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CRIME DE BURLA
CRIME DE EXTORSÃO
CONCURSO REAL
LEGITIMIDADE
BEM COMUM DO CASAL
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário
I - Para que se conclua pela existência de nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379º nº 1 alínea c) do CPP, necessário se torna que o Tribunal deixe de se pronunciar sobre questões pertinentes para o objeto do processo. A não ponderação de todos os argumentos avançados pelos sujeitos processuais escapa a tal vício. II - Estando em causa nos autos um crime de burla que atingiu um bem comum do casal, qualquer um dos cônjuges tem legitimidade para apresentação de queixa. III - Entre o crime de burla e o crime de extorsão existe um concurso real, distinguindo-se um do outro, desse logo, através dos meios utilizados – na extorsão a violência, ameaça com mal importante ou chantagem; na burla, o erro ou engano. IV - A existência de um crime de burla continuado pressupõe que na execução sucessiva dos eventos parcelares constitutivos do crime houvesse uma circunstância exterior que diminuísse consideravelmente a culpa do infractor.
Por Acórdão proferido a 21.12.2023 foi decidido, na parte que importa,
Absolver AA do crime de burla qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 22.º, 23.º, 26.º, 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 1, do C.P., cuja prática lhe havia sido imputada em autoria imediata e em concurso efetivo Alterar a qualificação jurídica, no que aos crimes de burla qualificada consumados diz respeito, e condenar AA, como autora imediata e em concurso efetivo, de 1 crime burla qualificada, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, 202.º, al. b), 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), do C.P., cujo último ato ocorreu em 17-04-2017, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, e de 1 crime de extorsão, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 22.º, n.º 1, n.º 2, al. a), 23.º, n.º 1, e n.º 2, 26.º, 73.º, n.º 1, al. a), e 223.º, n.º 1, do C.P., praticado em 22-04-2017, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, na pena única de 5 (CINCO) ANOS DE PRISÃO, cuja execução se suspende por 5 (cinco) anos, condicionada a REGIME DE PROVA assente num plano de reinserção social, a definir e a executar com vigilância e apoio pelos serviços de reinserção social, ficando desde já condicionada, uma vez que nisso consentiu, à obrigação de manter o acompanhamento especializado na área da psiquiatria, enquanto o mesmo for reputado de necessário, do ponto de vista médico, observando as prescrições que aí lhes sejam ditadas. Por não beneficiar do perdão de penas estabelecido pelos arts. 3.º, n.º 1, e n.º 4, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, não se declara perdoada qualquer parte da pena única de prisão aplicada. (…) Condenam-se AA e BB a pagar solidariamente ao Estado a quantia de 60 151 (sessenta mil, cento e cinquenta e um euros) correspondente ao valor da vantagem que obtiveram com a prática dos referidos crimes.
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Não se conformando com o teor da condenação, veio a arguida AA interpor recurso.
Depois da motivação, apresenta as seguintes CONCLUSÕES:
A. Analisado, desde logo, o douto Acórdão recorrido, é para nós líquido que o mesmo padece de Nulidade, nos termos do preceituado no art. 379º, n.º 1, al. c), do Código do Processo Penal, porquanto, o Tribunal a quo, não deu como provados ou não provados factos relevantes que haviam sido alegados pela ora Recorrente em sede de Contestação, nos pontos 6, 9, 15, 18 a 22, 24 a 39 e 64 a 68 daquela, e tão pouco sobre os mesmos se pronunciou de uma qualquer forma.
B. Os factos alegados pela Recorrente, a ser tidos como provados obstaculizariam à responsabilização penal daquela relativamente às condutas que se lhe imputava em sede de Despacho de Pronúncia, e que teria redundado numa qualquer burla ou extorsão.
C. Isto porque, foi questionado o Ofendido sobre a proveniência das quantias monetárias que alegadamente teria “cedido” à Arguida BB, bem assim o porquê de ter tantos montantes em numerário à sua disposição, não tendo aquele logrado esclarecer de modo algum a proveniência dos mesmos.
D. Além disso, em instâncias do Dign.º Tribunal a quo, o Ofendido informou estar casado em regime de comunhão de adquiridos, bem como informou não ter pedido autorização à sua esposa para emprestar os valores, ora por força do artigo 1724.º do Código Civil, existe uma presunção de comunhão relativamente aos bens adquiridos na constância do matrimónio, a título oneroso, a qual não foi ilidida em audiência de julgamento,
E. Assim, in casu o Ofendido entregou valores que não lhe pertenciam totalmente, pois em virtude do seu regime de casamento metade da quantia monetária em discussão era da sua respetiva cônjuge, e como tal, não só aquele valor não deveria ter sido considerado como inteiramente do Ofendido, como no limite temos que, nem sequer aquele tinha total legitimidade para apresentar queixa-crime, nos termos do artigo 113.º do Código do Processo Penal.
F. Não obstante, o certo é que tal factualidade alegada pela Arguida em sede de alegações finais, não consta da factualidade tida como provada ou não provada por parte do Digníssimo Tribunal a quo, em sede de douto Acórdão proferido, não tendo sido merecedora de uma qualquer “resposta”.
G. Donde, atenta a especificidade das matérias alegadas nos referidos pontos 6, 9, 15, 18 a 22, 24 a 39 da Contestação da ora Recorrente e da Legitimidade do Ofendido para apresentar queixa e do facto de não ter justificado a proveniência dos valores em causa nos autos, essencialmente, a sua relevância para a matéria em discussão nos autos, sempre se impunha ao Tribunal a quo a pronúncia expressa quanto aos mesmos, com a sua inserção nos factos provados ou não provados e a respetiva motivação para tal decisão.
H. Pelo que, verifica-se então uma verdadeira omissão de pronúncia no douto Acórdão recorrido, o qual será então de ter como Nulo, nos termos do preceituado no art. 379º, n.º 1, al. c) do Código do Processo Penal, o que deverá ser reconhecido e declarado, com o consequente reenvio para prolação de nova decisão que se pronuncie especificamente sobre a matéria em causa e leve a mesma ao rol de factos tidos como provados e não provados, mediante correspondente motivação (Cfr. doutos Acórdãos da Relação de Lisboa de 10-01-2013 e da Relação de Guimarães de 12-03-2012, supra melhor identificados).
II. ENQUADRAMENTO JURÍDICO DOS FACTOS TIDO COMO PROVADOS – EXAME DA DECISÃO RECORRIDA À LUZ DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 217.º, 218º, 223.º E 30.º, N.º 1 E 2, TODOS DO CÓDIGO PENAL (O QUE SERÁ FEITO SEM CONCEDER NO QUE SE REFERE AO PONTO ANTERIOR)
I. Sem prescindir do já referido, a Recorrente não concorda com o enquadramento a condenação pela prática de um crime de extorsão, na forma tentada. Isto porque,
J. No mencionado enquadramento jurídico-penal, o crime de extorsão, foi alegadamente cometido pela ora Recorrente tendo com o único objetivo de praticar o crime de burla qualificada pelo qual foi aquela similarmente condenada.
K. A Recorrente terá alegadamente contactado o Ofendido apenas para prosseguir o crime de burla, e nada mais.
L. Ou seja, o crime de burla qualificada, o “crime-fim”, foi cometido, com recurso à aludida extorsão, a qual deverá ser entendida como “crime-meio” e, por isso, “consumida” pelo primeiro, pois destinava-se, única e exclusivamente, a preparar, facilitar ou mesmo encobrir aquele ilícito criminal.
M. Conforme aliás resulta de tudo o vertido no douto Aresto do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, de 20-12-2016, proferido no Proc. 11459/12.3TDLSB.L1 -5 (in www.dgsi.pt), designadamente, no sumário de tal Acórdão, “Em termos abstractos, é possível configurar situações de concurso entre o crime de burla e o de extorsão, quando ao lado de actos de disposição patrimonial do ofendido, motivados por erro provocado pelo agente, ocorram outros derivados de violência ou ameaça pelo mesmo agente.”
N. Verifica-se, assim, “a existência de uma relação que, e de maneira considerável, facilitou a repetição da atividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito” (Cfr. douto Acórdão do STJ, de 13-12-2007, proferido no âmbito do Proc. 07P3749, e acessível in www.dgsi.pt).
O. Como ensina Eduardo Correia (“Teoria do Concurso em Direito Criminal”, Coleção Teses, Almedina – p. 207), “aquilo que na continuação criminosa arrasta o agente para a reiteração é precisamente o facto de, com a primeira conduta, se amolecerem e relaxarem as reacções morais ou jurídicas que o frenavam e inibiam”,
P. Sendo ainda de referir, no caso presente, o vertido no douto Aresto do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, de 01-03-2007, proferido no Proc. 618/07-9 (in www.dgsi.pt): “Ora, no caso dos autos, o recorrente, depois de ter sido bem sucedido nas primeiras iniciativas delituosas, as quais delineou de forma pormenorizada e evoluída, não acessível à imaginação de qualquer um, sentiu-se impulsionado na sua reiteração, a qual lhe trazia dividendos económicos fáceis e avultados, com um risco de acção muito limitado. Por outro lado, a mesma acção desenvolveu-se num espaço temporal limitado e concentrado. (…).”
Q. Pelo que, terá de se concluir pela existência dos pressupostos para que os aludidos crimes de burla qualificada e extorsão sejam considerados como tendo sido praticados na forma continuada, uma vez que, toda a atuação da Recorrente se pautou por uma clara homogeneidade, quer em termos de atuação, sempre recorrendo a enganos para que o Ofendido procedesse às entregas de valores, seja, com tal burla e extorsão, a ocorrerem num espaço de tempo de menos de um mês.
R. Acresce que, a primeira das intervenções da ora Recorrente, subsumíveis à prática do aludido crime de burla qualificada, ocorre no mês de abril de 2017, resultando favorecida a continuação, quase imediata, da atuação ilícita por parte da Arguida, atento o claro facilitismo com que se havia deparado, e, bem assim, atento uma total ausência de censura.
S. Nos presentes autos verificam-se todos os pressupostos do crime continuado, como sejam, a “realização plúrima do mesmo tipo de crime (ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico)”, a “homogeneidade da forma de execução (unidade do injusto objectivo da acção)”, a “unidade do dolo (unidade do injusto pessoal da acção), na medida em que as diversas resoluções se conservam dentro de uma “linha psicológica continuada”, a “lesão do mesmo bem jurídico (unidade do injusto do resultado”, e, a “persistência de uma “situação exterior” que facilite a execução e diminua consideravelmente a culpa do agente” - (Cfr. douto Acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto, de 18-04-2001, proferido no âmbito do Proc. 0011444, e acessível in www.dgsi.pt),
T. Donde resulta, conforme vertido naquele douto Aresto do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, de 29-06-2010, proferido no Proc. 4395/03.6TDLSB.L1-5 (in www.dgsi.pt), sempre será de concluir que, nos presentes autos, sempre a ora Recorrente deveria ser punida pelo concurso aparente do crime de burla qualificada e de extorsão, sendo que a burla consumiria a extorsão, tomando-se o referenciado e respetivo crime de extorsão, apenas e só, como fator agravante da medida da pena,
U. Devendo, por isso ser a ora Recorrente absolvida da prática do mencionado crime de extorsão, pelo qual foi condenada.
III. IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO PROFERIDA SOBRE A MATÉRIA DE FACTO, NOS TERMOS DO DISPOSTO NO N.º 3 E N.º 4 DO ARTIGO 412.º DO CÓDIGO DO PROCESSO PENAL, COM A CONSEQUENTE REFERÊNCIA À PROVA PRODUZIDA EM SEDE DE JULGAMENTO, E QUE SE ENCONTRA GRAVADA.
V. Analisado atentamente o conteúdo do douto Acórdão recorrido é para nós líquido que na mesma se conclui para além da prova produzida, ou, para além do que essa mesma prova permitiria, com toda a segurança necessária, concluir.
W. Face à prova produzida os pontos n.º 2, 5, 6, 8 e 11 não deviam ter sido dados como provados, pela ausência de prova bastante e suficiente que os suportasse, no que respeita ao preenchimento do elemento subjetivo dos crimes de burla qualificada e extorsão a si imputados.
X. Não se poderia haver concluído ter a aqui Recorrente recorrendo a um embuste, tenha convencido o Ofendido a entregar várias quantias monetárias agido com o propósito de anunciar um mal sobre integridade física da família de CC e um mal referente ao casamento deste por forma a constrangê-lo a que ele lhe entregasse a quantia de 12.650 EUR, sabendo que não lhe era devida, nos factos 2, 5, 6, 8 e 11, seja, que tenha a ora Recorrente praticado um qualquer crime de burla e outro de extorsão como.
Y. Em momento algum, uma qualquer testemunha apresentou uma narrativa credível e isenta, primeiro, que desse conta que a Recorrente tivesse ganho a confiança de CC,
Z. Depois, de que a Recorrente tivesse “inventado” padecer de cancro e que a sua filha teria sofrido um acidente de viação, para lhe emprestar quantias que não eram suas,
AA. E por fim que, a Recorrente tivesse ameaçado o Ofendido por mensagem, com o intuito de obter 12.650 euros.
BB. O que resultou provado, foram apenas e só transferências do Ofendido para uma certa conta bancária, identificadas no ponto provado 6 (conta essa não titulada pela Arguida), sendo certo que todas as conclusões que constam do douto Acórdão recorrido, sobre o “proveito” das quantias foram baseadas em presunções, com base nas faturas, mas hoje sabemos que é com facilidade que, após uma compra se dá o NIF de uma outra pessoa, não podendo ser considerada prova suficiente.
CC. Também o Digníssimo Tribunal a quo não valorou, de forma crítica, a contradição cometida pelo ofendido que, com bastante certeza, disse ter sido ameaçado por chamada (efetuada por um homem) e não por mensagem.
DD. Ouvidas as declarações do Ofendido, resulta que: a Arguida não usufruía de uma relação de confiança privilegiada nem exercia algum ascendente sobre o Ofendido.
EE. Depois, o Ofendido, admite que tomou o que sucedeu como uma má decisão sua, emprestando o dinheiro por sua livre e espontânea vontade, começando por mencionar uma “insolvência” e só depois é que menciona o cancro da Arguida e o acidente da filha da Arguida.
FF. Como podia, o Ofendido, um gestor de empresas, emprestar dinheiro a alguém que sabia ser insolvente, e que por essa condição desde logo não podia pagar de volta?
GG. Também não se afigura credível tal alegação, que o Ofendido optou por omitir quando apresentou queixa – aliás a narrativa do Ofendido evolui conforme as questões vão sendo colocadas, veja-se que segundo aquele, afinal a Arguida prometeu ressarci-lo mediante um empréstimo de um familiar seu.
HH. É de atentar ainda na clara contradição entre o depoimento do Ofendido, relativamente ao crime de extorsão, e a prova documental carreada para os autos (as mensagens supostamente enviadas pela Arguida), pois o que na realidade resulta do depoimento do Ofendido, é que afinal se tratou de uma chamada, efetuada por um homem que proferiu as tais ameaças.
POSTO ISTO,
II. Claro que, pode a convicção do Tribunal escudar-se no princípio da livre apreciação da prova, mas tal não pode confundir-se com arbitrariedade, dado que, a matéria fáctica, deve ter suporte probatório.
JJ. O Digníssimo Tribunal a quo vai para além da prova produzida, retirando da parca prova produzida conclusões claramente incoerentes e arbitrárias.
KK. Assim, não podia resultar provada uma culpabilidade da aqui Recorrente nos factos em questão, nas identificadas situações 2, 5, 6, 8 e 11, ou, pelo menos, não na medida em que se apresenta no douto acórdão recorrido,
LL. Pelo que, deve a matéria factual vinda de referir tida incorretamente julgada e eliminada da matéria de facto provada.
MM. Concluindo-se assim pela absolvição da ora Recorrente da prática dos crimes de burla qualificada e extorsão pelos quais foi condenada relativamente às identificadas situações 2, 5, 6, 8 e 11, por não se verificarem preenchidos os elementos constitutivos, objetivo e/ou subjetivo.
NN. Mais, entende-se verificada a existência de erro notório na apreciação da prova (art. 410º, n.º 2, al. c), do Código do Processo Penal), na medida em que, se formou a convicção do Digníssimo Tribunal a quo, quase que exclusivamente no depoimento do Ofendido, prova essa que, nunca poderia ser, por si só, considerada como bastante para uma condenação.
IV. DA MEDIDA DA PENA, SUA JUSTEZA E CORREÇÃO – EXAME DA DECISÃO RECORRIDA À LUZ DO DISPOSTO NOS ARTIGOS 40.º E 71.º DO CÓDIGO PENAL.
OO. Apraz referir que, delimitando-se a pena a aplicar à Recorrente na culpa desta, e, bem assim, nas exigências de prevenção, geral e especial, sempre resulta que, de forma alguma se poderá compreender e aceitar a pena aplicada (de prisão), na medida em que, extravasa claramente a culpa desta e as próprias necessidades de prevenção, e, não tem devidamente em conta as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor da Recorrente.
PP. É de todo incompreensível, porque exageradas e desproporcionadas, a pena de prisão aplicada à Recorrente.
QQ. Aqui chegados, vistos os pontos aos quais o Dign.º Tribunal a quo atendeu para balizar a culpa da Arguida, constata-se, com o devido respeito, que são mais os pontos a favor do que contra.
RR. Por outro lado, e agora no que respeita às circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor da Recorrente, é de referir que, se tratou de uma atuação isolada da Arguida, é de atender ao decurso do tempo decorrido desde a prática do crime, a inexistência de antecedentes criminais, a idade da Arguida, o seu estado de saúde, que aliado ao facto de se encontrar reformada por invalidez se reconduz na inexistência de risco de reincidência, ao que acresce o facto de não existir uma qualquer notícia posterior da prática de quaisquer factos similares, ou quaisquer outros factos ilícitos da sua parte.
SS. No caso presente, e por de aplicação ao mesmo, atenta a problemática em apreço, deverá relevar-se tudo quanto vem vertido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 18.09.2013 (proferido no âmbito do Processo n.º 311/10.7EAPRT.P1), quando se diz que, “na Sentença, acaba por se esquecer o postulado clássico de acordo com o qual: “o mal da pena dever ser proporcionado ao mal do crime em si mesmo”.
TT. Com efeito, sempre será de concluir que, no caso presente, e atento tudo o exposto, sempre deverá decidir-se pela aplicação de uma pena substancialmente inferior, na medida em que, da mesma sempre resultarão perfeitamente prosseguidas as exigências de prevenção, resultando, daí, por realizadas, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.
UU. O douto Acórdão sob recurso violou os artigos 40.º e 71.º, n.º 1 e 2 do Código Penal, bem como violou os artigos e 13.º, 18.º, 29.º e 32.º, todos da Constituição da República Portuguesa.
Nestes termos, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., sopesadas as conclusões acabadas de exarar, deverá ser dado provimento ao presente recurso e decidir-se pela aplicação ao Recorrente de pena adequada e substancialmente inferior, conforme supra se expôs, com o que, modestamente se entende, V. Exas. farão, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA.
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RESPOSTA DO SR PROCURADOR ADJUNTO NA 1º INSTÂNCIA
O Sr. Procurador Adjunto na 1ª instância veio responder ao recurso nos seguintes termos: “o Ministério Público é do entender de que carecem totalmente de fundamento as pretensões pela mesma aduzidas em sede de recurso, não nos merecendo a douta sentença recorrida qualquer reparo.
Neste sentido, deverá a decisão recorrida ser integralmente confirmada, face ao enquadramento factual nela vertido e à realizada valoração e análise crítica da prova, fazendo o devido enquadramento jurídico e correta aplicação do direito, assim se tendo concluído pela condenação da arguida pela prática como autora imediata e em concurso efetivo, de 1 crime burla qualificada, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, 202.º, al. b), 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), do C.P., cujo último ato ocorreu em 17-04-2017, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, e de 1 crime de extorsão, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 22.º, n.º 1, n.º 2, al. a), 23.º, n.º 1, e n.º 2, 26.º, 73.º, n.º 1, al. a), e 223.º, n.º 1, do C.P., praticado em 22-04- 2017, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, na pena única de 5 (CINCO) ANOS DE PRISÃO, cuja execução se suspende por 5 (cinco) anos, condicionada a REGIME DE PROVA, pena cuja medida se nos afigura como adequada e proporcional ao caso concreto.
Termos em que deverá ser integralmente mantida a douta decisão recorrida, julgando-se como manifestamente improcedente o recurso interposto pelo recorrente.
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PARECER DO SR. PROCURADOR GERAL ADJUNTO
Já nesta Relação, o Ex. Sr.º Procurador Geral Adjunto emitiu Parecer dizendo” (…)
(…) discutidas as seguintes questões:
“I. Da Nulidade do douto Acórdão recorrido – exame da decisão recorrida à luz do disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. c) do Código do Processo Penal.
II. Enquadramento jurídico dos factos tido como provados – exame da decisão recorrida à luz do disposto nos artigos 217.º, 218º, 223.º e 30.º, n.º 1 e 2, todos do Código Penal (o que será feito sem conceder no que se refere ao ponto anterior).
III. Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos do disposto no n.º 3 e n.º 4 do artigo 412.º do Código do Processo Penal, com a consequente referência à prova produzida em sede de julgamento, e que se encontra gravada.
IV. Da medida da pena, sua justeza e correção – exame da decisão recorrida à luz do disposto nos artigos 40.º e 71.º do Código Penal.”.
Tendo o recurso sido admitido para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo [cfr. despacho datado de 8 de Fevereiro de 2024 (referência 456647742)], a Exm.ª Procuradora da República junto do tribunal recorrido apresentou resposta em que, de forma assaz abreviada, pugna pela manutenção da decisão recorrida, na sequência do foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação do Porto.
2. Não existindo causa extintiva do procedimento ou da responsabilidade criminal que ponha termo ao processo e não se suscitando questões que obstem ao conhecimento do mérito do recurso, que se mostra tempestivo, não merecendo reparo quanto à admissibilidade, legitimidade e interesse em agir da Recorrente, mais se mostrando adequadamente fixados os respectivos efeitos e regime de subida, cumpre emitir parecer.
3.–Dorecurso:
3.1. – Da alegada nulidade do Acórdão recorrido à luz do disposto no artigo 379.º, n.º 1,alínea c), do Código do Processo Penal:
Pretende a Recorrente sustentar que se regista nos autos uma situação de “… inexistência dos legais pressupostos dos crimes imputados”, que se consubstanciariam em “… várias putativas burlas…”.
Mais pretende a Recorrente sustentar que não só o ofendido não logrou explicar a proveniência das quantias referidas nos autos e que transferiu para a conta titulada pela filha da arguida, como sendo o mesmo casado em regime de comunhão de adquiridos e não tendo pedido autorização à respectiva esposa para emprestar aqueles valores, “… nem sequer aquele tinha total legitimidade para apresentar queixa-crime”.
Salvo o devido respeito por diverso e melhor entendimento, tem-se como nítido que, neste conspecto, a pretensão recursiva da Recorrente carece de suporte fáctico e legal para merecer ser atendida.
Na realidade, tendo a Recorrente optado pelo silêncio, não se concebe que venha, agora, invocar que o entendimento alcançado pelo tribunal recorrido “… redunda numa visão centrada na verdade do ofendido…”, tanto mais que no próprio Acórdão recorrido expressa e justamente se consigna que «Obviamente que não foi extraída qualquer ilação a nível da factualidade provada e não provada do facto de as arguidas se terem remetido em audiência de julgamento ao silêncio sobre os factos que lhes eram imputados. No entanto, se por um lado o silêncio, sendo um direito que assiste a todo o arguido, não o pode prejudicar (cfr. arts. 61.º, n.º 1, al. d), 343.º, n.º 1, e 345.º, n.º 1, do C.P.P.), o certo é que dele também não pode pretender colher benefícios. Na verdade, a proibição do desfavorecimento traduz-se, desde logo, na impossibilidade de extrair do silêncio do arguido, seja ele total ou parcial, ilações de prova ou presunção judicial de culpabilidade, o que não foi feito. Não obstante, tendo as arguidas prescindido, com o seu silêncio, de esclarecer e dar a sua visão pessoal sobre os factos que ficaram demonstrados pela prova produzida, conforme a seguir melhor se explicitará, assim impedindo o afastamento da sua culpabilidade, não podem depois pretender que foram prejudicadas pelo seu silêncio (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10-01-2008, processo n.º 07P3227, inwww.dgsi.pt). Na verdade, as arguidas não podem esperar que o seu silêncio reforce a presunção de inocência, anulando o valor das outras provas demonstrativas da culpabilidade, sendo certo que, em geral, uma prova não contraditada, não obstante a oportunidade de o ter sido, é mais credível e persuasiva (cfr. SOARES, Manuel, in “Proibição de desfavorecimento do arguido em consequência do silêncio em julgamento – a questão controversa das ilações probatórias desfavoráveis”, Julgar, n.º 32, Livraria Almedina, pág. 37 e 38).».
A tal acresce que, da respectiva fundamentação, é perfeitamente perceptível o percurso percorrido pelo tribunal aquo para se alcançar a conclusão da efectiva responsabilidade da arguida na prática dos crimes pelos quais vem condenada, mostrando-se aquela fundamentação em perfeita consonância não só com o material probatório colhido nos autos, como também com as regras da experiência comum, assim se mostrando isenta de mácula. Mas se assim sucede, mais importa reter que os crimes de burla qualificada e de extorsão revestem a natureza de crimes públicos – cfr. artigos 113.º, 114.º, 218.º e 223.º do Código Penal e 48.º a 51.º do Código de Processo Penal – assim dispondo o Ministério Público de legitimidade para promover o pertinente processo penal, pois que para tal basta que adquira notícia (da prática) do crime.
Mas mesmo que procedesse o raciocínio da Recorrente quanto refere que a conduta da Recorrente consubstancia a prática de crimes de burla simples, que revestem a natureza de crimes semi-públicos – o que se tem como adquirido que não sucede no caso dos autos – dispondo o n.º 1 do artigo 113.º do Código Penal que “Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação”, não se vislumbra como poderá vingar a respectiva tese de que o ofendido não tinha “totallegitimidade para apresentar queixa-crime” (itálico e destacado do signatário), pois que o mesmo seria, também e inequivocamente, titular do interesse – leia-se, no caso subjudice, do património – que a lei especialmente quis proteger com a tipificação daquele(s) crime(s) de burla.
Finalmente, não se consegue alcançar qual o objectivo visado pela Recorrente quanto invoca que não só o ofendido não logrou explicar a proveniência das quantias referidas nos autos como também quando protesta que o mesmo não demonstrou que tivesse pedido autorização à respectiva esposa para emprestar (a ela própria, Recorrente) aquelas mesmas quantias, pois que, ressalvado o devido respeito, à luz do que antecede e de quanto resulta dos autos, não se vê em que medida tal pode ter alguma influência na efectiva responsabilização criminal pela prática dos factos pelos quais vem – justamente, desde já se adianta – condenada. 3.2. – Enquadramento jurídico dos factos tido como provados – exame da decisão recorrida àluz do disposto nos artigos 217.º, 218º, 223.º e 30.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Penal: Protesta a Requerente que «…de forma alguma poderia o Digníssimo Tribunal aquo ter condenado a mesma pela prática do indigitado” crime de extorsão preceituado no aludido dispositivo legal contido…» pois que o mesmo “… foi alegadamente cometido pela ora Recorrente tendo por único objetivo a prática do aludido crime de burla qualificada pelo qual foi a ora Recorrente igualmente condenada” «…a qual deverá ser entendida como autêntico “crimes-meio” da propalada burla».
Mais clama a Recorrente que “Teremos forçosamente que concluir pela existência, no caso subjudice dos pressupostos para que os aludidos crimes de burla qualificada e extorsão sejam considerados como tendo sido praticados na forma continuada, na medida em que, toda a atuação da Recorrente se pautou por uma clara homogeneidade, quer em termos de atuação, sempre recorrendo a enganos para que o Ofendido procedesse às entregas de valores, seja, com tal burla e extorsão, a ocorrerem num espaço de tempo de menos e um mês”.
No que concerne à alegada prática do crime de extorsão como crime meio da prática do crime de burla, ressalvado o devido respeito, não assistirá razão à Recorrente, não obstante ambos os crimes por cuja prática a Recorrente foi condenada integrarem o Capítulo III – Dos crimes contra o património em geral, do Título II – Dos crimes contra o património, do Livro II – Parte especial, do Código Penal, o certo é que os mesmos tutelam bens jurídicos que não são integralmente coincidentes.
Na realidade, enquanto o bem jurídico que o crime de burla visa tutelar é o património globalmente considerado, o qual, de acordo com os ensinamentos de Figueiredo Dias ( Cfr., por tudo, “Crime de emissão de cheque sem provisão”, Coletânea de Jurisprudência, 1992, Tomo III, pág. 66, também citado no douto acórdão recorrido) deverá entender-se como “o conjunto das situações ou posições com valor ou utilidade económica, detida por uma pessoa e cuja disponibilidade e fruição por banda do sujeito passivo o ordenamento jurídico proteja e tutele ou, pelo menos, não desaprove”, já no crime de extorsão, como sagazmente se regista na decisão recorrida, “O bem jurídico tutelado pelo referido crime reside na liberdade de disposição patrimonial. Objetivo direto da extorsão é a obtenção de uma vantagem patrimonial à custa de um prejuízo do extorquido. Esta a razão da inclusão sistemática do crime de extorsão nos crimes contra o património. Portanto, a extorsão é, em primeiro lugar, um crime contra o bem jurídico património. Acresce, porém, a tutela do bem jurídico liberdade de decisão e de ação, cuja lesão é conatural à extorsão, o que fundamenta uma agravação das penas relativamente às aplicáveis aos crimes que lesam exclusivamente o património, como é o caso, p. ex., do crime de furto ou de dano” (sublinhado do signatário).
Tendo-se, assim, como notória a diferença de bens jurídicos tutelados pelos crimes de burla (no caso dos autos, qualificada) e de extorsão, igualmente evidente se torna o facto de que, contrariamente ao pela mesma protestado, a conduta da Recorrente subsumida a este último crime não constituiu, manifestamente, um “crime meio” para a prática do crime de burla, pois que o mesmo, nos seus traços essenciais, se mostrava já praticado.
Com efeito, para além de o ofendido ter efectuado já várias transferências/depósitos “em benefício” da(s) arguida(s), crendo que a mesma lhe restituiria tais quantias assim que um familiar seu lograsse obter um empréstimo que lhe permitisse fazer face às despesas relacionadas com a doença oncológica de que alegadamente padecia – em tal “cenário” construído pela Recorrente se consubstanciando o ardil fraudulento típico do crime de burla – a actuação da arguida que levou à respectiva condenação pelo crime de extorsão traduziu-se no facto de o ofendido se ver confrontado com a intimadora afirmação de que, caso não correspondesse ao que lhe era exigido, a sua vivência conjugal seria confrontada com o facto de, alegadamente, ter uma relação extramarital com a própria arguida, sendo tal chantagem, nitidamente, um plus em relação à actuação “meramente” enganosa, típica do crime de burla. Mais importa referir que, também contrariamente ao pretendido pela ora Recorrente e ressalvado o devido respeito por distinto e melhor entendimento, nos presentes autos não se verificam preenchidos os pressupostos do crime continuado.
Na verdade, se é certo que, para usar a expressiva formulação adoptada em acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa -Cfr. Processo 482/21.7PBSNT.L1-9; relatora: Renata Whytton Terra; disponível em www.dgsi.pt. - a 23 de Março de 2023, “Há crimes que se consumam por actos sucessivos ou reiterados, como se diz no artigo 30.º, n.º 2 do Código Penal, mas que constituem um único crime, ou seja, a execução é reiterada quando cada acto de execução sucessivo realiza parcialmente o evento do crime. A soma dos eventos parcelares constituirá um único crime…”, o traço constitutivo do crime continuado, radica na existência de uma circunstância exterior que diminui consideravelmente a culpa do agente, assim se tornando essencial perceber em que medida a solicitação externa diminui a censura que determinada(s) conduta(s) merece(m).
A este propósito importa reter que, conforme resulta dos impressivos ensinamentos do Professor Eduardo Correia, só ocorrerá diminuição sensível da culpa do agente, tradutora de uma menor exigibilidade para que o agente actue de forma conforme ao direito, quando essacircunstância exógena se lhe apresenta de fora, não sendo o agente o veículo através do qual a oportunidade criminosa se encontra de novo à sua mercê; consequentemente, sempre que as circunstâncias exógenas ou exteriores não surgem por acaso, em termos de facilitarem ou arrastarem o agente para a reiteração da sua conduta criminosa, mas antes são por ele próprio criadas e reiteradamente reafirmadas – tal como sucede nos presentes autos – impõe-se concluir pela existência de um concurso real ou efectivo de crimes, ou, conforme sucede incasu, em relação ao crime de burla, pela prática de um único crime, pese embora materializado em diversos actos de execução.
Assim sendo, tem-se por manifesto que também neste segmento, a pretensão recursiva da arguida carece de suporte para poder proceder. 3.3.Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos do disposto no n.º3 e n.º 4 do artigo 412.º do Código do Processo Penal:
A este propósito e para além do mais, refere a Recorrente que “Face à prova produzida os pontos n.º 2, 5, 6, 8 e 11 não deviam ter sido dados como provados, pela ausência de prova bastante e suficiente que os suportasse, no que respeita ao preenchimento do elemento subjetivo dos crimes de burla qualificada e extorsão a si imputados”, pelo que “… não podia resultar provada uma culpabilidade da aqui Recorrente nos factos em questão, nas identificadas situações 2, 5, 6, 8 e 11, ou, pelo menos, não na medida em que se apresenta no douto acórdão recorrido”; e pugnando no sentido de que “… deve a matéria factual vinda de referir tida incorretamente julgada e eliminada da matéria de facto provada”, assim se concluindo “… pela absolvição da ora Recorrente da prática dos crimes de burla qualificada e extorsão pelos quais foi condenada relativamente às identificadas situações 2, 5, 6, 8 e 11, por não se verificarem preenchidos os elementos constitutivos, objetivo e/ou subjetivo”, mais protesta a Recorrente que se regista “… a existência de erro notório na apreciação da prova (art. 410º, n.º 2, al. c), do Código do Processo Penal), na medida em que, se formou a convicção do Digníssimo Tribunal aquo, quase que exclusivamente no depoimento do Ofendido, prova essa que, nunca poderia ser, por si só, considerada como bastante para uma condenação”.
Afigurando-se que, ainda que de forma não expressamente formulada, a Recorrente pretenderá defender que se regista violação do artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, por ausência de fundamentação crítica da prova, importa reter que este normativo, dispondo sobre os requisitos da sentença, estabelece que aorelatóriosegue-seafundamentação,queconstadaenumeraçãodosfactosprovadosenãoprovados,bemcomodeumaexposiçãotantoquantopossívelcompleta,aindaqueconcisa,dosmotivos,defactoededireito,quefundamentamadecisão,comindicaçãoeexamecríticodasprovasqueserviramparaformaraconvicçãodotribunal.
Conforme se lê no Acórdão proferido a 4 de Maio de 2022 pelo Tribunal da Relação de Lisboa Processo 349/17.3GBPBL.C1, relator Jorge Jacob, disponível em www.dgsi.pt. Processo 07P024, disponível para consulta em www.dgsi.pt/jstj. -”Esta fundamentação, cerne da decisão a proferir em 1ª instância, constitui a sede adequada para que o julgador consigne o juízo formulado sobre a prova produzida, explicitando os meios de prova que lograram convencê-lo da factualidade que teve por assente ou que considerou indemonstrada, por recurso a raciocínios lógico-dedutivos, às regras da experiência comum e a presunções naturais consentidas pela prova”; e na mesma decisão invoca-se expressamente o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido a 21 de Março de 2007 pelo Supremo Tribunal de Justiça, no qual se lê que «a fundamentação adequada e suficiente da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão, pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor, e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos - para reapreciar uma decisão, o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão (os fundamentos) para, sobre tais fundamentos, formular seu próprio juízo».
E sempre ressalvado o devido respeito por distinto e melhor entendimento, não assiste razão, nesta parte, à Recorrente pois que da leitura do acórdão ora sob apreciação é perfeitamente clara não só a enunciação dos elementos em que o tribunal recorrido alicerçou a decisão recorrida, como é igualmente clara a indicação da base sustentatória de tais elementos, com transparente indicação também (e.g., ao nível da credibilidade atribuída ao depoimento colhido ao ofendido e fundamento para tal) dos concretos elementos (e.g., documentos e relatório pericial constante dos autos) que nortearam e/ou orientaram o processo de formação da convicção que conduziu à solução de facto plasmada na decisão, assim permitindo, sem margens para dúvidas, apreender e perceber aquele processo de formação da convicção do tribunal recorrido.
E sendo seguro que, conforme se lê também na acima mencionada decisão do Supremo Tribunal de Justiça, «o rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte», não se antolha que a decisão recorrida seja merecedora das críticas que o recorrente lhe procura assacar, motivo pelo qual, neste particular, o respectivo recurso não terá, quer-se crer que manifestamente, fundamento suficiente para poder ser provido.
Mais protestando a Recorrente que se regista “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” importa, antes do mais, referir que se tem como adquirido que a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada constitui um vício que só pode existir e ser manifestado na própria decisão judicial, sem ter de se recorrer a outros elementos a ela estranhos ou externos, salvo as regras da experiência comum ou elementos de prova vinculada carreados no processo (designadamente exames, perícias, documentos autênticos, relatórios) e ocorrerá quando, dos factos constantes da decisão recorrida, se evidencie a ausência de elementos que, podendo e devendo ser indagados, se tornam imprescindíveis para a formulação de um juízo inabalável de condenação ou de absolvição, designadamente quando os factos provados são escassos para fundamentar a decisão, quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, omitiu a investigação de toda a matéria de facto relevante e sem a qual não é possível a aplicação do direito ao caso sub judice e, por último, quando deixou de averiguar factos essenciais para lograr uma solução justa. Paralelamente, oerronotórionaapreciaçãodaprova traduzir-se-á na desconformidade com a prova, facilmente perceptível pelo comum dos observadores, sendo só atendível se resultar do texto da decisão recorridadevendo ser interpretado como o conceito de facto notório em processo civil, ou seja, como o facto de que todos se apercebem directamente, ou, observado pela generalidade dos cidadãos, adquire carácter notório.
Ora, como se referia já no Acórdão deste Tribunal da Relação de 26 de Novembro de 2008- Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Julho de 1991 -, a propósito dos poderes do Tribunal da Relação sobre a matéria de facto fixada pela 1.ª instância ( art. 431º do Código de Processo Penal), “nãoobstanteosseuspoderesdesindicânciaquantoàmatériadefacto,averdadeéquenãopodemosesquecerapercepçãoeconvicçãocriadapelojulgadorna1ªinstância,decorrentedaoralidadedaaudiênciaedaimediaçãodasprovas.OjuízofeitopeloTribunaldaRelaçãoésempreumjuízodistanciado,quenãoé«colhidodirectamenteeaovivo»,comosucedecomojuízoformadopelojulgadorda1ªinstância.Éque,acredibilidadedasprovas(oseuméritooudesmérito)eaconvicçãocriadapelojulgadorda1ªinstância«temdeassentarporvezesnumenormeconjuntodesituaçõescircunstanciais,detalmaneiraqueessaconvicçãocriadaassentanãotantonaquantidadedosdepoimentosprestados,masmuitomaisemoutrosfactores»,fornecidospelaimediaçãoeoralidadedojulgamento,«ondeparaalémdostestemunhospessoais,háreacções,pausas,dúvidas,enfim,umsemnúmerodeatitudesquepodemvalorizaroudesvalorizaraprovaqueelestransportam»”.
Importa, assim, referir que uma coisa é a sentença apresentar vícios como aqueles que a Recorrente nela pretende descortinar e outra, absolutamente diversa, é a de, num sistema de prova não tabelada como o nosso, interpretar as provas de uma forma diferente daquela que foi alcançada pelo tribunal, sem que esta interpretação padeça dos referidos vícios.
Impõe-se, assim, afirmar que, contrariamente ao pugnado pela Recorrente, a decisão sob escrutínio não padecerá dos vícios que o mesmo nela procura vislumbrar.
Na verdade, não só não se vê qualquer insuficiência nos elementos probatórios em que a mesma decisão se baseia para concluir pela prática, pela ora Recorrente, dos crimes pelos quais vem condenada, como, conforme decorre do já referido, não se vislumbra qualquer contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, não se lobrigando, também, algum errodejulgamentodamatériadefactodadacomoprovada em que tenha incorrido o tribunal aquo, nem, tão-pouco, se consegue detectar algum erronotórionaapreciaçãodaprova9-
9 Conforme se lê no Acórdão proferido pela Relação de Coimbra em 14 de Janeiro de 2015 (processo n.º 72/11.2GDSRT.C1; número convencional: JTRC; relator: Fernando Chaves), «A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão. Saliente-se que este vício reporta-se à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, a qual já cai no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito. Também a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não se confunde com uma suposta insuficiência dos meios de prova para a decisão de facto tomada. Para que exista aquele vício é necessário que a matéria de facto fixada se apresente insuficiente para a decisão proferida por se verificar uma lacuna no apuramento da matéria necessária para uma decisão de direito. Não ocorre esse vício quando o tribunal investigou tudo o que podia e devia investigar. A contradição insanável dafundamentação ou entre a fundamentação e a decisão consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própriadecisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Existe tal vício quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do Tribunal. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada. Em causa está a discordância lógica entre os factos provados, ou entre estes e os não provados, ou na própria motivação da matéria de facto ou entre esta e a decisão. No querespeita ao erro notório na apreciação da prova, tal vício verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por sisó ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou umaapreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O apontado vício é aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade, que é patente, só podendo relevar se for ostensivo, inquestionável e perceptível pelo comum dos observadores ou pelas faculdades de apreciação do “homem médio”. O vício existe quando se dão por provados factos que, face às regras de experiência comum e à lógica corrente, do homem médio, não se teriam podido verificar ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos. Trata-se de um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental; as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.» (destaques e sublinhados do signatário).
A este propósito impõe-se, ainda, referir que o n.º 3 do artigo 412.º do Código de processo Penal expressamente dispõe que:
“Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.”
E ressalvado o devido respeito impõe-se afirmar que, ressalvado distinto e melhor entendimento, a ora Recorrente não logrou cumpriu com tão cristalino preceito, limitando-se a enunciar a respectiva divergência com a conclusão alcançada pelo tribunal recorrido, sem que, em momento algum, indique quais as concretas provas queimpõem – e não apenas , queadmitem – conclusão diversa da que se mostra alcançada pelo tribunal aquo, não tendo, também, especificado que provas devem, no respectivo entendimento, ser renovadas.
À luz do que antecede e de quanto mais resulta da resposta do Ministério Público constante dos autos, resultará igualmente nítido que também neste segmento, o recurso da arguida AA carece de alicerces suficientes para poder proceder. 3.4.Da medida da pena, sua justeza e correção – exame da decisão recorrida à luz do dispostonos artigos 40.º e 71.º do Código Penal:
Protesta a Recorrente que a pena única em que vem condenada se mostra “EXAGERADA,INJUSTAEDESPROPORCIONAL” (destaque e maiúsculas no original), assim defendendo que “… deverá decidir-se pela aplicação de uma pena substancialmente inferior, na medida em que da mesma sempre resultarão perfeitamente prosseguidas as exigências de prevenção, resultando, daí, por realizadas, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição”.
Salvo o devido respeito pelo argumentário que a Recorrente se esforça por esgrimir, afigura-se que, também nesta vertente, a respectiva pretensão recursiva carece de sustentação, seja ao nível dos factos sob apreciação, seja ao nível dos normativos legais, concretamente aplicáveis ara se proceder à escolha e medida da pena e à punição do crime pelo qual se mostra condenada.
Na realidade, enquanto o crime de burla qualificada, quando consumado, é punido com uma pena de prisão de 2 anos a 8 anos (cfr. art.º 218.º, n.º 2, do C.P.), o crime de extorsão, quando consumado, é punido com uma pena de 1 mês a 5 anos de prisão (cfr. artigos 41.º, n.º 1, e 223.º, n.º 1, do Código Penal), sendo que, no caso da tentativa, o limite máximo é reduzido de 1/3 (cfr. artigo 73.º, n.º 1, alínea a), do mesmo diploma legal).
Conforme expressamente se afirma no douto acórdão recorrido: “Milita a favor da arguida AA a ausência de antecedentes criminais, o Aparente bom comportamento após os factos, bem como a sua aparente boa inserção.
Tudo ponderado, afiguram-se adequadas às circunstâncias do caso as seguintes penas:
- 4anose6mesesdeprisão, pelo crime de burla qualificada consumado; - 1anoe6mesesdeprisão, pelo crime de extorsão tentado; e
- 2anosdeprisão, pelo crime de recetação diz respeito.
No presente caso, resulta que à arguida AA é imputada a prática de vários crimes em concurso efetivo. Uma vez que só no presente processo a referida arguida pelos mesmos foi julgado, não poderia ter transitado em julgado a condenação por qualquer deles.
A pena aplicável terá como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e, como limite máximo, a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (cfr. art.º 77.º, n.º 1 e n.º 2 do C. P.).
Assim, a moldura do concurso é, para a arguida AA, de 4 anos e 6 meses de prisão no seu limite mínimo e 6 anos no seu limite máximo.».
Ora, tendo em atenção a moldura penal do concurso que se vem de referir e em estrita obediência aos critérios legais consagrados nos artigos 71.º e 77.º do Código Penal, o tribunal aquo entendeu como adequada a aplicação à arguida AA da pena únicade5(cinco)anosdeprisão.
E afigurando-se que o acórdão recorrido se mostra solidamente estruturado e baseado em elementos que elenca de forma clara e facilmente perceptível, permitindo refazer (ou acompanhar) de forma perfeitamente acessível e transparente o raciocínio percorrido, assim permitindo também apreender como foi alcançada a conclusão de que não só se encontravam preenchidos os elementos objectivos dos ilícito típicos imputados à ora Recorrente, como mais se mostravam preenchidos os respectivos tipos subjectivos, tudo culminando na prolacção da decisão condenatória da Recorrente, ressalvado distinto e melhor entendimento, impõe-se afirmar que idêntica conclusão se impõe quanto à concreta pena em que a arguida AA vem condenada.
Sendo seguro que, como ensina o Professor Figueiredo Dias, “Culpa e prevenção são os dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo de medida (sentido estrito ou de «determinação concreta») da pena. As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. A pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa”, não se pode olvidar que o mesmo Mestre igualmente afirma, “… primordial e essencialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade detutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua aplicação,protecção que assume um significado prospectivo que se traduz na tutela das expectativas dacomunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena” (sublinhado do signatário).
Também a tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e no reforço) da validade da norma jurídica violada – que justifica que se fale de uma moldura de prevenção. Proporcional à gravidade do facto ilícito, a prevenção não pode ser alcançada numa medida exacta, uma vez que a gravidade do facto ilícito é aferida em função do abalo daquelas expectativas sentido pela comunidade. A satisfação das exigências de prevenção terá certamente um limite definido pela medida da pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade, que não pode ser excedido em nome de considerações de qualquer tipo, ainda quando se situe abaixo do limite máximo consentido pela culpa. Mas, abaixo daquela medida (óptima) de pena (da prevenção), outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas – até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral”.
No dizer de Fernanda Palma, in “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, nas “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, edição 1998, AAFDL, pág. 25, «a protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial».
Por sua vez, Américo Taipa de Carvalho, em “Prevenção, Culpa e Pena”, in LiberDiscipulorumparaJorgeFigueiredoDias, Coimbra Editora, 2003, pág. 322, afirma resultar do actual artigo 40.º que “o fundamento legitimador da aplicação de uma pena é a prevenção, geral e especial, e que a culpa do infractor apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite máximo da pena a aplicar por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção.
Ainda a este propósito importará reter que “Como se refere no acórdão de 28-09-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 173, na dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente”, assim afirmando o Supremo Tribunal de Justiça que “Acatados e respeitadosestes critérios de determinação concreta da medida da pena, há uma margem de actuação dojulgador dificilmente sindicável” (destaque e sublinhado do signatário).
Em formulação quase idêntica lê-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 12 de Setembro de 2012 (processo: 1221/11.6JAPRT.S1; relator: Raúl Borges) que “Para o efeito de determinação da medida concreta ou fixação do quantum da pena que vai constar da decisão o juiz serve-se do critério global contido no referido artigo 71.º do Código Penal (preceito que a alteração introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, deixou intocado, como de resto aconteceu com o citado artigo 40.º), estando vinculado aos módulos - critérios de escolha da pena constantes do preceito. Como se refere no acórdão de 28-09-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 173, na dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do artigo 71.º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente. Observados estes critérios de dosimetria concreta da pena, há uma margemde actuação do julgador dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar” (destaque e sublinhado, também, do signatário).
Ora, ressalvado distinto e melhor entendimento, afigura-se que a pena concretamente aplicada à Recorrente se mostra plenamente tributária dos citérios legais concretamente aplicáveis, assim sendo perfeitamente adequada ou ajustada ao respectivo comportamento do arguido e sua história de vida, não se vislumbrando que aquela pena seja merecedora de qualquer censura.
Na realidade, não se é possível olvidar o concreto circunstancialismo em que a Recorrente levou à prática os factos que conduziram à respectiva condenação e a intensidade do dolo pela mesmo manifestada, pois que agiu com dolo directo, invocando uma situação de alegada patologia clínica para melhor sensibilizar/ludibriar o ofendido, não hesitando em tentar ameaçar o mesmo com a revelação, à cônjuge deste, de uma também inventada relação extramatrimonial, assim tentando forçá-lo a entregar-lhe quantias monetários face à recusa do mesmo em lhe “emprestar” mais dinheiro…
Não merecerá, assim e também nesta parte, provimento o recurso da arguida AA. Conclusão:
À luz de quanto antecede, emite-se parecernosentidodequeo recurso interposto pelaarguida AA não merecerá provimento, assim devendo serintegralmente confirmado o douto acórdão recorrido
Cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP houve resposta ao Parecer.
Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, onde deve ser julgado, de harmonia com o preceituado no artº. 419º, n.º3 al. c), do diploma citado.
II. FUNDAMENTAÇÃO
A) DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Como tem sido entendimento unânime, o objecto do recurso e os poderes de cognição do tribunal da Relação definem-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, onde deve sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso (cfr. Silva, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, p. 320; Albuquerque, Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed. 2009, pag 1027 e 1122, Santos, Simas, Recursos em Processo Penal, 7.ª ed., 2008, p. 103; entre outros os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).
No caso vertente, em face das conclusões do recurso, as questões a apreciar são as seguintes: - Nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia de factos constantes da contestação – art. 379º nº 1 al. C) CPP - Falta de legitimidade do ofendido para apresentar queixa
- Da existência de um crime de burla continuado.
- Concurso aparente entre crime de burla e crime de extorsão
- Impugnação da matéria de facto – art. 410º e nº 3 e 4 do art. 412º CPP
- Da medida da pena
B) DECISÃO RECORRIDA
Com vista à apreciação das questões supra enunciadas, importa ter presente o seguinte teor da decisão recorrida.
Foram pronunciadas, em processo comum e perante tribunal coletivo: AA, filha de DD e EE, natural de ..., Porto, nascida a ../../1970, divorciada, reformada (barbeira), residente na Rua ..., ..., Vila Nova de Gaia; BB, filha de FF e de AA, natural de ..., Porto, nascida a ../../1997, solteira, técnica de unhas, residente na Rua ..., ..., Vila Nova de Gaia;
imputando à primeira a prática, em autoria imediata e em concurso efetivo, de 2 crimes de burla qualificada, na forma consumada, ps. e ps. pelos arts. 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), do Código Penal (C.P.), de 1 crime de burla qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22.º, 23.º, 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 1, do C.P., e de 1 crime de extorsão, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22.º, 23.º e 223.º, n.º 1, do C.P.; e imputando à segunda a prática, em autoria imediata e sob a forma consumada, de 1 crime de recetação, p. e p. pelo art.º 231.º, n.º 1, do C.P.
O Ministério Público requereu ainda que fossem as arguidas condenadas a pagar ao Estado a quantia de 81 150 EUR correspondente ao valor da vantagem por elas obtida com a prática dos crimes nos termos do art.º 110.º, n.ºs 1, 3, 4 e 6, do C.P., sem prejuízo dos direitos do lesado.
As arguidas apresentaram Contestação, negando ter praticado qualquer facto que consubstanciasse a prática de um qualquer crime, pugnando pela sua absolvição, tendo a arrolado testemunhas.
Procedeu-se à audiência de julgamento, com a observância do formalismo legal.
O processo mantém-se isento de nulidades, exceções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
Fundamentação: Factos Provados (tendo presente que a enumeração concreta dos factos provados refere-se apenas aos factos com interesse e relevância para a decisão da causa, ou seja, essenciais à caracterização do crime e circunstâncias relevantes para a determinação da pena, e não aos factos inócuos, excrescentes ou irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 27-05-2020, processo n.º 825/18.0PBMAI.P1, in www.dgsi.pt): I.
1. Pelo menos desde 2011, CC era cliente assíduo do estabelecimento comercial de cabeleireiro para homens denominado “A...”, situado na Rua ..., ..., Vila Nova de Gaia.
2. Pelo menos desde 2015, AA, aqui arguida, passou a desempenhar funções como barbeira naquele estabelecimento comercial, por vezes atendendo aquele CC, tendo ganhado a sua confiança.
3. Em data não concretamente apurada, mas situada entre julho e dezembro de 2016, AA, aqui arguida, e CC acordaram verbalmente que este entregaria àquela 2.000 EUR, que a mesma restituiria no prazo de um mês.
4. Contudo, apesar de CC, em data situada naquele período, ter entregado tal quantia em numerário à arguida AA, esta não a restituiu àquele até hoje.
5. Posteriormente, e até 17-04-2017, a arguida AA passou a confidenciar a CC que tinha graves problemas de saúde, nomeadamente doença do foro oncológico, que o cancro tinha ressurgido, que precisava de tratamentos médicos urgentes, bem como que a sua filha, BB, aqui também arguida, havia sido vítima de um grave acidente de viação e, nessa sequência, precisava de mais dinheiro para fazer face àquelas situações, o que não correspondia à verdade, pedindo àquele para a ajudar financeiramente emprestando-lhe dinheiro, garantindo que o iria devolver.
6. CC, acreditando na versão da arguida AA, e pressupondo que o dinheiro lhe iria ser devolvido, como ela lhe garantira, transferiu para a conta bancária com o NIB ...95, do Banco 1..., titulada pela arguida BB, as seguintes quantias monetárias:
Data
Montante (€)
20-02-2017
1
20-02-2017
6.000
21-02-2017
3.800
01-03-2017
7.800
06-03-2017
3.600
08-03-2017
4.200
24-03-2017
3.450
27-03-2017
3.950
31-03-2017
5.000
03-04-2017
2.500
04-04-2017
1.800
07-04-2017
2.950
17-04-2017
6.700
Total
60.151
7. A arguida BB passou a utilizar as referidas quantias monetárias em proveito próprio e da sua mãe, apoderando-se ambas das mesmas.
8. No dia 22-04-2017, a arguida AA, fazendo-se passar por um primo da mesma, enviou através do telemóvel com o cartão número ...10 para o telemóvel de CC com o número ...12 uma mensagem onde exigia que este efetuasse um depósito bancário no valor de 12.650 EUR para que a arguida AA pudesse receber tratamento médico urgente, advertindo-o que caso o não fizesse atentaria contra a integridade física da família de CC e arruinaria a vida deste contando à sua mulher que este teria alegadamente um caso amoroso com a arguida AA.
9. Pese embora CC tenha ficado receoso, não cedeu às exigências da arguida AA e não lhe voltou a entregar qualquer outra quantia.
10. A arguida AA agiu continuamente durante o período de 20-02-2017 a 17-04-2017 sabendo e querendo fazer crer a CC que, ao contrário da realidade, padecia dos referidos problemas e estava disposta a restituir as quantias que lhe fossem entregues para a ajudar, convencendo-o da veracidade da sua alegada situação e seriedade da sua intenção, levando-o a efetuar as mencionadas transferências, com o intuito concretizado de obter, para si e para a sua filha, um enriquecimento patrimonial ilegítimo de 60.151 EUR, que sabia não lhes ser devido, como forma de obter fundos necessários para suportar outras despesas da vida quotidiana destas.
11. A arguida AA agiu sabendo e querendo anunciar um mal sobre integridade física da família de CC e um mal referente ao casamento deste por forma a constrangê-lo a que ele lhe entregasse a quantia de 12.650 EUR, sabendo que não lhe era devida, com intenção de obter um enriquecimento ilegítimo, o que não logrou obter por razões alheias à sua vontade.
12. A arguida BB agiu sabendo e querendo facultar à sua mãe a conta bancária de que era titular, por forma a que ali fossem depositadas as ditas quantias, que sabia terem sido obtidas da dita forma ilícita pela sua mãe, detendo-as, com intenção de alcançar um proveito económico para si e para a sua mãe a que não tinham direito.
13. Agiram de forma livre e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. II.
14. À data dos factos, tal como atualmente, a arguida AA vivia com o seu ex-marido e a filha, a arguida BB, num apartamento arrendado por aquele, de tipologia 2, inserido em contexto residencial de Vila Nova de Gaia, com condições de habitabilidade e conforto.
15. Possui o 6.º ano de escolaridade, concluído em idade regular, não tendo prosseguido os estudos para começar a trabalhar em serviços de limpeza, para apoiar economicamente o grupo familiar de origem.
16. Com 22 anos de idade aprendeu o ofício de cabeleireira, tendo tido formação profissional certificada para o exercício da atividade de cabeleireira. Exerceu tal atividade em salões de cabeleireiro do Porto e de Vila Nova de Gaia, tendo-se especializado, posteriormente, em corte de cabelo masculino.
17. Desde 2020 que a arguida AA se encontra reformada por invalidez, estando-lhe atribuído um grau de incapacidade de 76%.
18. À data dos factos, a arguida AA auferia rendimentos líquidos na ordem dos 750 EUR mensais, provindos da atividade laboral exercida.
19. Atualmente, aufere mensalmente o rendimento líquido de 265 EUR a título de reforma por invalidez.
20. O valor dos rendimentos líquidos do agregado cifra-se em 1 300 EUR, totalizando o valor total das despesas/encargos fixos do agregado em 560 EUR, sendo 440 EUR a título de renda e 120 EUR a título de consumos domésticos.
21. A arguida AA apresenta características de personalidade do cluster B, com traços histriónicos e antissociais muito marcados, que tende a explorar terceiros, usando muitas vezes a sedução e a sensualidade, a dramatização de emoções, a atratividade física, o charme superficial e desprovido de sentimento profundo, para obter vantagens sobre as outras pessoas e/ou em seu proveito próprio, com notável falta de sentido de responsabilidade, culpa ou remorso.
22. A arguida AA é acompanhada na especialidade de psiquiatria do Centro Hospitalar .../... desde 2013, com medicação psiquiátrica associada, por sintomatologia depressiva, abuso etílico e perturbação de comportamento pautados por impulsividade, e em consulta externa desde julho de 2017, com adesão errática às diferentes intervenções propostas.
23. Tentou diversas vezes o suicídio e teve internamentos hospitalares voluntários subsequentes em unidades psiquiátricas do Porto e Vila Nova de Gaia.
24. Entre 2015 e 2018 teve 5 internamentos e esteve internada recentemente na unidade de psiquiatria do Centro Hospitalar .../... entre 14 e 17 de novembro de 2023.
25. Em 18-09-2019 a arguida sofreu diversas fraturas na sequência de uma tentativa de suicídio por queda de uma altura de um segundo andar, que resultaram em sequelas graves ao nível da mobilidade, estando a aguardar por nova cirurgia a um pé, tendo sido na decorrência desses problemas que a arguida foi reformada por invalidez.
26. Beneficia do apoio dos familiares, que se têm constituído como o principal suporte para as atividades de vida diárias.
I. (…)
27. Não são conhecidos antecedentes criminais às arguidas.
Factos Não Provados (tendo presente que a enumeração concreta dos factos não provados refere-se apenas aos factos com interesse e relevância para a decisão da causa, ou seja, essenciais à caracterização do crime e circunstâncias relevantes para a determinação da pena, e não aos factos inócuos, excrescentes ou irrelevantes para a qualificação do crime ou para a graduação da responsabilidade do arguido – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 27-05-2020, processo n.º 825/18.0PBMAI.P1, in www.dgsi.pt):
Não se provaram quaisquer outros factos para além ou em contradição com os factos assentes, nomeadamente, que: I.
1. Aquando dos factos em causa, a arguida AA fosse a proprietária do referido estabelecimento comercial (cfr. 1. do despacho de acusação, para onde remete o despacho de pronúncia);
2. Para a efetivação das ditas transferências, a arguida AA tenha dito a CC que estava insolvente (cfr. 3. do despacho de acusação, para onde remete o despacho de pronúncia);
3. No dia 02-01-2017, em local e hora não concretamente apurados, CC tenha entregado à arguida AA a quantia de 2.200 EUR em numerário ou que assim não tenha sido (cfr. 4. do despacho de acusação, para onde remete o despacho de pronúncia);
4. Entre o dia 03-01-2017 e o dia 10-02-2017, em locais e horas não concretamente apurados, CC tenha entregado à arguida AA a quantia total de 18.800 EUR em numerário ou que assim não tenha sido (cfr. 4. do despacho de acusação, para onde remete o despacho de pronúncia);
5. No dia 26 de abril de 2017, a arguida AA tenha enviado do telemóvel número ...10 para o telemóvel número ...12 uma mensagem onde alegava ter estado no Instituto Português de Oncologia do Porto e que precisava urgentemente da quantia de 8 750 EUR para tratamentos médicos, o que era mentira (cfr. 11. do despacho de acusação, para onde remete o despacho de pronúncia);
6. A arguida AA não tenha obtido um qualquer enriquecimento ilegítimo, nem o tenha querido obter (cfr. 4. e 43. da sua contestação);
7. A arguida AA não tenha atuado com astúcia e não tenha provocado erro ou engano em CC para este lhe efetuar as ditas transferências (cfr. 5., 6., 41. e 42. da sua contestação);
8. CC frequentasse aquele estabelecimento comercial de 15 em 15 dias (cfr. 17. da sua contestação);
9. A arguida AA nunca tenha dito a CC que tinha graves problemas de saúde, em concreto doença do foro oncológico (cfr. 20. da sua contestação);
10. O n.º de telemóvel ...10 não fosse utilizado pela arguida AA (cfr. 51. da sua contestação);
11. A arguida BB não tenha cometido a conduta dada como provada (cfr. 5. da sua contestação);
12. A arguida BB em momento algum, tenha tido conhecimento efetivo que os montantes depositados na sua conta poderiam provir de um qualquer alegado facto ilícito, resultante da conduta da arguida AA, sendo que a arguida BB nem sequer sabia da existência dos mesmos (cfr. 13. e 14. da sua contestação); e
13. A referida conta bancária sempre tenha sido gerida de facto, exclusivamente pela sua progenitora, a arguida AA, sem qualquer intervenção da arguida BB (cfr. 20. da sua contestação).
Motivos de Facto, Indicação e Exame Crítico das Provas: I.
As arguidas, no uso de um direito que lhes assiste, não prestaram declarações em audiência de julgamento (cfr. arts. 61.º, n.º 1, al. d), e 343.º, n.º 1, do C.P.P.).
Obviamente que não foi extraída qualquer ilação a nível da factualidade provada e não provada do facto de as arguidas se terem remetido em audiência de julgamento ao silêncio sobre os factos que lhes eram imputados. No entanto, se por um lado o silêncio, sendo um direito que assiste a todo o arguido, não o pode prejudicar (cfr. arts. 61.º, n.º 1, al. d), 343.º, n.º 1, e 345.º, n.º 1, do C.P.P.), o certo é que dele também não pode pretender colher benefícios. Na verdade, a proibição do desfavorecimento traduz-se, desde logo, na impossibilidade de extrair do silêncio do arguido, seja ele total ou parcial, ilações de prova ou presunção judicial de culpabilidade, o que não foi feito. Não obstante, tendo as arguidas prescindido, com o seu silêncio, de esclarecer e dar a sua visão pessoal sobre os factos que ficaram demonstrados pela prova produzida, conforme a seguir melhor se explicitará, assim impedindo o afastamento da sua culpabilidade, não podem depois pretender que foram prejudicadas pelo seu silêncio (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10-01-2008, processo n.º 07P3227, in www.dgsi.pt). Na verdade, as arguidas não podem esperar que o seu silêncio reforce a presunção de inocência, anulando o valor das outras provas demonstrativas da culpabilidade, sendo certo que, em geral, uma prova não contraditada, não obstante a oportunidade de o ter sido, é mais credível e persuasiva (cfr. SOARES, Manuel, in “Proibição de desfavorecimento do arguido em consequência do silêncio em julgamento – a questão controversa das ilações probatórias desfavoráveis”, Julgar, n.º 32, Livraria Almedina, pág. 37 e 38). Em audiência de julgamento, CC deu conta de conhecer a arguida AA do referido estabelecimento comercial onde se dirigia uma vez a cada mês e meio para cortar o cabelo. Acresce que a dita testemunha deu conta desde que data ali era cliente, bem como a partir de que data ali passou a trabalhar a arguida AA, explicando que, a partir de então, por vezes, era atendido por esta.
De acordo com as mais elementares regras da experiência comum e da normalidade do acontecer é natural que, fruto da prestação de serviços efetuada pela arguida AA àquele CC, os mesmos fossem entabulando conversas.
Acresce que aquele CC tinha no seu telemóvel registado o n.º de telemóvel ...10 como sendo o do “...”, sendo evidente que, a partir das mensagens que enviou para o mesmo e dele recebeu, estabelecia contactos com a própria arguida AA. Na verdade, CC enviou mensagens para esse número chamando “AA” à sua interlocutora, que responde por esse nome, percebendo-se que a mesma tem uma filha (cfr. fls. 6, 7 e 24 a 33 do Volume I). Apesar de a troca de mensagens permitir concluir que os mesmos não possuíam grande intimidade, face à forma como se tratavam, o certo é que é evidente que denotam alguma confiança.
Em 11-03-2017 foi emitida uma fatura em nome de “AA”, correspondentes ao nome e sobrenome da arguida AA, tendo a compradora indicado o n.º ...10 como sendo o seu número de telemóvel (cfr. fls. 218 v.º e 219 do Volume I). Acresce que 17-03-2017 foi novamente emitida uma fatura em nome de “AA”, correspondentes ao nome e sobrenome da arguida AA, tendo a compradora indicado o n.º ...10 como sendo o seu número de telemóvel (cfr. fls. 219 v.º e 220 do Volume I).
Deste modo, é inequívoco que tal número de telemóvel era, à data, utilizado pela arguida AA.
Saliente-se que as mensagens recebidas no equipamento de comunicação (telemóvel) de CC, e por ele disponibilizadas, estão a coberto de qualquer procedimento de validação judicial, tratando-se de documentos e, assim, de meios de prova fornecidos de forma espontânea pelo recetor e seu legítimo detentor, não constituindo o seu uso em processo penal um meio de prova proibido (cfr. acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 03-04-2013, processo n.º 856/11.1PASJM.P1, e de 20-01-2016, processo n.º 1145/08.4PBMTS.P1, in www.dgsi.pt).
Convém ter presente que, não obstante ter sido solicitado à “B..., S.A.” determinadas informações sobre o referido n.º ...10, referentes ao período de 01-04-2017 a 30-01-2018 (cfr. fls. 41 a 44 do Volume I), o certo é que a resposta dada por aquela se reporta apenas ao período de 01-09-2017 a 30-01-2018 (cfr. fls. 59 a 63 do Volume I) e, assim, após os factos aqui em causa. Deste modo, a informação prestada segundo a qual o primeiro e último registo de tal número teria ocorrido em 23-11-2017 terá que ser entendido como reportando-se ao período considerado na resposta dada (01-09-2017 a 30-01-2018) que se reporta, como resulta do exposto, a datas posteriores aos factos aqui em causa. Deste modo, tal circunstância, por si só, não demonstra que, de facto, as ditas mensagens não tenham sido trocadas nas datas em que ficaram registadas no telemóvel de CC. Não existe qualquer dúvida que CC, entre 20-02-2017 e 17-04-2017, realizou diversas transferências para a referida conta bancária, num total de 60 151 EUR (cfr. fls. 15 a 23 e 118 a 129 do Volume I). É certo que, em relação a algumas dessas transferências, dos autos consta o original e a cópia do documento comprovativo da sua realização no multibanco. Contudo, como é evidente, nos casos em que tal aconteceu, tais documentos só foram valorados como demonstrativos de um único movimento. Aliás, o extrato bancário da conta beneficiária permitiu concluir que, nos dias em causa, apenas uma transferência ocorreu. Por outro lado, esse mesmo extrato bancário permitiu concluir pela verificação de outras transferências de CC relativamente às quais não foi apresentado qualquer documento comprativo da sua efetivação quer num banco quer num multibanco. Na verdade, todas elas estão aí identificadas pelo mesmo descritivo (“Transf CC”, “TRF MB CC” ou “TRF MB CC”):
Data
Montante (€)
Fls. Volume I
20-02-2017
1
119 e 124 v.º
20-02-2017
6.000
15
21-02-2017
3.800
119 v.º e 125
01-03-2017
7.800
16
06-03-2017
3.600
120 e 125 v.º
14-03-2017
8.400
120 v.º e 126
08-03-2017
4.200
120 e 125 v.º
24-03-2017
3.450
19 e 20
27-03-2017
3.950
19 e 20
31-03-2017
5.000
19 e 21
03-04-2017
2.500
19 e 21
04-04-2017
1.800
19 e 22
07-04-2017
2.950
19 e 22
17-04-2017
6.700
19 e 23
Atendendo à numeração da própria informação bancária no que se refere ao extrato bancário da dita conta, convém ter presente que as informações constantes de fls. 12 a 22, onde constam, para além do mais, a descrição dos movimentos e montante em causa, são o complemento das informações constantes de fls. 1 a 11, onde constam, para além do mais, as datas dos respetivos movimentos. Assim, a informação bancária numerada pela instituição bancária em causa com o n.º 12 é o complemento da fls. 1, a com o n.º 13 daquela com o n.º 2, a com o n.º 14 daquela com o n.º 3, a com o n.º 15 daquela como n.º 4, a com o n.º 16 daquela com o n.º 5, a com o n.º 17 daquela com o n.º 6, a com o n.º 18 daquela com o n.º 7, a com o n.º 19 daquela com o n.º 8, a com o n.º 20 daquela com o n.º 9, a com o n.º 21 daquela com o n.º 10 e a com o n.º 22 daquela com o n.º 11 (cfr. fls. 118 a 129 do Volume I).
Por outro lado, a partir da informação bancária prestada (cfr. fls. 50 a 56 do Volume I), foi possível concluir que a dita conta bancária beneficiária de todas essas transferências era apenas titulada pela arguida BB, filha da arguida AA, conforme decorre das respostas à identificação dadas pelas arguidas, às quais estavam obrigadas a responder, e com verdade (cfr. art.º 342.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.P.), e do próprio documento de identificação da arguida BB (cfr. fls. 53 do Volume I).
CC deu conta de as ditas transferências terem sido antecedidas de outras entregas em numerário. Na verdade, referiu que a primeira vez que a arguida AA lhe pediu ajuda financeira estava muito aflita pois o patrão dela naquele estabelecimento comercial tinha deixado o salão após deixar de pagar a renda, sendo que se ela pagasse 2.000 EUR de rendas em atraso ao senhorio, ela ficava com o salão e garantia o posto de trabalho, tendo-se comprometido a restituir-lhe tal quantia no mês seguinte com o apuro do dito estabelecimento comercial. Aquele CC deu conta de ter acedido então ajudar a arguida AA, tendo-lhe entregado a quantia solicitada em numerário, ficando acordado entre os dois que a mesma lhe restituiria tal quantia no mês seguinte.
Ora, do depoimento de CC resultou ainda que, após, deixou de ver naquele estabelecimento comercial a pessoa que até aí conhecia como sendo o seu explorador, tendo aquele estabelecimento comercial continuado a funcionar e nele também continuado a trabalhar a arguida AA.
De acordo com CC, tudo teria ocorrido no segundo semestre de um ano que inicialmente disse ser 2017, mas que depois se concluiu ser 2016. Na verdade, segundo aquele, tudo teria ocorrido antes de qualquer transferência ser efetivada.
Ora, conferindo credibilidade a tal versão, de acordo com o relatório social junto, teria sido precisamente em 2016 que teria ocorrido uma alteração na gerência daquele estabelecimento comercial (cfr. ref.ª 37483601 de 05-12-2023).
Assim sendo, todos estes meios de prova permitiram concluir que tal entrega de dinheiro se traduziu no cumprimento da obrigação que CC assumiu perante a arguida AA ao celebrarem um empréstimo com os referidos contornos, conclusão que, de resto, vai ao encontro da convicção do próprio CC expressa em audiência de julgamento. Na verdade, não só não ficou demonstrado que o motivo então invocado não correspondesse à verdade, como o mesmo não foi sequer determinante da realização da referida disposição patrimonial.
É certo que CC deu ainda conta de que, passado uma semana, a arguida AA lhe teria novamente pedido ajuda financeira para pagar umas dívidas, dado que estaria insolvente, correndo o risco de lhe penhorarem o estabelecimento comercial, comprometendo-se a devolver a quantia em causa juntamente com a já emprestada. CC deu conta de, para o efeito, lhe ter novamente entregado uma quantia monetária em numerário, tendo sido a última vez que lhe entregou dinheiro em numerário. Contudo, quanto ao valor entregue, oscilou entre 4 000 EUR e 5 000 EUR.
É certo que CC tinha na sua posse uma notificação dirigida à arguida AA, datada de 07-02-2017, de acordo com a qual a mesma devia à Segurança Social a quantia de 3.311,84 EUR (cfr. fls. 17 e 18 do Volume I), montante inferior àqueles valores. É também certo que nas mensagens escritas que se encontravam no telemóvel de CC resulta que este enviou uma mensagem à arguida AA onde fala num total de 18.800 EUR que teria entregado pessoalmente a esta (cfr. fls. 24 do Volume I). Contudo, tal mensagem não é seguida de qualquer outra, enviada pela arguida AA, que confirmasse ou tomasse como certo tal valor. Por outro lado, conforme resulta do já exposto, do depoimento de CC, prestado em audiência de julgamento, não resultou que o mesmo lhe tivesse entregado em numerário tal quantia global.
Deste modo, embora não se tenha duvidado da efetiva ocorrência daquele inicial empréstimo de 2.000 EUR, o certo é que a oscilação quer quanto ao montante entregue em numerário nesta segunda vez quer ao montante global que lhe teria sido entregue em numerário, bem como a falta de qualquer outro meio de prova que corroborasse a efetivação de tal entrega, não permitiram concluir, com certeza, que outra entrega em numerário tenha, de facto, ocorrido.
CC deu ainda conta de ter efetuado as ditas transferências de dinheiro, apesar de a arguida AA lhe não ter restituído ainda qualquer quantia, pois a mesma passou a confidenciar-lhe que tinha graves problemas de saúde, nomeadamente doença do foro oncológico, que o cancro tinha ressurgido, que precisava de tratamentos médicos urgentes, bem como que a sua filha, BB, aqui também arguida, havia sido vítima de um grave acidente de viação. Nessa sequência, segundo referiu, a arguida AA referia-lhe que precisava de mais dinheiro para fazer face àqueles problemas, pedindo-lhe para a ajudar financeiramente emprestando-lhe dinheiro, garantindo que o iria devolver, tanto mais que estaria a ser ultimado um empréstimo bancário por um familiar que lhe iria permitir restituir-lhe a quantia global que o mesmo já lhe tinha entregado.
A dita versão mostrou-se credível desde logo perante a evidência de as ditas transferências terem, de facto, sido efetivadas, bem como no teor das mensagens trocadas que demonstram terem sido invocadas as ditas justificações para os pedidos de entrega de dinheiro (cfr. fls. 24 a 33 do Volume I). Acresce que CC tudo explicou, de forma visivelmente emocionada e constrangida, apercebendo-se, agora, do logro em que caíra, o que conferiu credibilidade ao seu depoimento.
Na verdade, ficou evidente do seu relato que, apesar de ser então gestor de empresas, era pessoa impressionável e altruísta, tendo efetivamente acreditado na veracidade do que lhe era transmitido pela arguida AA e no desespero que esta lhe transmitia, o que foi determinante para a realização das sucessivas transferências bancárias.
Por seu turno, conforme resulta do relatório da perícia de psiquiatria a que a arguida AA foi submetida (cfr. fls. 334 a 337 do Volume I), a mesma apresenta características de personalidade com traços histriónicos e antissociais muito marcados, que tende a explorar terceiros, usando muitas vezes a sedução e a sensualidade, a dramatização de emoções, a atratividade física, o charme superficial e desprovido de sentimento profundo, para obter vantagens sobre as outras pessoas e/ou em seu proveito próprio, com notável falta de sentido de responsabilidade, culpa ou remorso.
É certo que nas ditas mensagens se menciona valor mais baixo do que aquele correspondente à totalidade das transferências efetuadas (cfr. fls. 25 do Volume I) como também valor superior (cfr. fls. 24 do Volume I). Contudo, não existiu qualquer prova de terem existido outras transferências diferentes das demonstradas pelos documentos comprovativos da sua efetivação e pelo extrato bancário da conta beneficiária, pelo que só estas se consideraram ter ocorrido.
O facto de nenhuma das justificações avançadas corresponder à verdade resultou das informações recolhidas (cfr. fls. 58 do Volume I), bem como da própria utilização que foi feita do dinheiro depositado naquela conta bancária (cfr. fls. 118 a 125 do Volume I). Na verdade, a descrição dos movimentos subsequentes àquelas transferências demonstra que o mesmo não foi utilizado em qualquer uma das situações invocadas para a sua realização. No que se refere à mensagem de 22-01-2017 relevou o seu teor (cfr. 6, 7 e 29 do Volume I). Sendo o número de telemóvel de onde a mesma foi enviada utilizado pela arguida AA, a quem se deveu a realização de todas as transferências de dinheiro anteriores por parte de CC, é evidente que só ela tinha efetivo interesse na efetivação de nova entrega, pelo que se concluiu ter sido a mesma a emissora de tal mensagem.
CC deu conta de não ter feito mais nenhuma transferência de dinheiro, sendo que após lhe ter sido exigido mais dinheiro, teria apresentado queixa na polícia. Na verdade, segundo explicou, ficou receoso que algum mal fosse feito à sua família, versão que se mostra absolutamente lógica.
É certo que, segundo CC, tal exigência teria sido feita num telefonema, não tendo qualquer lembrança de ter recebido aquela mensagem. No entanto, não se poderá ignorar o tempo já decorrido, sendo evidente que tal mensagem foi enviada, pois encontrava-se arquivada no telemóvel daquele. Por outro lado, datando a mensagem de 22-04-2017, a queixa foi apresentada em 26-04-2017, conforme decorre da data aposta no auto lavrado (cfr. fls. 2 do Volume I).
Das mensagens juntas não resulta que tenha sido enviada do referido número ...10 uma mensagem no dia 26-04-2017 na qual a arguida AA, alegando ter estado no Instituto Português de Oncologia do Porto, referia a CC que precisava urgentemente da quantia de 8 750 EUR para tratamentos médicos. Acresce que CC, em audiência de julgamento, referiu não ter qualquer lembrança de a ter recebido.
Deste modo, não ficou demonstrado que semelhante mensagem tenha, de facto, sido enviada pela arguida AA a CC.
Segundo as mais elementares regras da experiência comum e da normalidade do acontecer, as ditas quantias foram depositadas por CC na conta bancária da arguida BB por esta lhe ter sido indicada para o efeito pela arguida AA, conforme resultou do depoimento daquele. Ora, não obstante a dita conta bancária ser apenas titulada pela arguida BB, é inequívoco que esta conta bancária era utilizada em benefício de ambas as arguidas. Na verdade, existem diversos movimentos daquela conta bancária efetuados por ou em benefício da arguida AA.
No dia 13-03-2017 foi debitada na dita conta bancária a quantia de 309, 99 EUR a favor da C... (cfr. fls. 120 v.º, 126 e 160 do Volume I), tendo a respetiva fatura sido emitida em nome da arguida AA (cfr. fls. 218 v.º e 219 do Volume I).
No dia 17-03-2017 foi debitada na dita conta bancária a quantia de 128, 99 EUR a favor da C... (cfr. fls. 120 v.º e 126 do Volume I), tendo a respetiva fatura sido emitida em nome da arguida AA (cfr. fls. 219 v.º, 220 e 163 v.º do Volume I).
Por outro lado, no dia 01-03-2017 foi debitada na dita conta bancária a quantia de 800 EUR (cfr. fls. 119 v.º, 125 e 152 do Volume I) a favor de uma conta bancária titulada por GG (cfr. fls. 231 a 234 do Volume I) que deu conta de a única ligação financeira que tinha com as arguidas era um empréstimo de dinheiro que efetuou à arguida AA (cfr. fls. 267 e 270 do Volume I).
No entanto, também existem diversos movimentos bancários efetuados por ou em benefício da arguida BB.
Os levantamentos de dinheiro em 02-03-2017 (3 000 EUR), 15-03-2017 (3 000 EUR), 17-03-2017 (1.000 EUR), 03-04-2017 (1.000 EUR), 19-04-2017 (2.000 EUR) foram efetuados pela própria arguida BB, conforme atestam os documentos juntos (cfr. fls. 137, 138, 139, 142 e 143 do Volume I) onde constam assinaturas em tudo semelhante, mesmo a olho nu, àquela efetuada pelo próprio punho da arguida BB na obtenção do seu cartão de cidadão (cfr. fls. 92 do Volume I).
Por outro lado, os movimentos a débito efetuados em 09-03-2017 (no valor de 53 EUR a favor da Clínica Veterinária ...) e 20-03-2017 (no valor de 301, 29 EUR a favor da D...) foram também efetuados por pessoa que se identificou como sendo BB (cfr. fls. 209, 239 do Volume I).
Por outro lado, no dia 09-03-2017 foi debitada na dita conta bancária a quantia de 600 EUR (cfr. fls. 120, 125 v.º e 157 v.º do Volume I) a favor de uma conta bancária titulada por HH (cfr. fls. 241 a 244 do Volume I) destinada ao pagamento de uma renda devida pela arguida BB (cfr. fls. 269 e 276 do Volume I).
Finalmente, o depósito de dinheiro em 19-01-2018 (780 EUR) foi efetuado pela própria arguida BB, conforme atesta o documento junto (cfr. fls. 141 do Volume I) onde consta uma assinatura em tudo semelhante, mesmo a olho nu, àquela efetuada pelo próprio punho da arguida BB na obtenção do seu cartão de cidadão (cfr. fls. 92 do Volume I).
Sob o ponto de vista subjetivo, pertencendo a factualidade em causa ao mundo interior do agente, ou é revelada sob a forma de confissão, ou tem de ser extraída dos factos objetivos demonstrados, isto é, inferida através da consideração de determinado circunstancialismo objetivo com idoneidade suficiente para revelá-la, tendo em conta as regras da experiência comum e da normalidade do acontecer. Em suma, neste último caso, terão que ser retirados dos factos externos as necessárias ilações, de forma a poder ou não concluir que o agente se comportou internamente da forma como o revelou externamente(cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 28-02-2012, processo n.º 468/06.1GFSTB.E1, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 19-12-2012, processo n.º 497/08.0GAMCN.P1, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 04-03-2015, processo n.º 4/13.3TBSAT.C1, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21-02-2019, processo n.º 406/08.7JDLSB.L1-9, in www.dgsi.pt).
Assim, os factos referentes ao plano subjetivo foram extraídos dos factos objetivos demonstrados, de acordo com as regras da experiência comum e da normalidade do acontecer, face à consciência por parte da comunidade em geral do carácter ilícito e censurável de semelhantes comportamentos.
Convém ter presente que a atuação das arguidas, embora se tenha prolongado entre 20-02-2017 e 17-04-2017, foi praticada contra a mesma pessoa, através de atos homogéneos, sendo que entre as várias transferências de dinheiro mediou um curto hiato temporal, tendo todos os atos sido praticados no mesmo contexto, de cunho permanente, pelo que foi possível concluir que aquela prática criminosa se inscreveu num mesmo desígnio criminoso.
Atenta a ligação familiar existente entre as arguidas e o uso que ambas fizeram do dinheiro em causa, face aos montantes envolvidos, as regras da experiência e da normalidade do acontecer impõem a conclusão de que a arguida BB teria que saber a concreta proveniência ilícita do mesmo, tendo agido com o propósito de facultar à sua mãe tal conta bancária e deter as ditas quantias, por forma a obter, quer ela própria quer a sua mãe, um proveito económico a que sabia não terem direito.
II.
Os factos referentes às condições pessoais da arguida AA, resultaram do relatório social elaborado pelos serviços de reinserção social (cfr. ref.ª 37483601 de 05-12-2023), do relatório da perícia de psiquiatria a que foi submetida (cfr. fls. 334 a 337 do Volume I), do despacho do Ministério Público proferido no processo administrativo n.º 1851/19.8Y2VNG (cfr. fls. 313 a 319 do Volume I), bem como as informações prestadas sobre internamentos sofridos (cfr. fls. 37 e 57 do Volume I e ref.ª 37313548 de 17-11-2023).
III.
Os factos referentes às condições pessoais da arguida BB, resultaram do relatório social elaborado pelos serviços de reinserção social (cfr. ref.ª 37483598 de 05-12-2023).
IV.
No que se refere à ausência de antecedentes criminais, relevaram os certificados do registo criminal referentes às arguidas (cfr. ref.ªs 37430951 e 37430955 de 29-11-2023).
Os demais factos dados como não provados ficaram a dever-se a uma total falta de prova sobre a matéria em causa.
Enquadramento Jurídico-Penal:
I. Dos Crimes Imputados
Do crime de Burla Qualificada
Comete o crime de burla quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial (cfr. art.º 217.º, n.º 1, do C.P.), que será qualificado se o prejuízo patrimonial foi de valor elevado (cfr. art.º 218.º, n.º 1, do C.P.), isto é, aquele que exceder 50 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto (cfr. art.º 202.º, al. a), do C.P.) ou de valor consideravelmente elevado (cfr. art.º 218.º, n.º 2, al. a), do C.P.), isto é, aquele que exceder 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto (cfr. art.º 202.º, al. b), do C.P.).
O bem jurídico que se visa tutelar reside no património globalmente considerado e não a lealdade, transparência, boa-fé, verdade das transações ou a confiança da comunidade nessa mesma lealdade, transparência, boa-fé ou verdade das transações, isoladamente ou em conjunto com o património (cfr. COSTA, A. M. Almeida, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 275, § 3).
O crime de burla constitui um crime de dano uma vez que só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efetivo no património do sujeito passivo da infração ou de terceiro, mesmo que não ocorra efetivo enriquecimento ilegítimo do agente ou de terceiro.
A determinação do que se deverá entender por prejuízo patrimonial encontra-se, todavia, condicionada, pelo conteúdo a dar ao bem jurídico património.
Segundo a conceção jurídica, o património seria o conjunto de todas as posições tituladas por um direito subjetivo, ou seja, os direitos subjetivos patrimoniais pertencentes a uma mesma pessoa.
Contudo, apenas restringindo a tutela aos direitos subjetivos, seriam deixadas de fora outras situações não subsumíveis àquele conceito e que, pela importância económica que revestem, se apresentavam merecedoras de tutela como é o caso das legítimas expectativas baseadas no princípio da boa-fé contempladas pelo direito privado. Por outro lado, tal orientação seria demasiado ampla abrangendo no conceito de património posições que não têm qualquer significado económico e assumem, tão só, um valor afetivo
Para a conceção económica, o património seria o conjunto de bens economicamente relevantes pertencentes a um mesmo sujeito.
No entanto, a defender esta tese, o direito penal seria chamado a tutelar posições que, apesar de envolverem uma vantagem económica, se poderiam encontrar proibidas ou qualificadas como ilícitas por outros ramos jurídicos.
Finalmente, em sentido jurídico-penal, deve entender-se por património o conjunto das situações ou posições com valor ou utilidade económica, detida por uma pessoa e cuja disponibilidade e fruição por banda do sujeito passivo o ordenamento jurídico proteja e tutele ou, pelo menos, não desaprove (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo, in “Crime de emissão de cheque sem provisão”, Coletânea de Jurisprudência, 1992, Tomo III, pág. 66).
Para esta última, que supera o unilateralismo das outras duas conceções, património, em sentido jurídico-penal, deve ser entendido como
A esta adere a maioria da doutrina e jurisprudência, já que a mesma permite ultrapassar a visão unilateral das restantes.
A burla integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma particular forma de comportamento. Traduz-se ela na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar atos de que resultam prejuízos próprios ou alheios.
Porém, não basta o simples emprego de um meio enganoso, tornando-se necessário que ele consubstancie a causa efetiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo. Por seu turno, também não basta a simples verificação do estado de erro sendo necessário que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, dos atos de que decorre o prejuízo patrimonial.
Assim, deverá, pois, existir um duplo nexo de imputação objetiva entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de atos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio) e, depois, entre os últimos e a efetiva verificação do prejuízo patrimonial. A qualquer dos momentos em que se desdobra o duplo nexo de imputação objetiva subjazem os pressupostos da chamada teoria da adequação (cfr. art.º 10.º, n.º 2, do C.P.) pelo que a sua verificação depende das circunstâncias do caso, aí se incluindo as características do burlado (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 20-12-2006, processo n.º 06P3383, in www.dgsi.pt).
Deste modo, a afirmação da verdade pelo agente pode não excluir a punição a título de burla se, atento o contexto em que foi proferida, assumir o prevalente sentido de uma declaração não séria ou jocosa e, nessa medida, se mostrar insuscetível de pôr termo ao estado de erro em que se encontra o sujeito passivo. Da mesma forma, atendendo a particular credulidade ou falta resistência do burlado derivada, por exemplo, da sua fragilidade intelectual, de inexperiência ou de especiais relações de confiança com o agente, admite-se a possibilidade de concluir pela idoneidade de um meio enganador via de regra incapaz de persuadir a generalidade das pessoas. Exige a lei que o erro do sujeito passivo tem que provocado astuciosamente. Assim, a conduta do agente tem de comportar a manipulação de outra pessoa, caracterizando-se por uma sagacidade ou penetração psicológica que combina a antecipação das reações do sujeito passivo com a escolha dos meios idóneos para conseguir o objetivo em vista. Longe de envolver, de forma inevitável, a adoção de processos rebuscados ou engenhosos, aquela sagacidade comporta uma regra de economia de esforço, limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características da situação e da vítima, pelo que a adequação dos meios empregues, atentas as particularidades do caso, pode encontrar o ponto ótimo no menos sofisticado dos procedimentos. Ora, é numa tal adequação de meios que radica a inteligência ou astúcia que preside ao crime da burla, sendo que só tal perspetiva se harmoniza com o entendimento de que a idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente se afere tomando em consideração as características do concreto burlado.
Tendo presente que a burla é um crime com participação da vítima uma vez que é o próprio sujeito passivo que pratica os atos de diminuição patrimonial, a burla integra, em último termo, uma hipótese de autolesão estruturalmente análoga às situações de autoria mediata em que o domínio do facto do homem de trás deriva precisamente do estado de erro do executor. Ora, também no caso da burla se exige um domínio do erro como pressuposto da responsabilização do agente pelo crime consumado, sendo em tal domínio, na medida em que exprime a adequação do comportamento do agente às características do caso concreto, que terá de ancorar o fundamento da imputação do resultado à conduta, esgotando, pois, o conteúdo útil a dar ao advérbio “astuciosamente”.
Contudo, apesar da acentuação da vertente solidarista do Estado de direito social, persiste a convicção de que, em primeira linha, compete a cada pessoa cuidar dos seus interesses, assumindo a obrigação de salvaguardar bens jurídicos alheios um carácter subsidiário e residual. Ora, nas relações patrimoniais, em particular no mundo dos negócios, no contexto de uma economia de mercado, assente nos mecanismos da livre concorrência, o sucesso liga-se, muitas vezes, ao superior conhecimento do sujeito acerca das características do concreto sector e, assim, em termos comparativos, ao erro ou ignorância dos seus competidores. Dentro de certos limites, o domínio do erro consubstancia, por isso, um elemento constitutivo ou intrínseco do regular funcionamento de uma economia de mercado, pelo que o correspondente exercício se apresenta conforme à ordem jurídica, nunca podendo integrar um ilícito criminal.
Assim sendo, nem todo e qualquer efetivo domínio do erro implica a punição do agente a título de burla, mas tão só o domínio do erro jurídico-penalmente relevante. O limite da relevância do domínio do erro no quadro do crime de burla deve ser traçado pelo princípio da boa-fé, isto é, pelo critério da lealdade em face dos interesses legítimos da outra parte que deve acompanhar as relações das pessoas no comércio jurídico e, assim, pelo que se apresenta como permitido ou proibido à luz do princípio da boa-fé. Assim, só um domínio do erro que viole os ditames da boa-fé e que assim reflita uma a deslealdade inadmissível no comércio jurídico poderá consubstanciar, desde que preenchidos os demais pressupostos, o desvalor característico do crime de burla.
Assim sendo, é comum distinguirem-se três modalidades do crime de burla. A primeira ocorre quando o agente provoca o erro de outrem descrevendo-lhe, por palavras ou declarações expressas, precisas e inequívocas (sob a forma oral, escrita ou gestual), uma falsa representação da realidade. A segunda verifica-se quando o erro é ocasionado por atos concludentes, isto é, condutas que não consubstanciam, em si mesmas, qualquer declaração, mas que se mostram adequadas, de acordo com as regras da experiência e dos parâmetros ético-sociais vigentes no sector da atividade, a criar uma falsa convicção sobre certo facto, seja ele passado, presente ou futuro. Em terceiro lugar, refere-se a burla por omissão na qual o agente não provoca o engano do sujeito passivo, limitando-se a aproveitar-se do estado de erro em que ele já se encontra.
Dado que, na burla por atos concludentes, a produção do engano do sujeito passivo resulta de uma deficiência de esclarecimento acerca do significado ou alcance da conduta do agente, torna-se muitas vezes difícil distingui-la da burla por omissão. O critério de distinção passa por integrar a burla por atos concludentes apenas os casos em que a conduta do sujeito ativo cria, assegura ou aprofunda o engano da vítima, restringindo-se a burla por omissão às hipóteses onde, na formação do erro não intervém qualquer contributo positivo do agente, sendo que só se poderá falar desta quando ocorra a violação de um dever de garante pela não verificação do resultado.
Contudo, como o crime de burla constitui um crime material ou de resultado, a sua consumação depende da verificação de um evento que se traduz na saída dos bens ou valores da esfera de “disponibilidade fáctica” do legítimo detentor dos mesmos ao tempo da infração, independentemente de se verificar ou não um enriquecimento do agente ou de terceiro.
Por seu turno, as expressões valor elevado e valor consideravelmente elevado assumem o sentido que lhes é dado pelo art.º 202.º, als. a) e b), do C.P., ou seja, aquele que exceder 50 ou 200 unidades de conta avaliadas no momento da prática do facto, respetivamente.
Ora, a partir de 20-04-2009 a unidade de conta corresponde à quantia monetária equivalente a ¼ do valor do indexante dos apoios sociais vigente em dezembro do ano anterior, arredondada à unidade Euro, sendo assim atualizada anual e automaticamente, cifrando-se, no ano de 2017, em € 102 (cfr. arts. 22.º, 26.º, 27.º do Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26-02, tendo presente o art.º 156.º da Lei n.º 64-A/2009, de 31-12, e 5.º, n.º 2, e n.º 3, do Regulamento das Custas Processuais, 2.º da Portaria n.º 9/2008, de 03-01, 3.º do Decreto-Lei n.º 323/2009, de 24-12, e 266.º da Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro).
Deste modo, à data dos factos, o valor elevado era aquele que fosse superior a 5 100 EUR, e o valor consideravelmente elevado era aquele que fosse superior a 20 400 EUR.
Como elementos subjetivos, o crime de burla exige o dolo, em qualquer uma das suas modalidades de dolo direto, necessário ou eventual. Assim, é necessário que se demonstre o conhecimento (elemento intelectual) e vontade (elemento volitivo) por parte do agente de, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem ou causem a outra pessoa prejuízo patrimonial, demonstrando, com a sua execução, uma atitude pessoal contrária ou indiferente ao dever-ser jurídico-penal (elemento emocional) (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo; ANDRADE, Manuel da Costa, in Direito Penal, Lições da cadeira de Direito Penal (3.º ano), 1996, pág. 268/9).
Tratando-se a burla de um delito de intenção, no seu recorte subjetivo, este tipo legal de crime revela ainda uma intencionalidade específica que deve presidir à atuação do agente, isto é, a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, que mais não é do que um plus que acresce ao dolo genérico referido.
Do crime de Extorsão
Comete o crime de extorsão quem, com intenção de conseguir para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, constranger outra pessoa, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, a uma disposição patrimonial que acarrete, para ela ou para outrem, prejuízo (cfr. art.º 223.º, n.º 1, do C.P.).
O bem jurídico tutelado pelo referido crime reside na liberdade de disposição patrimonial. Objetivo direto da extorsão é a obtenção de uma vantagem patrimonial à custa de um prejuízo do extorquido. Esta a razão da inclusão sistemática do crime de extorsão nos crimes contra o património. Portanto, a extorsão é, em primeiro lugar, um crime contra o bem jurídico património. Acresce, porém, a tutela do bem jurídico liberdade de decisão e de ação, cuja lesão é conatural à extorsão, o que fundamenta uma agravação das penas relativamente às aplicáveis aos crimes que lesam exclusivamente o património, como é o caso, p. ex., do crime de furto ou de dano.
O crime de extorsão é um crime comum, pois agente desta infração pode ser toda e qualquer pessoa - “Quem”.
Sujeito passivo deste crime (o extorquido) é o titular do interesse patrimonial prejudicado. Geralmente, o sujeito passivo coincidirá com a pessoa vítima da ação de coação; mas não tem de ser, necessariamente, assim, pois pode o agente exercer a violência ou ameaça de mal importante sobre uma terceira pessoa como meio de constranger o sujeito passivo à disposição patrimonial.
Quer o meio de constrangimento seja a violência quer a chantagem (a ameaça), é necessário que entre ele (recaia a violência ou a ameaça com mal importante sobre a pessoa que haja de realizar a disposição patrimonial ou sobre uma outra pessoa que pertença ao “círculo existencial” daquela) e o ato de disposição patrimonial haja uma relação de adequação (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27 de outubro de 2004, in www.dgsi.pt).
O crime de extorsão é um crime de processo típico, no sentido de que os meios para a sua realização estão taxativamente referidos na lei: “por meio de violência ou de ameaça com mal importante”.
Objeto do crime de extorsão é o ato de disposição patrimonial. Esta disposição patrimonial tanto pode consistir numa ação como numa omissão. A ação (ato positivo) pode, por sua vez, traduzir-se num dare (p. ex., uma determinada quantia em dinheiro ou determinado objeto) ou num facere (p. ex., vender ou doar um bem, rescindir um contrato). A omissão (ato negativo) pode consistir na não exigência de um crédito, na não proposição de uma ação judicial, na não apresentação de uma queixa-crime, etc. O ato de disposição patrimonial (assuma a forma de ação, de omissão ou de tolerância) pode ter por objeto um qualquer elemento do património, trate-se de direitos reais (sejam sobre coisas imóveis ou móveis), de direitos de crédito ou mesmo de expectativas jurídicas.
Não basta, para haver extorsão, a lesão da liberdade de disposição patrimonial. Se apenas for lesada esta liberdade, haverá crime de coação, mas não crime de extorsão. Eis o que acontece, no caso do constrangimento (mediante violência ou ameaça com mal importante) ao pagamento de uma dívida. Para haver extorsão é necessário – como crime contra o património que é - que a disposição patrimonial constitua um enriquecimento ilegítimo (para o agente ou para terceiro) e um prejuízo (para a vítima da coação ou para terceiro).
Na verdade, tendo elementos típicos comuns a vários outros crimes, as maiores afinidades são com o crime de coação pois todos os elementos integrantes da factualidade típica deste crime fazem também parte do crime de extorsão, especializando-se este, em relação àquele, apenas pela exigência de a conduta coagida se traduzir num prejuízo injusto para o sujeito passivo (que tanto pode ser a vítima como outra pessoa) e num enriquecimento ilegítimo para o agente ou para terceiro (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 12 de outubro de 2009, processo n.º 1701/06.5TABRG.G1, in www.dgsi.pt).
O crime de extorsão exige dolo: dolo - em qualquer uma das suas formas (direto, necessário ou eventual) – em relação à ação de coação e em relação ao prejuízo e à ilegitimidade do enriquecimento, mas dolo direto ou necessário (não bastando, portanto, o dolo eventual) em relação ao enriquecimento.
Do crime de Recetação (…) II. Dos Crimes Cometidos Resulta da decisão da matéria de facto que não se demonstraram os factos imputados à arguida AA como tendo sido praticados em 26-04-2017 e que, segundo o Ministério Público, consubstanciavam a prática de 1 crime de burla qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22.º, 23.º, 202.º, al. a), 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 1, do C.P., pelo que, nesta parte, se impõe a absolvição da mesma. Atenta a matéria de facto considerada provada, constata-se que a arguida AA criou uma aparência de realidade, o que fez com que CC caísse em erro e, por força deste, efetuasse disposições patrimoniais a favor também daquela, tendo a referida arguida agido com a dita intencionalidade, com evidente prejuízo do referido CC. Perante a referida factualidade, outra não pode ser a conclusão senão a de que a arguida AA agiu com astúcia, criando falsos factos, mas dando-lhe uma aparência de verdade, tendo atuado com destreza, enganando e surpreendendo a boa-fé de CC que, por força da atuação daquela, nenhuma representação fez da realidade concreta, vício que o levou a efetuar disposições patrimoniais a favor também daquela, causando um prejuízo de valor consideravelmente elevado. Para além disso, é inegável que a arguida AA atuou dolosamente (cfr. art.º 14.º, n.º 1, do C.P.), tendo ficado demonstrado que agiu determinada pela resolução inicial que persistiu ao longo de toda a realização, denotando-se um só processo deliberativo e não uma nova motivação. Acresce que resulta da factualidade provada que que à sua atuação presidiu a intenção de obter para si e para a sua filha benefício ilegítimo. Na medida em que a arguida AA tinha o domínio objetivo do facto e a vontade de o dominar, tendo tomado a execução nas suas próprias mãos, de tal modo que só dela dependia o se e o como da sua realização, deverá ser punida como autora imediata (cfr. art.º 26.º, 1.ª parte, do C.P.). Deste modo, é objetiva e subjetivamente imputável à arguida, a prática, como autora imediata e sob a forma consumada, de 1 crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, 202.º, al. b), 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), do C.P. Assim, quanto aos crimes de burla qualificada consumados, verifica-se que será outra a qualificação jurídica dos factos demonstrados. Ora, a comunicação do artigo 358.º do C.P.P. apenas deverá ser efetuada quando estiver em causa uma alteração, seja de factos ou da qualificação, “com relevo para a decisão da causa”, o que só ocorre quando essa modificação consiste em divergência do que se encontra descrito na acusação que possa ter impacto na estratégia de defesa porque não persiste a mesma factualidade objetiva e/ou subjetiva (existe quebra de homogeneidade) o que não ocorre, por exemplo, nos casos em que permanece uma mais benevolente qualificação jurídica dos factos. Nestas situações, não são beliscadas as garantias de defesa do arguido, na vertente do princípio do contraditório, porquanto não existe uma divergência da qualificação jurídica que constitua surpresa. Nesses casos, como o dos autos, não se pode vislumbrar nenhuma situação de indefesa, por outras palavras, que a comunicação tivesse a virtualidade de alargar o leque de questões a abordar pela defesa, não se tratando, pois, de uma alteração “de relevo” a comunicar. Tendo também em conta a matéria de facto considerada provada ter-se-á que concluir que a arguida AA, através do anúncio de lesão da integridade física dos familiares de CC e de um mal referente ao casamento deste, adotou condutas idóneas a constranger este a uma disposição patrimonial que acarretava para ele um prejuízo de 12 650 EUR e, assim, de valor elevado, e que não era devida à arguida AA que, não obstante, não veio a ser efetuada. Por outro lado, atendendo à matéria de facto considerada provada, não se poderá deixar de concluir que a arguida AA agiu com dolo direto (cfr. art.º 14.º, n.º 1, do C.P.), tendo agido com intenção de obter para si enriquecimento ilegítimo à custa do empobrecimento de CC que, por razões alheias à vontade da arguida AA, não logrou obter. Assim, inequivocamente o crime cometido não chegou a consumar-se (cfr. art.º 22.º, n.º 1, do C.P.), o que só aconteceria no momento em que ocorresse o ato patrimonial danoso para o coagido ou para outra pessoa, tendo sido praticada, contudo, uma conduta que preenche um elemento constitutivo do tipo de crime imputado (cfr. art.º 22.º, n.º 2, al. a), do C.P.). Na medida em que o arguido tinha o domínio objetivo do facto e a vontade de o dominar, tendo tomado a execução nas suas próprias mãos, de tal modo que só dela dependia o se e o como da sua realização, deverá ser punida como autora imediata (cfr. art.º 26.º, 1.ª parte, do C.P.). Deste modo, é objetiva e subjetivamente imputável à arguida AA a prática, em autoria imediata e sob a forma tentada, de 1 crime de extorsão, p. e p. pelos arts. 14.º, 22.º, n.º 1, n.º 2, al. a), 23.º, n.º 1, e n.º 2, 26.º, e 223.º, n.º 1, do C.P. Atenta também a matéria de facto considerada provada ter-se-á que concluir ter também ocorrido um deslocamento para a esfera de disponibilidade fáctica da arguida BB das referidas quantias, sendo que as mesmas haviam sido obtidas mediante a prática de uma conduta violadora do património alheio. Por outro lado, a arguida BB sabia que as mesmas haviam sido obtidas mediante uma conduta violadora do património alheio. Ora, apesar dessas circunstâncias, a arguida BB deteve as referidas quantias, sabendo que as mesmas eram provenientes de um delito contra o património, tendo agido querendo dolosamente (cfr. art.º 14.º, n.º 1, do C.P.) e para obter para si e para a sua mãe uma vantagem patrimonial. Para além disso, é inegável que agiu determinada pela resolução inicial que persistiu ao longo de toda a realização, denotando-se um só processo deliberativo e não uma nova motivação. Por outro lado, a arguida BB possuía exclusivamente o domínio da ação, na medida em que a mesma realizou ela própria a ação típica, de tal modo que dela dependeu decisivamente o se e o como da realização típica (cfr. primeira alternativa do art.º 26.º do C.P.). Deste modo, é objetiva e subjetivamente imputável à dita arguida BB a prática, em autoria imediata e sob a forma consumada, de 1 crime de recetação, p. e p. pelos arts. 14.º, 26.º, e 231.º, n.º 1, do C.P.
Segundo o disposto no art.º 30.º, n.º 1, do C.P. “o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”. Assim, a arguida AA deverá ser punida pelos crimes que cometeu em concurso efetivo.
Escolha e Medida da Sanção: O crime de burla qualificada, quando consumado, é punido com uma pena de prisão de 2 anos a 8 anos (cfr. art.º 218.º, n.º 2, do C.P.). O crime de extorsão, quando consumado, é punido com uma pena de 1 mês a 5 anos de prisão (cfr. arts. 41.º, n.º 1, e 223.º, n.º 1, do C.P.), sendo que, no caso da tentativa, o limite máximo é reduzido de 1/3 (cfr. art.º 73.º, n.º 1, al. a), do C.P.). Desta forma, o crime de extorsão, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 22.º, n.º 1, n.º 2, al. a), 23.º, n.º 1, n.º 2, 73.º, n.º 1, al. a), e 223.º, n.º 1, do C.P., é punido com uma pena de 1 mês a 3 anos e 4 meses de prisão. Finamente, o crime de recetação, quando consumado, é punido com uma pena de prisão de 1 mês a 5 anos ou, em alternativa, com uma pena de multa de 10 a 600 dias de multa (cfr. arts. 41.º, n.º 1 e 47.º, n.º 1 e 231.º, n.º 1, do C.P.). No sistema jurídico-penal português as reações criminais não privativas da liberdade assumem preferência sobre as penas detentivas, desde que as primeiras satisfaçam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, isto é, a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente de um crime na sociedade (cfr. arts. 40.º e 70.º, do C.P.). Prevalência decidida não pode deixar de ser atribuída a considerações de prevenção especial de socialização, por serem sobretudo elas que justificam, na perspetiva político-criminal, todo o movimento de luta contra a pena de prisão. Deste modo, deve ser negada a aplicação de uma pena alternativa à pena de prisão quando a execução desta se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquela. Contudo, mesmo que imposta ou aconselhada à luz de exigências de socialização, a pena alternativa não será aplicada se a aplicação de uma pena de prisão se mostrar indispensável para a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafática das expectativas comunitárias. (…) A determinação da medida de cada uma das penas tem como critérios a culpa do agente e as exigências de prevenção, sendo a função desempenhada por cada um destes critérios definida de acordo com a chamada teoria da moldura da prevenção ou da defesa do ordenamento jurídico (cfr. art.º 71.º, n.º 1, do C.P. e ANTUNES, Maria João, in Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2013, pág. 41 e segs.). Deste modo, a prevenção geral de integração está incumbida de fornecer o limite mínimo, que tem como fasquia superior o ponto ótimo de proteção dos bens jurídicos e inferior o ponto abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr em causa a sua função tutelar (cfr. art.º 40.º, n.º 1, do C.P.). Por seu turno, a culpa, entendida em sentido material e referida à personalidade do agente expressa no facto, surge como limite inultrapassável de toda e qualquer consideração preventiva (cfr. art.º 40.º, n.º 2, do C.P.). Ora, dentro desses limites cabe à prevenção especial a determinação da medida concreta da pena, sendo de atender à socialização do agente. Assim, na determinação da medida da pena, o tribunal encontra-se vinculado à observância de três proposições político-criminais:
- O direito penal é um direito de proteção de bens jurídicos;
- A culpa é tão-só limite da pena, mas não seu fundamento; e
- A socialização é a finalidade da aplicação da pena (cfr. RODRIGUES, Anabela Miranda, in “Medida da pena de prisão – desafios na era da inteligência artificial”, Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 4021, Ano 149.º, março-abril de 2020, pág. 260). Assim, importa ter em conta, dentro dos limites abstratos definidos pela lei, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, deponham a favor ou contra as arguidas, na medida em que se mostrem relevantes para a culpa ou para exigências preventivas. As arguidas agiram com a modalidade mais intensa de dolo, que se mostra direto, pelo que, sendo a forma mais gravosa de dolo, representa maior desvalor. Acresce que dos factos cometidos, no que à burla e recetação diz respeito, face à sua reiteração, transparece uma forte resolução criminosa e persistência na resolução tomada, sendo assim muito desvaliosas as personalidades manifestadas, o que é altamente censurável e milita contra as arguidas. É muito elevado o grau de ilicitude dos factos cometidos e muito grave o modo de execução dos crimes. O valor do prejuízo causado, consolidado pelo crime de recetação, representa mais de duas vezes o valor estabelecido para a qualificação daquele primeiro, e é superior ao valor da remuneração mínima mensal que, à data, vigorava (cfr. art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 86-B/2016, de 29-12) em mais de noventa e duas vezes. Por outro lado, não se poderá considerar que as arguidas se tenham mostrado arrependidas dos factos que cometeram. O C.P. inclui o arrependimento sincero nas circunstâncias modificativas atenuantes gerais (cfr. art.º 72.º, n.º 2, al. c), do C.P.). Contudo, conforme resulta da lei penal, o arrependimento sincero tem que ser objetivado em atos dele demonstrativos (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de junho de 1992, processo n.º 42510). Saliente-se que, mesmo neste caso, não se está a violar o direito ao silêncio das arguidas. Na verdade, não se trata de as prejudicar em função do seu silêncio, mas tão só de não lhes conceder um benefício que o seu silêncio não justificou (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 05-02-1988, in Coletânea de Jurisprudência (STJ), 1998-I, pág. 190) A lei penal indica, a título meramente exemplificativo de arrependimento sincero do agente, a reparação levada a cabo pelo agente, até onde era possível, dos danos causados. Ora, no presente caso, nem 1 cêntimo foi restituído. Milita a favor da arguida AA a ausência de antecedentes criminais, o aparente bom comportamento após os factos, bem como a sua aparente boa inserção. Tudo ponderado, afiguram-se adequadas às circunstâncias do caso as seguintes penas: - 4 anos e 6 meses de prisão, pelo crime de burla qualificada consumado; - 1 ano e 6 meses de prisão, pelo crime de extorsão tentado; e - 2 anos de prisão, pelo crime de recetação diz respeito. No presente caso, resulta que à arguida AA é imputada a prática de vários crimes em concurso efetivo. Uma vez que só no presente processo a referida arguida pelos mesmos foi julgado, não poderia ter transitado em julgado a condenação por qualquer deles. A pena aplicável terá como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e, como limite máximo, a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (cfr. art.º 77.º, n.º 1 e n.º 2 do C. P.). Assim, a moldura do concurso é, para a arguida AA, de 4 anos e 6 meses de prisão no seu limite mínimo e 6 anos no seu limite máximo. Estabelecida a moldura penal do concurso, deve determinar-se a pena conjunta do concurso, dentro dos limites daquela. Tal pena será encontrada em função das exigências de culpa e de prevenção, tendo o legislador fornecido, para além dos critérios gerais estabelecidos no art.º 71.º do C. P., um critério especial: “Na determinação concreta da pena serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente” (cfr. art.º 77.º, n.º 1, 2.ª parte, do C.P.). Importa, pois, detetar a possível conexão e o tipo de conexão que intercede entre os factos concorrentes, tendo em vista a totalidade da atuação do respetivo arguido como unidade de sentido, que possibilitará uma avaliação global e a “culpa pelos factos em relação” (cfr. MONTEIRO, Cristina Líbano, in “A Pena “Unitária” do Concurso de Crimes”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 16, n.º 1, págs. 162 e segs.). Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo, in As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial de Notícias, pág. 286). Na avaliação desta personalidade unitária do agente, releva, sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência, ou eventualmente mesmo a uma carreira criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade, sendo que só no primeiro caso será de atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. No entanto, não pode ser esquecida a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do respetivo agente. Ora, face às circunstâncias do caso, o período em causa, a reiteração da conduta, a mesma identidade da vítima, a similitude do comportamento adotado, os artifícios criados e o dolo com que atuou, afigura-se que o conjunto dos factos em apreço não se limitou a ser uma pluriocasionalidade, fruto de uma multiplicidade de circunstâncias casuais e de um particular contexto da vida da arguida AA, radicando já na sua personalidade, pelo que será de atribuir à pluralidade de crimes cometidos um efeito mais agravante dentro da respetiva moldura penal conjunta aplicável. Tudo ponderado, afigura-se adequada às circunstâncias do caso a pena única de 5 (cinco) anos de prisão para a arguida AA. A personalidade da arguida AA é um inegável fator de risco, sendo que a arguida BB, filha daquela, continua a viver com ela, existindo, pois, o perigo de se ver envolvida em facto praticados por aquela, o que importa acautelar. No entanto, não se poderá ignorar o bom comportamento das arguidas. Não obstante, afigura-se ser ainda possível que a simples censura do facto e a ameaça da prisão afastem as arguidas deste género de criminalidade, vivendo no seio da comunidade que as viu delinquir. Segundo o disposto no art.º 50.º, n.º 1, do C.P. “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. De acordo com o art.º 50.º, n.º 5, do C.P., na redação decorrente da Lei n.º 59/2007, de 04-09, “o período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão”, sendo que, na redação atual, decorrente da Lei n.º 94/2017, de 23-08, “o período da suspensão é fixado entre 1 e 5 anos”. Ora, assim sendo, afigura-se adequado e suficiente suspender a execução da pena única aplicada à arguida AA e a pena aplicada à arguida BB por igual período de tempo da respetiva pena. De acordo com o disposto no art.º 50.º, n.º 2, do C.P. “o tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova”. Por outro lado, segundo a lei penal, podem ainda ser impostas ao condenado, pelo tempo de duração da suspensão, regras de conduta de conteúdo positivo e negativo, destinadas a promover a reintegração do condenado na sociedade, sendo o elenco que aquela faz das mesmas meramente exemplificativo (cfr. art.º 52.º, n.º 2, do C.P.). O tribunal pode ainda, obtido o consentimento prévio do condenado, determinar a sua sujeição a tratamento médico ou a cura em instituição adequada (cfr. art.º 52.º, n.º 3, do C.P.). Se tal for conveniente para promover a dita reintegração, pode ainda a suspensão da execução de uma pena de prisão ser acompanhada de regime de prova, assente num plano de reintegração social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo de suspensão, dos serviços de reinserção social (cfr. arts. 53.º e 54.º, do C.P.). Ora, tendo em conta as circunstâncias do caso, e também aqueles fatores de risco, afigura-se adequado que a suspensão da execução da respetiva pena única de prisão aplicada à arguida AA e da pena aplicada à arguida BB fique condicionada a regime de prova assente num plano de reinserção social, a definir e a executar com vigilância e apoio pelos serviços de reinserção social, sendo que, no caso da arguida AA, a mesma ficará desde já condicionada, uma vez que nisso consentiu, à obrigação de manter o acompanhamento especializado na área da psiquiatria, enquanto o mesmo for reputado de necessário, do ponto de vista médico, observando as prescrições que aí lhes sejam ditadas.
De acordo com a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos aplicadas por ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19-06-2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (cfr. arts. 2.º, n.º 1, e 3.º, n.º 1, da dita Lei). Para além das penas de multa até 120 dias de substituição da pena de prisão, são ainda perdoadas as demais penas de substituição, exceto a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova (cfr. art.º 3.º, n.º 2, al. d), da dita Lei). Acresce que, em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única (cfr. art.º 3.º, n.º 4, da dita Lei). Contudo, foram elencadas exceções que afastam o perdão de penas (cfr. art.º 7.º da dita Lei). O elenco das exceções é feito em função dos crimes em causa, tendo em conta o bem jurídico protegido e os elementos constitutivos (cfr. art.º 7.º, n.º 1, als. a) a f), da dita Lei) ou, independentemente dos concretos das qualidades ou características do agente (cfr. art.º 7.º, n.º 1, n.º 1, als. h), k) e l), da dita Lei), da pena aplicada (cfr. art.º 7.º, n.º 1, al. i), da dita Lei) ou da verificação de determinada agravante geral (cfr. art.º 7.º, n.º 1, al. j), da dita Lei). No presente caso, foi aplicada à arguida AA, a título principal e em cúmulo jurídico, pena única de prisão inferior a 8 anos, tendo todos os crimes em causa nos autos sido praticados antes das 00:00 horas de 19-06-2023. Contudo, a dita pena única de prisão foi suspensa na sua execução, subordinada a regime de prova, o que sempre impedia, desde já, a aplicação do perdão (cfr. art.º 3.º, n.º 2, al. d), 2.ª parte, da dita Lei), que só será aplicado, caso se verificassem os demais requisitos, se e quando a suspensão da execução da pena de prisão for revogada (cfr. art.º 3.º, n.º 3, da dita Lei). No entanto, mesmo nesse caso a arguida AA nunca poderia beneficiar do dito perdão. Na verdade, à data da prática dos factos, tinha já idade superior a 31 anos de idade. Assim, a arguida AA não beneficia do perdão. Por outro lado, foi aplicada à arguida BB, a título principal, pena de prisão inferior a 8 anos, tendo todos os crimes em causa nos autos sido praticados antes das 00:00 horas de 19-06-2023, quando a mesma tinha entre 16 e 30 anos de idade. Contudo, a dita pena de prisão foi suspensa na sua execução, subordinada a regime de prova, o que sempre impedia, desde já, a aplicação do perdão (cfr. art.º 3.º, n.º 2, al. d), 2.ª parte, da dita Lei), que só será aplicado, caso se verificassem os demais requisitos, se e quando a suspensão da execução da pena de prisão for revogada (cfr. art.º 3.º, n.º 3, da dita Lei), uma vez que o crime em causa não está excluído do perdão (cfr. art.º 7.º da dita Lei, nomeadamente o n.º 1, al. b)-i). Assim, por ora, a arguida BB não beneficia do perdão.
Da Perda das Vantagens dos Crimes (…)
Dispositivo: Absolve-seAA do crime de burla qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 22.º, 23.º, 26.º, 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 1, do C.P., cuja prática lhe havia sido imputada em autoria imediata e em concurso efetivo.
Altera-se a qualificação jurídica, no que aos crimes de burla qualificada consumados diz respeito, e condena-seAA, como autora imediata e em concurso efetivo, de 1 crime burla qualificada, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, 202.º, al. b), 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), do C.P., cujo último ato ocorreu em 17-04-2017, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, e de 1 crime de extorsão, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 22.º, n.º 1, n.º 2, al. a), 23.º, n.º 1, e n.º 2, 26.º, 73.º, n.º 1, al. a), e 223.º, n.º 1, do C.P., praticado em 22-04-2017, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, na pena única de 5 (cinco) anos de prisão, cuja execução se suspende por 5 (cinco) anos, condicionada a regime de prova assente num plano de reinserção social, a definir e a executar com vigilância e apoio pelos serviços de reinserção social, ficando desde já condicionada, uma vez que nisso consentiu, à obrigação de manter o acompanhamento especializado na área da psiquiatria, enquanto o mesmo for reputado de necessário, do ponto de vista médico, observando as prescrições que aí lhes sejam ditadas. Por não beneficiar do perdão de penas estabelecido pelos arts. 3.º, n.º 1, e n.º 4, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, não se declara perdoada qualquer parte da pena única de prisão aplicada.
Condena-seBB, como autora imediata e sob a forma consumada, de um crime de recetação, p. e p. pelos arts. 4.º do Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de setembro e 14.º, n.º 1, 26.º, 73.º, n.º 1, al. a), e 231.º, n.º 1, do C.P., cujo último ato ocorreu em 17-04-2017, na pena de 2 (dois) anos de prisão, cuja execução se suspende por 2 (dois) anos, condicionada a regime de prova assente num plano de reinserção social, a definir e a executar com vigilância e apoio pelos serviços de reinserção social. Por não beneficiar, por ora, do perdão de penas estabelecido pelos arts. 3.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, não se declara perdoada qualquer parte da pena de prisão aplicada.
Condenam-seAA e BB a pagar solidariamente ao Estado a quantia de 60 151 (sessenta mil, cento e cinquenta e um euros) correspondente ao valor da vantagem que obtiveram com a prática dos referidos crimes. A dita quantia deverá ser tida em conta na conta a elaborar e/ou alvo de notificação para pagamento (cfr. art.º 30.º, n.º 3, al. d), do Regulamento das Custas Processuais).
C) APRECIAÇÃO DA QUESTÃO EM RECURSO.
Do preceituado nos artigos 368.º e 369.º do CPP pela remissão que é feita pelo art. 424º nº 2 CPP, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela ordem seguinte:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pelos vícios enumerados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a que se segue impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art.º 412.º, do mesmo diploma;
Por último, as questões relativas à matéria de Direito.
Nulidade decorrente da omissão de falta de pronúncia, no Acórdão, relativamente a factos da contestação da Recorrente.
Nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, c) do CPP, aplicável aos acórdãos do Tribunal da Relação por força da remissão operada pelo artigo 425.º, n.º 4 do mesmo diploma legal, é nulo o acórdão, “quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento». Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/10/2012 (relatado pelo Senhor Conselheiro Santos Cabral, no Processo n.º 2965/06.0TBLLE.E1), citando uma outra decisão do mesmo Tribunal de 16 de Setembro de 2008, “a omissão de pronúncia constitui uma patologia da decisão que consiste numa incompletude (ou num excesso) da decisão, analisado por referência aos deveres de pronúncia e decisão que decorrem dos termos das questões suscitadas e da formulação do objecto da decisão e das respostas que a decisão fornece. Quando se configura a existência de omissão está subjacente uma omissão do tribunal em relação a questões que lhe são propostas”. E o mesmo Tribunal Superior escreve ainda que “a omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, ausência de posição ou de decisão do Tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa”.
Para que se verifique a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia que o requerente invoca, é necessário que o Tribunal deixe de se pronunciar sobre questões pertinentes para o objeto do processo. Como se lê no acórdão do STJ de 14/05/2009 (consultado em www.dgsi.pt), entende-se por questões “os problemas concretos a decidir e não as razões, no sentido de simples argumentos, opiniões, motivos ou doutrinas expendidas pelos interessados na apresentação das respetivas posições, na defesa das teses em presença”. A eventual não ponderação de algum argumento, tese ou doutrina esgrimidos pelos sujeitos processuais, “escapa ao referido vício decisório, desde que a questão colocada e em cuja discussão se insiram seja efetivamente apreciada e decidida”.
Acresce que, como é sabido, o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, face ao disposto no artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que estabelece que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”; são, pois, apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o Tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (identificação de vícios da decisão recorrida, previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pela simples leitura do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2, e 410.º, nº 3, do mesmo diploma legal) - O que é pacífico, tanto a nível da doutrina como da jurisprudência (cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113; bem como o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ, nº 7/95, de 19.10.1995, publicado no DR 1ª série, de 28.12.1995; e ainda, entre muitos, os Acórdãos do STJ de 11.7.2019, in www.dgsi.pt; de 25.06.1998, in BMJ 478, pág. 242; de 03.02.1999, in BMJ 484, pág. 271; de 28.04.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág. 193.
A nulidade invocada pela recorrente prende-se com a falta de pronúncia constante do Acórdão no que respeita aos factos 6, 9, 15, 18 a 22, 24 a 39 e 64 a 68 da sua Contestação, factualidade essa que, de acordo com a recorrente, iria permitir concluir pela inexistência dos legais pressupostos dos crimes imputados.
Passamos a descrever os factos da contestação da arguida AA e a correspondência com a prova efectuada no Acórdão.
6. A Arguida nunca enganou o Ofendido para que este emprestasse as quantias mencionadas na douta Acusação Pública. No ponto 10 dos Factos provados temos a prova do facto contrário; Ponto 7 dos factos não provados.
9. Quanto muito, e tendo em conta o que surge depois de compulsados os autos, o puctum crucis dos presentes autos é de natureza puramente civil, inexistindo fundamento para a intervenção do processo penal.- conclusivo 15.Sucede que, em primeiro lugar, é importante esclarecer que, ao contrário do indicado na douta Acusação Pública, a aqui Arguida, não era proprietária do cabeleireiro para homens denominado “A...”. – ponto 1 dos factos não provados.
18. Todavia, ao contrário do que tenta transparecer a douta Acusação Pública a aqui Arguida não se aproveitou desse facto, para ganhar a confiança do Ofendido, com perniciosos motivos. Ponto 2 dos factos provados e ponto 7 dos factos não provados
19. Não sendo verdade que, a Arguida engendrou um esquema ilícito, para conseguir proventos e, dessa forma, aumentar o seu respetivo património. ponto 10 dos factos provados
20. Do mesmo modo, jamais a Arguida confidenciou ao Ofendido que tinha graves problemas de saúde, em concreto, doença do foro oncológico ponto 5 dos factos provados e 9 dos factos não provados
21. A Arguida apenas partilhou com o Ofendido, em tom de desabafo que, estava a passar por um período conturbado a nível económico e financeiro, o que a fazia sentir triste e angustiada. Ponto 5 os factos provados
22. Também, não corresponde à verdade que, a Arguida, tenha recebido do Ofendido, e que este lhe tenha entregue, em numerário, a quantia de € 2.200,00 (Dois Mil e Duzentos Euros), no dia 02 de janeiro de 2017, e a quantia de € 18.800,00 (Dezoito Mil e Oitocentos Euros), entre o dia 03 de janeiro e 10 de fevereiro de 2017, o que tudo somado, totaliza o valor de € 21.000,00 (Vinte e Um Mil Euros), ponto 3 e 4 dos factos não provados
24. Senão vejamos, analisados os extratos bancários constantes de fls. 125 a 129 e seus respetivos versos, apenas se consegue concluir que ocorreram depósitos em numerário – (€ 1.500,00 + € 500 + € 800 + € 780 + € 6.000 + € 720 + € 86.97 + € 25) –, no montante global de € 10.411,97 (Dez Mil Quatrocentos e Onze Euros e Noventa e Sete Cêntimos). ponto 3 e 4 dos factos não provados
25. Ou seja, um montante global muito longe da quantia alegadamente entregue à aqui Arguida pelo Ofendido.- é uma conclusão
26. Não tendo ocorrido um qualquer depósito nos montantes de € 2.200,00 (Dois Mil e Duzentos Euros), e/ou € 18.800,00 (Dezoito Mil e Oitocentos Euros), nomeadamente os valores a que correspondem as supostas entregas de dinheiro- pontos 3 e 4 dos factos não provados
27. Aliás, sempre se diga que, os aludidos depósitos, nem sequer foram efetuados no hiato temporal em que terão ocorrido as supostas entregas de dinheiro, em numerário. pontos 3 e 4 dos factos não provados
28 E, curiosamente, apesar do Ofendido alegar que efetuou, as supramencionadas entregas de dinheiro, em numerário à aqui Arguida, naquelas datas, o certo é que, o mesmo não logrou juntar aos autos comprovativos do levantamento dos valores que reclama, o que, desde já, muito se estranha. ponto 3 e 4 dos factos não provados
29. Alega ainda, a douta Acusação Pública que, a Arguida a pretexto de que o cancro havia ressurgido e que a sua filha tinha sido vítima de um grave acidente de viação, precisava de mais dinheiro, e que para fazer face a essas situações abordou o Ofendido para que lhe emprestasse mais dinheiro, garantindo que o iria devolver, todavia já resolvida a não o fazer. – ponto 5 dos factos provados
30 E, que o Ofendido acreditando na versão da Arguida e pressupondo que o dinheiro iria ser devolvido, transferiu regularmente para a conta com o NIB ...95 do Banco 1..., várias quantias monetárias que oscilaram entre os € 1.800,00 (Mil e Oitocentos Euros) e os € 8.400,00 (Oito Mil e Quatrocentos Euros) e que totalizaram o montante de € 60.150,00 (Sessenta Mil Cento e Cinquenta Euros). Ponto 6 dos factos provados 31. Acontece que, ao contrário do vertido na douta Acusação Pública a aqui Arguida não engendrou um ardil para que o Ofendido lhe emprestasse dinheiro, ponto 7 dos factos não provados 32. A este propósito, sempre se diga que, não existem nos presentes autos quaisquer indícios que, a Arguida tenha solicitado ao Ofendido dinheiro, utilizando como pretexto que o seu “cancro” havia ressurgido e que a sua filha tinha sofrido um acidente de viação. Ponto 5 dos factos provados 33. Aliás, do teor dos prints das mensagens constantes de Fls. 24 a 33, juntas pelo aqui Ofendido e supostamente trocadas entre aquele e a Arguida, nenhuma menciona um qualquer “acidente de viação” – as mensagens são um meio de prova 34. Falando-se, apenas, de uma operação de uma filha, sem que se consiga perceber a que filha se refere a mensagem e quem são os seus interlocutores - pura especulação 35. Tendo a Acusação apenas se baseado na palavra do aqui Ofendido para construir esta narrativa, sem qualquer outro elemento probatório que permita sustentar a sua posição – pura especulação. 36. Até porque, como esclareceu o ofício da B..., S.A. Fls. 73, o número ...10 é um número pré-pago, não tendo sido associado a qualquer pessoa, e como tal, não poderá ser associado à aqui Arguida. Ponto 8 dos factos provados 37. Pelo que, a autoria das mensagens provenientes daquele número não poderá ser imputada à Arguida - ponto 10 dos factos não provados 38. Além disso, também é importante ter em conta que as supostas transferências regulares realizadas pelo Ofendido constantes de fls. 125 a 129 e seus respetivos versos, que totalizaram o montante de € 60.150,00 (Sessenta Mil Cento e Cinquenta Euros), não foram efetuadas para uma qualquer conta titulada pela aqui Arguida. Ponto 6 dos factos provados 39. Ora, se tais transferências não entraram no património da Arguida, não lhe poderá ser assacado um qualquer enriquecimento ilegítimo, mormente à custa do Ofendido.- conclusivo 64. Porquanto, a Arguida, alegadamente, no dia 26 de abril de 2017, enviou uma mensagem do número ...10, para o telemóvel do Ofendido número ...12, onde afirmava ter estado no IPO (Instituto Português de Oncologia) do Porto e que precisava urgentemente da quantia de € 8.750,00 (Oito Mil Setecentos e Cinquenta Euros) para tratamentos médicos, não tendo o Ofendido cedido. Ponto 5 dos factos não provados 65. Face a esta acusação, mais uma vez, é fundamental remeter para o ofício da B..., S.A. (Fls. 73) que, desde logo, explica que o número ...10, supostamente, usado pela Arguida para tentar burlar o Ofendido, é um número pré-pago, não podendo, por tal razão, ser associado a qualquer pessoa- conclusivo 66. Nem associado em particular à aqui Arguida. conclusivo 67. Ora, não sendo possível demonstrar que, a mensagem foi enviada pela Arguida, ou por outra pessoa a seu comando, e não existindo nos autos outros elementos probatórios, não se poderá ter como verificados, indícios suficientes da prática do crime que lhe é agora imputado.- conclusivo 68. Aliás, relativamente, ao ofício da B..., S.A., é importante referenciar que, o primeiro registo é datado de 23/11/2017, ou seja, é posterior há data dos factos, o que, cria sérias dúvidas sobre a veracidade dos prints das mensagens juntas aos autos, e do seu respetivo teor- especulação.
De forma clara, pode verificar-se que todas as questões levantadas na contestação da arguida foram analisadas, afirmando-se, de forma lapidar, não haver qualquer omissão de pronúncia no Acórdão em crise.
· Da falta de legitimidade para a apresentação da queixa
Relacionada ainda com a questão anterior, vem a recorrente dizer que o ofendido nunca explicou a proveniência das quantias monetárias que alegadamente teria “cedido” à Arguida BB, bem assim o porquê de ter tantos montantes em numerário à sua disposição.
Além disso, estando casado no casado em regime de comunhão de adquiridos e não tendo pedido autorização à mulher para emprestar aqueles valores, entregou valores que não lhe pertenciam na totalidade.
Apreciando.
Concordamos inteiramente com o Ex. Sr. Procurador Geral Adjunto quando afirma que “não se consegue alcançar qual o objectivo visado pela Recorrente quanto invoca que não só o ofendido não logrou explicar a proveniência das quantias referidas nos autos como também quando protesta que o mesmo não demonstrou que tivesse pedido autorização à respectiva esposa para emprestar (a ela própria, Recorrente) aquelas mesmas quantias, pois que, ressalvado o devido respeito, à luz do que antecede e de quanto resulta dos autos, não se vê em que medida tal pode ter alguma influência na efectiva responsabilização criminal pela prática dos factos pelos quais vem – justamente, desde já se adianta – condenada.”
De facto, a questão relativa ao modo como o dinheiro chegou à posse do ofendido é completamente lateral ao tema fulcral do processo.
No caso presente, é completamente indiferente a origem de tal dinheiro.
Relativamente à legitimidade para a queixa, limitar-nos-emos a citar um Acórdão desta Relação, relatado pelo Ex Sr. Presidente desta Secção, datado de 21.03.2013, tirado no processo 530/10.6PAMAI.P1 onde se pode ler “ I - Para fins de exercício do direito de queixa por crime de furto, deve ser adoptado um conceito amplo de ofendido, entendendo-se como tal não apenas o titular do direito de propriedade mas também a pessoa que beneficia directamente da posse, uso e fruição da coisa, posto que não seja com um carácter meramente ocasional ou à margem do direito; II - No caso dos cônjuges (casados segundo o regime supletivo de bens: comunhão de adquiridos), o bem presume-se comum e pertença da comunhão conjugal pelo que qualquer um deles é titular do direito de queixa, a não que se demonstre que, por força do regime de bens ou modo do aquisição, é pertença exclusiva de um deles e apenas a ele pertence a sua administração, uso e fruição.”
A questão da legitimidade do ofendido não merece, a nosso ver, mais nenhuma consideração.
· A impugnação da matéria de facto
Pese embora a Recorrente saliente a IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO PROFERIDA SOBRE A MATÉRIA DE FACTO, NOS TERMOS DO DISPOSTO NO N.º 3 E N.º 4 DO ARTIGO 412.º DO CÓDIGO DO PROCESSO PENAL, COM A CONSEQUENTE REFERÊNCIA À PROVA PRODUZIDA EM SEDE DE JULGAMENTO, E QUE SE ENCONTRA GRAVADA, o certo é que também refere entender estar verificada
a existência de erro notório na apreciação da prova (art. 410º, n.º 2, al. c), do Código do Processo Penal), na medida em que, se formou a convicção do Digníssimo Tribunal a quo, quase que exclusivamente no depoimento do Ofendido, prova essa que, nunca poderia ser, por si só, considerada como bastante para uma condenação.
Como se pode ler no Acórdão da Relação de Évora de 09.01.2018 in www.dgsi.pt.” A impugnação da decisão da matéria de facto pode processar-se por uma de duas vias: através da arguição de vício de texto previsto no art. 410º nº 2 do CPP, dispositivo que consagra um sistema de reexame da matéria de facto por via do que se tem designado de revista alargada, ou por via do recurso amplo ou recurso efectivo da matéria de facto, previsto no art. 412º, nºs 3, 4 e 6 do CPP (é esta última norma que o recorrente invoca na sua impugnação). O sujeito processual que discorda da “decisão de facto” do acórdão pode, assim, optar pela invocação de um erro notório na apreciação da prova, que será o erro evidente e visível, patente no próprio texto da decisão recorrida (os vícios da sentença poderão ser sempre conhecidos oficiosamente e mesmo que o recurso se encontre limitado a matéria de direito, conforme acórdão uniformizador do STJ, de 19.10.95) ou de um erro não notório que a sentença, por si só, não demonstre. No primeiro caso, a discordância traduz-se na invocação de um vício da sentença ou acórdão e este recurso é considerado como sendo ainda em matéria de direito; no segundo, o recorrente terá de socorrer-se de provas examinadas em audiência, que deverá então especificar. Na verdade, impõe o art. 412º, nº3 do CPP que quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto por via do recurso amplo o recorrente especifique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da tomada na sentença e/ou as que deviam ser renovadas. Esta especificação deve fazer-se por referência ao consignado na acta, indicando-se concretamente as passagens em que se funda a impugnação (art. 412º, nº4 do CPP). Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente,” de acordo com a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 08.03.2012 (AFJ nº 3/2012). O incumprimento das formalidades impostas pelo art. 412º, nºs 3 e 4, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto por esta via ampla. Mais do que uma penalização decorrente do incumprimento de um ónus, trata-se de uma real impossibilidade de conhecimento decorrente da deficiente interposição do recurso.”
“Saliente-se, contudo, que o recurso da matéria fáctica dada como assente consubstanciando um duplo grau de jurisdição nesse âmbito não significa no nosso sistema recursivo que se proceda a um segundo julgamento com a nova valoração dos depoimentos prestados. O recurso visa a decisão em concreto e não o julgamento. Deste modo, a reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação só é possível em dois planos distintos. O primeiro tem por objectivo aferir da existência dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, vícios que têm que resultar do texto da decisão recorrida, por si só conjugadamente com as regras da experiência comum, sem recurso a elementos externos. Trata-se da verificação de erros de julgamento que se infiram do próprio texto da decisão, cujo conhecimento aliás é de conhecimento oficioso, independentemente de haver ou não recurso da matéria de facto. Um segundo plano existe no qual é possível “atacar” os factos dados como provados, procurando convencer o Tribunal da Relação a modificar a matéria de facto, pressupondo naturalmente uma reapreciação dos elementos probatórios, fundamento que tem por base o tal erro na apreciação da prova, determinativo de erro judiciário. Em tal vertente, porém, a lei exige na alínea b) do nº 3 do artigo 412º que sejam apresentadas “prova que imponha decisão diversa da recorrida”. Ou seja, neste segundo plano, a reapreciação da prova está contida dentro dos limites impostos pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal, que mais não constitui do que um ónus de especificação que impende sobre cada um dos recorrentes, sob pena de, não o fazendo, o respectivo recurso fica inviabilizado. No caso vertente, não se recorta do texto decisório qualquer daqueles vícios, que aliás podem ser conhecidos oficiosamente, nem se mostra minimamente cumprido o procedimento exigido na norma do artigo 412.º do citado compêndio legal. Acrescente-se que, e como é jurisprudência pacífica do S.T.J. (cfr. por todos o douto Sentença do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 02.03.2016 no Pº 81/12.4GCBNV.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt), “(…) Os vícios do n.º 2 do artigo 410º do CPP, todos eles relativos ao julgamento da matéria de facto, têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. – Quanto ao vício previsto pela al. a) do n.º 2 do artigo 410º do CPP, o mesmo só ocorrerá quando da factualidade vertida na decisão se concluir faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição. Trata-se da formulação incorrecta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada. – Quanto ao vício previsto pela al. b) do n.º 2 do artigo 410º do CPP, verifica-se contradição insanável – a que não possa ser ultrapassada ainda que com recurso ao contexto da decisão no seu todo ou às regras da experiência comum – da fundamentação – quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios, e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão. – Quanto ao vício previsto pela al. c) do n.º 2 do artigo 410º do CPP, o mesmo verifica-se quando, partindo do texto da decisão recorrida, a matéria de facto considerada provada e não provada pelo tribunal a quo, atenta, de forma notória, evidente ou manifesta, contra as regras da experiência comum, avaliadas de acordo com o padrão do homem médio. É um vício intrínseco da sentença, isto é, que há-de resultar do texto da decisão recorrida, de tal forma que, lendo-o, logo o cidadão comum se dê conta que os fundamentos são contraditórios entre si, ou com a decisão tomada. (…)” Os vícios decisórios, como vícios da sentença, necessariamente teriam de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo certo que, da leitura efectuada do acórdão impugnado, não descortinamos a existência de qualquer vício, mormente nos moldes alvitrados pelos arguidos na sua motivação de recurso. Assim, em nossa opinião, com a arguição dos vícios decisórios nos moldes assinalados, os Recorrentes pretendem, repetindo-nos, é pôr em causa a convicção do Tribunal através da sua própria interpretação da prova produzida, ensaiando impugnar a decisão sobre a matéria de facto. Como se vê do Ac. TRL de 18/07/2013, “III – (…) Quando os recorrentes entendem que a prova foi mal apreciada devem proceder à impugnação da decisão sobre a matéria de facto conforme o artigo 412º n.º 3 do Código de Processo Penal (…)”. Ora, o regime legal estabelecido em matéria de recursos penais prevê que, para que possa ter lugar o reexame da prova, o Recorrente terá de cumprir o formalismo correspondente, designadamente o do n.º 3 do artigo 412º do C.P.P., devendo as conclusões conter a menção aos pontos de facto que consideram incorrectamente julgados (alínea a), as provas que impõem decisão diversa da recorrida (alínea b) e as que devem ser renovadas (alínea c), com referência aos suportes técnicos (n°4). “
Apreciando.
Como supra referimos, os vícios decisórios, como vícios da sentença, necessariamente teriam de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
Ora, analisado o acórdão não conseguimos encontrar nenhum dos vícios das alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 410º do CPP, ou seja, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; Erro notório na apreciação da prova.
Sigamos o caminho indicado pela Recorrente e que nos leva à impugnação ampla da matéria de facto – artigo 412º nº 3 e nº 4 do CPP.
Aqui, ao contrário do que diz o Sr. Procurador Geral Adjunto, entendemos que a recorrente, deu cumprimento, ainda que mínimo, às exigências do artigo 412º nº 3 e nº 4 do CPP
Diz a Recorrente que, face à prova produzida, os pontos n.º 2, 5, 6, 8 e 11 não deviam ter sido dados como provados, pela ausência de prova bastante e suficiente que os suportasse, no que respeita ao preenchimento do elemento subjetivo dos crimes de burla qualificada e extorsão a si imputados. Não se poderia haver concluído ter a aqui Recorrente recorrendo a um embuste, tenha convencido o Ofendido a entregar várias quantias monetárias agido com o propósito de anunciar um mal sobre integridade física da família de CC e um mal referente ao casamento deste por forma a constrangê-lo a que ele lhe entregasse a quantia de 12 650 EUR, sabendo que não lhe era devida, nos factos 2, 5, 6, 8 e 11, seja, que tenha a ora Recorrente praticado um qualquer crime de burla e outro de extorsão Em momento algum, uma qualquer testemunha apresentou uma narrativa credível e isenta, primeiro, que desse conta que a Recorrente tivesse ganho a confiança de CC, Depois, de que a Recorrente tivesse “inventado” padecer de cancro e que a sua filha teria sofrido um acidente de viação, para lhe emprestar quantias que não eram suas E por fim que, a Recorrente tivesse ameaçado o Ofendido por mensagem, com o intuito de obter 12.650 euros. O que resultou provado, foram apenas e só transferências do Ofendido para uma certa conta bancária, identificadas no ponto provado 6 (conta essa não titulada pela Arguida), sendo certo que todas as conclusões que constam do douto Acórdão recorrido, sobre o “proveito” das quantias foram baseadas em presunções, com base nas faturas, mas hoje sabemos que é com facilidade que, após uma compra se dá o NIF de uma outra pessoa, não podendo ser considerada prova suficiente. Também o Digníssimo Tribunal a quo não valorou, de forma crítica, a contradição cometida pelo ofendido que, com bastante certeza, disse ter sido ameaçado por chamada (efetuada por um homem) e não por mensagem. Ouvidas as declarações do Ofendido, resulta que: a Arguida não usufruía de uma relação de confiança privilegiada nem exercia algum ascendente sobre o Ofendido. Depois, o Ofendido, admite que tomou o que sucedeu como uma má decisão sua, emprestando o dinheiro por sua livre e espontânea vontade, começando por mencionar uma “insolvência” e só depois é que menciona o cancro da Arguida e o acidente da filha da Arguida. Como podia, o Ofendido, um gestor de empresas, emprestar dinheiro a alguém que sabia ser insolvente, e que por essa condição desde logo não podia pagar de volta? Também não se afigura credível tal alegação, que o Ofendido optou por omitir quando apresentou queixa – aliás a narrativa do Ofendido evolui conforme as questões vão sendo colocadas, veja-se que segundo aquele, afinal a Arguida prometeu ressarci-lo mediante um empréstimo de um familiar seu. É de atentar ainda na clara contradição entre o depoimento do Ofendido, relativamente ao crime de extorsão, e a prova documental carreada para os autos (as mensagens supostamente enviadas pela Arguida), pois o que na realidade resulta do depoimento do Ofendido, é que afinal se tratou de uma chamada, efetuada por um homem que proferiu as tais ameaças.
Ouvidas as gravações, este tribunal de recurso compreende e acompanha a motivação do Julgador quanto aos factos provados e não provados.
O ofendido, pessoa nitidamente envergonhada pela situação em que se deixou “enredar”, teve um depoimento credível.
A confusão relativa à existência de uma mensagem ou um telefonema (reportados aos factos que constituiriam uma extorsão), ao contrário do que diz a Recorrente, não diminuem a credibilidade daquele. Pelo contrário, denota que depôs em audiência de acordo com a memória que tinha, não tendo “relembrado” a história que haveria de contar.
Não obstante a grande credibilidade do depoimento do ofendido, o certo é que o Tribunal apenas deu como provado - no que toca à entrega das quantias – aquelas que tiveram um suporte documental, ou seja, aquelas que foram efectuadas por transferência para a conta indicada nos autos.
A circunstância da conta bancária estar na titularidade da filha (pormenor que ofendido explicou – “a arguida não podia ter nada em nome dela”) não permite concluir, como pretende a Recorrente, que o valor não fosse para esta.
O uso da conta bancária pelas duas arguidas está demonstrado documentalmente.
O depoimento do ofendido a relatar as dificuldades e aflições em que vivia a senhora (referindo-se à arguida) e que o levaram à entrega das quantias referidas nos autos, associado às mensagens transcritas e juntas aos autos, não gera qualquer dúvida ao tribunal relativamente ao destinatário do dinheiro.
Quanto ao telefone usado, o Acórdão é completamente esclarecedor. “Acresce que aquele CC tinha no seu telemóvel registado o n.º de telemóvel ...10 como sendo o do “...”, sendo evidente que, a partir das mensagens que enviou para o mesmo e dele recebeu, estabelecia contactos com a própria arguida AA. Na verdade, CC enviou mensagens para esse número chamando “AA” à sua interlocutora, que responde por esse nome, percebendo-se que a mesma tem uma filha (cfr. fls. 6, 7 e 24 a 33 do Volume I). Apesar de a troca de mensagens permitir concluir que os mesmos não possuíam grande intimidade, face à forma como se tratavam, o certo é que é evidente que denotam alguma confiança. Em 11-03-2017 foi emitida uma fatura em nome de “AA”, correspondentes ao nome e sobrenome da arguida AA, tendo a compradora indicado o n.º ...10 como sendo o seu número de telemóvel (cfr. fls. 218 v.º e 219 do Volume I). Acresce que 17-03-2017 foi novamente emitida uma fatura em nome de “AA”, correspondentes ao nome e sobrenome da arguida AA, tendo a compradora indicado o n.º ...10 como sendo o seu número de telemóvel (cfr. fls. 219 v.º e 220 do Volume I). Deste modo, é inequívoco que tal número de telemóvel era, à data, utilizado pela arguida AA.”
Não compreendemos, pois, a afirmação da Recorrente no sentido de que “os pontos n.º 2, 5, 6, 8 e 11 não deviam ter sido dados como provados, pela ausência de prova bastante e suficiente que os suportasse, no que respeita ao preenchimento do elemento subjetivo dos crimes de burla qualificada e extorsão a si imputados.”
A nosso ver, a prova impunha a afirmação da prática daqueles factos, com a intenção e vontade aí referidos.
Relativamente a este tema e porque entendemos que o mesmo está tratado de forma clara e compreensível, o tribunal recorrerá ao Relação de Coimbra – Acórdão de 01.06.2008 in www.dgsi.pt. Neste pode ler-se” O artigo 127.º do CPP. consagra o princípio da livre apreciação da prova, não se encontrando o julgador sujeito às regras rígidas da prova tarifada, o que não significa que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais. Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional. Porém, nessa tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a 1.ª instância e o tribunal de recurso, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando este limitado à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos. A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão”, confere ao julgador em 1.ª instância meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc. As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum. A ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º). (…) Com a alteração do Código de Processo Penal operada pela Lei 48/07 de 29.8, mantém-se actual a jurisprudência supra aludida com a ressalva de que o Tribunal da Relação deve agora proceder ao exame das provas produzidas em audiência pela audição através da audição das passagens indicadas (art. 412º nº 6 do Código de Processo Penal), constantes, no caso dos autos, da gravação magnetofónica efectuada (art. 364º nº 1 do Código de Processo Penal). Conforme escreve o Professor Manuel Cavaleiro de Ferreira, se a intenção é vontade e esta é acto psíquico, acto interior são, contudo, grandes as dificuldades para dar praticabilidade a conceitos que designam actos internos, de carácter psicológico e espiritual. Por isso se recorre a regras da experiência, que as leis utilizam quando elas podem dar aos conceitos maior precisão... Importa recorrer a regras de experiência para se aferir ou não da intenção criminosa e para retirar os elementos confirmativos da sua verificação da matéria fáctica dada como provada. Ora, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão” No mesmo sentido vai a jurisprudência uniforme deste Tribunal da Relação: “Quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”. Transcreve-se aqui parte do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.1.08, proc. 07P4198, em www.dgsi.pt], citando Cristina Líbano Monteiro, que explica cabalmente porque é que em casos como o dos autos não ocorre a violação do aludido princípio: “De todo o modo, não haverá, na aplicação da regra processual da «livre apreciação da prova» (art. 127.º do CPP), que lançar mão, limitando-a, do princípio «in dubio pro reo» exigido pela constitucional presunção de inocência do acusado, se a prova produzida [ainda que «indirecta»], depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, não conduzir – como aqui não conduziu - «à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto». O “in dubio pro reo”, com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (cfr. Cristina Líbano Monteiro, «In Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997). Até porque «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade» (idem, p 17): «O juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o «agarrar» (idem, p. 13). E, por isso, é que, «nos casos [como este] em que as regras da experiência, a razoabilidade («a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade») e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação (suscitando, a propósito, “uma firme certeza do julgador”, sem que concomitantemente “subsista no espírito do tribunal uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto”), não há lugar à intervenção da «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que é o in dubio pro reo (cuja pertinência «partiria da dúvida, suporia a dúvida e se destinaria a permitir uma decisão judicial que visse ameaçada a sua concretização por carência de uma firme certeza do julgador» (idem). Como dissemos supra, a ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º). (…)
Não foi este o caso. A explicação do “caminho” que o Tribunal a quo efectuou no sentido de chegar à prova constante do Acórdão é clara, inteligível e consequente, não havendo nenhum elemento objectivo, nem nenhuma regra da experiência comum que nos faça questionar a convicção a que chegou..
· Da existência de um concurso aparente entre o crime de burla e o crime de extorsão.
A este propósito a Recorrente considera que, ao contrário do acórdão em crise, não estamos perante um único crime de burla, mas, sim, perante um crime de burla continuado.
Além disso, o crime de extorsão seria sempre um crime meio relativamente ao crime de burla, havendo, por isso, um concurso aparente, devendo a recorrente ser absolvida do crime de extorsão.
O Ex. Sr. Procurador Geral Adjunto faz, no Parecer que apresentou, uma exposição clara no que toca à alegada existência de concurso aparente, avançando, desde logo, com a diferença entre os bens jurídicos tutelados por cada um dos crimes.
Pela sua clareza, citaremos o Acórdão da Relação de Lisboa de 21-09-2022, tirado no processo nº 5/22.0SHLSB.L1-3, consultável in www.dgsi.t onde se pode ler : “A extorsão é um crime cuja descrição típica é muito complexa, tornando-se, por vezes, difícil a decisão sobre a qualificação jurídica de uma conduta como crime de extorsão ou de outros ilícitos, com os quais tem muitos elementos comuns, nomeadamente os de coação, roubo , burla , e abuso de confiança. As maiores afinidades são com o crime de coação, pois que todos os elementos integrantes da factualidade típica deste crime fazem também parte do crime de extorsão, especializando-se este, em relação àquele, apenas pela exigência de a conduta coagida se traduzir num injusto prejuízo para o sujeito passivo e num enriquecimento ilegítimo para o agente ou para terceiro. Por isso, o crime de extorsão constitui uma lex specialis face ao crime de coação. Relativamente ao crime de burla, a distinção é nítida. (sublinhado nosso)
Os crimes de extorsão e de burla são crimes contra o património em geral; ambos pressupõem uma certa cooperação da vítima, uma vez que as condutas, de que resultam o prejuízo patrimonial da vítima (o extorquido e o burlado) e o enriquecimento ilegítimo do agente (o extorsionário e o burlão) ou de terceiro, são realizadas pela própria vítima ou por um terceiro;
São crimes contra o património, lesam também o bem jurídico liberdade de decisão e de ação, pois que, sendo isto evidente no caso de extorsão, não deixa de ocorrer também no crime de burla, uma vez que a liberdade no processo de decisão sobre o ato de disposição patrimonial foi afetada pelo erro ou engano provocados pelo burlão. Distinguem-se, claramente, entre si por força dos meios utilizados: na extorsão, violência ou ameaça com mal importante, ou chantagem. Na burla, erro ou engano.(sublinhado nosso)
Tal determina, justificadamente, a diferença nas penas aplicáveis, que são mais severas no crime de extorsão.
O crime de extorsão e o crime de roubo são crimes contra o património. Tanto num quanto no outro os meios de execução são a violência ou a ameaça, o que significa que ambos lesam também a liberdade de disposição patrimonial.
O crime de roubo contempla não apenas a ação de subtração mas também a de coação ao ato de entrega.
O objetivo imediato da extorsão é a obtenção de uma vantagem patrimonial à custa de um prejuízo do extorquido.”
Revertendo ao caso que temos em mãos, facilmente concluímos que o crime de burla já tinha ocorrido, o bem jurídico já tinha sido lesado e que a actuação concretizada na mensagem de 22-04-2017, constitui um “mais”, perfeitamente autonomizável do erro e engano, da astúcia, que levou o ofendido à transferência de dinheiro para a Recorrente e ao subsequente enriquecimento desta.
· Da existência de um crime de burla continuado.
Nos termos da pronúncia, era imputado à arguida, ora recorrente, a prática, em autoria imediata e em concurso efetivo, de 2 crimes de burla qualificada, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), do Código Penal (C.P.), de 1 crime de burla qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22.º, 23.º, 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 1, do C.P.
Como se pode ler no Acórdão em crise: “Resulta da decisão da matéria de facto que não se demonstraram os factos imputados à arguida AA como tendo sido praticados em 26-04-2017 e que, segundo o Ministério Público, consubstanciavam a prática de 1 crime de burla qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22.º, 23.º, 202.º, al. a), 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 1, do C.P., pelo que, nesta parte, se impõe a absolvição da mesma. Atenta a matéria de facto considerada provada, constata-se que a arguida AA criou uma aparência de realidade, o que fez com que CC caísse em erro e, por força deste, efetuasse disposições patrimoniais a favor também daquela, tendo a referida arguida agido com a dita intencionalidade, com evidente prejuízo do referido CC. Perante a referida factualidade, outra não pode ser a conclusão senão a de que a arguida AA agiu com astúcia, criando falsos factos, mas dando-lhe uma aparência de verdade, tendo atuado com destreza, enganando e surpreendendo a boa-fé de CC que, por força da atuação daquela, nenhuma representação fez da realidade concreta, vício que o levou a efetuar disposições patrimoniais a favor também daquela, causando um prejuízo de valor consideravelmente elevado. Para além disso, é inegável que a arguida AA atuou dolosamente (cfr. art.º 14.º, n.º 1, do C.P.), tendo ficado demonstrado que agiu determinada pela resolução inicial que persistiu ao longo de toda a realização, denotando-se um só processo deliberativo e não uma nova motivação. Acresce que resulta da factualidade provada que que à sua atuação presidiu a intenção de obter para si e para a sua filha benefício ilegítimo. Na medida em que a arguida AA tinha o domínio objetivo do facto e a vontade de o dominar, tendo tomado a execução nas suas próprias mãos, de tal modo que só dela dependia o se e o como da sua realização, deverá ser punida como autora imediata (cfr. art.º 26.º, 1.ª parte, do C.P.). Deste modo, é objetiva e subjetivamente imputável à arguida, a prática, como autora imediata e sob a forma consumada, de 1 crime de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 26.º, 202.º, al. b), 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, al. a), do C.P. Assim, quanto aos crimes de burla qualificada consumados, verifica-se que será outra a qualificação jurídica dos factos demonstrados. Ora, a comunicação do artigo 358.º do C.P.P. apenas deverá ser efetuada quando estiver em causa uma alteração, seja de factos ou da qualificação, “com relevo para a decisão da causa”, o que só ocorre quando essa modificação consiste em divergência do que se encontra descrito na acusação que possa ter impacto na estratégia de defesa porque não persiste a mesma factualidade objetiva e/ou subjetiva (existe quebra de homogeneidade) o que não ocorre, por exemplo, nos casos em que permanece uma mais benevolente qualificação jurídica dos factos. Nestas situações, não são beliscadas as garantias de defesa do arguido, na vertente do princípio do contraditório, porquanto não existe uma divergência da qualificação jurídica que constitua surpresa.”
Resulta do que acabamos de transcrever que o tribunal considerou não existir prova da materialidade que sustentava a prática de um crime de burla qualificada na forma tentada.
Relativamente aos dois crimes de burla qualificada que vinham imputados à arguida, entendeu o tribunal que estávamos perante uma única resolução criminosa que foi tomada no momento inicial e que persistiu durante todo o processo.
A arguida, ora recorrente, entende, porém que estamos perante a prática de um crime continuado.
No recurso interposto diz que “de todos os já referenciados fatos, tidos como provados, sempre resultará “a existência de uma relação que, e de maneira considerável, facilitou a repetição da atividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito” (Cfr. douto Acórdão do STJ, de 13-12-2007, proferido no âmbito do Proc. 07P3749, e acessível in www.dgsi.pt). Note-se que, e conforme bem ensina Eduardo Correia (“Teoria do Concurso em Direito Criminal”, Coleção Teses, Almedina – p. 207), “aquilo que na continuação criminosa arrasta o agente para a reiteração é precisamente o facto de, com a primeira conduta, se amolecerem e relaxarem as reacções morais ou jurídicas que o frenavam e inibiam”, Sendo ainda de referir, no caso presente, o vertido no douto Aresto do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, de 01-03-2007, proferido no Proc. 618/07-9 (in www.dgsi.pt): “Ora, no caso dos autos, o recorrente, depois de ter sido bem sucedido nas primeiras iniciativas delituosas, as quais delineou de forma pormenorizada e evoluída, não acessível à imaginação de qualquer um, sentiu-se impulsionado na sua reiteração, a qual lhe trazia dividendos económicos fáceis e avultados, com um risco de acção muito limitado. Por outro lado, a mesma acção desenvolveu-se num espaço temporal limitado e concentrado. Como diz o Ministério Público, aos três desígnios ou resoluções criminosas que animaram as actuações sucedeu-se uma linha de continuidade. Haver-se-á de concluir, assim, estar-se perante a prática de um só crime, na forma continuada.” Ora, sendo certo que, conforme escreve a Prof. Teresa Beleza (Direito Penal, II, 613): “(…) uma pessoa, durante um certo período de tempo, comete uma série de crimes seguidos que têm entre si uma certa relação de homogeneidade em termos de actuação e em termos de sucessão temporal; e, por outro lado, o traço essencial dessa situação é que a própria continuação ou repetição criminosa deriva não tanto da pessoa ser especialmente persistente ou ter especiais tendências criminosas, mas do facto de que, de alguma forma, a prática do primeiro acto favoreceu a decisão sucessiva em relação à continuação, porque há um certo circunstancialismo externo que facilitou essa sucessiva reiteração de uma acção idêntica. Esse circunstancialismo externo, na medida em que facilita o sucessivo “cair em tentação”, se quiserem, do agente dos crimes, significa que na medida em que há essa facilitação, a pessoa é menos censurável por ter ido sucessivamente sucumbindo à tentação.”(…) A que sempre acrescerá, ainda, o facto de haver a primeira das intervenções da ora Recorrente, subsumíveis à prática do aludido crime de burla qualificada, ocorrida quase totalmente no mês de abril de 2017, e, bem assim, a posterior manutenção do engano para obter as quantias do Ofendido e, com a obtenção do proveito daí resultante, favorecido a continuação, quase imediata, da atuação ilícita por parte da Arguida, no ensejo de continuar a prática de tais ilícitos, atento o claro facilitismo com que se havia deparado, e, bem assim, atento uma total ausência de censura por parte de uma qualquer entidade.”
O Ex. Sr. Procurador Geral adjunto refere (…) contrariamente ao pretendido pela ora Recorrente (…) nos presentes autos não se verificam preenchidos os pressupostos do crime continuado. Na verdade, se é certo que, para usar a expressiva formulação adoptada em acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa a 23 de Março de 2023, “Há crimes que se consumam por actos sucessivos ou reiterados, como se diz no artigo 30.º, n.º 2 do Código Penal, mas que constituem um único crime, ou seja, a execução é reiterada quando cada acto de execução sucessivo realiza parcialmente o evento do crime. A soma dos eventos parcelares constituirá um único crime…”, o traço constitutivo do crime continuado, radica na existência de uma circunstância exterior que diminui consideravelmente a culpa do agente, assim se tornando essencial perceber em que medida a solicitação externa diminui a censura que determinada(s) conduta(s) merece(m). Cfr. Processo 482/21.7PBSNT.L1-9; relatora: Renata Whytton Terra; disponível em www.dgsi.pt. “
Apreciando
Temos que concordar com a posição defendida pelo Tribunal a quo e com o entendimento plasmado no Parecer pelo Sr. Procurador Geral adjunto.
Seguindo o Acórdão da Relação de Coimbra de 08.11.017, tirado no processo 1558/12.7TACBR.C1, consultável in www.dgsi.pt “ São requisitos do crime continuado descritos nos nºs 2 e 3 do artigo 30º, do Código Penal: a) A realização plúrima de violação típicas do mesmo bem jurídico, desde que este não proteja bens eminentemente pessoais. b) Execução essencialmente homogénea das sobreditas violações. c) No quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que lhe diminua consideravelmente a culpa. d) Um elemento subjectivo que se há-de estender à inteira relação de continuação, abrangendo as hipóteses de um dolo conjunto (planeamento prévio pelo agente das diversas resoluções típicas) ou de um dolo continuado (o plano do agente de que repetiria a realização típica sempre que a ocasião se proporcionasse). II - O crime continuado distingue-se do concurso real de crimes apenas em razão dos elementos aglutinadores que a lei prevê: unidade do bem jurídico protegido, execução por forma essencialmente homogénea e diminuição considerável da culpa em razão de uma mesma situação exterior.”
Este tribunal de recurso, tal como o tribunal a quo, não consegue ver na descrição fáctica constante dos autos que tenha havido uma diminuição considerável da culpa da arguida. Os factos fazem-nos concluir no sentido oposto, ou seja, no aumento desta. Consideramos estar afastada a existência de um crime continuado, mantendo-se a qualificação efectuada pelo Acórdão recorrido.
· Da medida da pena
Por último vem a recorrente colocar em causa a pena aplicada.
Diz que “ limitando-se a pena a aplicar à Recorrente na culpa desta, e, bem assim, nas exigências de prevenção, geral e especial, sempre resulta que, de forma alguma se poderá compreender e aceitar a pena aplicada (de prisão), na medida em que, extravasa claramente a culpa desta e as próprias necessidades de prevenção, e, não tem devidamente em conta as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor da Recorrente. É de todo incompreensível, porque exageradas e desproporcionadas, a pena de prisão aplicada à Recorrente. Aqui chegados, vistos os pontos aos quais o Dign.º Tribunal a quo atendeu para balizar a culpa da Arguida, constata-se, com o devido respeito, que são mais os pontos a favor do que contra. Por outro lado, e agora no que respeita às circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor da Recorrente, é de referir que, se tratou de uma atuação isolada da Arguida, é de atender ao decurso do tempo decorrido desde a prática do crime, a inexistência de antecedentes criminais, a idade da Arguida, o seu estado de saúde, que aliado ao facto de se encontrar reformada por invalidez se reconduz na inexistência de risco de reincidência, ao que acresce o facto de não existir uma qualquer notícia posterior da prática de quaisquer factos similares, ou quaisquer outros factos ilícitos da sua parte. No caso presente, e por de aplicação ao mesmo, atenta a problemática em apreço, deverá relevar-se tudo quanto vem vertido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 18.09.2013 (proferido no âmbito do Processo n.º 311/10.7EAPRT.P1), quando se diz que, “na Sentença, acaba por se esquecer o postulado clássico de acordo com o qual: “o mal da pena dever ser proporcionado ao mal do crime em si mesmo”. Com efeito, sempre será de concluir que, no caso presente, e atento tudo o exposto, sempre deverá decidir-se pela aplicação de uma pena substancialmente inferior, na medida em que, da mesma sempre resultarão perfeitamente prosseguidas as exigências de prevenção, resultando, daí, por realizadas, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição”
O Ex. Sr. Procurador Geral adjunto entende que a respectiva pretensão recursiva carece de sustentação, seja ao nível dos factos sob apreciação, seja ao nível dos normativos legais, concretamente aplicáveis.
Apreciando.
O Acórdão recorrido, no que toca à medida da pena, diz o seguinte:
“O crime de burla qualificada, quando consumado, é punido com uma pena de prisão de 2 anos a 8 anos (cfr. art.º 218.º, n.º 2, do C.P.). O crime de extorsão, quando consumado, é punido com uma pena de 1 mês a 5 anos de prisão (cfr. arts. 41.º, n.º 1, e 223.º, n.º 1, do C.P.), sendo que, no caso da tentativa, o limite máximo é reduzido de 1/3 (cfr. art.º 73.º, n.º 1, al. a), do C.P.). Desta forma, o crime de extorsão, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 14.º, n.º 1, 22.º, n.º 1, n.º 2, al. a), 23.º, n.º 1, n.º 2, 73.º, n.º 1, al. a), e 223.º, n.º 1, do C.P., é punido com uma pena de 1 mês a 3 anos e 4 meses de prisão. (…) As arguidas agiram com a modalidade mais intensa de dolo, que se mostra direto, pelo que, sendo a forma mais gravosa de dolo, representa maior desvalor. Acresce que dos factos cometidos, no que à burla e recetação diz respeito, face à sua reiteração, transparece uma forte resolução criminosa e persistência na resolução tomada, sendo assim muito desvaliosas as personalidades manifestadas, o que é altamente censurável e milita contra as arguidas. É muito elevado o grau de ilicitude dos factos cometidos e muito grave o modo de execução dos crimes. O valor do prejuízo causado, consolidado pelo crime de recetação, representa mais de duas vezes o valor estabelecido para a qualificação daquele primeiro, e é superior ao valor da remuneração mínima mensal que, à data, vigorava (cfr. art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 86-B/2016, de 29-12) em mais de noventa e duas vezes. Por outro lado, não se poderá considerar que as arguidas se tenham mostrado arrependidas dos factos que cometeram. O C.P. inclui o arrependimento sincero nas circunstâncias modificativas atenuantes gerais (cfr. art.º 72.º, n.º 2, al. c), do C.P.). Contudo, conforme resulta da lei penal, o arrependimento sincero tem que ser objetivado em atos dele demonstrativos (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de junho de 1992, processo n.º 42510). Saliente-se que, mesmo neste caso, não se está a violar o direito ao silêncio das arguidas. Na verdade, não se trata de as prejudicar em função do seu silêncio, mas tão só de não lhes conceder um benefício que o seu silêncio não justificou (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 05-02-1988, in Coletânea de Jurisprudência (STJ), 1998-I, pág. 190) A lei penal indica, a título meramente exemplificativo de arrependimento sincero do agente, a reparação levada a cabo pelo agente, até onde era possível, dos danos causados. Ora, no presente caso, nem 1 cêntimo foi restituído. Milita a favor da arguida AA a ausência de antecedentes criminais, o aparente bom comportamento após os factos, bem como a sua aparente boa inserção. Tudo ponderado, afiguram-se adequadas às circunstâncias do caso as seguintes penas: - 4 anos e 6 meses de prisão, pelo crime de burla qualificada consumado; - 1 ano e 6 meses de prisão, pelo crime de extorsão tentado; e No presente caso, resulta que à arguida AA é imputada a prática de vários crimes em concurso efetivo. Uma vez que só no presente processo a referida arguida pelos mesmos foi julgado, não poderia ter transitado em julgado a condenação por qualquer deles. A pena aplicável terá como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e, como limite máximo, a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (cfr. art.º 77.º, n.º 1 e n.º 2 do C. P.). Assim, a moldura do concurso é, para a arguida AA, de 4 anos e 6 meses de prisão no seu limite mínimo e 6 anos no seu limite máximo. Estabelecida a moldura penal do concurso, deve determinar-se a pena conjunta do concurso, dentro dos limites daquela. Tal pena será encontrada em função das exigências de culpa e de prevenção, tendo o legislador fornecido, para além dos critérios gerais estabelecidos no art.º 71.º do C. P., um critério especial: “Na determinação concreta da pena serão considerados, em conjunto, os factos a personalidade do agente” (cfr. art.º 77.º, n.º 1, 2.ª parte, do C.P.). Importa, pois, detetar a possível conexão e o tipo de conexão que intercede entre os factos concorrentes, tendo em vista a totalidade da atuação do respetivo arguido como unidade de sentido, que possibilitará uma avaliação global e a “culpa pelos factos em relação” (cfr. MONTEIRO, Cristina Líbano, in “A Pena “Unitária” do Concurso de Crimes”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 16, n.º 1, págs. 162 e segs.). Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique (cfr. DIAS, Jorge de Figueiredo, in As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial de Notícias, pág. 286). Na avaliação desta personalidade unitária do agente, releva, sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência, ou eventualmente mesmo a uma carreira criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade, sendo que só no primeiro caso será de atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. No entanto, não pode ser esquecida a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do respetivo agente. Ora, face às circunstâncias do caso, o período em causa, a reiteração da conduta, a mesma identidade da vítima, a similitude do comportamento adotado, os artifícios criados e o dolo com que atuou, afigura-se que o conjunto dos factos em apreço não se limitou a ser uma pluriocasionalidade, fruto de uma multiplicidade de circunstâncias casuais e de um particular contexto da vida da arguida AA, radicando já na sua personalidade, pelo que será de atribuir à pluralidade de crimes cometidos um efeito mais agravante dentro da respetiva moldura penal conjunta aplicável. Tudo ponderado, afigura-se adequada às circunstâncias do caso a pena única de 5 (CINCO) ANOS DE PRISÃO para a arguida AA.”
A pena aplicada à arguida relativamente ao crime de burla qualificada situa-se abaixo do meio da moldura penal abstracta – entre 2 e 8 anos de prisão.
No que toca ao crime de extorsão tentado, a pena concreta de 1 ano e 6 meses de prisão, mais uma vez, situa-se abaixo do meio da moldura abstracta situada entre 1 mês a 3 anos e 4 meses de prisão,
Ora, tendo em conta os valores em causa, a reiteração, a ausência de arrependimento, não vemos como possamos diminuir as penas concretas aplicadas, sendo que na determinação da pena única o tribunal denotou até alguma brandura em face da nova moldura do concurso que estava em causa.
Não vemos qualquer motivo para a alteração da pena aplicada à recorrente.
III. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto, em negar provimento ao recurso da arguida AA mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.
Custas pela arguida- art. 513º nº 1 CPP
Porto, 22 de Maio de 2024
(Elaborado e revisto pela relatora, revisto pelos signatários e com assinatura digital de todos)
Por expressa opção da relatora, não se segue o Acordo Ortográfico de 1990.
Raquel Correia Lima (Relatora)
Donas Botto (1º Adjunto)
Pedro M. Menezes (2º Adjunto)