BURLA
CONDUTA ENGANOSA
NÃO PRONÚNCIA
Sumário

I. Não é de concluir pelo engano astuciosamente provocado a venda de um veículo usado com anomalias graves sem que o comprador o tenha experimentado, pois esta é a conduta normalmente esperada de um qualquer comprador.
II. O facto de o arguido não ter entregue os documentos da viatura aquando da celebração da compra e venda não aponta, só por si, indiciariamente para a ocorrência de burla.

Texto Integral

*


Acórdão da 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra



Processo n.º 276/22.2PBLMG.C1

 

              I - Relatório
   1.1. AA interpôs recurso do despacho de não pronúncia proferido pelo Juízo de Instrução Criminal de Viseu, o qual confirmou o arquivamento do inquérito pelo Ministério Público, redundando na não pronúncia do arguido BB pela prática de um crime de burla.
     
   1.2. No recurso em apreciação o recorrente apresentou as seguintes conclusões
1. O presente recurso tem como objeto o despacho de não pronúncia.
2. A questão que o recorrente coloca à apreciação deste Venerando Tribunal de recurso é apenas a de saber se se mostra incorreta a decisão de não pronunciar o arguido por não ter sido produzida prova nesta fase que infirmasse a versão dos factos refletida no Requerimento de abertura de instrução, designadamente:
15º O arguido, pelas 20 horas desse dia, compareceu na casa do ofendido para entregar o veículo acompanhado de CC. O arguido em modo apressado, colocou a viatura a trabalhar, que desligou poucos segundos depois. Exigiu que o pagamento fosse feito no imediato. Porque o denunciado apenas tinha conta no Banco 1... o pagamento do preço de € 2.320,00 foi efectuado na conta do referido CC, por ser titular de conta na mesma instituição bancária. Quando este confirmou a receção da transferência (vide doc n.º 3) o arguido entregou a viatura ao ofendido e a declaração de circulação junta com sob o doc n.º 1. O arguido não entregou os documentos da viatura;
16º Tal atuação visava, ainda, impedir que o ofendido viesse a tomar conhecimento da existência de ónus sobre a viatura;
17º Por não ter seguro da viatura, atendendo ao adiantar da hora e ao facto do dia seguinte ser domingo, apenas no dia 21 de novembro de 2022, o ofendido fez a primeira utilização da viatura. De imediato percebeu que a viatura não tinha as condições necessárias para circular. O motor começou a trabalhar com dificuldade e com igual dificuldade conseguiu ir até ao mecânico na vila de ....
17º (número repetido no original) A viatura nunca mais andou. Percebeu que a viatura tinha o sistema de embraiagem danificado. Constatou a existência de “manobra engenhosa” para ocultar defeito na bomba injetora. Foi instalada uma  vávlula, que retinha combustível suficiente para o motor da viatura trabalhar e/ou circular poucos kms, e desta forma impedir a deteção em tempo útil deste defeito. Ou dito de forma, como a bomba injetora do combustível não funciona, foi instalada uma válvula acoplada a um tubo que retém combustível. O motor permanece em funcionamento algum tempo pois utiliza esse combustível retido até que o mesmo seja consumido. Como a bomba injetora de combustível não funciona não há renovação de combustível, contudo dá a aparência de bom funcionamento enquanto não se consume o combustível que se encontra retiro pela referida válvula.
18º Todos os contactos com o arguido para resolver a situação vieram a revelar-se inúteis, porquanto o arguido utilizou manobras dilatórias. Prometeu concertar a viatura, depois prometeu que devolvia o dinheiro. Sem que verdadeiramente tivesse tais intenções.
3. Ou nos factos que o Tribunal a quo considerou que não se mostram suficientemente indiciados:
- o arguido instalou na viatura o referido sistema anti-retorno;
- o arguido causou prejuízos ao assistente, através de erro e engano sobre factos que astuciosamente provocou;
- o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
4. A conclusão do Meritíssimo Senhor Juiz de Instrução, surge, com todo o respeito por opinião mais esclarecida e no humilde entendimento do recorrente, como manifestamente irrazoável a qualquer observador comum, por contrariar abertamente não só a normalidade dos comportamentos humanos como também as regras da experiência comum. Vejamos,
5. Não é credível que o arguido tenha pouco conhecimento sobre o estado do veículo e que apenas publicitou a sua venda. Pela singela razão de que essa é a sua atividade: compra e venda de veículos.
6. Acresce, que é o arguido quem fixa o preço de venda da viatura, quer ao antigo proprietário para quem aponta a valorização de €1.600,00, ao assistente a quem indica o preço de venda de € 2.320,00. Para estipular o preço tem que analisar o veículo de modo a balizar o valor pelo qual poderá conseguir o valor da venda e o valor da aceitação do anterior proprietário.
7. O arguido obteve um benefício considerável e desproporcional no montante de € 640,00 (€ 2.320,00 - € 1680).   
8. Em manifesto contrataste com o antigo proprietário que dois meses antes adquire o veículo por cerca de € 3.000,00, na zona de Aveiro, e formaliza a venda por € 1.680,00, com um prejuízo aproximado de € 1.320,00.
9. Ainda, em manifesto contraste com o assistente que suportou um prejuízo de pelo menos € 1.570,00 (custo de € 2,320,00 – € 750,00 valor de revenda).
10. O arguido conduziu o veículo até casa do assistente. Não se crê que não possa ter percebido o estado do veículo. Pois que se ao arguido não lhe fosse possível (ou exigível) conhecer do estado do veículo nessa viagem, de nada também serviria ao assistente ter conduzido previamente a viatura.
11. No demais não indiciado, toda a sua conduta do arguido é orientada pela astúcia.
 12. Cria a aparência de ser gerente da empresa "A...”.
13. Entrega o veículo na casa do assistente apesar de ter estabelecimento aberto ao publico e de ali ter acordado a finalização do negócio.
14. Entrega o veículo á noite e em véspera de final da semana.
15. Utilização de contas ponte, a conta bancária da testemunha CC.
16. Aparenta querer soluções, mas facilmente se denota que o arguido nunca teve verdadeira intenção de resolver o quer que seja. A condição que coloca é impossível: a de ter o veículo a funcionar. Atento os defeitos que apresenta, e que são pacíficos, esta condição é impossível, e claramente demonstra que o arguido, joga com as palavras, cria a aparente ilusão de pretender resolver. Os atos do mesmo são dissonantes e contraditórios. A mensagens de fls 247 apontam nesse sentido
 “26/11/22, 18:12 - DD: Em que dia posso ir buscar o carro a andar para entregar o carro ao homem
26/11/22, 18:17 - DD: E também para você receber o seu Dinheiro
26/11/22, 19:30 - DD: Eu tenho o dinheiro para lhe dar como disse o dono já me mandou. Mas ele quer o carro conforme estava a andar.” (s.n.)
17. Todos estes indícios são coincidentes, e permitem com o auxílio de regras da experiência, em cumprimento do previsto no artigo 127.º do CPP, uma ilação da qual se infere que tais factos (pontos 15º, 16º, 17º, 17.º e 18º do RAI ou em alternativa os que o Tribunal a quo considerou que não se mostram suficientemente indiciados: - o arguido instalou na viatura o referido sistema anti-retorno; - o arguido causou prejuízos ao assistente, através de erro e engano sobre factos que astuciosamente provocou; - o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.) deverão ser dados como suficientemente indiciados.
18. Por outro lado, crê-se ter relevância o facto de que o depoimento da testemunha CC que por ter sido rejeitado para efeitos de reinquirição, impediu o uso do direito ao contraditório, e por essa via ficaram, inúmeras as questões por responder. Porque se prontificou esta testemunha a acompanhar o arguido? Porque a sua conta serviu de ponte? É sócio como pareceu resultar do depoimento da testemunha EE. A prova tem de ser toda avaliada de acordo com os mesmos critérios. A avaliação do seu valor probatório não conduz, por isso, ao mesmo grau de certeza que se adquire no julgamento.
19. O depoimento da testemunha EE, com todo o respeito ao tribunal, está longe de ser claro e escorreito. Contem contradições internas, expressa que padece de graves dificuldades económicas, precisa de recorrer ao financiamento para a aquisição do carro da mulher. A normalidade das coisas não aponta para a credibilidade da testemunha acusar dificuldades financeiras para depois fazer um negócio desastroso. Vejamos, compra por €3.000,00 (agosto 2022). Passados 2 meses aceita vender pelo valor de €1.600,00 menos valia de €1.400,00. Mas se o carro, enquanto esteve na posse do filho a circular normalmente em largas centenas de kms, como se justifica esta depreciação repentina? – cr aponta para maior responsabilidade do proprietário anterior
20. Não é esclarecedor sobre o valor que acertou com o vendedor (arguido) pelo serviço que este prestou. Não é claro na forma como se estabelece ou decide o preço ou o intervalo do preço de venda.
21. Não se percebe se a quantia que recebeu já estava deduzida da comissão do arguido. Esta não é a forma de atuação normal na compra e venda de veículos usados. As partes acordam as comissões, as vendas através de intermediários são mais elevadas que as entre os particulares.
22. O negócio desta testemunha com o arguido é todo ele estranho.
23. Encerrada a instrução, o juiz deve proferir despacho de pronúncia quando, da prova recolhida no inquérito e das diligências instrutórias, resultarem indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança.
24. Essa suficiência indiciária é, por força do art. 283º, nº 2 ex vi do art. 308º, nº 2, do CPP, aferida com base num juízo de probabilidade sobre a verificação dos elementos objetivos dos tipos de crime.
25. Crê-se existir, nos presentes autos, prova suficiente para levar o recorrido a julgamento, onde deveria ser julgado pela prática do crime de burla, o tribunal a quo proferiu despacho de não pronúncia, violando assim, entre outros, os arts. 307º e 308º, do CPP.
26. Pelo que, ao decidir pela insuficiência de indícios do arguido ter praticado o crime que lhe é imputado no Requerimento de abertura de instrução, violou o MMº Juiz as regras da prova documental previstas no artº 169º do CPP, as regras da experiência do artigo 127.º do CPP, bem como as regras do artº 308º nº1 e nº2 do mesmo diploma legal, porquanto com a prova indicada resulta uma possibilidade razoável (por suficientes indícios) de ao arguido vir a ser condenado em julgamento.
27. Consubstanciando o erro notório na apreciação da prova, vício a que se refere a alínea c) do n. 2 do artigo 410.º do CPP

     1.3. Notificado do recurso, o Ministério Público veio responder, concluindo:

1.º - Numa das suas mensagens o arguido refere «eu não ando aqui para me chatear com carros que não são meus » e « nem tou para me chatear com o cliente por causa de um carro que ele sempre andou » - cfr. fls. 247 e 48 ;

2.º - O que evidencia que efectivamente o arguido limitou-se a ser um simples intermediário, sem um conhecimento aprofundado do estado mecânico do veículo, tanto mais que só depois de ter recebido do assistente o preço da venda é que entregou ao anterior proprietário do veículo a parte do preço que cabia a este;

3.º - O arguido, face à resolução do negócio celebrado com o assistente , contactou efectivamente o anterior proprietário da viatura para este devolver o dinheiro correspondente à quota parte deste no negócio, este devolveu o dinheiro , o arguido voltou a transferir tal dinheiro para o anterior dono da viatura ;

4.º - Perguntamos : se o arguido quisesse efectivamente burlar o assistente teria solicitando ao anterior dono da viatura a devolução do dinheiro? ;

5.º - O arguido devolveu o dinheiro ao anterior dono da viatura uma vez que « Eu não ando aqui para me chatear com carros que não são meus » e « nem tou para me chatear com o cliente por causa de um carro que ele sempre andou »;

6.º - Se em termos de responsabilidade civil a conduta do arguido é questionável, da mesma não resultará responsabilidade criminal;

7.º - Mal se concebe que, sabedor das avarias mecânicas e adaptações do veículo, o arguido se arriscasse a conduzir tal veículo desde ... ou ... até à residência do assistente, arriscando – se a ficar pelo caminho ou a que o assistente quisesse experimentar o veículo no momento da entrega – o que seria natural;

8.º - E mal se concebe que relativamente a um negócio de que seria simples comissionista – o grosso do preço seria recebido pelo anterior dono da viatura - , analisando a relação custo/benefício, o arguido se arriscasse a introduzir no carro em causa a válvula anti – retorno, arriscando – se a , no seu vocabulário, ter “ chatices ”, a processos e a publicidade indesejada;

9.º - Mal se concebe que apenas em dois meses o vendedor formal aceitasse vender por €1.680,00 o que lhe havia custado supostamente €3000,00 e que tão depressa aceitasse vender o veículo, em vez de ficar com o mesmo para a esposa;

10.º - Algumas das deficiências do veículo eram visíveis a olho nú, por qualquer condutor mediano, e podem ser explicadas pela idade do veículo;

11.º - Quanto à alegada colocação de uma bomba anti – retorno, não existem indícios suficientes de quem tenha tido o domínio de tal facto ;

12.º - Face ao exposto, e considerando a fundamentação da douta decisão judicial de não pronúncia, e salvo melhor parecer, não nos merece a mesma reparo, devendo ser a mesma mantida.

    

       1.4. No parecer a que alude o art. 416º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o Exm.º Procurador Geral Adjunto concordou com o Ministério Público junto ao tribunal a quo.


***

     II -  Fundamentação de Facto

     (transcrição parcial da decisão sob recurso)

(…)

I - Relatório

No âmbito dos presentes autos, findo o inquérito instaurado contra o denunciado BB, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento nos termos do disposto no art. 277.º n.º 2 do Código de Processo Penal (fls. 87-90).

Inconformado com a decisão proferida, veio o assistente AA requerer a abertura da instrução (fls. 98-113), onde pugna pela pronúncia do arguido pela prática do seguinte ilícito criminal:

um crime de burla, p. e p. pelo art. 217.º n.º 1 do Código Penal.


*

(…)


II - Fundamentação

A. Considerações gerais

A instrução é uma fase processual com carácter facultativo e que visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento – art. 286.º do Código de Processo Penal.

Se até ao encerramento de instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos ou, caso contrário, profere despacho de não pronúncia, na certeza de que se consideram suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança – cfr. os arts. 283.º n.º 2 e 308.º n.os 1 e 2 do Código de Processo Penal.

O juízo a formular caracteriza-se então por ser, simultaneamente, de ordem retrospectiva (um juízo a fazer da prova realizada em torno de factos passados), bem como de ordem prospectiva (suposição acerca da produção de prova a realizar em julgamento).

O tribunal não pretende ser fastidioso na análise do que por “possibilidade razoável” se deverá entender, porque já muito se escreveu na nossa doutrina e jurisprudência sobre o tema, não deixando contudo de tecer umas breves considerações, sintetizando as três orientações que se podem respigar consoante o grau de exigência a formular:

há quem entenda que o arguido deve ser levado a julgamento quando há a possibilidade de o mesmo ser condenado, bastando-se assim com a constatação de que é possível a simples ou a mera possibilidade de o arguido ser condenado.

uma outra medida de indícios suficientes é aquela que se estriba na fórmula da possibilidade preponderante ou dominante da condenação, quase que assente num modelo estatístico, de que é mais provável a condenação do que a absolvição.

por último, subsiste a tese, mais exigente, de que só deverá ser proferido despacho de pronúncia contra o arguido, quando haja uma forte e séria possibilidade de a condenação do mesmo vir a ocorrer em fase de julgamento.

A posição que recolhe os favores da esmagadora maioria é precisamente esta última, falando-se, a propósito, em “possibilidade particularmente qualificada” ou de “probabilidade elevada” de condenação, ou ainda em “probabilidade mais forte” de futura condenação do que de absolvição do acusado ou pronunciado.

Nesta linha de orientação, posiciona-se Figueiredo Dias, que definiu a suficiência indiciária ou probatória quando, já em face dos indícios recolhidos em sede de inquérito, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição. (in Direito Processual Penal, I, 1984, pág. 133)

E também Carlos Adérito Teixeira se pronunciou no mesmo sentido quando defende que apenas “o critério da possibilidade particularmente qualificada ou de possibilidade elevada de condenação, a integrar o segmento legal da “possibilidade razoável”, responde convenientemente às exigências do processo equitativo, da estrutura acusatória, da legalidade processual e do Estado de Direito Democrático, e que é o que melhor se compatibiliza com a tutela da confiança do arguido, com a presunção de inocência de que ele beneficia e com o in dubio pro reo.” (in Indícios suficientes: parâmetro de racionalidade e instância de legitimação concreta do poder-dever de acusar, Revista do CEJ, n.º 1, págs. 151 a 190)

Na verdade, crê-se que o juízo ou a convicção a estabelecer na fase da prolação da acusação ou do despacho de pronúncia, há-de ser (quase) equivalente ao de julgamento, quer ao nível da apreciação da fenomenologia, quer na objectividade da indagação fáctica e na apreciação do material probatório, quer ainda na conformação desse material probatório às normas atinentes com as proibições de valoração de prova e na racionalidade lógica em que assenta a apreciação dos elementos probatórios coligidos. A grande diferença de convicção, no momento do inquérito/instrução ou no momento do julgamento, reside, precisamente, no contexto ou na ambiência em que essas provas se produzem, dado que, em audiência de discussão e julgamento, esta fase é marcada pelos princípios da concentração e, sobretudo, pelo princípio do contraditório, enquanto acto de defesa, cuja verificação em inquérito/instrução apenas se descortina em determinadas situações – esta opção surge reforçada pelo indelével carácter criminógeno que representa a indevida sujeição do arguido à fase de julgamento, o que, por imperativos de justiça, deve ser evitado. (cfr., neste sentido e entre muitos outros, o Ac. da RP, de 20/1/2010, proc. n.º 25/08.8TARSD.P1, dgsi.pt)

Nesta sequência, dir-se-á que só indícios necessariamente fortes ou de elevada intensidade são suficientes para, findo o inquérito ou a instrução, ser deduzida acusação ou proferido despacho de pronúncia – os indícios podem ser reputados suficientes quando das diligências efectuadas durante o inquérito/instrução resultarem vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e o arguido é responsável por ele.

Ou seja e em jeito de resumo, os indícios serão suficientes quando os elementos de facto trazidos ao processo pelos meios probatórios, livremente analisados e apreciados, criam a convicção de que, a manterem-se em julgamento, terão probabilidades sérias de conduzir a uma condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado, na medida em que, logicamente relacionados e conjugados, formam um todo persuasivo da culpabilidade do arguido.

B. O tipo legal de crime

O assistente pretende ver o arguido pronunciado por um crime de burla.

Preceitua o art. 217.º n.º 1 do Código Penal que quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.

Por sua vez, dispõe o art. 218.º n.º 1 do mesmo diploma que quem praticar o facto previsto no n.º 1 do artigo anterior é punido, se o prejuízo patrimonial for de valor elevado, com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias (o valor elevado é aquele que excede 50UC – ver a al. a) do art. 202.º, o que significa que, para o valor da UC de €102,00, temos €5.100,01).

Assim, são elementos constitutivos deste tipo de ilícito:

Uso de erro ou engano, astuciosamente provocado, sobre factos.

Determinação de outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial.

Intenção de obter, para si ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo.

Existência de prejuízo patrimonial.

O bem jurídico protegido com esta incriminação é, nas palavras de Almeida Costa, “o património, globalmente considerado”, com o que se afasta das concepções que, de forma isolada ou em conjunto com o património, reconduzem o bem jurídico da burla à lealdade, à transparência, boa-fé ou verdade nas transacções ou na confiança da comunidade nessa mesma lealdade. (in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, pág. 275)

Não obstante as dificuldades que se suscitam na formulação deste tipo de crime, particularmente no que concerne aos meios de execução, indiscutível é a necessidade da existência por parte da vítima de erro ou engano sobre determinados factos.

Por erro, deve entender-se a falsa ou nenhuma representação da realidade concreta, que funcione como vício do consentimento do ofendido. Ao seu lado, e como meio de execução da burla, coloca-se também o engano que equivale a uma simples mentira (neste sentido, Marques Borges, in Crimes Contra o Património em Geral, pág. 22).

Todavia, e ao lado de um dolo já de per si específico, em que se exige a intenção de enriquecimento ilegítimo, é essencial que o erro ou o engano tenham sido astuciosamente provocados pelo agente da infracção através da utilização de um meio engenhoso, afastando-se assim a punibilidade a título de negligência.

C. Os indícios

Após análise do despacho final proferido pelo Ministério Público (fls. 87-90), o tribunal isola a seguinte passagem que resume o motivo pelo qual se decidiu pelo arquivamento dos autos.

Na verdade e para o que agora nos interessa, ali se deixou consignado o seguinte:

“No caso concreto, haverá de concluir que, a provar-se a existência de algum erro ou engano provocado pelo arguido, sempre nos encontraríamos perante um erro meramente civil, insuscetível de originar responsabilidade criminal. Com efeito, parece evidente que in casu o contrato celebrado entre denunciante e arguido não encerrou em si mesmo nenhum ardil ou artifício indutor de um aproveitamento da vontade de negociar e do qual pudesse advir um proveito económico ilegítimo para o arguido.

Da prova produzida não resulta evidenciado qualquer estratagema utilizado pelo arguido que levou ao engano do denunciante e que o mesmo apenas celebrou o negócio em consequência desse engano.

Verifica-se, pois, que poderá estar em causa uma situação de responsabilidade civil contratual, a resolver, eventualmente, em sede cível e não em sede de ação penal.”

O tribunal, antecipando conclusões, dirá que a posição sustentada pelo Ministério Público é correta, mas a justificação é mais complexa do que aparenta.

Na verdade, “a existência de algum erro ou engano provocado pelo arguido” poderia efetivamente redundar em responsabilidade criminal, tanto bastando demonstrar que os defeitos apresentados pelo veículo tivessem sido dolosamente escondidos pelo arguido, com o vincado propósito, bem se vê, de vender um veículo defeituoso como se o mesmo estivesse em perfeitas condições de funcionamento. E esta ideia é particularmente válida no caso do sistema de não retorno da linha de combustível, caso tivesse sido instalado como “manobra engenhosa” para circular alguns quilómetros e esconder o real estado da viatura, designadamente da sua bomba injetora.

Ou seja, quem ler o RAI, especificamente os seus pontos 15º, 16º, 17º e novamente 17º, rapidamente conclui que, a provar-se o que o assistente diz, estaríamos de facto perante um verdadeiro engodo ou estratagema, astuciosamente criado pelo arguido para enganar o assistente, provocando-lhe um claro prejuízo patrimonial.

Todavia, os elementos carreados para o processo, especialmente no decurso da instrução, apontam para a inexistência deste ardil.

O assistente, nas declarações que decidiu prestar, acabou por reiterar o que já tinha dito no inquérito, voltando a relatar o circunstancialismo que rodeou a celebração do negócio, dizendo-se vítima de uma cabala para o prejudicar. O assistente esclareceu que o carro foi rebocado até à oficina, ainda tentou negociar com o arguido a aquisição de uma outra viatura, mas o certo é que nunca o arguido se prontificou a receber de volta a viatura, porque argumentava que o carro deveria ser colocado no sítio onde tinha sido deixado, e em estado de circulação, o que não era possível. O assistente acrescenta que, entretanto, como o problema não se resolvia e para evitar o avolumar de mais prejuízos, acabou por vender o veículo a uma outra pessoa pelo valor de €750,00.

A testemunha FF testemunhou o estado de grande aborrecimento vivenciado pelo assistente, porque tinha comprado um veículo que não funcionava; levaram o carro de reboque até ao concessionário da Mercedes, que confirmou a existência de vários defeitos, entre os quais a válvula de não retorno de combustível.

O tribunal não pode aqui deixar de manifestar alguma perplexidade, pelo facto de o assistente aceitar comprar uma viatura sem nunca ter conduzido a mesma. Seja como for, sentindo necessidade de obter mais informações, o tribunal solicitou a junção das mensagens trocadas entre o assistente e o arguido, através das quais facilmente se percebe que o arguido negociou a venda da viatura, que pertencia a uma outra pessoa; começou por tentar resolver o assunto, prontificando-se a devolver o dinheiro, mas depois acabou por se recusar a desfazer o negócio, uma vez que o veículo estava num outro local.

Neste estado de averiguações, dir-se-á que o estado geral da carroçaria, da suspensão ou algumas infiltrações de água no habitáculo podem facilmente ser explicadas com os anos da viatura, tudo dependendo do preço das coisas e do que ficou negociado entre as partes. Mas não é de todo normal constatar-se que não era possível engrenar as mudanças ou que o carro tivesse instalado o referido sistema anti-retorno de combustível, porque o veículo foi levado pelo arguido a circular.

E assim, numa derradeira tentativa de compreender o motivo pelo qual a viatura deixou de funcionar de um momento para o outro, o tribunal chamou então a depor o vendedor “formal” da viatura.

A testemunha EE, que nem sabia o motivo pelo qual tinha sido chamada ao tribunal, prestou declarações claras e escorreitas. Afirmou que adquiriu o carro na zona de Santa Maria da Feira para o seu filho, por cerca de €3.000,00, por altura de agosto de 2022. Já depois, passos alguns 2 meses, acordou com o arguido a aquisição de um outro veículo para a sua esposa, comprometendo-se aquele a arranjar um comprador para aquele veículo.

O veículo foi deixado ao arguido que, algum tempo depois, lhe transmitiu que já tinha um comprador, pelo preço de €1.680,00, o que ele aceitou.

O tribunal, neste quadro de acontecimentos, ainda equacionou a possibilidade de o arguido ter introduzido alterações no veículo, sem o conhecimento e contra a vontade do seu proprietário, mas tal não se confirmou.

A testemunha prosseguiu o seu relato, dizendo que, enquanto o veículo esteve na posse do seu filho, ainda lhe fez largas centenas de quilómetros, e foi uma vez à oficina para mudar o óleo, o filtro e as quatro velas de ignição. O veículo sempre circulou normalmente, rejeitando desta forma a existência dos defeitos observados pelo concessionário da Mercedes.

O dinheiro foi depositado na sua conta e ele assinou a declaração de venda.

Já depois, talvez uma semana depois, foi contactado pelo arguido, a dizer que o negócio tinha ficado sem efeito, que iria tentar arranjar outro comprador, e ele voltou a depositar o dinheiro na conta do arguido; a verdade é que, decorridos mais alguns dias, não sabe explicar muito bem o que se passou, mas o arguido voltou a transferir o dinheiro para a sua conta (no total, tudo se passou nalguns 15 dias).

Neste contexto, bem se vê que o arguido pouco conhecimento tem sobre o veículo, decidindo apenas publicitar a sua venda, porque logo anteviu uma oportunidade de ganhar mais algum dinheiro; o mesmo é dizer que os elementos probatórios recolhidos não permitem concluir, mesmo na fase indiciária em que nos encontramos, que o referido sistema anti-retorno tenha sido instalado na viatura pelo arguido, e somente com o objetivo de fazer circular o carro até casa do assistente, fazendo-o acreditar que tudo estava em boas condições.

Ou seja, o que verdadeiramente se discutirá é um hipotético cumprimento defeituoso de um contrato, que deverá ser dirimido nos meios cíveis, sendo porventura demandado, não só o vendedor, como o aqui arguido a título individual, se entretanto as partes não lograrem alcançar uma plataforma de entendimento, sendo que, em sede criminal, não existe suficiente prova que nos permita concluir que o arguido, por si ou mancomunado com o anterior proprietário, usou de uma qualquer estratégia ou artimanha para ludibriar o assistente.

*

Aqui chegados, o tribunal não pode ficar indiferente ao comportamento do arguido.

Na verdade, o que fica dito não significa que a atitude do arguido não mereça censura, porque está algo distante de se pautar por padrões de lisura. Com efeito, depois de saber que o veículo apresentou imediatamente problemas de funcionamento, dever-se-ia ter prontificado para recolher a viatura na oficina, para onde tinha sido rebocado, e não exigir ao assistente que colocasse o carro no sítio onde o deixou e “a andar” (ver troca de mensagens de fls. 247) – pois se o carro estivesse a andar normalmente, seguramente não existiriam reclamações e nem hoje estaríamos a discutir este assunto!

E é bom recordar que o arguido, servindo de intermediário, ganhou €640,00 com o negócio (2320–1680=640), o que corresponde a cerca de 38% do valor recebido pelo próprio dono da viatura…

O arguido, pelo que é dado a perceber, dedica-se à atividade do ramo automóvel de compra e venda de veículos usados, apresentando-se aos clientes, designadamente no Facebook, como gerente da empresa “A...”, afirmando inclusivamente que tem um capital social de 5.000 euros e que está registada na Conservatória ..., dando desta forma a entender que estamos na presença de uma verdadeira sociedade.

Ora, a dita empresa “A...” simplesmente não existe.

Neste contexto, o tribunal, olhando para a forma como o arguido fez este negócio, não poderá deixar de participar o caso à Autoridade Tributária para os efeitos tidos por pertinentes, designadamente para aferir da legalidade da sua atividade e cumprimento das respetivas obrigações fiscais.

*

O tribunal, em resumo e para o que nos interessa, pode, portanto, concluir que se mostram indiciados os seguintes factos:

O assistente tomou conhecimento da página do Facebook que o arguido utiliza para publicitar a sua atividade, deslocando-se de seguida às suas instalações, em ...;

Nesse seguimento, acordou com o arguido a aquisição da viatura, marca Mercedes, modelo C220, com a matrícula ..-..-LU, pelo preço de €2.320,00;

No dia 19 de novembro de 2022, o arguido deslocou-se a casa do assistente para entregar a viatura, acompanhado de CC;

O assistente procedeu à transferência bancária da quantia de €2.320,00 para a conta Banco 1... do referido CC;

Após, o arguido entregou a viatura ao assistente, bem como a “declaração de circulação” junta a fls. 12vº;

Na segunda-feira seguida, dia 21 de novembro de 2022, o assistente fez a primeira utilização da viatura, apercebendo-se que o motor trabalhava com dificuldade;

A viatura foi levada até à oficina;

Após diagnóstico, a “Sociedade Comercial C. Santos, SA”, concessionária da marca Mercedes, reportou a existência das seguintes anomalias:

instalação elétrica do motor com vestígios de água proveniente de infiltrações pelo mau estado da carroçaria e possivelmente borrachas de vedação gastas;

várias fugas de líquidos no compartimento do motor (óleo, combustível);

sistema de suspensão em mau estado;

sistema de embraiagem danificado, não sendo possível engrenar mudanças;

soalho da viatura com bastante corrosão;

montagem à posteriori de sistema anti-retorno na linha de combustível, que aparentemente faz retorno pela bomba de combustível.

E não se mostram suficientemente indiciados os seguintes factos:

o arguido instalou na viatura o referido sistema anti-retorno;

o arguido causou prejuízos ao assistente, através de erro e engano sobre factos que astuciosamente provocou;

o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Por tudo, forçoso é concluir que não existem suficientes indícios da verificação do crime de burla, pelo que será proferido despacho de não pronúncia.

III

 Decisão Instrutória

Pelo exposto, o tribunal decide não pronunciar o arguido BB pela prática do crime de burla que o assistente lhes imputava.


(…)

 

     III -  Fundamentação de Direito

     Apreciando e decidindo

     a) O objecto do recurso encontra-se limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, sem prejuízo da necessidade de conhecer oficiosamente a eventual ocorrência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410º do Código de Processo Penal (jurisprudência fixada pelo Acórdão do STJ n.º 7/95, publicado no DR, I Série-A, de 28.12.1995).

     b) A única questão a apreciar neste recurso, face ao teor das conclusões, prendem-se em saber se  - ao contrário do decidido pelo despacho recorrido – existem indícios da prática do crime de burla.

      c) Iniciando a apreciação do recurso, recorde-se que, ainda na fase de inquérito, foi proferido despacho de arquivamento do mesmo, nos termos do artigo 277.º, n.º 2, do C.P.P.

       O recorrente inconformado com o referido despacho de arquivamento, veio requerer a abertura de instrução e a consequente pronúncia e submissão do arguido BB a julgamento, defendendo que estavam reunidos indícios suficientes para a pronúncia do arguido pela prática de um crime de burla, previsto e punido pelo art.º 217.º, n.º 1 , do Cód. Penal, e de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.º1, também do Cód. Penal.

       Por despacho judicial de 9-6-2023, não foi admitida a instrução quanto ao crime de falsificação, e em 29-11-2023 foi proferido despacho de não pronúncia, incidindo sobre este despacho judicial o presente recurso.

       d)    Iniciando a apreciação do recurso, recorde-se que estatui o art . 217.do Cód. Penal que «1. Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, é punido com pena de prisão ate 3 anos ou com pena de multa.

       São, assim, elementos do crime de burla:

       Intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo;

       Por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou;

       Determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outrem, prejuízo patrimonial.

       e) Como se escreveu no Ac. do S.T.J. de 03-02-2005, processo n.º 04P4745, que aqui seguimos de perto, o crime de burla apresenta-se como a forma evoluída de captação do alheio em que o agente se serve do erro e do engano para que incauteladamente a vítima se deixe espoliar (Ac. de 19-12-1991, BMJ 412-234).

       Os elementos que preenchem e informam a tipicidade do crime de burla são o uso de erro ou engano sobre os factos, astuciosamente provocados para determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou a terceiro, prejuízo patrimonial, com intenção de obter para o agente ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo (Ac. de 11-10-2001, proc. n.º 1295/01-5, Acs STJ IX, 3, 192).

       Na 1.ª Comissão Revisora do C. Penal referiu «ao lado do erro coloca-se o engano. Mas também não basta qualquer erro; é necessário que ele tenha sido provocado ou aproveitado astuciosamente» (BMJ 287-41)

       No Comentário Conimbricense (A. Almeida Costa, II, 301) referem-se a propósito deste elemento três modalidades: «quando o agente provoca o erro de outrem, descrevendo-lhe, por palavras ou declarações expressas (sob a forma oral ou escrita), uma falsa representação da realidade. A segunda observa-se na hipótese de o erro ser ocasionado, não expressis verbis, mas através de actos concludentes, i.e., de condutas que não consubstanciam, em si mesmas, qualquer declaração, mas, a um critério objectivo - a saber, de acordo com as regras da experiência e os parâmetros ético-sociais vigentes no sector da actividade -, mostram-se adequados a criar uma falsa convicção sobre certo facto passado, presente ou futuro. Em terceiro lugar, refere-se a burla por omissão: ao contrário do que sucede nas situações anteriores, o agente não provoca, agora, o engano do sujeito passivo, limitando-se a aproveitar o estado de erro em que ele já se encontra»

       Ao lado do erro como meio de execução da burla coloca-se também o engano. É necessário que o erro ou engano tenham sido provocados astuciosamente pelo agente da infracção; isto é, usando de um meio engenhoso para se enganar ou induzir em erro. Trata-se de uma exigência que acresce a um dolo que já de per si é específico, pois que se exige a intenção de enriquecimento ilegítimo (Ac. do STJ de 02-07-1992, proc. n.º 42779).

       Por fim,  importa traçar uma a linha divisória entre a fraude, constitutiva da burla, e o simples ilícito civil, uma vez que dolo in contrahendo cível determinante da nulidade do contrato se configura em termos muito idênticos ao engano constitutivo da burla, inclusive quanto à eficácia causal para produzir e provocar o acto dispositivo, deve ser encontrada em diversos índices indicados pela Doutrina e pela Jurisprudência, tendo-se presente que o dolo in contrahendo é facilmente criminalizável desde que concorram os demais elementos estruturais do crime de burla.

       f) Assim, segundo a nossa doutrina e jurisprudência estaremos perante fraude, ou (ilícito criminal):

- quando há propósito ab initio do agente de não prestar o equivalente económico:

- quando se verifica dano social e não puramente individual, com violação do mínimo ético e um perigo social, mediato ou indirecto;

- quando se verifica um violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, exige como única sanção adequada a pena;

-quando há fraude capaz de iludir o diligente pai de família, evidente perversidade e impostura, má fé, mise-en-scène para iludir;

- quando há uma impossibilidade de se reparar o dano;

- quando há intuito de um lucro ilícito e não do lucro do negócio.

       g) Volvendo então ao caso concreto, constata-se que o que separa desde logo a posição do juiz de instrução criminal relativamente à do assistente ora recorrente, é que o recorrente consegue detectar fortes indícios de uma conduta enganosa ou astuciosa por parte do arguido que tenha provocado o erro do assistente, o mesmo não sucedendo por parte do tribunal a quo.

        Isto é, o tribunal a quo aceita implicitamente a possibilidade de o assistente ter incorrido em erro quanto às características do veículo, podendo supor-se que não teria feito o negócio (ou não o teria feito por aquele preço) se conhecesse o seu estado de funcionamento. Mas já não concorda com o assistente, quando este defende, no seu requerimento de abertura de instrução, que esse mesmo erro proveio de um engano astuciosamente provocado pelo parte do arguido.

       Ora, o único facto que potencialmente poderia configurar uma atitude enganosa por parte do arguido, seria poder concluir-se pela existência de indícios de que o arguido colocou a tal válvula anti-retorno no veículo, que permitiria dissimular o defeito na bomba injectora de combustível (admitindo agora que tal, uma vez que – como salienta o Ministério Público, nem sequer há prova segura de que tal tenha ocorrido). Nessas circunstâncias, sim, poderia afirmar-se que o arguido tinha dolosamente recorrido a um artifício que permitiria esconder que o veículo adquirido pelo assistente padecia de um grave problema mecânico, que impedia de forma determinante a sua utilização normal para o fim a que se destina: a possibilidade de circulação do mesmo.

        h) Todavia, o que concluiu a decisão recorrida, é que não foi recolhida prova que aponte para que o arguido tivesse colocado a referida válvula anti-retorno no veículo, ou tivesse conhecimento do mesmo.

       Vejamos; antes de mais, não foi efectivamente recolhida no inquérito, ou na fase de instrução, prova direta desse conhecimento ou prática por parte do arguido, o que o recorrente aceita. O que o recorrente pretende é que se pode retirar a utilização desse artifício fraudulento, por parte do arguido, de prova indirecta, designadamente das circunstâncias que rodearam o negócio.

          Ora, quanto à colocação da referida válvula por parte do arguido, tal exigiria a prova do domínio do facto; se se constatasse que o veículo pertencia ao arguido, ou que pelo menos o tivesse mantido durante um tempo significativo na sua disponibilidade, poderia se inferir – dentro do que nos dizem os dados da experiência – que tinha conhecimento da instalação daquele dispositivo fraudulento. Mas não foi isso que se apurou; pelo contrário, o que resultou do inquérito e dos actos praticados na instrução, foi que arguido serviu apenas de intermediário entre o anterior proprietário do veículo e o assistente. Para tal apontam as mensagens telefónicas escritas pelo arguido, nas quais afirma «eu não ando aqui para me chatear com carros que não são meus » e « nem tou para me chatear com o cliente por causa de um carro que ele sempre andou » - cfr. fls. 247 e 48 .

       i) Mais, para que essa suposta atitude no sentido de enganar ardilosamente o assistente pudesse surtir algum efeito, seria necessário que o arguido de antemão soubesse que o assistente não iria experimentar o carro, uma vez que – como afirma o assistente no art 17º do requerimento de abertura da instrução – logo após a primeira utilização” De imediato percebeu que a viatura não tinha as condições necessárias para circular”.  Note-se neste campo, que normalmente quando se adquire um veículo automóvel em segunda mão, é perfeitamente normal (e fortemente aconselhável) que o adquirente peça para experimentar previamente o mesmo durante um tempo mínimo antes de tomar a decisão definitiva no sentido da sua aquisição. Ora se o arguido tivesse de antemão tomado a decisão de enganar ardilosamente o assistente – designadamente colocando o referido dispositivo no veículo  - tinha que contar com a atitude muito pouco vulgar do assistente nos sentido de não experimentar o veículo antes de celebrar o negócio; efectivamente o assistente celebrou o negócio de compra e venda, pagando o respectivo preço, sem experimentar  o veículo (apenas o fez passados 2 dias), mas isso não era expectável face ao normal comportamento de um adquirente de um veículo usado. E essa utilização ou experimentação prévia à celebração do negócio, permitiria imediatamente detectar os graves problemas mecânicos assinalados pelo assistente (incluindo os problemas com a embraiagem que o assistente afirmou que detectou de imediato, logo que iniciou a condução do veículo).

       j) E surge ainda como pertinente a argumentação deduzida pelo Ministério Público na resposta ao recurso em apreciação:  é pouco plausível que relativamente a um negócio de que seria simples comissionista (o grosso do preço seria, e foi, recebido pelo anterior dono da viatura), analisando a relação custo/benefício, o arguido se expusesse a introduzir no carro em causa a válvula anti-retorno, arriscando-se se a, no seu vocabulário, ter “chatices”, processos-crime e publicidade indesejada.

        j) Por outro lado, a conduta do arguido posterior ao negócio também não revela - ainda que indiciariamente - uma atitude de alguém que tenha astuciosamente enganado o adquirente do veículo. Em condições normais, o burlão após lograr obter a vantagem patrimonial decorrente do negócio, desaparece de forma a poder apropriar-se do dinheiro assim obtido. No caso, o arguido não cortou os contactos com o assistente; manteve o contacto com o mesmo, e até declarou a este aceitar a devolução do veículo, desde que a mesma ocorresse no lugar onde tinha deixado o veículo (cfr. teor das mensagens trocadas entre ambos, às quais o recorrente se refere nas suas conclusões). E essa disposição do arguido – ao menos num primeiro momento – no sentido de resolver por acordo o negócio com o assistente, devolvendo-lhe o dinheiro em troca da entrega do veículo, também resulta do depoimento do depoimento da testemunha EE (anterior proprietário), uma vez que declarou que cerca de uma semana depois de ter recebido o dinheiro por parte do arguido (que seria parte do que tinha sido pago pelo assistente), foi contactado pelo arguido, a dizer que o negócio tinha ficado sem efeito (aparentemente confirmando que  arguido se dispôs a devolver o dinheiro ao assistente), que iria tentar arranjar outro comprador (atitude incoerente com quem acabou de burlar um terceiro intencionalmente). E então voltou a depositar o dinheiro na conta do arguido, e este decorridos mais alguns dias voltou a transferir o dinheiro para a conta da mesma testemunha, não colocando em causa o assistente que tal tenha sucedido. Tudo isto revela uma dinâmica pouco compatível com o que normalmente sucede nos casos de burla, em que o agente da mesma, após enganar a vítima, não faz qualquer esforço para reparar o mal intencionalmente feito, tentando consolidar rapidamente a transferência patrimonial fraudulentamente obtida, tanto junto do comprador “enganado”, como do vendedor (apropriando-se igualmente do dinheiro que este entretanto tinha devolvido, e não entregando-o novamente de volta).  

        k) E quanto aos outros indícios apontados pelo recorrente, designadamente a pressa, o momento e a forma como foi feito o negócio, são também compatíveis com a vontade de um comerciante que perspectiva que irá conseguir fazer um bom negócio (o que se confirma atento o lucro que retirou entre o preço de aquisição e de venda). Se esses actos são coerentes com o comportamento típico do burlão, também o são com o do comerciante ou intermediário “normais” (especialmente considerando os parâmetros ético-sociais vigentes no sector da compra e venda de veículos automóveis usados), que sabendo que irá fazer um negócio vantajoso, tenta efectiva-lo o mais depressa possível, de modo a que o futuro comprador não se arrependa, ou encontre uma alternativa mais favorável no mercado.

       Aliás, para que estes actos pudessem indiciar de forma mais concludente que o arguido tinha agido com o propósito fraudulento, seria necessário que se pudesse concluir que foi o arguido quem impôs que a venda decorresse a um sábado à noite, em casa do assistente, o que não é afirmado por este, e que -  de todo o modo - não evitaria que o assistente não experimentasse nesse momento o veículo, como seria normal. E note-se que é o próprio assistente quem afirma que logo que experimentou o veículo (dois dias após o pagamento do preço) detectou problemas graves no funcionamento do veículo (designadamente na embraiagem), que aparentemente (face à posição assumida nos autos) implicariam o desinteresse no negócio.

       l) Mais; alguns dos factos relativos às circunstâncias do negócio indicados pelo recorrente como indiciadores da prática do crime de burla, são perfeitamente normais, e nem sequer apontam para a disposição enganatória do arguido. Assim, é perfeitamente natural que o arguido tenha exigido que o pagamento fosse feito no imediato, e não que entregasse o veículo e a declaração de circulação sem receber o preço, situando mais uma vez este comportamento dentro do que nos indicam os dados da experiência relativa ao negócio de compra e venda de veículos usados.

       E quanto à circunstância de ter pedido que o dinheiro fosse transferido para a conta da pessoa que o acompanhou e não para si próprio, tal não revela de forma concludente aquele intuito (podendo encontrar explicações na sua situação irregular junto da AT), tanto mais que – como vimos – o arguido após a reclamação do assistente demonstrou vontade de considerar sem efeito o negócio, quer junto do comprador (o ora recorrente) quer do vendedor (o anterior proprietário).

        m) Assim como não se percebe porque razão o facto de o arguido não ter entregue os documentos da viatura (art 14º do requerimento de abertura da instrução) aponta indiciariamente para a ocorrência da burla; se assim fosse o arguido teria até todo o interesse em os entregar, de forma a consolidar o negócio e evitar contactos posteriores com o assistente. E também não se percebe que o seu comportamento “ visava, ainda, impedir que o ofendido viesse a tomar conhecimento da existência de ónus sobre a viatura “(art 16º do requerimento de abertura da instrução), uma vez que nada é afirmado quanto a esses ónus (pelo menos no sentido de ónus jurídicos, parecendo o assistente ligar aquela afirmação à referida não entrega dos documentos).

       n) Aliás, avaliado todo o negócio, parece muito mais “suspeita” a conduta do anterior proprietário do veículo (o referido EE, ouvido como testemunha) no sentido de ter conhecimento das graves na anomalias mecânicas que o carro padecia, e da eventual colocação da referida válvula, do que a do arguido, como se referiu simples intermediário no negócio.

       Isto porque foi o próprio EE quem afirmou que adquiriu o carro por cerca de € 3.000,00 (em Agosto de 2022), e passados apenas cerca de 4 meses aceitou vendê-lo por €1.680,00, ou seja, passando a avaliá-lo, naquele curto espaço de tempo, em quase 50% menos do que o preço que tinha pago, atitude mais compatível com alguém que sabe que o veículo apresenta graves problemas mecânicos que o depreciam fortemente em termos de valor de mercado.

       É claro que, hipoteticamente, poderíamos estar perante um conluio entre o arguido e o anterior proprietário do veículo (sabendo ambos que o veículo padeceria desses defeitos, e instalando a referida válvula), mas essa possibilidade não é aventada pelo assistente no seu requerimento de abertura de instrução, sendo que o já assinalado comportamento do arguido posterior ao negócio (pedindo ao mesmo EE a devolução do dinheiro por si entregue, e posteriormente entregando-o ao novamente ao mesmo), parecem afastar indiciariamente essa possibilidade.

       o) Em suma; concorda-se com o tribunal a quo, e com o Ministério Público, no sentido de que não foram recolhidos indícios suficientes do cometimento do crime de burla por parte do arguido, especialmente quanto à prática pelo mesmo do acto fraudulento e ardiloso que teria colocado o assistente em engano relativamente ao não funcionamento do veículo (referimo-nos ao problema com a bomba injectora de combustível, que teria sido dolosamente disfarçado com a alegada instalação da referida válvula, uma vez que os problemas com a embraiagem não foram assumidamente camuflados, podendo o assistente detecta-los imediatamente, caso tivesse experimentado, no momento da celebração do negócio, o veículo).

       Para que a decisão instrutória conclua pela comprovação judicial da decisão de deduzir acusação, torna-se necessário que sejam recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena. Como refere a decisão recorrida, a nossa jurisprudência maioritariamente tem considerado que a exigência da recolha dos indícios suficientes apenas se satisfaz quando haja uma forte e séria possibilidade de a condenação do arguido em fase de julgamento (probabilidade mais forte de futura condenação, do que de absolvição do acusado ou pronunciado), sendo essa a posição que que melhor se compatibiliza com a tutela da confiança do arguido, com a presunção de inocência de que ele beneficia e com o in dubio pro reo.

       No caso, como afirmam tanto o tribunal a quo como o Ministério Público, os factos apurados configuram um negócio civil, com muita probabilidade gerador de responsabilidade civil contratual, com a consequente responsabilização do arguido por danos causados ao assistente. O negócio em causa insere-se no âmbito de compra e venda de veículos usados, no qual está presente o mecanismo de livre concorrência, pelo que o conhecimento de uns e o erro ou ignorância de outros determina o sucesso ou vantagem do negócio, podendo o erro apresentar-se como um dos elementos do normal funcionamento da economia de mercado, ou até assumir uma dimensão geradora de responsabilidade civil, mas sem que chegue a integrar um ilícito criminal.

       Assim, recuperando o que acima se escreveu relativamente ao que a nossa doutrina e jurisprudência consideram que caracteriza a fraude geradora do ilícito criminal (cfr. mais uma vez o supra-citado Ac. do S.T.J. de 03-02-2005,), constata-se que não foram recolhidos indícios suficientes de que:

       -  tenha existido o propósito ab initio do agente de não prestar o equivalente económico:

       - se verifique um dano social e não puramente individual, com violação do mínimo ético e um perigo social, mediato ou indirecto;

       -  ocorra uma violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, exige como única sanção adequada a pena;

        -  se configure uma fraude capaz de iludir o diligente pai de família, evidente perversidade e impostura, má fé, mise-en-scène para iludir (o que ocorreria caso tivessem sido recolhidos indícios suficientes da colocação por parte do arguido da referida válvula);

       - que se verifique uma impossibilidade de se reparar o dano;

       - que o arguido tenha agido com o intuito de um lucro ilícito, e não apenas do lucro do negócio.

         O recurso deve assim improceder.

         IV - Dispositivo

         Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso interposto por AA, mantendo-se a decisão de não pronúncia do arguido BB pela prática do crime de burla.

        Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 UC`s.


Coimbra, 5 de Junho de 2024


João Novais

                         

José Eduardo Martins

Cristina Branco