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SENTENÇA
ESGOTAMENTO DO PODER JURISDICIONAL
Sumário
I - O erro de julgamento é um erro de carater substancial e ocorre quando na decisão proferida a lei é mal aplicada ou há um erro quanto à questão de facto ou de direito apreciada, afeta o fundo ou o efeito da decisão, e dita a sua revogação por estar desconforme ao caso ou ao direito. II - A infração das regras que disciplinam a elaboração da sentença é um vicio formal e respeita ao modo como o juiz exerceu a sua atividade, dita a anulação da decisão por ser formalmente irregular. III - Prolatada uma decisão, o tribunal que a proferiu não a pode revogar, por perda de poder jurisdicional. Trata-se de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais e justifica-se por uma razão de ordem doutrinal e por uma razão de ordem pragmática. IV - Deste princípio do esgotamento do poder jurisdicional, antes mesmo do trânsito em julgado, decorre que uma decisão uma vez proferida adquire um primeiro nível de estabilidade interna ou restrita, perante o próprio autor da decisão (artigo 613º, nº 1 do Código de Processo Civil) V - Fora dos ressalvados casos de retificação, reforma ou suprimento de nulidades (artigo 613º, nº 2 do Código de Processo Civil) se o autor de uma decisão no mesmo processo proferir outra decisão que incida sobre a mesma matéria que já foi anteriormente apreciada, a nova decisão é juridicamente inexistente e não vale como decisão jurisdicional por ter sido proferida em momento e circunstâncias em que o aludido poder jurisdicional já se tinha esgotado.
Texto Integral
Processo: 3278/21.2T8PRT.P2
Sumário (artigo 663º nº 7 do Código de Processo Civil)
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ACORDAM EM CONFERÊNCIA OS JUIZES DA 3ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:
Notificado do acórdão proferido nos presentes autos veio o Recorrido apresentar requerimento de “reforma da sentença” nos termos do disposto nos artigos 666º, 684º, 615º n.º 1 c) do CPC, com o seguinte teor:
“Porquanto a folhas 9 do douto Acórdão é expressamente afirmado que a testemunha AA, funcionária da A. esclareceu o Tribunal, na audiência de Julgamento que destes montantes foram entregues à A. € 5.000,00 e €1.250,00.
Tal não corresponde à verdade, já que a referida AA diz expressamente que guardava memória das visitas regulares do R. às instalações da sua entidade empregadora.
Sendo que, nessa altura o R. levava vários cheques para entregar à A., referindo a testemunha que cada cheque podia contemplar pagamentos relativos a vários processos judiciais.
Prevaleceu a desorganização da contabilidade da A. a partir de 2015 e que tem como origem a transferência da documentação para os serviços da A., sediados em Lisboa.
O que explica por exemplo que em alguns processos judiciais não se saiba o que estava a ser feito e se havia valores pagos por exemplo.
Deste modo é evidente que tal confusão no douto acórdão é relevante para a decisão da
causa, em prejuízo do R.
Termos em que Requer a reforma do mesmo”.
Não foi apresentada resposta.
I.APRECIANDO.
I.1 O pedido de reforma do acórdão. Objeto.
O artigo 613º do Código de Processo Civil, (diploma para o qual doravante se consideram remetidas todas as normas sem outra menção), aplicável aos acórdãos por força do disposto no artigo 666º, prevê que: (nº 1) “Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa. (nº 2) É lícito, porém, ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos seguintes”.
Conjugadamente, com este preceito, o artigo 616º vem especificar que: (nº 1) “A parte pode requerer, no tribunal que proferiu a sentença, a sua reforma quanto a custas e multa, sem prejuízo do disposto no n.º 3. (nº 2) Não cabendo recurso da decisão, é ainda lícito a qualquer das partes requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz: a) Tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos; b) Constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.”
I.1.2
A extinção do poder jurisdicional a que alude o artigo 613º, justifica-se pela necessidade de evitar a insegurança e incerteza que adviriam da possibilidade da decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, funcionando como um obstáculo ou travão à possibilidade de serem proferidas decisões discricionárias e arbitrárias.
Assim, uma vez prolatada uma decisão, “o tribunal não a pode revogar, por perda de poder
jurisdicional. Trata-se, pois, de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais. (...) Graças a esta regra, antes mesmo do trânsito em julgado, uma decisão adquire com o seu proferimento um primeiro nível de estabilidade interna ou restrita, perante o próprio autor da decisão” (Rui Pinto in CPC Anotado, Vol. II, pág. 174).
Alberto dos Reis em anotação ao anterior artigo 666º, correspondente ao atual 613º, ensinava que o princípio do esgotamento do poder jurisdicional justifica-se por uma razão de ordem doutrinal e por uma razão de ordem pragmática.
“Razão doutrinal: o juiz, quando decide, cumpre um dever – o dever jurisdicional – que é a contrapartida do direito de ação e de defesa. Cumprido o dever, o magistrado fica em posição jurídica semelhante à do devedor que satisfaz a obrigação. Assim como o pagamento e as outras formas de cumprimento da obrigação exoneram o devedor, também o julgamento exonera o juiz; a obrigação que este tinha de resolver a questão proposta, extinguiu-se pela decisão. E como o poder jurisdicional só existe como instrumento destinado a habilitar o juiz a cumprir o dever que sobre ele impende, segue-se logicamente que, uma vez extinto o dever pelo respetivo cumprimento, o poder extingue-se e esgota-se.
A razão pragmática consiste na necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional. Que o tribunal superior possa, por via do recurso, alterar ou revogar a sentença ou despacho, é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão” (Alberto dos Reis in CPC Anotado, Vol. V, pág. 127).
I.1.3
Da extinção do poder jurisdicional decorre esta consequência irrecusável: o juiz não pode, via de regra, voltar a pronunciar-se sobre a matéria apreciada.
Com efeito, prolatada a decisão, e ressalvados os casos de retificação, reforma ou suprimento de nulidades, por força do esgotamento do poder jurisdicional fica vedada a possibilidade de essa decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, apenas sendo possível obter a sua alteração através de recurso que dela venha a ser interposto.
Como tal, podemos afirmar que da “extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem dois efeitos: um positivo, que se traduz na vinculação do tribunal à decisão que proferiu; outro negativo, consistente na insusceptibilidade de o tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa in CPC Anotado, 2ª ed., Vol. I, pág. 762).
A intangibilidade da decisão proferida é, naturalmente, limitada pelo respetivo objeto no sentido de que a extinção do poder jurisdicional só se verifica relativamente às concretas questões sobre que incidiu a decisão.
Se o tribunal, em desrespeito do comando ínsito no artigo 613º, nº 1 (e fora dos ressalvados casos de retificação, reforma ou suprimento de nulidades) proferir outra decisão que incida sobre a mesma matéria que já foi anteriormente apreciada, a nova decisão que padeça de tal vício é juridicamente inexistente e não vale como decisão jurisdicional por ter sido proferida em momento e circunstâncias em que o aludido poder jurisdicional já se tinha esgotado (cf. neste sentido, Acórdão do STJ, de 6.5.2010, (ÁLVARO RODRIGUES) 4670/2000.S1, in www.dgsi.pt..
“Na arquitetura básica do due processo of law, este principio de extinção do poder jurisdicional não ocupa um lugar qualquer (…) Um poder jurisdicional que se mantivesse para além da emissão da sentença comprometeria o próprio direito a uma solução jurídica dos conflitos (…) sendo nestes termos o princípio do esgotamento do poder jurisdicional do juiz, assim que proferida a sentença, um princípio estruturante do processo civil (…) os limites que a ele são apostos pela lei têm, naturalmente, um âmbito estreito” (CC anotado Abílio Neto, março de 2017 anotação 4. ao artigo 613º pp 899).
De todo o exposto resulta que de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 613º e 616º, a reforma das decisões é admissível quanto a “custas e multa” (nº 1).
Ainda, nos casos de decisão irrecorrível é admissível a reforma desta conforme o artigo 616º, nº 2 (i) alínea a: quando tenha ocorrido erro na norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos (ii) alínea b): quando constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, implique necessariamente decisão diversa da recorrida”
II. O requerimento do Recorrido.
II.1. A Reforma imputada ao acórdão.
Em face do teor requerimento apresentado nenhuma das alíneas do artigo 616º está em causa.
Efetivamente o Recorrido vem articular que a “testemunha AA diz expressamente que guardava memória das visitas regulares do R. às instalações da sua entidade empregadora.
Sendo que, nessa altura o R. levava vários cheques para entregar à A., referindo a testemunha que cada cheque podia contemplar pagamentos relativos a vários processos judiciais.
Prevaleceu a desorganização da contabilidade da A. a partir de 2015 e que tem como origem a transferência da documentação para os serviços da A., sediados em Lisboa.
O que explica por exemplo que em alguns processos judiciais não se saiba o que estava a ser feito e se havia valores pagos por exemplo”.
Sem prejuízo, desta afirmação, por um lado, não especificar em que medida é que se verifica o prejuízo do recorrido e em que consiste em concreto e de não colocar em causa o que está decidido no acórdão, já que a mesma não é incompatível com o que no mesmo ficou transcrito e por outro lado, não ter sido sequer invocado em que passagens da gravação se funda o reclamante para produzir uma tal alegação, o que é desde logo evidente, é que a prova testemunhal é uma prova sujeita à livre apreciação do tribunal (artigo 396º do Código Civil), razão pela qual, o fundamento da requerida reforma do acórdão está totalmente excluído ao conhecimento deste tribunal por não se integrar em qualquer dos casos em que é admissível a reforma do acórdão.
II.2. A nulidade imputada ao acórdão.
O Recorrido, embora sem especificar, invoca no seu requerimento o artigo 615º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Civil.
O artigo 615º enumera de forma taxativa as causas de nulidade da sentença, dispondo o preceito, aplicável aos acórdãos proferidos pela Relação, por força do n.º 1 do artigo 666.º, que, para além das demais situações contempladas nesse normativo, é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (nº 1, al. c).
É, desde há muito, entendimento pacífico, que as nulidades da decisão não incluem o erro de julgamento, seja de facto ou de direito (1): as nulidades típicas da sentença reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de atividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal (2); trata-se de vícios de formação ou atividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afetam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, (3) enquanto o erro de julgamento ( error in judicando) resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei e/ou consiste num desvio à realidade factual.
Como ensinava o Prof. José Alberto Reis, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1981, Vol. V, págs. 124, 125, “o magistrado comete erro de juízo ou de julgamento quando decide mal a questão que lhe é submetida, ou porque interpreta e aplica erradamente a lei, ou porque aprecia erradamente os factos; comete um erro de atividade quando, na elaboração da sentença, infringe as regras que disciplinam o exercício do seu poder jurisdicional. Os erros da primeira categoria são de carácter substancial: afetam o fundo ou o efeito da decisão; os segundos são de caráter formal: respeitam à forma ou ao modo como o juiz exerceu a sua atividade”.
E, como salienta o Prof. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª edição, 1985, pág. 686, perante norma do Código de Processo Civil de 1961 idêntica à atual, “o erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade com o direito aplicável, não se incluem entre as nulidades da sentença”.
As nulidades ditam a anulação da decisão por ser formalmente irregular, as ilegalidades
ditam a revogação da decisão por estar desconforme ao caso (decisão injusta ou destituída de mérito jurídico) (cf. neste sentido acórdão STJ citado de 17.10.2017, Procº nº 1204/12.9TVLSB.L1.S1).
Como se afirmou no acórdão do Supremo Tribunal de 19.11.2015, Procº nº 568/10.3TTVNG.P1.S1, na nulidade, ao contrário do erro de julgamento, em que se discorda do teor do conteúdo da própria decisão, invocam-se circunstâncias, legalmente previstas no artigo 615º do CPC, que ferem a própria decisão.
II.2.1 A nulidade do artigo 615º nº 1 alínea c) do Código de Processo Civil
De acordo com o disposto no artigo 615º, nº 1, al. c) do C.P.C. “é nula a sentença quando (…) os fundamentos estejam em oposição com a decisão (…)”.
A nulidade da sentença contemplada nesse preceito pressupõe um erro de raciocínio lógico
consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la. Ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto.
Também no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.1.2017, Procº nº 8838/12.0T8BVNG.P2.S1 se decidiu: (…) A causa de nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. c), ocorre quando “há um vício real de raciocínio do julgador em que a fundamentação aponta num sentido e a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direção diferente.
Nada disto é apontado ao acórdão, pelo que dado que as causas de nulidade da decisão elencadas no artigo 615º do Código de Processo Civil visam o erro na construção do silogismo judiciário, não estando subjacentes às mesmas quaisquer razões de fundo, a sua arguição não deve ser acolhida quando se sustente em mera discordância em relação ao decidido.
Donde que também por aqui, carece de razão o requerido.
SEGUE DELIBERAÇÃO.
DESATENDIDA A RECLAMAÇÃO.
Custas pelo Reclamante
Porto, 23 de maio, de 2024
Isoleta de Almeida Costa
Ernesto Nascimento
Carlos Portela