MEDIDAS DE PROMOÇÃO E PROTEÇÃO
CONFIANÇA COM VISTA A FUTURA ADOPÇÃO
INTERESSE DA CRIANÇA
Sumário

I. A intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança em perigo obedece, entre outras, às seguintes diretrizes, que resultam da densificação que a respetiva lei faz de princípios nela positivados:
. Priorização da continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas (princípio do interesse superior da criança, no artigo 4.º, al. a), da LPCJP);
. Respeito pelo direito da criança à preservação das relações afetivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação que transmita segurança à criança (princípio do primado da continuidade das relações psicológicas profundas, no artigo 4.º, al. g), da LPCJP);
. Intervenção de forma necessária e adequada à situação de perigo em que a criança se encontre no momento em que a decisão é tomada, interferindo na vida da criança e na da sua família apenas na medida do necessário a afastar o perigo em que a criança se encontre (princípios da proporcionalidade e atualidade, no artigo 4.º, al. e), da LPCJP).
II. A confiança com vista à adoção tem como pressupostos necessários e cumulativos:
. A inexistência ou sério comprometimento dos vínculos afetivos próprios da filiação;
. Que a inexistência ou sério comprometimento dos vínculos afetivos próprios da filiação decorra da verificação objetiva de qualquer das seguintes situações:
a) A criança ser filha de pais incógnitos ou falecidos;
b) Ter havido consentimento prévio para a adoção;
c) Terem os pais abandonado a criança;
d) Terem os pais posto em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança;
e) Terem os pais da criança acolhida por um particular, por uma instituição ou por família de acolhimento revelado manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade daqueles vínculos, durante, pelo menos, os três meses que precederam o pedido de confiança.
III. A relação entre irmãos é das mais importantes na vida; a separação de quatro irmãos menores de dez anos que sempre viveram juntos, e se relacionaram com a proximidade, conversas, brincadeiras e cumplicidades próprias entre irmãos, teria consequências devastadoras de dimensão imprevisível na saúde mental dos mesmos, especialmente considerando a vida atribulada e longe da restante família que têm sofrido.

Texto Parcial

Acordam os abaixo assinados juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
No presente processo judicial de promoção e proteção instaurado pelo Magistrado do Ministério Público em benefício das crianças A, B, C, D e E, tendo sido proferido acórdão que aplicou às quatro crianças mais novas medida de promoção e proteção de confiança a família de acolhimento ou a instituição com vista à futura adoção, e com essa decisão não se conformando os progenitores, interpuseram separadamente os recursos que se vão apreciar.

A apreciação e decisão do presente recurso demanda a narração circunstanciada dos factos documentados nos autos:

(…)

31. Na sessão do debate judicial de …2024, na sequência de acordo dos progenitores da menor A e respeitando também a vontade desta, foi aplicada em benefício da menor medida promoção e proteção de confiança a pessoa idónea, concretizada na pessoa de … (que será o pai biolágico, ainda que não o pai registado).

32. Após debate judicial, em …2024, foi proferido acórdão que substituiu a medida que então vigorava pela aplicação às quatro crianças (B, C, D e E) da «medida de promoção e proteção de confiança a família de acolhimento ou a instituição com vista à futura adoção».

A mãe das crianças não se conformou e recorreu, concluindo as suas alegações de recurso da seguinte forma:
«(…) III. De facto, a análise da prova, nomeadamente, documental e testemunhal e a sua correta interpretação e apreciação segundo as regras da experiência imporia uma decisão diferente.
IV. Além disso, há diligências e elementos que deveriam ser considerados e produzidos que, ao não terem sido, não permitiram a melhor decisão do caso concreto e a defesa do superior interesse dos menores.
V. Se não vejamos:
VI. Nos autos foi requerida, por mais do que uma vez, a audição dos menores.
VII. Os pedidos reiterados para audição dos menores foram sucessivamente recusados pelo tribunal a quo, que se limite a ouvir a jovem A, considerando que esta tem já 14 anos.
VIII. Portanto, o Tribunal decidiu que estas crianças deveriam ser encaminhadas para a adoção ou, ao invés, passarem o resto da vida institucionalizadas (o que irá suceder com grande probabilidade!), sem que o Tribunal tomasse em consideração aquilo que é a representação das crianças sobre a vida, quer junto da mãe, quer na casa de acolhimento, quer com uma eventual desconhecida.
IX. E sublinhe-se que estão em causa crianças que contam já com 8, 7, 6 e 5 anos.
X. São quatro crianças, com idades distintas. Mas, percorridos os autos não se vislumbra que em algum momento haja sido feita uma ponderação acerca da maturidade de CADA UMA DESTAS CRIANÇAS!
XI. As expressões evidenciadas nas imagens supra, ilustram de maneira inequívoca o amor, carinho e afeto existentes entre as crianças e a mãe, aqui Recorrente.
XII. Porém e lamentavelmente, o Tribunal a quo recusou-se a ouvir o que estas crianças têm para dizer.
XIII. A única a ser ouvida foi a A, a mais velha dos cinco irmãos e mesmo esta conclui a dizer que os irmãos desejam estar com a mãe!
XIV. Aliás, em todas as visitas que a Recorrente fez aos menores, estes perguntaram quando vão voltar a viver com a mãe.
XV. Diga-se, inclusive, que em nenhum momento resultou referido que os menores coloquem de lado a vontade de viver com a mãe ou que tal não desejem – a questão é que o tribunal não permite tais opções!
XVI. É inegável a dificuldade presente no percurso de vida desta mãe, porém, a verdade é que, apesar disso, os menores foram crescendo junto da mãe e continuam a querer estar com a mesma.
XVII. DA AUSÊNCIA DE ENUNCIAÇÃO NA DECISÃO RECORRIDA DE FACTOS CONCRETOS:
XVIII. Analisada a decisão recorrida, em especial, a “Motivação da Matéria de Facto”, constata-se que a mesma se limita a reproduzir (e apenas em parte) aquilo que foi dito pelas testemunhas.
XIX. Na verdade, ao nível da fundamentação de facto, esta é inexistente, ou melhor, não é mais do que aquilo que as testemunhas disseram.
XX. Na realidade, não se verifica onde estejam na decisão recorrida as situações fácticas de vivência de situação de perigo pelas crianças!
XXI. Fala-se da instabilidade e desorganização emocional das crianças após as visitas, mas não se descrevem que visitas foram essas, quando ocorreram e o que efetivamente aconteceu.
XXII. Não há na decisão recorrida factos concretos que traduzam a vivência/reação das crianças a cada um desses acontecimentos, de forma a permitir a conclusão de que os comportamentos da progenitora têm efetivamente aquele impacto nos menores!
XXIII. Não se dá por provado, erradamente, que a Recorrente compra com frequência roupa para os menores e entrega na Casa de Acolhimento.
XXIV. Na realidade, toda a roupa e calçado que os menores têm foi comprado pela Recorrente!
XXV. Portanto, salvo melhor opinião, esta realidade deverá constar do elenco dos factos provados!
XXVI. Foi dado igualmente por provado (ponto 92) que “A equipa técnica da Casa de Acolhimento «B» realizou visita domiciliária à residência da progenitora (onde os menores habitaram antes do acolhimento), a qual era constituída por 3 quartos pequenos, sem janelas e sem possibilidade de arejamento, portas com pouca privacidade, casa de banho exterior, com humidades”.
XXVII. Ora, trata-se efetivamente de uma casa pobre, não se esconde, mas importa mencionar que ao nível da alimentação, sempre foi uma casa farta.
XXVIII. E o que refere o Tribunal a quo sobre as condições habitacionais apresentadas pela progenitora nos autos? NADA.
XXIX. Não é feita qualquer referência às fotografias que a progenitora fez juntar ao processo, dando conta que havia feito esforços no sentido de conseguir uma habitação mais condigna para acolher os seus filhos.
XXX. E, portanto, o Acórdão recorrido dá uma importância excessiva ao facto de os menores terem residido com a progenitora, ora Recorrente, numa habitação “abarracada” (como referido na decisão em causa), ignorando, no entanto, que a Recorrente enveredou esforços para se mudar para uma habitação mais condigna, tendo, inclusive, conseguido obter uma habitação camarária de tipologia T4 e, portanto, suficientemente grande para acolher os filhos, acabando por perder o direito ao fogo municipal por não ter os menores a seu cargo; é caso para dizer, esta mãe é “presa por ter cão e por não ter”.
XXXI. Atualmente a mãe reside numa habitação que oferece plenas condições de habitabilidade, o que, contudo, mereceu descrédito por parte do Tribunal; Em qualquer caso, este é um perigo que, caso tivesse existido, o que não se concede, sempre se teria por ultrapassado.
XXXII. Posto isto, parece resultar que, atualmente (e este é momento temporal que importa focar, pois qualquer medida deverá respeitar o princípio da atualidade), o problema que se coloca e que alegadamente se traduz no perigo que justifica o afastamento definitivo dos menores da sua família biológica, pretende-se com a personalidade da progenitora.
XXXIII. No que concerne à caracterização psicológica/psiquiátrica da Recorrente, consta no ponto 78: “As Equipas Técnicas intervenientes descrevem a progenitora dos menores, Ft, com uma pessoa auto-centrada, narcísica, com rigidez de pensamento, postura de reatividade, e estilo parental autoritário (…)”.
XXXIV. Mais uma vez, vemos que estas asserções, de “facto” nada têm, consubstanciando, antes, meros juízos conclusivos e a opinião (“avaliação”) de “das equipas técnicas intervenientes”.
XXXV. Relativamente ao dado como provado nos pontos 78, 79, 80, 83, urge, de igual forma, enunciar os factos concretos (situando-os, ainda, no espaço e no tempo) que permitam a conclusão ali contida de que a progenitora dos menores tem “dificuldade em identificar as características individuais e as necessidades especificas de cada filho, bem como dificuldade em reconhecer, priorizar e responder adequadamente às necessidades psico-emocionais dos menores.” e, ainda, que a Recorrente “não efetuou mudanças estruturais no seu comportamento, apesar de todas as intervenções técnicas”.
XXXVI. Mas que intervenções foram estas?!
XXXVII. Na realidade, desde que os menores se encontram institucionalizados, ou seja, desde … 2022, a esta família não foi proposta qualquer intervenção ao nível social, nomeadamente, com enfoque na aquisição de competências para cuidar das crianças.
XXXVIII. O que nos leva a outra questão, - a INSUFICIÊNCIA DOS MEIOS DE PROVA E DA PROVA PRODUZIDA - DA INEXISTÊNCIA DE INFORMAÇÕES ATUAIS E CREDÍVEIS DA ATUAL SITUAÇÃO DA PROGENITORA E DA CONSEQUENTE INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FATO DADA COMO PROVADA PARA A TOMADA DA DECISÃO PELO TRIBUNAL A QUO:
XXXIX. Assim, quanto ao aspeto a nível de psiquiatria cujos problemas são, também eles, o PRINCIPAL (para não dizer único) fundamento para se concluir que a Recorrente não tem capacidade de cuidar dos seus filhos – o que temos? – Nada! NENHUM DIAGNÓSTICO!
XL. As várias testemunhas ouvidas e que concluíam pelos problemas de índole psiquiátrica/psicológica da progenitora NUNCA EFETUARAM NENHUM diagnóstico específico, até porque, essa nem é a área de grande parte das testemunhas e não tinham, por isso competência para tal!
XLI. Os técnicos são, na sua maioria, Assistente Sociais, não são psicólogos, nem psiquiatras! Outros nem Assistente Sociais são, mas sim educadores de infância!
XLII. Portanto, algum profissional com competência na área identificou alguma patologia à progenitora que a impeça de cuidar dos menores? NÃO…
XLIII. Existe, de facto, um relatório pericial (e mesmo assim, apenas de índole psicológico e não psiquiátrico).
XLIV. Mas, esse relatório pericial foi realizado em … 2020 – ou seja – há quase 4 anos, o que, salvo o devido respeito, não tem qualquer atualidade e exigia a sua comprovação na data presente.
XLV. No entanto, ainda assim, aquele relatório conclui que, se por um lado “existe potencialidade para a mudança comportamental da examinada, se devidamente acompanhada do ponto de vista psicoterapêutico” e que a mesma “manifesta sentimentos positivos em relação aos menores, que revela conhecimentos teóricos bastante satisfatórios das necessidades básicas das crianças, bem como evidencia uma relação positiva com todos, caracterizando-se como estruturante para si”.
XLVI. Na verdade, a avaliação atual que existe foi feita por exclusiva iniciativa da Recorrente e pela mesma junta aos autos!
XLVII. Pois note-se que a progenitora mostrou-se disponível para realização de uma nova perícia psicológica, o que foi por si requerido ao Tribunal a quo e por este prontamente negado!
XLVIII. Daquele resulta que, se por um lado é visível “a presença de indicadores de relevantes de defensividade, por outro lado, não podemos afirmar a presença de indicadores de manipulação que comprovem a ocultação de psicopatologia estruturada que coloque em causa a avaliação da realidade, o processo de socialização da examinanda, ou, em última instância, as suas competências parentais”.
XLIX. Portanto, em nenhum dos relatórios se conclui pela incapacidade da mãe para o exercício das competências parentais!!
L. Temos, portanto, que concluir que a (aparente) incapacidade da progenitora é recuperável.
LI. O que confirmado pela testemunha …, que acompanhou os menores e a progenitora, no âmbito da intervenção do CAFAP, no período entre … 2019 e … 2022.
LII. Segundo aquela testemunha (apesar do que vem dito na decisão recorrida quanto ao seu depoimento, ali se referindo apenas as partes que iam de acordo com a posição dos restantes técnicos ouvidos), a mesma afirmou que “tiveram uma intervenção longa, houve várias fases- Primeiro tiveram alguma dificuldade, depois sendo demonstrado pela mãe uma resposta positiva”.
LIII. Assim, e concluindo – sem estes elementos, tais como, o diagnóstico psiquiátrico exato, profissional e atual a nível de saúde mental da mãe; a possibilidade de tratamento, caso exista; bem como a identificação da situação social atual da mãe não é possível concluir, como o douto tribunal a quo concluiu, no sentido de incapacidade da mãe em cuidar dos menores.
LIV. Em suma, os autos carecem de prova que permitam retirar as conclusões a que o douto tribunal a quo chegou.
LV. E, portanto, NÃO É CERTO NEM É JUSTO que o Tribunal a quo impute à progenitora uma incapacidade que não teve a preocupação em concretizar e diagnosticar.
LVI. Há, pois, uma manifesta insuficiência de elementos de prova que permitam concluir acerca de problemas de índole mental/psiquiátrico da mãe que a impeça de cuidar dos seus filhos.
LVII. Por outras palavras não basta o discurso de “eu tenho esta opinião …..; eu observei que …..; deu-me a entender que …..”; é necessário que se diga, eu analisei, eu consultei, eu sou especializada nesta área e fiz um diagnóstico e conclui que o problema é x, tem solução e o tratamento é y ou não tem solução ….; O diagnóstico técnico efetuado concluiu pela capacidade/incapacidade da mãe…..;
LVIII. Faltam, pois, na decisão recorrida factos essenciais e atuais, isto é, que se reportem à situação existente no momento do encerramento do debate judicial, em obediência ao princípio na atualidade, porque se deve pautar este tipo de processos!
LIX. Em qualquer caso, se este é o único perigo que (alegadamente) prevalece, então, a Recorrente deverá ter uma oportunidade de rever a sua atitude e consciencializar-se da necessidade de apoio a nível psicológico e educação parental, o que, aliás, já começou a fazer, estando a ter neste momento acompanhamento psicológico, por estar firmemente decidida a assumir as suas responsabilidades maternais!
LX. DA EXISTÊNCIA DE FATOS PROVADOS RELATIVOS AOS MENORES QUE RESULTAM DA PROVA PRODUZIDA COM RELEVO PARA A DECISÃO FINAL QUE NÃO CONSTAM DA DOUTA DECISÃO A QUO:
LXI. Da prova produzida, resultaram fatos provados que deveriam ter sido considerados pelo douto tribunal a quo porque relevantes para a decisão final e não o foram.
LXII. Assim, resultou provado que os menores têm uma enorme afiliação e ligação à mãe e esta com estes.
LXIII. Isso resultou, não só, de todos os depoimentos prestados e acaba até por ser admitido pelo Tribunal a quo, sem que, no entanto, o faça constar do elenco dos factos provados.
LXIV. DA DESCONSIDERAÇÃO INJUSTIFICADA DE ALTERNATIVA NO SEIO FAMILIAR DAS MENORES E DA EXISTÊNCIA DE FATOS PROVADOS RELATIVOS À ATUAÇÃO DAS EQUIPAS COM RELEVO PARA A DECISÃO FINAL E NÃO CONSIDERADOS:
LXV. Admitindo, o que de todo não se concede, que efetivamente os progenitores não são alternativas para os menores, há ainda alternativas no seio da família biológica que, injustificadamente não foram consideradas.
LXVI. A este respeito, importa relembrar que a mãe dos menores apresentou nos autos um requerimento no qual indicou elementos na família com disponibilidade e capacidade para ficar com a criança, incluindo o Tio da Recorrente. Mas, sobre este requerimento não incidiu qualquer pronúncia do Tribunal.
LXVII. Assim, o ponto 100. Deverá ser alterado, no sentido de constar do mesmo que a progenitora desenvolveu as diligências necessárias para apresentar alternativas ao Tribunal e que as mesmas por este não foram consideradas.
LXVIII. POSTO ISTO,
LXIX. Dispõe a alínea d) do nº 1 do art.º 1978º do Código Civil que: “O tribunal, no âmbito de um processo de promoção e proteção, pode confiar a criança com vista a futura adoção quando não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, pela verificação objetiva de qualquer das seguintes situações: (…) Se os pais, por ação ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança; (…)”.
LXX. A medida concretamente aplicada deve obedecer, nos termos do disposto no artº4º da LPCJP, entre outros (desde logo, o primacial, do interesse superior da criança e do jovem), aos princípios da proporcionalidade e atualidade, da responsabilidade parental, do primado da continuidade das relações psicológicas profundas e da prevalência da família, o que não sucedeu e se alega.
LXXI. Apresentando a intervenção do Estado uma restrição dos direitos fundamentais da criança ou do jovem (nomeadamente, o seu direito à liberdade e autodeterminação pessoal) e dos direitos fundamentais dos seus progenitores (entre outros, o direito à educação e manutenção dos filhos), colide com o consagrado no art.º 36º da CRP, mormente nos seus n.º 5 e 6, e com o previsto no nº1 do art.º 1878º e n.º 1 do art.º 1885º, ambos do CC, e só pode ser tolerada dentro dos limites definidos pela própria CRP, no nº2 do seu art.º 18º: “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”
LXXII. O que não se verifica no caso em apreço, porquanto: § A situação de violência doméstica que deu início ao acompanhamento dos menores foi causada exclusivamente pelo progenitor, tanto assim é que o mesmo se encontra neste momento a cumprir pena de prisão; § Apesar disso, nunca a progenitora permitiu que os menores fossem agredidos ou sequer vivenciassem discussões entre o então casal, tendo a mãe tratado de afastar de eventuais perigos a que os menores tivessem sujeitos; § Os menores foram reintegrados no agregado familiar da progenitora em … 2021; § Os episódios que originaram novo acolhimento não tiveram na sua origem maus tratos físicos ou psíquicos; § Na realidade, os menores foram encontrados sozinhos quando deixados ao cuidados de terceiro – e não da mãe –, porque esta estava a trabalhar, para poder assegurar o sustento e educação dos menores; § Portanto, tendo o agregado sido acompanhado desde …2017, nunca o foi em virtude de maus tratos físicos, nem em momento anterior foram sinalizados maus tratos físicos, por não se verificarem; § Esta Mãe sempre visitou os seus filhos na Instituição – nunca tendo faltado uma visita, sempre que lhe for permitido ligou e sempre demonstrou preocupação com o bem bem-estar dos filhos; em suma, esta mãe nunca se demitiu dos seus deveres! § Aliás, se houve recentemente um afastamento da mãe dos filhos, esse afastamento foi imposto pelas próprias instituições, incluindo o Tribunal, que decidiu, com base em pareceres, não permitir que a progenitora visite os menores. § As crianças sempre viveram com a mãe, à exceção do período em que estiveram institucionalizadas; Atentas as idades das crianças, sendo que a mais velha já tem 14 anos, e tendo sempre vivido juntas, estabeleceu-se, necessariamente, um profundo laço familiar entre os cinco irmãos. § Logo, o que importa saber é se tudo o que aconteceu, todas as vicissitudes relatadas comprometeram de forma séria, ou seja, irrecuperável, irremediável, o vínculo afetivo mãe-filhos. § Importa, pois, perceber se a situação atual aponta na necessidade de apoiar esta mãe, responsabilizando-a a exercer devidamente as suas competências maternais ou se, antes, aponta na necessidade de causar uma rutura definitiva nesta família e em especial entre os irmãos.
LXXIII. Encaminhar os filhos para adoção é próprio para situações de progenitora ou progenitores com patologias, por exemplo, alcoólicas, de drogas, indiferença, rejeição ou outras conjunturas desumanas em que os interesses dos menores são ignorados, o que todo não é o caso!
LXXIV. O vínculo afetivo entre os cinco irmãos é talvez o bem mais valioso com que cada um pode contar.
LXXV. Ora, como é sabido e resulta da experiência comum é extremamente improvável, para não dizer quase impossível, que existam candidatos a adotantes para quatro irmãos, em conjunto.
LXXVI. Quer isto dizer que a medida decretada teria necessariamente a seguinte consequência para as crianças: cortar-lhes a hipótese de qualquer ligação com a mãe, criando nas mesmas uma expectativa de vinculação a uma família alternativa que, com toda a probabilidade, não aparecerá!
LXXVII. Mas, ainda que aparecesse, com toda a probabilidade iria cortar, PARA SEMPRE, o vínculo afetivo mais forte que estas crianças conhecem que é o vínculo familiar entre os cinco (ou quatro) irmãos, considerando que foi alcançado acordo quanto à A.
LXXVIII. Neste caso, tendo as crianças uma mãe que quer assumir as funções parentais e que já demonstrou anteriormente que o pode fazer de forma satisfatória, ainda que com o apoio da comunidade/serviços competentes, haveria que aplicar a medida de apoio junto dos pais, prevista na alínea a) do nº1 do artº35º da LPCJP.
LXXIX. Isto ainda que a mãe possa necessitar de um programa de formação visando o melhor exercício das funções parentais.
LXXX. Face a tudo supra exposto entende-se, com o devido respeito, que o Tribunal a quo errou na sua tomada de decisão, a qual urge alterar, figurando-se que a medida mais adequada ao caso concreto seria a de apoio junto dos pais, confiando-se as crianças à guarda e cuidados da mãe,
LXXXI. Ainda que com estipulação de um período de gradual adaptação e com apoio e acompanhamento de natureza psicopedagógica e social e eventual imposição de deveres de assegurar a assiduidade escolar, a assistência médica regular, a alimentação, a higiene pessoal e da casa e/ou a frequência de programas propostos pelas técnicas da segurança social e vocacionados para o melhor desempenho da responsabilidade parental.
Termos em que deve a douta decisão recorrida ser revogada e substituída por outra, em concreto, pela medida de apoio junto dos pais, confiando-se as crianças à guarda e cuidados da mãe (…).»

O pai das crianças também recorreu, concluindo:
«1. Decidiu ao douto Tribunal a quo, proceder à substituição da medida atual, e aplicar em benefício das crianças B, …, C, …, D, …, e E, …, a medida de promoção e proteção de confiança a família de acolhimento ou a instituição com vista à futura adoção.
2. Mais decidiu nomear como curador provisório das crianças o(a) Exmo(a). Senhor(a) Diretor(a) da Casa de Acolhimento «B», onde os menores se encontram acolhidos, o qual exercerá funções até ser encontrada uma família de acolhimento adequada às necessidades e características pessoais das crianças, ou até ser decretada a adoção, ou instituída outra medida tutelar cível.
3. E ainda declarar os pais inibidos do exercício das responsabilidades parentais, relativamente às crianças B, C, D e E.
4. Para além de proibir as visitas às crianças, por parte dos progenitores e de quaisquer elementos da família biológica, autorizando-se a manutenção dos contactos entre todos os irmãos, A, B, C, D e E.
5. Na douta Decisão o douto Tribunal a quo infere: “As Equipas Técnicas intervenientes consideram que os menores B, C, D e E não têm perspetiva de poder vir a integrar a sua família de origem, mantendo-se na incógnita se os pais alguma vez vão reunir competências e condições para o efeito, sendo certo que nenhum conseguirá a curto/ médio prazo, o que significaria prolongar indefinidamente o seu acolhimento.”
6. Sucede, porém, que nunca foi efetuado, por parte das referidas Equipas Técnicas, qualquer relatório ao Progenitor, ora Recorrente de modo a apurar se o mesmo possuía, ou não, as devidas capacidades para cuidar dos menores.
7. Nem sequer, se este, enquanto estivesse na situação de reclusão, se existia, ou não, familiar nas condições de cuidar dos menores.
8. O Progenitor, ora Recorrente, nunca recusou qualquer intervenção das referidas Equipas Técnicas.
9. Nem sequer, pelas mesmas foi contactado.
10. E, também, nunca se verificou que o Progenitor, ora Recorrente, tenha fragilidades emocionais, com as quais não possa cuidar dos seus filhos.
11. Pois, se o mesmo não tivesse capacidades de cuidador, não teria um dos seus quatro filhos, já maior de idade, a formar-se no Ensino Superior numa Universidade em Londres.
12. Das vezes que o Progenitor visitou os menores na Casa de Acolhimento, segundo a Testemunha …, nas suas declarações, em sede de Debate Judicial, em … 2023 declara que o Progenitor visitou os menores três vezes e eram visitas tranquilas e que os menores não ficavam perturbados.
13. Ainda, na mesma data, e igualmente em sede de Debate Judicial, a Testemunha … declarou que ao Progenitor foi elaborado plano de visitas, mais concretamente após contacto do mesmo.
14. Mais acrescentou que foram marcadas visitas às quais compareceu e quando faltava justificava com trabalho.
15. Sendo ainda de salientar, segundo as declarações da mesma, que nas visitas o Progenitor, sempre foi afetuoso com os menores e as visitas não correram de forma negativa.
16. Pelo que, entende o Recorrente, salvo melhor opinião, que o douto Tribunal a quo deveria ter dado como provado esta factualidade, ou seja, o que estas duas testemunhas declararam.
17. Para além, como não pode deixar de ser, entende o Progenitor, ora Recorrente, que também a ele deveriam ter sido elaborados os competentes relatórios, pelas Equipas Técnicas, de modo a aferir as suas competências, capacidades e cuidador, enquanto Pai, dos menores.
18. Pelo que, nessa senda, não deveria o douto Tribunal a quo concluído que o Progenitor, ora Recorrente, não era alternativa para a confiança dos menores em questão.
19. Não obstante de se encontrar em reclusão, e pelo menos até à sua restituição à liberdade, a verdade é que os menores podiam ser confiados a terceira pessoa, mormente ao irmão do ora Recorrente.
20. Em súmula, o douto Tribunal a quo, com o devido respeito e salvo melhor opinião, não sustentou devidamente a factualidade dada como provada quanto ao Progenitor, ora Recorrente, pois da prova produzida e da documentação existente nos autos e que sustentam outra prova quanto aos demais sujeitos processuais, não resulta qualquer evidência que o Progenitor, ora Recorrente, não tenha competências e capacidades para ser cuidador dos menores.
21. Pois, para além do mais, em momento algum se provou de forma efetiva e perentória que o Progenitor deixou de cumprir com os deveres fundamentais para com o Menores – bem pelo contrário -, a subversão desta norma é, per si, a aceitação de uma inconstitucionalidade, consubstanciada na gravíssima violação dos direitos, liberdades e garantias acautelados pela Lei Fundamental.
22. Como discorre Tomé d’Almeida Ramião, in “Organização Tutelar de Menores, Anotada e Comentada”, 10ª Edição, Quid Juris, página 114: “iguais princípios decorrem da Convenção sobre os Direitos da Criança […], nomeadamente no seu artigo 9.º/1, que considera que os Estados Partes garantem que a criança não é separada dos pais contra a vontade destes, salvo se as autoridades competentes decidirem, sem prejuízo de revisão judicial, que essa separação é necessária no interesse superior da criança, nomeadamente se os pais maltratarem ou negligenciarem a criança.”
23. Concluindo o mesmo autor que “decorrentemente, o entendimento de que só excecionalmente, e perante situações sérias devidamente comprovadas judicialmente, do tipo das referidas, é que o tribunal não deve entregar o filho aos pais, mas a terceira pessoa ou instituição.” - [Sublinhado nosso].
24. No caso em crise nos autos, no que concerne ao Progenitor, ora Recorrente, “não existe situação séria deviamente comprovada judicialmente”.
25. Ainda, Tomé d’Almeida Ramião, na obra citada, que, fazendo alusão ao n.º 1 do artigo 18.º da Convenção sobre os Direitos da Criança, sublinha que devem “[…] os Estados assegurar uma assistência adequada aos pais da criança no exercício dessa responsabilidade.”
26. Não sendo despiciendo que salientar o que refere Helga Diana Ribeiro de Sousa in “Contextos de Desenvolvimento e Rendimento Escolar em Crianças Adoptadas – Estudo Exploratório, Dissertação de Mestrado em Temas de Psicologia do Desenvolvimento”, Julho de 2014, Universidade de Coimbra, página 61: “(…) Verifica-se uma enorme prevalência de casos de crianças/jovens institucionalizadas com uma percentagem elevada de insucesso escolar, sendo muito reduzido o número desta população que frequenta o ensino superior (M.T.S., 2000). Num estudo desenvolvido por Palácios e Sánchez (1996, in Schettini, 2007), onde são comparados três grupos, crianças adaptadas, não adotadas e institucionalizadas, com vista a analisar problemas de comportamento, autoestima e rendimento escolar, estes autores verificaram que os resultados obtidos apontam para um elevado grau de semelhança entre as crianças adotadas e não adotadas. Quanto às institucionalizadas, estas revelam os piores resultados nos três indicadores comparados (…).” – [Negrito e Sublinhado nosso].
27. Mais acrescenta: “(…) Considerando a investigação realizada por Johnson (2000, in Machado, 2002) verificou-se que algumas crianças/jovens colocados em instituição teriam atrasos no desenvolvimento físico, psicomotor e intelectual, bem como perturbações ao nível da vinculação, graves problemas emocionais e comportamentais. Contudo, tal não se verifica com outros menores que possuem uma boa estrutura que lhes permite segurança na prossecução das metas a alcançar. (…)”
28. Ora, o Decreto-Lei n.º 12/2008, de 17 de Janeiro, que aprova o Regime de Execução das Medidas de Promoção e Proteção das Crianças e Jovens em Perigo, vem, no seu preâmbulo, fazer uma análise escorreita do ratio que presidiu à criação de tal diploma.
29. Explica que este regime, que regula a “intervenção social do Estado e da comunidade nas situações em que aquelas [crianças e jovens] se encontrem em perigo, tem por pressuposto essencial uma intervenção que permita assegurar às famílias condições para garantirem um desenvolvimento pleno das crianças e dos jovens no âmbito do exercício de uma parentalidade responsável.” – [Sublinhado nosso]
30. E ainda se acrescenta que “a execução destas medidas, por terem por pressuposto essencial o direito da criança e do jovem a serem educados numa família, de preferência a sua, implica que sejam considerados os apoios a conceder àquela, bem como o suporte a proporcionar à família para que desempenhe o papel que lhe incumbe […], definindo apoios de natureza psicopedagógica, de natureza social e económica.” – [Negrito e Sublinhado nosso]
31. No caso dos presentes autos não se verificou, que a ECJ tenha intervindo de forma a permitir assegurar ao Progenitor, ora Recorrente, condições para garantir um desenvolvimento pleno dos menores no âmbito do exercício de uma parentalidade responsável.
32. Pelo que, mais uma vez se refere, a par disto, não foi concedido um reforço ou aquisição de competências do Progenitor por forma a permitir a manutenção dos menores junto da sua família natural.
33. Que no presente caso, o apoio psicossocial e o acesso ao programa de formação parental teriam sido vitais para evitar no que culminou as medidas aplicadas e agora a douta Decisão.
34. Pelo que será de questionar: Onde estão os superiores interesses da criança, tão defendidos pela Jurisprudência e pela Doutrina?
Nestes termos e sempre com o douto suprimento de V. Exas., Venerandos Desembargadores, deve ser dado provimento ao presente Recurso sendo, a douta Sentença revogada e substituída por outra que aplique no limite a medida de confiança a terceira pessoa, mormente ao irmão do Progenitor, ora Recorrente, até à colocação, deste, em liberdade. Fazendo-se assim a acostumada JUSTIÇA.»

O Ministério Público ofereceu contra-alegações, pronunciando-se pela confirmação da sentença recorrida.

Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.

Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor das alegações de recurso de cada um dos progenitores, colocam-se as seguintes questões:
a) A matéria de facto deve ser alterada?
b) O elenco de matéria de facto está cheio de matéria conclusiva, juízos de valor e opiniões que devem ser desconsiderados?
c) Não se verificam os pressupostos legais necessários à aplicação da medida imposta em 1.ª instância?
d) Há motivos para aplicação de medida de proteção a favor das crianças? Na positiva, qual?

II. Fundamentação de facto
Além dos constantes do relatório supra, estão provados os seguintes factos, que correspondem aos elencados em 1.ª instância – completados entre parênteses retos, com referências relativas ou extratadas dos documentos dos autos dos quais esses factos foram extraídos –, e aos acrescentados sob os n.ºs 115. e seguintes, com os fundamentos expressos em III.1.:
(…)

III. Apreciação do mérito dos recursos
1. Da impugnação da matéria de facto
A recorrente impugna a omissão na decisão de facto dos seguintes factos (que a recorrente oportunamente alegou e que têm relevância para a apreciação da causa):
i. A progenitora compra com frequência roupa para os menores e entrega na Casa de Acolhimento;
ii. Toda a roupa e calçado que os menores têm foram comprados pela progenitora;
iii. Ao nível da alimentação, a casa da progenitora, enquanto os filhos aí viveram, sempre foi uma casa farta;
iv. As atuais condições habitacionais apresentadas pela progenitora nos autos oferecem condições de habitabilidade;
v. A progenitora conseguiu obter uma habitação camarária de tipologia T4 e, portanto, suficientemente grande para acolher os filhos, acabando por perder o direito ao fogo municipal por não ter os menores a seu cargo;
vi. Os menores têm uma enorme afiliação e ligação à mãe e esta aos filhos.

Nos termos do disposto no artigo 640.º do CPC, o recorrente pode impugnar a decisão sobre a matéria de facto, devendo observar as regras contidas no mesmo artigo.
Segundo elas, o recorrente deve especificar:
- Os pontos da matéria de facto de que discorda;
- Os meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida;
- A decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
A recorrente fê-lo; todos os pontos em causa foram omitidos da decisão de facto, pelo que a recorrente os identificou, dizendo que devem ser consignados.
Perante as regras positivadas no CPC, e sem prejuízo do seccionamento do objeto da reapreciação por via do disposto no artigo 640.º do CPC, os tribunais da Relação devem proceder à efetiva reapreciação da prova produzida (nomeadamente dos meios de prova indicados no recurso, mas também de outros disponíveis e que entendam relevantes) da mesma forma – em consonância com os mesmos parâmetros legais – que o faz o juiz de 1.ª instância.
Tanto significa que os juízes desembargadores apreciam livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, exceto no que respeita a factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, ou que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documentos, acordo ou confissão (artigo 607.º, n.º 5, do CPC).
Na sua livre apreciação, os juízes desembargadores não estão condicionados pela apreciação e fundamentação do tribunal a quo. Ou seja, o objeto da apreciação em 2.ª instância é a prova produzida (tal como em 1.ª instância) e não a apreciação que a 1.ª instância fez dessa prova. Esta pode ter sido formalmente correta, bem como exaustiva e logicamente fundamentada, e, não obstante, a Relação formar diferente convicção.
A posição que acabámos de expressar sobre a disciplina processual da reapreciação da prova em 2.ª instância vai ao encontro de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça que passamos a exemplificar:
Ac. STJ, de 11/02/2016, proc. 907/13.5TBPTG.E1.S1 (Abrantes Geraldes)
«1. Impugnada a decisão da matéria de facto com base em meios de prova sujeitos à livre apreciação (in casu, documentos particulares, testemunhas ou presunções), com cumprimento dos requisitos previstos no art.º 640º do NCPC, cumpre à Relação proceder à reapreciação desses meios de prova e refletir na decisão da matéria de facto a convicção que formar, nos termos do art.º 662º.
2. Integra violação de direito processual suscetível de constituir fundamento do recurso de revista, nos termos do art.º 674º, nº 1, al. b), do NCPC, o acórdão em que a Relação se limita a tecer considerações de ordem genérica em torno das virtualidades de determinados princípios, como o da livre apreciação das provas, ou a enunciar as dificuldades inerentes à da tarefa de reapreciação dessas provas, para concluir pela manutenção da decisão da matéria de facto.
3. Não tendo sido efetivamente apreciada a impugnação da decisão da matéria de facto nem reapreciada a prova que foi indicada pelo recorrente relativamente aos pontos de facto impugnados, deve o processo ser remetido à Relação para o efeito.»
Ac. STJ, de 10/12/2015, proc. 2367/12.9TTLSB.L1.S1 (Melo Lima)
«I - O princípio da livre apreciação da prova, plasmado no n.º 5 do art.º 607.º do CPC, vigora para a 1.ª instância e, de igual modo, para a Relação quando é chamada a reapreciar a matéria de facto.
II - Compete ao Tribunal da Relação reapreciar todos os elementos probatórios que tenham sido produzidos nos autos e, de acordo com a convicção própria que com base neles forme, consignar os factos materiais que julga provados, coincidam eles, ou não, com o juízo alcançado pela 1.ª instância pois só assim atuando está, efetivamente, a exercitar os poderes que nesse âmbito lhe são legalmente conferidos.»
Também à luz do anterior Código, o Ac. STJ de 14/02/2012, proc. 6283/09.3TBBRG.G1.S1 (Alves Velho)
«No uso dos poderes relativos à alteração da matéria de facto, conferidos pelo art.º 712º do CPC, a Relação deverá formar e fazer refletir na decisão a sua própria convicção, na plena aplicação e uso do princípio da livre apreciação das provas, nos mesmos termos em que o deve fazer a 1ª Instância, sem que se lhe imponha qualquer limitação, relacionada com convicção que serviu de base à decisão impugnada, em função do princípio da imediação da prova.»

Apreciemos, portanto.
i. e ii. Roupa
Pretende a recorrente que se consigne no elenco dos factos provados os seguintes:
i. A progenitora compra com frequência roupa para os menores e entrega na Casa de Acolhimento;
ii. Toda a roupa e calçado que os menores têm foram comprados pela progenitora.
Estes factos devem considerar-se provados com base nos seguintes meios de prova e argumentação. A mãe – no seu depoimentos sincero, espontâneo e diversificado (nos pormenores  relatados e nos estados de espírito que, durante mais de duas horas de inquirição, se foram sucedendo a propósito de uma ou outra situação) – afirmou que em todas as oportunidades que tem de visitar os filhos, lhes leva roupa e comida. Também a testemunha …, amigo da progenitora e que privou com a família, nutrindo amizade pelos menores, o afirmou. A testemunha chegou a visitar os menores, com a progenitora, uma única vez e por breves minutos, pois a CA «B» não lhes permitiu mais.
O tema da roupa está referido em vários relatórios, pois a progenitora preferia que vestissem sempre os seus filhos com as suas roupas, em vez de os vestirem com outras usadas, ou de vestirem as meninas com minissaias ou minicalções; os técnicos, por outro lado, chegam a referir que as roupas que a mãe veste aos filhos são “antiquadas”.
Acresce que não há notícia de que, além da mãe, qualquer outra pessoa ofereça ou tenha oferecido roupas às crianças.

iii. Alimentação em casa
Pretende a recorrente o aditamento do seguinte facto:
iii. Ao nível da alimentação, a casa da progenitora, enquanto os filhos aí viveram, sempre foi uma casa farta.
Assim foi afirmado pelas testemunhas …, … (esta com conhecimento indireto por não ser visita da casa, apenas conhecendo a família das reuniões na Igreja evangélica e por dar às crianças aulas bíblicas (equivalente à catequese dos católicos) e …. Mais relevante, ainda, foi o depoimento do progenitor, Hugo, que, apesar da má relação com a progenitora, não deixou de admitir que em casa nunca faltou comida, os meninos até eram gordinhos, que a mãe os alimenta bem e se preocupa com a sua alimentação (“leite, iogurtes, fruta, comida de Angola…”). Relembramos que a mãe é perita em cozinha, fazendo ou tendo feito durante anos pastéis para restaurantes e cafés, com rendimentos dessa atividade entre 800€ e 1.200€.

iv. e v. Condições habitacionais
Pede a progenitora que se consigne, também:
iv. As atuais condições habitacionais apresentadas pela progenitora nos autos oferecem condições de habitabilidade;
v. A progenitora conseguiu obter uma habitação camarária de tipologia T4 e, portanto, suficientemente grande para acolher os filhos, acabando por perder o direito ao fogo municipal por não ter os menores a seu cargo.
No que respeita ao ponto v., além de afirmado pela progenitora, consta de relatórios dos técnicos, como por exemplo do relatório EATTL de …2022: «A progenitora, apresenta, à data da remessa do presente relatório, como fator estruturante, a recente atribuição de habitação municipal, com espaço para as crianças».
As atuais condições habitacionais foram bem explicadas pela progenitora: a casa T2 onde vivia na Ajuda faz parte de um conjunto de três casas que partilham o mesmo pátio; neste momento, com consentimento do senhorio, encontram-se todas remodeladas, a expensas da progenitora, foram transformadas num T5 e (sub)alugada os quartos, quer em estadias de curta duração, quer em arrendamentos de longa duração: o quarto maior está alugado a um casal por 500€, outro quarto menor está alugado por 250€, um outro a duas pessoas por 450€; e os restantes dois são alugados ao dia. Com isto ganha mais de 1000€ por mês. Presentemente, habita com o companheiro (…), que vive num de dois apartamentos de uma vivenda na Pontinha, um T2, que descrevem como tendo todas as condições de habitabilidade exigidas na sociedade atual (água, água quente, eletricidade, cozinha completa, sala com 30 m2, dois quartos), e onde os meninos dispõem de um quarto com dois beliches.
De dizer que a única casa da progenitora e sobre a qual os técnicos se pronunciaram nos seus relatórios foi o T2 da Ajuda, que visitaram em 2017 (facto 10) e, de surpresa, num final de dia … de 2022 (facto 36 e n.º 20 do relatório deste acórdão). Esse T2, por certo pobre, está retratado nas fotografias do n.º 11 do relatório deste acórdão. Trata-se de uma pequena casa, com dois quartos, cozinha e sala, casa de banho, eletricidade, água fria e quente, mobilada, com camas/beliches suficientes para quatro crianças. Tem, portanto, condições para ser habitada pela família.
Seja esta casa (que, entretanto, juntamente com as duas outras casinhas do mesmo pátio a progenitora remodelou transformando em T5), seja aquela em que vive com o companheiro, têm condições de habitabilidade. Quanto à casa onde reside, assim foi dito pela progenitora e pelo companheiro (testemunha …, funcionário do … há 5 anos e prestador de serviços na restauração) e, na falta de elementos em contrário, temos de presumir que as casas onde as pessoas vivem têm condições de habitabilidade.

vi. Vínculos afetivos recíprocos entre mãe e filhos
Por último, aquele que temos como o ponto mais importante: «os menores têm uma enorme afiliação e ligação à mãe e esta aos filhos».
A apreciação que vamos fazer deste facto tem em consideração o decurso da vida dos menores e, em particular, o momento presente. Apesar da longa separação e das condições adversas dos convívios, mãe e filhos têm todos e reciprocamente enorme ligação, fortes e recíprocos vínculos mãe<->filhos; desejam todos estarem juntos, filhos desejam estar com a mãe, e mãe deseja ter os filhos consigo; são felizes quando se encontram nessa situação.
Isto decorre de inúmeros relatos feitos nos elementos dos autos, inclusive dos relatórios/informações das casas de acolhimento, das equipas de apoio; decorre dos relatórios dos psicólogos, seja do pedido pelo tribunal e realizado em … 2020 (v. relatório de avaliação psicológica extratado no ponto 12 do relatório deste acórdão), seja do que foi junto por iniciativa da progenitora, e realizado em … 2023 (v. ponto 30. do relatório deste acórdão); todas as testemunhas, quando confrontadas com este facto, o admitiram; a mãe nunca faltou às visitas que lhe permitiram fazer; a mãe teve o cuidado de juntar aos autos inúmeros elementos documentais (fotografias da família e de escritos e desenhos que as crianças lhe fazem – v. ponto 11 do relatório deste acórdão) demonstrativos dessa forte ligação.
Releiam-se e observem-se todos os referidos elementos que, pela sua extensão, não vamos repetir, remetendo para os citados pontos acima.
Ouçam-se os impressivos depoimentos da progenitora, Ft, e da filha A (maxime, minutos 32, 33, 37-40). A, uma menina de 14 anos que fala com clareza e mostra raciocínio crítico, não hesitou em dizer que os irmãos querem estar com a mãe, «obviamente» (sic). Se estivessem com a mãe, a mãe cuidaria deles, na casa de acolhimento não têm muita atenção dos adultos, são muitos meninos. B, D e E querem sem dúvidas ir para casa. Apenas C divide os seus afetos entre a mãe e os cuidadores da casa de acolhimento. Adoção foi hipótese que afastou liminarmente quando lhe foi apresentada.
Mesmo o pai das crianças, apesar da má relação com a mãe, não deixou de dizer que os filhos «São bem apegados à mãe», que pedem para voltar para casa, perguntam quando irão para casa; «Sinceramente eu digo, eu dava mais uma oportunidade à Ft para ficar com os miúdos», «A rapariga estava a trabalhar!».
Ouçam-se os testemunhos de todos os que, com mais ou menos frequência e intensidade privaram com a mãe e as crianças e puderam apreciar o relacionamento entre elas, as preocupações da mãe com o seu bem-estar, etc.:
Gil, pessoa que registou a A como pai, quando bebé. Entretanto o casal separou-se, a testemunha foi para Angola e, quando regressou por volta de 2020 foi viver num quarto na casa da Ajuda. Estavam os miúdos institucionalizados. A testemunha fez obras na casa antes de os miúdos regressarem e voltarem a ser institucionalizados pela 2ª vez. «A Ft estava totalmente feliz por ir reaver as crianças»; «Foi uma surpresa retirarem-lhe outra vez as crianças»; os miúdos iam às escolas das proximidades, sempre bem vestidos, bem tratados; «É uma excelente mãe! Eu conheço a Ft, como é perante os filhos. Eu estava lá, eu via, foi uma surpresa levarem-nos». O episódio do McDonald’s passou-se consigo: «Eu deixei os meninos sozinhos por minutos apenas! Quando chego, já tinham chamado a polícia. A Ft ficou muito chateada comigo, claro, como mãe. Sinto-me responsável pelo que aconteceu. Por isso é que eu estou lá para o que der e vier», totalmente disponível para apoiar a Ft e os meninos.
…, educadora social que privou com mãe e filhos enquanto funcionária do CAFAP, observou que a progenitora era uma mãe atenta às necessidades dos filhos, mãe que respondia positivamente às solicitações dos técnicos, percebia os objetivos da intervenção, era colaborante e tentava ultrapassar os obstáculos, mãe que fez uma série de movimentos com vista ao regresso das crianças, tratou de abonos, escolas próximas, atividades de tempos livres (este era o seu conhecimento direto).
…, amigo da progenitora há cerca de 11 anos e atual companheiro da mesma (há cerca de um ano), Ft e a filha A viveram numa casa sua, na rua da …, em 2013, cerca de 6 meses. Descreve a progenitora, desde os tempos em que a Ft apenas tinha a A, como uma mãe preocupada com o bem-estar alimentação e higiene dos filhos; «Por isso é que eu vim aqui. Quando ouvi a história dela! Como é que isto chegou a este ponto!»; «Entre a mãe e os filhos havia uma química», percebeu isso das vezes em que se cruzou mais tarde com a Ft já com os 4 filhos mais novos; «Por isso é que eu vim até aqui, de consciência dizer o que tenho que dizer. Como é possível quererem dar os meninos para adoção! Não é possível!».
…, amigo da progenitora e família há 6/7 anos, era companheiro da progenitora no período em que os meninos viveram em casa, entre o 1.º e o 2.º acolhimento residencial. Algumas frases espontâneas e sentidas durante o seu depoimento: «As crianças estão a sofrer, muito»; «Têm um afeto muito grande pela mãe»; «A Ft é uma mulher batalhadora, uma boa mãe, sempre a trabalhar no duro. Nunca deixou faltar nada aos filhos»; «Porque é que não ajudam a D. Ft de uma forma positiva?»; «A Ft é uma mulher forte. Eu tiro-lhe o chapéu. Ela nunca desistiu. É uma mulher responsável, trabalhadora, não depende de ninguém. Batalhadora»; «Eu tiro o chapéu à Ft. Se a D. Ft fosse uma mãe imprestável, eu não perdia o meu tempo!»; «Quando vivíamos juntos, todos os miúdos corriam para o quarto da mãe e enchiam-na de beijos».
…, dava aulas bíblicas aos meninos – o equivalente para os evangélicos da catequese dos católicos – e privava também com a mãe quando esta os ia entregar e buscar. Para si a progenitora «é uma guerreira, sempre fazia tudo pelos meninos, é de louvar conseguir criá-los sozinha sem a ajuda de ninguém!»
A latere, repare-se que, mesmo aquando do primeiro acolhimento, as crianças apresentavam-se como crianças normais, com boa saúde física e mental (v. relatos do relatório da Casa de Acolhimento «A» de …2019, extratados no n.º 3 do relatório deste acórdão),  que só pode ter sido conseguido graças aos fortes vínculos com a mãe e aos cuidados por esta prestados (pois o pai era a pessoa que praticava os atos descritos no acórdão crime e reproduzidos no n.º 22 do relatório deste acórdão). Os pequenos senãos descritos têm de ser devidamente interpretados: a “pele seca” do B e do D devia-se a pele atópica, problema de saúde comum e que não tem origem em cuidados deficientes; a “fome” que o B mostrou ao pedir uma papa, mais não era que apetite, não havendo qualquer indício de subnutrição das crianças, e desta em particular; se “apresentasse fome” não se mostraria «curioso e conversador, explorando o espaço», «bem fisicamente», como se lê imediatamente antes no mesmo relatório; qualquer cuidador de bebés experiente (uma mãe, por exemplo) sabe que o “rabo muito assado” que a E tinha no momento da primeira institucionalização pode acontecer com uma única defecação mais ácida, não sendo indiciador de desleixo. Tudo o mais relatado são aspetos positivos, remetendo para o n.º 3 do relatório deste acórdão.
A latere, ainda, repare-se que a profunda ligação das crianças à mãe foi utilizada como argumento nos relatórios da CA «B» de …2023 e de …2023 (v. n.º 29 do relatório deste acórdão) para se opor à audição das crianças pelo tribunal.

Por tudo exposto, adita-se à factualidade assente os factos pretendidos pela recorrente, que ficam a constar nos n.ºs 115 a 120 da fundamentação de facto, com a seguinte redação:
115. A progenitora compra com frequência roupa para os menores e entrega na Casa de Acolhimento.
116. Toda a roupa e calçado que os menores têm foram comprados pela progenitora.
117. Ao nível da alimentação, a casa da progenitora, enquanto os filhos aí viveram, sempre foi uma casa farta.
118. As atuais condições habitacionais apresentadas pela progenitora nos autos oferecem condições de habitabilidade.
119. A progenitora conseguiu obter uma habitação camarária de tipologia T4 e, portanto, suficientemente grande para acolher os filhos, acabando por perder o direito ao fogo municipal por não ter os menores a seu cargo.
120. Os menores e a mãe sempre mantiveram e mantêm reciprocamente entre si fortes vínculos próprios da relação de parentesco em causa (afeto, preocupação pelo bem estar do outro, amor, carinho, desejo de estarem juntos, etc.).

2. Da matéria conclusiva, valorativa e opinativa que perpassa a matéria de facto, e da ausência de análise crítica da prova
Alega a recorrente que a matéria constante da fundamentação de facto, na sentença da 1.ª instância, é omissa de factos concretos que justifiquem a medida aplicada (confiança a família de acolhimento ou a instituição com vista à futura adoção). Ou seja, não se observam na decisão recorrida factos que permitam afirmar a vivência de situações de perigo pelas crianças, nem de factos que permitam afirmar que, se as crianças regressassem a casa da mãe, se arriscariam seriamente a serem expostas a perigos para a sua saúde ou bem-estar. No elenco de factos predominam as frases conclusivas e opinativas, sem efetivo suporte em situações ocorridas.
Alega, ainda a recorrente, que não foi feita análise crítica das provas, limitando-se o tribunal a quo a fazer resumo parciais dos depoimentos e a elencar os meios de prova, sem os analisar.
Vejamos, percorrendo, ponto por ponto, o elenco de factos selecionados em 1.ª instância.
As narrativas constantes dos n.ºs 1 a 8 e 10 a 47, 70 a 76, 81, 84, 91, 93 a 114 são factuais, relativas a identificação das crianças e da mãe (1 a 7 e 73), abertura do processo na CPCJ (8), condições da casa em 2017 (10), intervenção da CPCJ entre 2017 e 2019, vivência da família no mesmo período (11 a 16, 20 a 24, 26), queixas sucessivas da progenitora por maus tratos  (17 a 19, 25) – que apenas resultaram na altura numa condenação em 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução, mediante um regime de prova e pena acessória de proibição de contactos com a vítima/progenitora, pelo período de 2 anos e 6 meses, pena que o progenitor recorrentemente incumpriu (27 a 29) –, maus tratos do progenitor à progenitora e incumprimento pelo progenitor da decisão do tribunal de ausência de contactos com a progenitora, que levaram à aplicação da primeira medida de acolhimento residencial (factos 30 e 31), descrição de factos processuais ou de conteúdos de relatórios constantes dos autos (32 a 35, 45 a 47, 70 a 72, 74 a 79, 81, 84, 91, 112 a 114), condições de vida da família (mãe e cinco filhos) entre …2021 e …2022 (factos 36 a 44), circunstâncias de vida da progenitora (93 a 99), condições da família alargada (100 a 103), condições do progenitor e sua família (104 a 111).
O facto 9 descreve o que quem recebeu um telefonema na APAV/GAV, em … 2017, terá percebido daquilo que um vizinho das crianças terá dito ao telefone. É altamente improvável que boa parte do que aí se diz seja verdade. Nomeadamente, é altamente improvável que o pai das crianças fosse maltratado pela mãe, considerando a indubitável prova (facto 110 e n.º 22 do relatório deste acórdão) das cruéis e repetidas ofensas à integridade física e psíquica da progenitora das crianças, infligidas pelo progenitor das mesmas. As ocorrências relatadas por quem recebeu o telefonema na APAV como tendo sido relatadas por um vizinho, durante o citado telefonem, não podem ser consideradas factos provados para efeitos da decisão a proferir neste recurso.
No que respeita aos factos 36 e 37 importa referir que a «apresentação de parcas condições de salubridade», «a existência de lixo», «roupa amontoada à entrada de casa», «excrementos de galo (animal de companhia da família)», «entulho nas traseiras da residência» são circunstanciais, elementos que podem existir numa altura e ser removidos com uma simples limpeza; e a visita referida nesses factos foi de surpresa, num final de dia, quando a progenitora regressava a casa com filhos que tinha isso buscar à escola, depois de um dia de trabalho (v. ponto 20 do relatório deste acórdão).
No que respeita ao facto 38, lembramos que a progenitora era uma mãe sozinha para cuidar de cinco filhos, mãe que tinha de trabalhar e trabalhava para os sustentar, e que visivelmente não tinha posses para contratar babás e motoristas para acompanharem as crianças ao psicólogo.
No que respeita aos episódios dos factos 40 e 41, eles foram explicados em vários depoimentos e circunstâncias, remetendo para o extenso e sincero depoimento da progenitora no debate judicial, o depoimento de G, pai registado da A e pessoa que estava encarregada de tomar conta dos menores, quando os levou ao McDonald’s e se ausentou para comprar cigarros; e para as descrições destas ocorrências nos pontos 19 e 30 do relatório deste acórdão. A mãe nunca abandonou os filhos. No episódio do McDonald’s, os filhos estavam à guarda do pai (registado) da Ana; no episódio do Bairro Alto, estavam à guarda da avó materna (estando os menores à porta de casa da avó, ou muito próximo); na feira da Ajuda, a mãe autorizou os filhos mais velhos, a pedido dos mesmos, a irem um pouco à feira perto de casa, na tarde das vésperas de São João.
O facto 43 também foi bem explicado pela progenitora em várias ocasiões, incluindo no depoimento no debate judicial – na reduzida janela horária a meio do dia em que os serviços do banco alimentar estão abertos para efetuar entregas, esta mãe de cinco filhos tinha de trabalhar para sustentar a família, não iria arriscar-se a ser despedida para ir buscar alguns géneros alimentares.
No que respeita aos factos 48 e 49, a sentença não especifica a sua fundamentação. Aliás, trata-se de vício que é transversal a todos os factos que o tribunal a quo elegeu. Ao contrário do prescrito nos n.ºs 4 e 5 do artigo 607.º do CPC, não há na sentença a especificação dos fundamentos probatórios de cada facto ou conjunto de factos; tão pouco há, consequentemente, análise crítica da prova produzida. Tendo ouvido toda a prova, percebemos que o afirmado em 48 e 49 foi referido pela testemunha …, diretor da CA «B»; segundo a testemunha, terá ouvido isso às crianças quando estas chegaram à casa de acolhimento, muito assustadas, chorosas, surpreendidas, e tentando especular sobre as razões de estarem ali… Repare-se que não há em todo o processo qualquer indício de maus tratos da progenitora aos filhos, sendo nossa convicção por tudo o que lemos, ouvimos e temos vindo a expor que esta mãe não espancava os filhos. O depoimento da progenitora no debate judicial é consentâneo com a apreciação do relatório de exame psicológico constante do ponto 30 do relatório deste acórdão: a progenitora tem um estilo «parental mais permissivo e de não diferenciação de papeis. De um modo geral nega quaisquer práticas que legitimem a punição física como estratégia educativa valorizando atitudes importantes como o recurso a estratégias de negociação e de comunicação em detrimento da comunicação agressiva».
Os factos 50 e 51 são consentâneos com os fortes laços entre mãe e filhos; como é que as crianças não hão de ficar, depois das visitas, ainda mais infelizes, desorientadas, desorganizadas, se ali, numa casa de acolhimento, continuam todas, contra a sua vontade e contra a vontade da mãe, em vez de irem para casa com a sua mãe!? Estranho seria se fossem indiferentes à visita ou se ficassem felizes vendo que, mais uma vez, ali ficavam, em vez de regressarem com a mãe à casa da família.
Por falta de análise das provas na sentença da 1.ª instância, desconhecem-se os contextos em que os factos ali narrados se terão passado, tais contextos também não resultam dos meios de prova. Nos relatórios recorrentemente se depreciam e criticam os mais comezinhos atos e dizeres da progenitora. Critica-se-lhe o tratar a filha A como uma amiga; critica-se-lhe tratar os filhos por “amores da minha vida”; critica-se-lhe levar chocolates para os filhos (note-se que, como admitido pelas testemunhas da CA «B», além de chocolates iam outros alimentos e eram os técnicos que ficavam com eles, para, ao longo to tempo, os irem dando às crianças); critica-se-lhe ter comprado um gelado aos filhos quando os estava a acompanhar para uma ida à ginástica; critica-se-lhe levar os filhos à igreja; critica-se-lhe dizer aos filhos que rezem ou que se ajoelhem para rezar. Estas e outras críticas são feitas sem que o leitor possa conhecer o texto exato, o contexto e o tom em que as frases imputadas à progenitora terão sido ditas.
Nos n.ºs 78 a 80, 82, 83, 86 do elenco de factos, o tribunal a quo não descreve ocorrências que correspondam à sua convicção decorrente de análise dos elementos probatórios dos autos. Nesses números, o tribunal a quo limita-se a afirmar que as “equipas técnicas” descrevem a progenitora de determinada forma e a dar conta de considerações que supostamente “todos os técnicos” fazem sobre a personalidade da progenitora… Sem que se deem como provados factos concretos que levem a essas conclusões, dos técnicos (o que é diferente de conclusões do tribunal). Em todo o caso, não seria por traços de personalidade como os ali descritos que os pais ficariam inibidos de criar os filhos e que as crianças seriam sujeitas a adoção. Se há coisa que estes números evidenciam é o mau relacionamento entre “os técnicos” e a progenitora. De acrescentar que a ideia sobre a progenitora que, no facto 80, é imputada aos técnicos, é contrariada pelo facto 22.
Note-se que as visitas e os próprios telefonemas entre mãe e filhos eram “supervisionados” pelos “técnicos”, com constantes ingerências destes nas conversas da família (85 a 90).

Não podemos perder de vista o fundamental:
1. A primeira institucionalização deveu-se à exposição das crianças aos maus tratos que o progenitor infligia à progenitora;
2. A segunda institucionalização deveu-se a três episódios em que as crianças foram vistas sem supervisão de um adulto;
3. Nem crianças nem mãe compreenderam a segunda institucionalização e todas desejavam estar em família, em casa, mãe e filhos;
4. Nenhuma das institucionalizações teve a ver com maus tratos físicos ou psicológicos da mãe aos filhos, que nenhuma evidência séria há de que tenham existido;
5. Na sentença recorrida aplica-se uma pedida de confiança a família de acolhimento ou a instituição com vista à futura adoção, sem que se encontrem preenchidos os pressupostos legais respetivos, como melhor veremos no ponto seguinte.

De dizer que, à data do primeiro acolhimento, …2019, e nos primeiros três meses do mesmo, as cinco crianças, eram crianças com comportamentos e estados de espírito normais nas suas idades, não eram crianças que apresentassem maus tratos ou traumas evidentes. Isto apesar das condições precárias da casa onde viviam e da exposição ao mau relacionamento entre a progenitora e o companheiro (pai das quatro crianças mais novas), pelos maus tratos, nomeadamente físicos, recorrentes que o último infligia à primeira[1]. Esta normalidade física e psicológica das crianças é por si indiciadora de laços fortes e de bons cuidados recebidos. (v. ponto 3 do relatório deste acórdão, extrato do relatório da Casa de Acolhimento «A» de …2019, ref. Citius …, de …2019).
O único entrave ao retorno das crianças ao agregado da mãe era o comportamento do pai das quatro crianças mais novas, que não cumpria a pena acessória de proibição de contactos (pontos 5 e 22 do relatório deste acórdão e facto 110).
Dos relatórios da Equipa de Apoio Técnico ao Tribunal de Lisboa (EATTL) de …2020 (ref. Citius …, de …2020), Casa de Acolhimento «A» de …2020 (ref. Citius …, de …2020), acima referidos nos n.ºs 7 e 8 do relatório deste acórdão, resulta que o grau de estabilidade e bem-estar das crianças piorou, relativamente ao momento do acolhimento e aos meses imediatamente após. Ou seja, ano, ano e meio volvido sobre o início do acolhimento residencial, as crianças e os pais estavam claramente saturados, desgastados, tristes com a longa situação de separação que, sobretudo as crianças, não podiam compreender.
O que o relatório de avaliação psicológica à progenitora, realizado pedido do tribunal (ref. Citius …, de …2020) tem de factual, de observação direta da progenitora e dos seus filhos é altamente favorável à conclusão de que se trata de uma boa mãe que mantém fortes laços com os filhos (e estes com ela), apesar de todas as adversidades. Nada do que se aponta à mãe de menos positivo se pode considerar fora do estatisticamente normal. As conclusões não são coincidentes com os dados de facto do mesmo relatório, mas, ainda assim, nada contêm que pudesse justificar que estas crianças não regressem ao agregado materno, muito menos que sejam encaminhadas para adoção. Perpassa nesse relatório a ideia de que a medida de promoção e proteção tinha na sua origem comportamentos desajustados da progenitora (aparentemente, a psicóloga que efetuou o exame e sequente relatório estava convencida disso), mas não foi o caso. Na origem da MPP estiveram comportamentos do progenitor das quatro crianças mais novas que maltratava a progenitora de várias formas, expondo os filhos a esses maus-tratos.
O que de mais “grave” se “acusa” à progenitora, e recorrentemente, no curso dos relatórios, e informações realizadas e juntas aos autos ao longo dos anos, é:
a) ter em certas situações tido uma “postura tensa” quando se dirige aos técnicos/educadores da casa de acolhimento;
b) sentir-se frustrada e zangada pelo facto de as crianças estarem, e há tanto tempo, residencialmente acolhidas, mesmo depois de já não haver perigo de exposição aos maus tratos do pai sobre a mãe;
c) “intransigência do discurso” e “rigidez de pensamento”;
d) levar guloseimas para as crianças ou ter uma vez oferecido gelados quando as crianças iam a caminho de aula de ginástica;
e) «considerar que o filho de 6 anos, B, lhe deve mostrar a lancheira quando esta deve ser lavada, que a filha A deve acordar sozinha», quanto às rotinas, referiu que «os filhos ficam no CAF até às 19h. À 2.ª/4.ª e 6.ª feiras, depois de ir buscar os filhos à escola, vai para a igreja e retomam a casa pelas 21h00/21h30. Faz uma refeição rápida “um frango com massa”... (sic) e deitam-se pelas 22h30» (v.g. relatório EATTL de …2022) – coisas que uns veriam como positivas, o relatório da EATTL vê como negativas…;
f) «Ao nível da higiene, declarou que as crianças tomam banho 4 vezes por semana em dias intercalados» «às 3.ªF, 5.ªF (à noite), Sábado (manhã) e Domingo (à noite). Tentámos perceber se nos demais dias faz a higiene pessoal das crianças e referiu que os limpa com toalhitas, revelando pouca valorização destas questões “os pés não precisam de lavar porque não andam descalços” sic.» (v.g. relatório EATTL de …2022)
g) ainda no mesmo relatório, descrita uma visita a casa da progenitora, que é apanhada desprevenida quando está a vir da escola com três dos filhos (incrível como as técnicas, numa curta visita, ficaram convencidas de ter ficado a conhecer os traços de personalidade de todos e de cada um dos cinco irmãos e da progenitora…), cingindo-nos aos factos nada de estranho nós vemos no que é descrito, considerando uma mãe sozinha a olhar por cinco filhos e sem grandes poder económico
h) ainda no mesmo relatório, critica-se à mãe o não ter ido recolher o apoio alimentar que lhe conseguiram – a mãe explicou em várias ocasiões e sempre que com isso confrontada que a recolha é por volta do meio-dia e que está a trabalhar nessa altura; obviamente não ia pôr em risco o seu trabalho e, depois, sim, não ter como sobreviver e alimentar os seus filhos.
De notar que, conforme recorrentemente descrito nos relatórios, as visitas da mãe às crianças eram/são assistidas por membros das casas de acolhimento, não permitindo que a família aja de forma natural, não dando espaço à intimidade familiar. Também isto gerou tensão entre a mãe e os técnicos. A frustração e zanga que a mãe sente perante a prolongada institucionalização das crianças e a forma como tem decorrido (com curtas e supervisionadas visitas e constantes ingerências e críticas dos técnicos às suas interações com os filhos) são apenas o sinal de ser uma mãe normal. Que outra mãe normal no seu lugar não sentiria a mesma frustração e zanga?
A “intransigência do discurso” e “rigidez de pensamento” imputadas à mãe são apresentadas nos relatórios desacompanhadas de fundamentação. Analisando referências dos mesmos relatórios, e requerimento da mãe junto aos autos, pensamos que talvez se refiram ao facto de a mãe não gostar que nas casas de acolhimento vistam as suas meninas com minissaias ou mini calções, ou que as ponham a dançar ao som de canções com letras que considera impróprias para crianças, ou que deixem um dos filhos vestir-se com saias…
As guloseimas e outros géneros alimentares são levados pela mãe para a casa de acolhimento nas alturas das visitas e são geridos pelos técnicos da casa de acolhimento durante a semana, como melhor entendem. Que mãe negaria um gelado ou uma guloseima aos filhos na escassa hora semana em que pode estar com eles? Se o tivesse feito, talvez a imputação fosse de frieza, rigidez e intransigência para com as crianças…
Refere-se recorrentemente nos relatórios «O estilo parental observado em D. Ft, tendencialmente autoritário, com reduzidos valores de afetividade e elevados valores de controlo e restritividade, através de um controlo psicológico rígido sobre os seus filhos, não promove a possibilidade de se expressarem de forma livre, ao nível dos seus desejos, ideias, emoções, vontades e características pessoais», mas não foi nada disto que levou às institucionalizações! Nem à primeira, nem à segunda. Ainda que esse «estilo» estivesse provado, e não está, nem tão-pouco está concretizado o que se pretende significar com a expressão, nenhuma evidência há de que esse «estilo» tenha alguma vez posto em perigo as crianças ou de que o vá pôr no futuro.

3. A Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP), o Código Civil e a decisão da 1.ª instância – Dos pressupostos legais da medida aplicada e sua não verificação
Tenhamos presente o regime jurídico ao abrigo do qual têm sido feitas as intervenções na vida das crianças – a Lei de proteção de crianças e jovens em perigo (de ora em diante LPCJP), aprovada pela Lei 147/99, de 1 de setembro (entretanto alterada pelas Leis 31/2003, 142/2015, 23/2017, 26/2018 e 23/2023).
A LPCJP tem por objeto a promoção dos direitos e a proteção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral (artigo 1.º da LPCJP).
A intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais ponham em perigo a sua segurança e saúde, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros a que os pais não se oponham de modo adequado a removê-lo (parte relevante do artigo 3.º, n.º 1, da LPCJP).
A intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança em perigo obedece, entre outros, aos seguintes princípios:
i. Interesse superior da criança - a intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança, nomeadamente à continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas;
ii. Proporcionalidade e atualidade - a intervenção deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança se encontram no momento em que a decisão é tomada e só pode interferir na sua vida e na da sua família na medida do que for estritamente necessário a essa finalidade;
iii. Primado da continuidade das relações psicológicas profundas - a intervenção deve respeitar o direito da criança à preservação das relações afetivas estruturantes de grande significado e de referência para o seu saudável e harmónico desenvolvimento, devendo prevalecer as medidas que garantam a continuidade de uma vinculação securizante;
iv. Prevalência da família - na promoção dos direitos e na proteção da criança e do jovem deve ser dada prevalência às medidas que os integrem em família, quer na sua família biológica, quer promovendo a sua adoção ou outra forma de integração familiar estável;
v. Obrigatoriedade da informação - a criança e o jovem, os pais, o representante legal ou a pessoa que tenha a sua guarda de facto têm direito a ser informados dos seus direitos, dos motivos que determinaram a intervenção e da forma como esta se processa;
vi. Audição obrigatória e participação - a criança, bem como os pais, representante legal ou pessoa que tenha a sua guarda de facto, têm direito a ser ouvidos e a participar nos atos e na definição da medida de promoção dos direitos e de proteção (artigo 4.º, alíneas a), e), g), h), i) e j), da LPCJP).

Medidas de promoção dos direitos e de proteção são providências adotadas pelas comissões de proteção de crianças e jovens ou pelos tribunais, nos termos LPCJP, para proteger a criança e o jovem em perigo (art.º 5.º, al. e) da citada Lei).
As ditas medidas visam: afastar o perigo em que a criança se encontra; proporcionar-lhe as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral; e/ou, garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso.
Estão tipificadas no artigo 35.º da LPCJP e são as seguintes:
a) Apoio junto dos pais;
b) Apoio junto de outro familiar;
c) Confiança a pessoa idónea;
d) Apoio para a autonomia de vida;
e) Acolhimento familiar;
f) Acolhimento residencial;
g) Confiança a pessoa selecionada para a adoção, a família de acolhimento ou a instituição com vista à adoção.

A confiança a família de acolhimento ou a instituição com vista a futura adoção, que foi a medida aplicada pelo tribunal a quo na decisão ora em recurso, apenas é aplicável quando se verifique alguma das situações previstas no artigo 1978.º do Código Civil (artigo 38.º-A da LPCJP).

Ora, nos termos do disposto no artigo 1978.º, n.º 1, do CC, o tribunal apenas pode confiar a criança com vista a futura adoção quando não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, pela verificação objetiva de qualquer das seguintes situações:
a) Se a criança for filha de pais incógnitos ou falecidos;
b) Se tiver havido consentimento prévio para a adoção;
c) Se os pais tiverem abandonado a criança;
d) Se os pais, por ação ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança;
e) Se os pais da criança acolhida por um particular, por uma instituição ou por família de acolhimento tiverem revelado manifesto desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade daqueles vínculos, durante, pelo menos, os três meses que precederam o pedido de confiança.
Nenhum dos pressupostos legais de confiança para a adoção se verifica no caso dos autos.
Não se verifica o principal e último fundamento da adoção: a inexistência ou sério comprometimento dos vínculos afetivos próprios da filiação. No caso, existem fortíssimos vínculos entre mãe e filhos; e também vínculos afetivos próprios da filiação entre pai e filhos.
Para que pudesse ser decretada a medida decidida em 1.ª instância seria necessário que não existissem ou estivessem seriamente comprometidos esses vínculos pela verificação de uma das situações tipo constantes das alíneas do n.º 1 do artigo 1978.º. Também nenhuma destas situações se verifica: os pais são conhecidos e vivos; não deram consentimento para a adoção; não abandonaram as crianças; a vivência com a mãe não põe em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento das crianças; nenhum dos progenitores revelou desinteresse pelos filhos, muito menos manifesto, bem pelo contrário!
Lembramos que os pais têm o direito fundamental (e o dever) de educação e manutenção dos filhos; e, os filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial (artigo 36.º, n.ºs 5 e 6, da CRP).
O interesse destas crianças, sob todos os pontos de vista, é o de regressarem ao lar, ao colo e cuidados da mãe. Todas as razões que levaram ao segundo acolhimento residencial derivaram tão só e apenas do facto de a mãe ter de trabalhar para sustentar a família, e não ter posses para contratar empregada que lhe tomasse conta dos filhos enquanto trabalha. Ainda assim, a progenitora deixou os filhos aos cuidados de pessoas, não apenas muito próximas e em quem devia poder confiar, mas ainda de pessoas que, por si só, eram também responsáveis pelas crianças: a avó materna das crianças e o pai registado de uma delas, da mais velha, a A. Acresce que, apesar de na sociedade portuguesa citadina atual não ser  habitual, e poder ter-se por temerário, deixar as crianças de 5, 6 e 7 anos passearem na rua perto de casa (no caso, perto da casa da avó ao cuidado de quem estavam) ou irem a uma feira de São João perto de casa (no caso da sua casa na Ajuda), não significa que isso seja assim em todos os bairros, em todas as culturas que o nosso Portugal alberga, em todas as vivências.
De todo o modo, trata-se de situações passadas, sobre as quais, quer a progenitora, quer o pai registado de A, ao cuidado de quem as crianças estavam na situação do McDonald’s já refletiram. Podem ter justificado o 2.º acolhimento, mas seguramente não justificam a medida decidida na sentença (acórdão com juízes sociais) recorrida.
A medida decretada na decisão objeto de recurso, além de, como vimos, não ter sustento na lei por não estarem verificados os seus pressupostos de facto, seria da maior crueldade para todos, mãe e crianças, conduzindo quase necessariamente à permanente institucionalização das quatro crianças ou, provavelmente pior, à separação dos quatro irmãos. A relação entre irmãos é das mais importantes na vida. A fratria em causa sempre se manteve unida, havendo entre todos as brincadeiras, conversas e cumplicidades próprias entre irmãos. Para mais na vida atribulada que têm vivido em conjunto, longe da restante família, estes irmãos funcionam necessariamente como elemento de segurança mútuo, partilham uma história que só eles conhecem, são a rede de apoio diário que sempre tiveram. Não será preciso percorrer bibliotecas de psicologia para disto saber, para perceber o imenso bem que a todos traz a união e convívio, e, por outro lado, o efeito psicologicamente devastador que a separação iria produzir em todos e cada um deles.
Em suma, inexistem factos que permitam a medida de afastamento das crianças do meio familiar, nomeadamente do agregado da mãe.

4. A justa medida
Aqui chegados, resta perceber se se mostram reunidos os pressupostos de aplicação aos quatro irmãos de uma qualquer outra medida de promoção e proteção.
Sem dúvida, por tudo quanto exposto, o regresso das quatro crianças ao lar da mãe é a única decisão adequada. Mãe que nunca os abandonou, mãe que sempre se bateu pelo seu regresso ao lar, mãe que, apesar de todas as adversidades, sempre trabalhou, foi melhorando as suas condições materiais de vida e a sua preparação técnica em várias áreas, mãe que, apesar da separação dos filhos que a todos foi imposta, mantém com os mesmos uma forte relação, que as crianças correspondem.
Devendo as crianças ser entregues aos pais, na pessoa da mãe (já que os pais estão separados e o progenitor está preso), improcede o pedido do pai no sentido de serem entregues a elemento da família alargada. Não deixamos de lembrar em todo o caso que, no seu depoimento no debate judicial, o progenitor também se pronunciou no sentido de os filhos serem entregues á mãe: «São bem apegados à mãe», «Sinceramente eu digo, eu dava mais uma oportunidade à Ft para ficar com os miúdos», «A rapariga estava a trabalhar!».
Hesitamos apenas entre nenhuma medida aplicar e aplicar medida de apoio junto dos pais, na pessoa da mãe.
Por um lado, as quatro crianças mais novas (a mais velha, A, está, entretanto, com o pai biológico, no Brasil) necessitam que a mãe tenha mais apoio financeiro para fazer face às suas (das crianças) inúmeras e imponderáveis necessidades. Apoio financeiro é o que, principalmente, esta família numerosa necessita.
Além disso, a longa institucionalização dificilmente terá sido bem compreendida pelas crianças e isso pode dificultar a sua relação com os progenitores, nomeadamente com a mãe com quem vão viver em permanência. Provavelmente, será benéfico para todos (mãe incluída) que cada criança beneficie (continue a beneficiar) de apoio psicológico, até para lhe prevenir ou debelar qualquer ideia de culpabilização, seja dela própria seja de outro elemento da família pelo tempo que estiveram institucionalizados. Claro que este apoio deve funcionar apenas enquanto o psicólogo/a o ache necessário e com a adesão da mãe, pois só assim funcionará da melhor forma. É um apelo que se faz à mãe, para bem dos cinco (das quatro crianças e da mãe).
Não temos dúvidas de que a progenitora é uma pessoa com forte autoestima e não dada à depressão. Uma pessoa que, apesar da sua história de adversidades, se mantém firme e batalhadora. Isto mesmo foi reconhecido no relatório do exame psicológico que lhe foi feito neste processo (ponto 12 do relatório deste acórdão): «Estas alterações emocionais, de acordo com os dados clínicos obtidos, parecem apresentar características reativas e não estruturais, dado que a examinada não evidencia uma predisposição a vivenciar estados de angústia, ansiedade ou depressão, apesar do seu historial de adversidades». Ainda assim, porque “ninguém é de ferro”, considerando a sua história como vítima de violência doméstica, e como mãe que viu as suas crianças institucionalizadas por longos períodos, deve ser-lhe facultado apoio psicológico gratuito e conveniente (em termos de horários e localização). Ficará na disponibilidade da progenitora aderir a consultas de psicologia que lhe sejam disponibilizadas, embora não deva faltar injustificadamente se se comprometer a frequentá-las. Compreendemos que, com quatro crianças a seu cargo, lhe seja difícil compatibilizar os seus horários de trabalho e deveres de mãe com os de consultas de psicologia em proveito próprio.
A intervenção a realizar deve ser mínima, para promover a construção de interações positivas entre os membros do agregado familiar. A progenitora é claramente uma pessoa de forte personalidade com quem a micro gestão do papel de mãe não funcionou bem. Nem há razão para que seja feita: esta mãe saberá tomar as decisões certas para os seus filhos, educá-los e orientá-los. Lembramos que, no decurso deste processo, a progenitora procurou aumentar as suas capacidades como mãe frequentando várias formações online (e obtendo certificações), nomeadamente em «Gestão de conflitos», «Auxiliar de creche», «Cuidadora infantil», «Cuidadora de idosos» e «Primeiros Socorros básico» (ponto 15 do relatório deste acórdão). Porque também foi fator de fricção entre a progenitora e os técnicos, deixa-se expresso que a religiosidade da progenitora deve em todos os momentos ser respeitada, bem como a educação religiosa que entenda dar aos filhos.
A medida ora aplicada visa uma transição adequada para o momento, desejavelmente próximo, em que se reconheça como desnecessária.

IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação da progenitora totalmente procedente, e a do progenitor procedente em parte, revogando o acórdão recorrido e aplicando a favor dos menores B, C, D, e E, medida de apoio juntos dos pais, na pessoa da progenitora mãe, pelo período de 3 meses, com as seguintes regras:
a) residência dos menores com a mãe;
b) frequência pelos menores de equipamento escolar (durante o ano escolar), e eventualmente de outros equipamentos, ao critério da progenitora;
c) apoio a prestar pelos serviços da Segurança Social na vertente económica, nos termos do disposto no artigo 13.º do DL 12/2008, de 17 de janeiro;
d) acompanhamento psicológico gratuito das crianças, se possível na(s) escola(s) que frequentam e/ou venham a frequentar, e, não sendo possível, a diligenciar pela Segurança Social, em espaço próximo da residência das crianças, em horários compatíveis com os horários das mesmas;
e) disponibilização, a solicitação da progenitora, de apoio psicológico gratuito à própria, em horário e local que lhe seja conveniente;
f) relatório social, a realizar decorridos 60 dias sobre o regresso das crianças a casa da mãe e a entregar nos autos.
Para implementação da medida agora ordenada, de apoio junto da mãe, deverá o tribunal a quo, diligenciar pela entrega dos menores à sua progenitora.
Ulteriormente, averigue o tribunal a quo junto da CML da possibilidade de a progenitora recuperar o fogo camarário T4 que lhe foi atribuído (e que perdeu por não ter na altura os filhos a residir consigo), ou de lhe ser atribuído outro na mesma zona e compatível com o agregado que será agora de 4 filhos (sem prejuízo de a progenitora poder prescindir desta diligência e, se assim o entender, concorrer a novo programa de apoio).

Lisboa, 06/06/2024
Higina Castelo
Vaz Gomes
José Manuel Monteiro Correia
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[1] E pelos quais (ou por parte dos quais) veio a ser condenado, conforme cf. ponto 22 do relatório deste acórdão e facto 110.