu o interesse em agir.»
Termina as suas conclusões pedindo, apesar da declarada perda do interesse em agir -absolutamente justificada em face da decisão de 3-5-2024 - que se revogue a decisão e se substitua por outra que  « …tendo em vista o afastamento da criança da situação de perigo em que se encontra, determine a manutenção a …, nascida a 14.04.2024, a título cautelar, da medida de promoção e proteção de acolhimento familiar, pelo período de três meses…» A este respeito, anote-se, que tal medida foi decidida pelo despacho de 3.5.2024.
Ora, estabelece-se no art. 639º, nº 3, do CPCivil que, «quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada.».
In casu, não se tratando de um caso de conclusões deficientes, obscuras, trata-se de toda uma peça altamente questionável: as alegações abordam pormenorizadamente um segmento da decisão sobre o qual o apelante expressamente admite ter perdido o interesse, perda de interesse essa que reitera em sede de conclusões porém, e ainda assim, remata a peça com um pedido de revogação da decisão recorrida no exacto segmento cuja perda de interesse expressamente refere.
 O arrazoado apresentado, na medida em que analisa questão cuja falta de interesse o apelante expressamente refere, para além de se traduzir numa actuação processual duvidosa, é reprovável tendo determinando neste tribunal superior um trabalho escusado.
Não pode, pois, deixar de se manifestar aqui a nossa estranheza e reprovação porquanto a declarada falta de interesse determinaria, a nosso ver, que a 1ª questão alegada, não fosse, sequer, objecto de qualquer consideração por parte do apelante.
Assim, e considerando a posição do Ministério Público, conclui-se que a única questão a decidir, será a da competência territorial do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Família e Menores para decidir dos presentes autos.

4. Fundamentação
4.1. Fundamentação de Facto
A factualidade a considerar é a que resulta do Relatório.
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4.2. Fundamentação de Direito
Dispõe, o artigo 79.º da LPCJP que:
«1 - É competente para a aplicação das medidas de promoção e proteção a comissão de proteção ou o tribunal da área da residência da criança ou do jovem no momento em que é recebida a comunicação da situação ou instaurado o processo judicial.
2 - Se a residência da criança ou do jovem não for conhecida, nem for possível determiná-la, é competente a comissão de proteção ou o tribunal do lugar onde aquele for encontrado.
3 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, a comissão de proteção ou o tribunal do lugar onde a criança ou o jovem for encontrado realiza as diligências consideradas urgentes e toma as medidas necessárias para a sua proteção imediata.
4 - Se, após a aplicação de medida não cautelar, a criança ou o jovem mudar de residência por período superior a três meses, o processo é remetido à comissão de proteção ou ao tribunal da área da nova residência.
5 - Para efeitos do disposto no número anterior, a execução de medida de promoção e proteção de acolhimento não determina a alteração de residência da criança ou jovem acolhido.
6 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, a comissão de proteção com competência territorial na área do município ou freguesia de acolhimento da criança ou jovem, presta à comissão que aplicou a medida de promoção e proteção toda a colaboração necessária ao efetivo acompanhamento da medida aplicada, que para o efeito lhe seja solicitada.
7 - Salvo o disposto no n.º 4, são irrelevantes as modificações de facto que ocorrerem posteriormente ao momento da instauração do processo».
Do disposto no artigo 79.º nº 1 e nº 2 da LPCJP resulta que é competente para a aplicação das medidas de promoção e protecção a comissão de protecção ou o tribunal da área da residência da criança ou do jovem a comissão de protecção ou o tribunal da área da residência da criança ou do jovem no momento em que é recebida a comunicação da situação ou instaurado o processo judicial (nº1) ou, se a residência da criança ou do jovem não for conhecida, nem for possível determiná-la, a comissão de protecção ou o tribunal do lugar onde aquele for encontrado (nº2).
Ora, à data da instauração do processo a menina encontrava-se internada na Maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, onde nasceu, nunca tendo saído dessas instalações porquanto os progenitores a rejeitaram por motivos familiares.
Não é critério de atribuição de competência, a situação de normalidade invocada pela decisão sob recurso, de que não fora a rejeição da bebé por parte da mãe, esta estaria junto à mesma, a ser amamentada e a residir com esta, para assim se decidir que a competência territorial é cometida ao tribunal da área da residência da mãe.
Se é verdade que nos termos do disposto no n.º. 1 do artigo 85.º do Código Civil, o menor tem domicílio no lugar da residência da família e se ela não existir, tem por domicílio, o do progenitor a cuja guarda estiver, também é certo que, in casu, estamos perante uma situação de uma criança que nasceu nas instalações da maternidade Alfredo da Costa em Lisboa, e que nem o pai, residente em C…, nem a mãe, à data a residir em O…, pretenderam acolhê-la como sua filha, não a levando consigo após a alta.
O facto objectivo a ponderar é que a menor, à data da propositura dos presentes autos de promoção e protecção, se encontrava nas instalações hospitalares, em Lisboa, no local onde nasceu e de onde nunca saíu.
A residência da criança recém nascida deixada pelos pais, na instituição hospitalar onde se deu o nascimento, não pode ser ficcionada como sendo a da mãe, para efeitos de atribuição da competência territorial ao tribunal.
A disposição contida no nº 2, do art.º 79º da LPCJP, prevendo o caso de desconhecimento ou impossibilidade de determinação da residência do menor, atribui a competência à comissão de protecção ou o tribunal do lugar onde aquele for encontrado. É, pois, neste preceito que se encontra a solução para a questão objecto de recurso, pois que a menina não tem residência determinada.
Assim, e ao abrigo do disposto no art.79º, nº2, da LPCJP, decide-se, sem necessidades de maiores considerações por desnecessárias, que para a tramitação dos presentes autos é competente o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Família e Menores, revogando-se, pois, a decisão que atribuiu tal competência ao Juízo de Família e Menores de Loures.
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5. Decisão
Em face do exposto, julga-se o presente recurso de apelação procedente por provado e, consequentemente, decide-se:
a) Julgar o Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Família e Menores, competente, em razão do território, para tramitar e decidir os presentes autos.
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Sem custas.    
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Lisboa, 20/6/2024
Ana Paula Nunes Duarte Olivença
Marília dos Reis Leal Fontes
Maria do Céu Silva
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[1] Bold e sublinhado nossos