CONTA BANCÁRIA
COTITULARIDADE
PROPRIEDADE DOS FUNDOS
TRANSFERÊNCIA NÃO AUTORIZADA
DANOS
FORMA DO PROCESSO
Sumário

I – Há ilicitude quando ocorre violação do direito de propriedade de alguém (autora) sobre as quantias em dinheiro que se encontravam depositadas em conta bancária por si titulada, o que foi concretizado mediante transferência de fundos dessa conta.
II – Os réus, cotitulares da conta bancária, que se apropriaram das quantias assim transferidas, apesar de saberem que as mesmas não lhes pertenciam, praticaram um facto ilícito e culposo, sendo reprovável a sua atuação contra a vontade da titular/dona.
III – Aos factos praticados por tais réus – transferência para a propriedade da sua filha dos fundos pertença da autora – sobrevieram danos, causados à autora, que consistiram na diminuição patrimonial sofrida com a perda das quantias transferidas da sua conta bancária, no montante de € 154.000,00.
IV – O processo especial de prestação de contas apenas tem aplicação nos casos de administração de bens alheios (art.º 941.º do CPC) e os réus, no caso, não tinham a administração das quantias depositadas, figurando apenas como cotitulares das respetivas contas bancárias.

Texto Integral

Relator: Arlindo Oliveira
Adjuntos: Maria Catarina Gonçalves
Helena Melo

            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

AA, residente em ... – Bateria 2200, Caixa Postal n.º ...29, ..., instaurou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB, residente na Avenida ..., ..., na qualidade de devedora e de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de CC, DD, residente na Avenida ..., ..., na qualidade de herdeira de CC, e EE, residente na Travessa ..., ..., ..., na qualidade de herdeiro de CC, pedindo que se declare “que existe um crédito da Autora no montante de 154.000,00 € (…), acrescido dos respetivos juros, devendo o mesmo ser satisfeito pelos bens que integram a herança do de cujus, e os Réus condenados a reconhecer isto mesmo”.

Para além disso, solicita ainda a Autora que os Réus sejam condenados no pagamento da “quantia total de 155.940,82 € (…), soma do saldo em dívida e os juros vencidos até agora”, assim como da “quantia que traduzir os juros, à taxa legal, a contar desde hoje e até integral pagamento, a recair sobre 154.000,00 €”.

Alega a Autora, em síntese, que, juntamente com o seu marido FF, já falecido, possuía avultadas quantias em dinheiro, as quais se encontravam depositadas nas contas bancárias de que ambos eram titulares na Banco 1... e na Banco 2....

Ora, no dia 6 de maio de 2015 a Autora abriu uma conta no Banco 3..., para a qual foi transferida a quantia de € 317.646,56 que se encontrava depositada na conta de que a Autora era titular na Banco 2....

Embora a Autora tenha aceitado que o seu cunhado CC e os seus sobrinhos DD e EE fossem cotitulares da conta bancária aberta no Banco 3..., o certo é que os fundos nela depositados pertencem exclusivamente à Autora.

Acontece que, sem o conhecimento da Autora, o seu cunhado CC, no dia 1 de outubro de 2018, transferiu da referida conta bancária para uma conta bancária titulada pela Ré DD e pelos filhos desta o montante total de € 154.000,00, alegando pretender, por essa via, “igualar o que tinha doado ao seu irmão, Terceiro Réu, cerca de 170.000,00 €, uma vez que este precisava do dinheiro para investir”.

Já no mês de maio de 2020 a Ré BB transferiu para a conta bancária titulada pela Autora a quantia de € 20.000,00, “por conta da dívida de 154.000,00 €”.

Porém, passado um mês, a Ré BB pediu à Autora que lhe emprestasse € 20.000,00, “pois estava a precisar, com urgência, para liquidar o crédito habitação do Terceiro Réu e o seu marido, CC, estava incapacitado fisicamente de se deslocar ao Banco”, o que foi aceite pela Autora que, no dia 17 de junho de 2020, por intermédio da sua sobrinha, providenciou pela transferência dessa quantia para a conta bancária titulada por CC.

Apesar de a Ré BB e o seu marido CC se terem obrigado, entretanto, a devolver à Autora a quantia por esta reclamada, o certo é que não o fizeram.

Devidamente citados para os termos da presente ação declarativa, apenas os Réus BB e EE vieram aos autos apresentar contestação.

Com efeito, alegam os Réus ter sido a Autora quem propôs à Ré BB e ao seu marido CC, no mês de outubro de 2018, o empréstimo da quantia de € 154.000,00 “quando soube que a R. BB ia colocar à venda um imóvel sito em ... para dar o dinheiro à filha”, “tendo ficado combinado com a A. que a R. e marido reembolsariam o empréstimo, sem juros, consoante as suas possibilidades”.

Por outro lado, a Ré BB “já amortizou a quantia de 20.000€ da dívida de 154.000€”, sendo certo ainda que a quantia de € 20.000,00 posteriormente disponibilizada pela Autora consubstanciou “uma doação que fez aos cunhados atenta a estima e amizade que tinha para com estes, e bem assim auxiliar na doença do Sr. CC”.

Assim, “a R. BB reconhece que deve a quantia de 134.000€, a qual acordou pagar consoante as suas possibilidades sem ter sido fixado qualquer prazo de reembolso”, não sendo devidos quaisquer juros “pois nunca foram acordados entre as partes”.

A audiência prévia foi dispensada, tendo sido proferido despacho saneador, bem como despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com recurso à gravação da prova nela produzida, e finda a mesma foi proferida a sentença de fl.s 87 a 107, na qual se fixou a matéria de facto considerada como provada e não provada e respectiva fundamentação e, a final, se decidiu o seguinte:

“Em face do exposto, nos termos e com os fundamentos já indicados, decido julgar a presente ação procedente e, em consequência, condenar a Ré BB a pagar à Autora a quantia de € 154.000,00 (cento e cinquenta e quatro mil euros), acrescida de juros de mora, calculados à taxa legal de 4%, desde o dia 25 de janeiro de 2023 até integral pagamento.

Mais decido condenar os Réus BB, DD e EE, na qualidade de herdeiros na herança aberta por óbito de CC, a reconhecer a existência do mencionado crédito, no valor de € 154.000,00 (cento e cinquenta e quatro mil euros), acrescidos de juros de mora, calculados à taxa legal de 4%, desde o dia 25 de janeiro de 2023 até integral pagamento, a favor da Autora, bem como a responsabilidade da herança por si representada pelo pagamento do mesmo.

Custas a cargo dos Réus (cfr. artigo 527º, n.º 1 e 2, do CPC).”.

Inconformados com a mesma, interpuseram recurso os réus, BB e CC, recurso, esse, admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo – (cf. despacho de fl.s 115), rematando as respectivas motivações, com as seguintes conclusões:

(…).

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, há que decidir.    

Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 635, n.º 4 e 639.º, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, são as seguintes as questões a decidir:

A. Incorrecta análise e apreciação da prova, relativamente aos factos constantes dos itens 14.º, 23.º e 24.º, dos factos dados como provados, devendo os mesmos passar a considerar-se como não provados e itens 4.º, 16.º e 25.º, dos não provados, que devem passar a considerar-se como provados;

B. Se a ré, BB deve ser absolvida do pedido, com o fundamento em a conta bancária em causa ter sido movimentada sem qualquer intervenção da sua parte, não se lhe podendo assacar a prática de qualquer acto ilícito;

C. Se os juros de mora só são devidos desde a citação, no que se refere à responsabilidade por factos ilícitos e desde a sentença proferida, no que toca à quantia mutuada e;

D. Se se verifica erro na forma do processo, devendo a autora ter lançado mão do processo de prestação de contas, sem que se possa aproveitar o processado, dada a especificidade deste, o que acarreta a anulação de todo o processado e a absolvição dos réus da instância.

É a seguinte a matéria de facto dada por provada na decisão recorrida:

1. A Autora AA era casada com FF, que faleceu no dia ../../2009.

2. A Ré BB era casada, sob o regime da comunhão geral de bens, com CC, que faleceu no dia ../../2023.

3. A Autora tem 85 anos de idade.

4. A Ré BB é irmã do marido da Autora, FF.

5. Por sentença datada de 16 de março de 1970, proferida pelo Tribunal Tutelar Central de Menores da Comarca ..., foi decretada a adoção restrita de GG, sendo adotante FF.

6. Por sentença datada de 9 de março de 1973, proferida pelo Tribunal Tutelar Central de Menores da Comarca ..., foi decretada a adoção restrita de GG, sendo adotante a Autora.

7. Por sentença datada de 24 de junho de 2016, proferida pelo Juízo de Competência Genérica ..., foi decretada a interdição de GG, tendo sido nomeada tutora a Ré DD, protutor o Réu EE e vogal do conselho de família a Ré BB.

8. GG reside no lar residencial da Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental de ... desde o dia ../../2022.

9. Ao longo da vida, a Autora e o seu marido FF economizaram algumas quantias que depositaram em contas na Banco 1... e na Banco 2... (Sul) das quais eram cotitulares juntamente com GG.

10. No dia 6 de maio de 2015 a Autora abriu, no Banco 3..., a conta número  ...20, para a qual transferiu quantias que se encontravam depositadas na conta de que era titular na Banco 2... (Sul) com o NIB  ...34.

11. Em data não apurada, os Réus DD e EE passaram a ser cotitulares da conta bancária da Banco 2... identificada em 10. de que eram titulares a Autora e GG.

12. Da conta bancária da Banco 2... identificada em 10. foi transferido para a conta bancária do Banco 3... identificada em 10. o montante total de € 317.646,56.

13. CC e os Réus DD e EE foram integrados como cotitulares da conta bancária do Banco 3... identificada em 10..

14. A Autora aceitou a integração dos referidos cotitulares porque o falecido CC a convenceu de que não era conveniente manter um montante tão elevado em nome de uma só pessoa, uma vez que, em caso de “falência, o Banco só asseguraria o pagamento da quantia de € 100.000,00 por pessoa.

15. No dia 29 de junho de 2018 a Autora tinha, na conta bancária do Banco 3... identificada em 10., um saldo de € 318.839,59.

16. No dia 1 de março de 2019 a Autora tinha, na conta bancária do Banco 3... identificada em 10., um saldo de € 165.341,15.

17. A Autora só teve conhecimento da redução do saldo da referida conta bancária quando se dirigiu ao Banco 3..., na companhia da Ré DD, por andar desconfiada de que CC andaria a movimentar os fundos depositados nessa conta.

18. No dia 1 de outubro de 2018 CC transferiu da conta rendimento/poupança para a conta à ordem do Banco 3... identificada em 10. a quantia de € 117.000,00.

19. De seguida, CC transferiu a quantia indicada em 18. e ainda o montante de € 37.000,00 da conta à ordem do Banco 3... identificada em 10. para uma conta de que a Ré DD é titular, juntamente com os seus dois filhos, na Banco 1....

20. CC não deu conhecimento à Autora da transferência das quantias indicadas em 18. e 19. nem lhas pediu emprestadas.

21. Quando soube da transferência da quantia de € 154.000,00, a Autora confrontou CC e a Ré BB, tendo os mesmos dito que iriam devolver essa quantia.

22. Em data não apurada a Ré BB transferiu para a conta bancária da Autora a quantia de € 20.000,00 para amortização da dívida no valor de € 154.000,00.

23. Posteriormente, no mês de junho de 2020, a Ré BB pediu à Autora que lhe emprestasse a quantia de € 20.000,00 de que precisava com urgência para liquidar o crédito referente à habitação do Réu EE.

24. A Autora acedeu ao pedido da Ré BB e pediu à Ré DD para efetuar a transferência da quantia de € 20.000,00 para a conta bancária titulada por CC.

25. A referida transferência bancária foi efetuada no dia 17 de junho de 2020.

26. CC e a Ré BB disseram, por mais do que uma vez, que pagariam tudo o que deviam à Autora.

27. Mediante carta registada dirigida a CC e à Ré BB, datada de 17 de janeiro de 2023, cujo aviso de receção foi assinado pela Ré HH no dia 19 de janeiro de 2023, a Autora, por intermédio de Ilustre Advogada, comunicou o seguinte:

“Com os nossos melhores cumprimentos, na qualidade de Mandatária de AA, vimos solicitar a V. Ex.ªs se dignem proceder no prazo de 8 dias, uma vez que até agora ainda não o fizeram, à entrega da quantia de 154.000,00 € (…) em dinheiro, que se encontrava na conta bancária do Banco 3..., da qual a N/Cliente é titular, integrando única e exclusivamente dinheiro da mesma e à qual V/Ex.ªs, estando na posse da palavra passe de acesso on-line, acediam e movimentavam como bem entendiam, sem qualquer autorização e/ou conhecimento da n/Cliente.

Caso V. Ex.ªs não optarem pela dita entrega voluntária, desde já informamos que iremos recorrer a Tribunal a fim da N/Cliente ver o assunto resolvido e cobrar tudo aquilo a que tem direito, nomeadamente, todos os prejuízos que lhe foram causados pelo atraso na referida entrega.”.

28. CC deixou como seus únicos e universais herdeiros, sem que alguém com os mesmos possa concorrer à sucessão, a Ré BB, seu cônjuge, e os filhos DD e EE.

29. A Autora, o seu marido, os Réus e o falecido CC sempre tiveram uma relação muito próxima, de grande amizade e companheirismo, ajudando a criar GG, que padece de anomalia psíquica.

30. A Autora e a Ré BB eram muito amigas e falavam diariamente por telefone.

31. A quantia de € 154.000,00 a que se alude em 18. e 19. foi entregue à Ré DD pelos seus pais CC e BB para a igualar, por exigência da mesma, numa doação que tinham feito ao irmão EE.

32. A Autora deixou de falar à Ré BB.

*

Factos não provados

Após a realização da audiência final não ficaram demonstrados quaisquer outros factos relevantes para a decisão a proferir, não se tendo provado, designadamente:

1. A conta bancária da Banco 2... que se encontra identificada em 10. dos factos considerados provados foi aberta no dia 23 de dezembro de 2009.

2. Os Réus DD e EE tornaram-se cotitulares dessa conta bancária no dia 11 de fevereiro de 2015.

3. O facto descrito em 13. dos factos considerados provados ocorreu no dia 6 de maio de 2015.

4. O falecido CC geria a conta bancária da Autora sem que esta lhe tenha dado autorização para tanto.

5. O facto indicado em 17. dos factos considerados provados ocorreu no final do mês de março de 2020.

6. Na ocasião indicada em 21. dos factos considerados provados a Autora ordenou a CC e à Ré BB que repusessem, de imediato, a quantia de € 154.000,00.

7. Para efetuar a segunda transferência, CC utilizou a palavra-passe de acesso à conta da Ré DD sem o conhecimento desta.

8. Perante a Ré DD, CC justificou as transferências da conta da Autora para a conta da Ré dizendo que era para igualar o que tinha doado ao Réu EE, cerca de € 170.000,00, uma vez que este precisava do dinheiro para investir.

9. Em reunião realizada no dia 29 de fevereiro de 2020 a Autora disse expressamente aos Réus e a CC que não os autorizava a movimentar o seu dinheiro, referindo-lhes que o seu dinheiro devia continuar no Banco, como estava, em contas a prazo ou outras aplicações sem riscos.

10. Nessa reunião CC nada disse à Autora acerca das transferências mencionadas em 18. e 19. dos factos considerados provados.

11. O facto indicado em 22. dos factos considerados provados ocorreu no mês de maio de 2020.

12. Na ocasião indicada em 22. dos factos considerados provados a Ré BB informou a Autora de que iria pagar a quantia remanescente aos poucos.

13. Na ocasião indicada em 23. dos factos considerados provados a Ré BB prometeu à Autora que lhe iria pagar rapidamente os € 20.000,00 aí mencionados e a restante quantia que se encontrava em dívida.

14. A Ré BB confessou, em sede de contestação apresentada no âmbito do incidente de remoção do conselho de família que se encontra a correr por apenso à ação de interdição a que se alude em 7. dos factos considerados provados, a dívida no montante de € 154.000,00.

15. O marido da Autora, por várias vezes, emprestou dinheiro a CC para alguns investimentos em mercados de valores mobiliários, os quais lhe foram sempre devolvidos.

16. Após o falecimento do seu marido, a Autora propôs que as contas bancárias de que era titular na Banco 1..., no Banco 3... e na Banco 2... passassem a ser cotituladas pelos Réus e por CC.

17. Qualquer um dos titulares das referidas contas bancárias estava autorizado a movimentá-las livremente, a crédito ou a débito.

18. CC apenas era cotitular e tinha poderes para movimentar livremente a conta bancária aberta junto do Banco 3....

19. As contas bancárias em causa apresentavam um saldo global de cerca de € 1.200.000,00.

20. O dinheiro depositado nas referidas contas bancárias era propriedade da Autora e de GG na proporção de metade.

21. A quantia de € 154.000,00 a que se alude em 18. e 19. dos factos considerados provados foi emprestada pela Autora à Ré BB e ao seu marido CC.

22. A Ré BB e o seu marido CC pediram essa quantia emprestada à Autora.

23. No mês de outubro de 2018 foi a Autora quem propôs à Ré BB e ao seu marido CC o empréstimo dessa quantia quando soube que a Ré BB ia colocar à venda um imóvel situado em ... para dar o dinheiro à sua filha DD.

24. Nessa altura ficou combinado com a Autora que a Ré BB e o seu marido CC reembolsariam o empréstimo, sem juros, consoante as suas possibilidades.

25. A Autora é uma pessoa simples e influenciável que se encontra sob o ascendente pessoal da Ré DD.

26. O facto indicado em 32. dos factos considerados provados ocorreu no final do ano de 2022.

27. O facto indicado em 32. dos factos considerados provados ocorreu por a Ré DD ter convencido a Autora de que os seus pais nunca lhe iriam pagar o empréstimo.

28. A quantia de € 20.000,00 indicada em 23. a 25. dos factos considerados provados tratou-se de uma doação que a Autora fez aos cunhados, atenta a estima e amizade que tinha para com os mesmos e também para auxiliar na doença de CC.

A. Incorrecta análise e apreciação da prova, relativamente aos factos constantes dos itens 14.º, 23.º e 24.º, dos factos dados como provados, devendo os mesmos passar a considerar-se como não provados e itens 4.º, 16.º e 25.º, dos não provados, que devem passar a considerar-se como provados;

(…).

B. Se a ré, BB deve ser absolvida do pedido, com o fundamento em a conta bancária em causa ter sido movimentada sem qualquer intervenção da sua parte, não se lhe podendo assacar a prática de qualquer acto ilícito.

No que a esta questão respeita, alegam os recorrentes que a ré BB deve ser absolvida do pedido, com o fundamento em a mesma não ter tido qualquer participação na ordem de transferência das quantias, propriedade da autora, que se encontravam depositadas na conta bancária em apreço.

Efectivamente, como consta do elenco dos factos provados (itens 18.º e 19.º), quem fez a transferência das quantias em causa da conta identificada no item 10.º para uma conta titulada pelos seus familiares foi o falecido CC.

No entanto, a quantia “transferida” veio a ser entregue pelo referido CC e pela ré BB à sua filha, também ré, DD.

Isto é, não obstante a transferência interbancária tenha sido feita pelo CC, tanto este como a ré BB se vieram, conjuntamente, a apoderar da quantia de 154 mil euros, que entregaram/ofereceram à sua filha DD.

A responsabilização da ré BB, reside, assim, no facto de conjuntamente com o seu marido, se ter apoderado desta quantia, que bem sabia não ser sua, nem do seu marido.

Tal como se refere na sentença recorrida, com que se concorda:

(…)

Para além disso, a factualidade considerada provada no âmbito dos presentes autos revela ainda que a quantia de € 154.000,00 a que se aludiu foi entregue à Ré DD pelos seus pais CC e BB para a igualar, por exigência da mesma, numa doação que tinham feito ao irmão EE.

Nestes termos, é inegável, em primeiro lugar, que a Ré BB e o seu marido CC praticaram factos por si domináveis e consistentes na realização, pelo segundo, das transferências bancárias a que atrás se aludiu e na subsequente entrega à Ré DD das quantias transferidas, encontrando-se, portanto, preenchido o primeiro requisito de que depende a responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito.

Para além disso, os factos praticados pela Ré BB e pelo seu marido CC não poderão deixar de ser considerados ilícitos, traduzindo-se a ilicitude, no caso em apreço, na violação do direito de propriedade de que a Autora é titular sobre as quantias em dinheiro que se encontravam depositadas na conta bancária por si titulada no Banco 3... (cfr. artigo 1305º do Código Civil).

(…)

Por outro lado, a Ré BB e o seu marido CC atuaram de forma dolosa, na medida em que se apropriaram das quantias por este transferidas, apesar de saberem que as mesmas não lhes pertenciam, pelo que, para além de ilícito, o facto por si praticado também é de considerar culposo, já que é reprovável a circunstância de não terem agido de outra forma, como deviam e podiam ter feito.

Acresce que, como consta da factualidade considerada provada, aos factos praticados pela Ré BB e pelo seu marido CC sobrevieram danos causados à Autora e que, como decorre do que já foi mencionado, consistiram na diminuição patrimonial sofrida com a perda das quantias transferidas da sua conta bancária e que perfazem o montante total de € 154.000,00”.

Como resulta do exposto, a responsabilização da ré BB, assenta na apropriação da quantia de 154 mil euros, que sabia ser pertença da autora, independentemente, de não ter tido intervenção na transferência da quantia da autora para outra de que era cotitular.

 A ilicitude do acto, que a responsabiliza a si própria traduz-se na apropriação (ilícita) que se consumou quando a transferiu para a propriedade da sua filha, DD.

Assim, quanto a esta questão, igualmente, improcede o recurso.

C. Se os juros de mora só são devidos desde a citação, no que se refere à responsabilidade por factos ilícitos e desde a sentença proferida, no que toca à quantia mutuada.

Relativamente a esta questão, alegam os réus que os juros de mora só devem ser contabilizados desde a citação, quanto à quantia de 134 mil euros, objecto da transferência interbancária e desde a sentença no que se refere à quantia de 20 mil euros, com o fundamento no AUJ 4/2002 e citando, ainda, em abono de tal tese o decidido no Acórdão da Relação do Porto, de 27/9/2018 Processo n.º 75/10.4TBAMT.P1, disponível no respectivo sítio do Itij.

Na sentença recorrida, condenaram-se os réus a pagar à autora juros de mora, à taxa de 4%, ao ano, desde 25 de Janeiro de 2023 e até efectivo e integral pagamento, com fundamento no disposto no artigo 805.º, n.º 1, do Código Civil e atenta a interpelação extra-judicial referida no item 27.º dos factos provados (datada de 17 de Janeiro de 2023, na qual se concedeu o prazo de 8 dias para ser efectuado o pagamento).

Efectivamente, dispõe o artigo 805.º, n.º 1, do Código Civil que o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.

Resulta do item 27.º, que os réus foram extrajudicialmente interpelados para cumprir a obrigação do pagamento da quantia em causa, até ao dia 25 de Janeiro de 2023.

Por outro lado, o disposto no artigo 805.º, n.º 3, do Código Civil (cuja interpretação está na génese do AUJ 4/2002, visa os casos de iliquidez do crédito que só com a sentença vêm a ser fixados de forma actualizada; ou seja, visa os casos em que a indemnização é fixada na sentença, de forma actualizada).

Ora, no caso em apreço, não se trata de qualquer crédito ilíquido nem que com a sentença proferida tenha sido actualizado.

A quantia está fixada em termos líquidos ab initio e a autora notificou extrajudicialmente os réus para cumprirem a obrigação de pagamento e tratando-se, como se trata de responsabilidade civil por factos ilícitos, vale a regra do n.º 1 do artigo 805.º, do Código Civil, que valida a referida interpelação extrajudicial.

Aliás, a idêntico resultado se chegaria por via do que se acha disposto na al. b), do n.º 2, do artigo em referência, no que se refere à indemnização baseada na apropriação da quantia de 134 mil euros.

Quanto à quantia mutuada, verifica-se a mora dos réus, após a referida interpelação, que acarreta que sejam devidos juros de mora, nos mesmos termos.

Pelo que, também, quanto a esta questão, improcede o recurso.

D. Se se verifica erro na forma do processo, devendo a autora ter lançado mão do processo de prestação de contas, sem que se possa aproveitar o processado, dada a especificidade deste, o que acarreta a anulação de todo o processado e a absolvição dos réus da instância.

Por último, alegam os recorrentes que devem ser absolvidos da instância, porque se verifica erro na forma de processo, sendo a correcta a do processo de prestação de contas, que pela sua especialidade, implica o não aproveitamento dos actos praticados.

Ainda que verificada a existência de erro na forma de processo, a mesma só poderia ser arguida até à citação, cf. artigo 198.º, n.º 1, do CPC, sendo certo que só nas alegações de recurso, os réus referem tal questão.

Por outro lado, ainda que a verificar-se tal condicionalismo, pode o tribunal conhecer oficiosamente do erro na forma de processo, a não ser que tal questão se deva considerar sanada (artigo 196.º, do CPC).

Ora, os réus deduziram contestação sem arguir tal vício, tendo os autos prosseguido até à fase de recurso, sem que arguissem tal vício, pelo que sempre se teria de considerar que a eventual nulidade daí decorrente devesse considerar-se sanada.

Last but not least, não se verifica qualquer erro na forma de processo.

O processo especial de prestação de contas, apenas tem aplicação nos casos de administração de bens alheios – cf. artigo 941.º, do CPC, o que não se verifica no caso em apreço.

Os réus não tinham a administração das quantias depositadas, figurando apenas como cotitulares das contas bancárias nas quais estavam depositadas quantias, exclusivamente pertença da autora, pelos motivos referidos no item 14.º, do que se impõe concluir que não estamos no âmbito da prestação de contas.

Pura e simplesmente, mercê de serem cotitulares da conta, os réus apoderaram-se de quantias que bem sabiam não lhes pertencerem.

Assim, igualmente, quanto a esta questão improcede o recurso.

Nestes termos se decide:      

Julgar improcedente o presente recurso de apelação, em função do que se mantém a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes.

Coimbra, 04 de Junho de 2024.