PRESTAÇÃO DE CONTAS
MOVIMENTAÇÃO DE CONTAS BANCÁRIAS
ADMINISTRAÇÃO DE BENS E INTERESSES ALHEIOS
Sumário

I – Não existindo disposição legal que, de forma genérica, determine quando alguém tem a obrigação de prestar contas a outrem – existem apenas diversas normas que, de forma casuística, estabelecem essa obrigação –, é de concluir que quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao respetivo titular (art.º 941.º do CPCiv.).
II – Resultando provado que a ré movimentava contas bancárias de que era titular pessoa determinada (contas que continham fundos pertencentes a uma herança aberta), o que fazia mediante autorização que por esta lhe havia sido concedida, é de concluir que estava, de facto, a administrar bens e interesses alheios e, portanto, estava obrigada a prestar contas dessa administração/movimentação à titular das contas.
III – A obrigação da ré de prestar contas não assenta no exercício de funções de cabeça de casal relativamente à herança, mas sim no acordo estabelecido por via do qual foi autorizada a movimentar as contas, encarregando-se de proceder a levantamentos e pagamentos com os valores aí existentes.

Texto Integral

Apelação nº 319/22.0T8PCV.C1

Tribunal recorrido: Comarca de Coimbra - Penacova - Juízo C. Genérica

Relatora: Maria Catarina Gonçalves

1.º Adjunto: José Avelino Gonçalves

2.º Adjunto: Paulo Correia

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

AA, melhor identificada nos autos, instaurou acção contra BB, melhor identificada nos autos, pedindo que esta venha prestar contas da gestão do património dos seus pais CC e DD (avós da Autora) desde 20 de Novembro de 2014 até à actualidade e, que, caso não justifique a movimentação de valores, seja condenada a devolver à herança tais montantes.

Alega, em resumo: que CC e DD (falecidos em ../../2014 e ../../2020, respectivamente) tinham uma significativa quantia em dinheiro que se encontrava depositada no banco e em aplicações financeiras e que a Ré foi a única pessoa com acesso às contas bancarias dos seus pais, tendo feito diversos levantamentos e transferências que não reflectiu nem explicou no processo de inventário, estando, por isso, obrigada a prestar contas da administração dessas contas e a devolver à herança os valores que, eventualmente, tenha retido.

A Ré contestou, negando a sua obrigação de prestar contas em relação ao período que decorreu entre a data do óbito de CC (24/11/2014) e a data do óbito de DD (07/12/2020) na medida em que não exerceu, durante esse período, o cargo de cabeça de casal, cargo este que foi exercido por DD e que, nessa qualidade, administrou como entendeu a herança aberta por óbito de seu marido.

A Ré aceita, no entanto, a obrigação de prestar contas em relação ao período decorrido após o óbito de DD, dizendo:

- Que, à data do seu óbito, existia apenas o montante de 4.605,81€;

- Que, depois disso, procedeu a diversos pagamentos – na sequência de notificações que, para o efeito, lhe foram efectuadas – a partir da conta da referida DD na Banco 1... e no valor global de 2.775,19€, tendo sido ainda debitado, por desconto directo, a conta da EDP no valor de 8,00€, pelo que o saldo positivo da herança é de 1.821,99€ e que isso resume toda a gestão que fez na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de sua mãe.

Com esses fundamentos, e invocando ainda o abuso de direito e a litigância de má fé por parte da Autora, conclui pedindo a improcedência da acção no que se refere ao cabecelato da herança do inventariado CC e que a Autora seja condenada como litigante de má fé em multa e indemnização condigna.

A Autora respondeu, contestando as contas apresentadas pela Ré – com alegação de que o saldo da conta de DD por ela indicado não corresponde ao saldo existente na data da morte desta e que a Ré omitiu o subsídio de funeral recebido por conta do óbito – e sustentando que a Ré está obrigada a prestar contas desde a data do óbito do seu pai, uma vez que, apesar de não ser a cabeça de casal da herança, era a gestora de facto do respectivo património, possuindo acesso às contas bancárias que movimentava a seu bel prazer.

Após produção de prova, foi proferida decisão, onde se decidiu nos seguintes termos:

“- não reconhecer a obrigação da ré de prestar contas da administração do património de CC e de DD, à autora, no período de 20 de novembro de 2014 a 6 de dezembro de 2020, absolvendo-a, por conseguinte, de tal pedido;

- reconhecer a obrigação da ré de prestar contas da administração do património de DD, à autora, no dia 7 de dezembro de 2020;

- reconhecer a obrigação da ré de prestar contas da administração do património de CC, à autora, de 7 de dezembro de 2020 até à atualidade”.

Inconformada com essa decisão, a Autora veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

a) O tribunal, não se pronunciou sobre quem procedeu ao levantamento dos certificados de aforro referidos no ponto 6, havendo sobre este assunto uma omissão de pronuncia cominado nos termos da al. d) do 615º do CPC com a nulidade da sentença.

a) O tribunal não caraterizou a relação jurídica que se estabeleceu entre DD e a Ré, que é uma relação de mandato, havendo igualmente omissão de pronuncia, cominado nos termos da al. d) do 615º do CPC com a nulidade da sentença.

b) Havendo uma relação de mandato, a ré é obrigada a prestar contas, al. d) do artigo 1161º do CC.

c) O tribunal, apesar de ter declarado como provado que “A ré efetuou levantamentos e transferências a partir da conta bancária de DD”, conta essa que também é titulada pela Ré e que foi aberta com fundos provenientes de depósitos pertencentes, em parte, à herança de CC, não condenou a ré a prestar contas de tais levantamentos, existindo uma contradição insanável entre a prova produzida e a decisão, pelo que, mais uma vez, a cominação prevista na al. d) do 615º do CPC é a nulidade da sentença.

Nestes termos e nos melhores de Direito que, deve o presente recurso ser julgado procedente e, por via dele, ser alterada a sentença proferida em 1.ª instância, tudo com as devidas e legais consequências.

Não houve resposta ao recurso.


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II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações da Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – importa apreciar e decidir as seguintes questões:

· Eventual nulidade da sentença por omissão de pronúncia;

· Eventual nulidade da sentença por alegada “contradição insanável entre a prova produzida e a decisão” em virtude de ter resultado provado que a Ré efectuou levantamentos e transferências a partir da conta bancária de DD sem que tivesse sido condenada a prestar contas desses levantamentos.


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III.

Na 1.ª instância, julgou-se provada a seguinte matéria de facto:

1) CC faleceu no dia 20 de Novembro de 2014, no estado de casado com DD, em regime de comunhão geral de bens, a qual faleceu no dia 7 de Dezembro de 2020, pelas 06h00m, no estado de viúva do mesmo;

2) A Ré BB e CC são filhos de CC e de DD;

3) CC faleceu no dia ../../2010, no estado de divorciado;

4) A Autora AA e EE são filhas de CC;

5) No dia 24/11/2014, quatro dias após o óbito de CC, foi constituída a conta aforro n.º ...68, em nome de DD, com a subscrição de um certificado de aforro da série C em nome desta, com cláusula de movimentação a favor da Ré, no valor de 100936,43€, não existindo valores à data do óbito de DD (a 7/12/2020);

6) A conta bancária da qual DD era titular na Banco 1... sob o n.º ...00, era gerida por si, embora a Ré tivesse o cartão bancário da conta na sua posse;

7) A Ré efectuou levantamentos e transferências a partir da conta bancária de DD;

8) Foram realizados movimentos bancários, a partir da conta de DD, na cidade ...;

9) Por documento, datado de 10/12/2014, intitulado “requerimento”, a Ré “requer, nos termos legais: que lhe seja averbado ou emitido novo alvará da sepultura n.º ..., do 2.º talhão do Cemitério ..., com o Alvará datado de 02/12/1986, para seu nome por ser bisneta e herdeira de FF, já falecido, e sua mãe DD, não poder deslocar-se por motivos de saúde”;

10) Em 2018, DD foi institucionalizada, na sequência de uma queda;

11) No dia 7 de Outubro de 2020, DD sofreu um AVC;

12) No dia 7 de Dezembro de 2020, foi realizado um levantamento bancário no valor de 2600 euros, pela Ré, a partir da conta de DD;

13) A partir do dia 7 de Dezembro de 2020 até à atualidade, a Ré passou a gerir o património de CC;


*

Não se julgaram provados os seguintes factos:

A. Enquanto viveu em sua casa, DD não saía da sua localidade (...);

B. DD tinha uma vida espartana, sem luxos, típico de uma idosa;

C. A Ré movimentava a conta de DD a seu bel-prazer;

D. A Ré era a única pessoa com acesso às contas bancárias dos seus pais.


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IV.

Apreciemos então o objecto do recurso.

No sentido de delimitar o objecto do recurso e as questões nele incluídas, cabe esclarecer que essa delimitação é feita pelas conclusões das alegações e, portanto, o objecto do recurso sobre o qual o tribunal tem de se pronunciar é, por regra, integrado apenas pelas questões que são incluídas nas conclusões das alegações; são, portanto, as conclusões que delimitam a área de intervenção do tribunal de recurso[1]. É isso que se retira, designadamente, do disposto no art.º 635.º, n.º 4, do CPC, onde se dispõe que “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objeto inicial do recurso”; a não inclusão nas conclusões de determinada questão anteriormente suscitada no corpo das alegações equivale, portanto, e deve ser entendida como restrição tácita do objecto do recurso.

Ora, se olharmos às conclusões das alegações da Apelante, facilmente se constata que elas apenas contêm a invocação da nulidade da sentença, com fundamento na alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, por omissão de pronuncia e por alegada “contradição insanável entre a prova produzida e a decisão”, pelo que, em bom rigor, apenas caberá aqui apreciar e decidir se a sentença recorrida está ferida das concretas nulidades que lhe são imputadas pela Apelante

Apreciemos então tais nulidades.

A Apelante invoca a nulidade da sentença por omissão de pronuncia com dois fundamentos: porque não se pronunciou sobre quem procedeu ao levantamento dos certificados de aforro referidos no ponto 6 e porque não caracterizou a relação jurídica que se estabeleceu entre DD e a Ré que, segundo a Apelante, é uma relação de mandato.

A nulidade por omissão de pronúncia vem prevista na alínea d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC onde se dispõe que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar. Está aqui em causa o dever imposto ao juiz – cfr. art.º 608.º n.º 2 do citado diploma – de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, sendo a violação deste dever que acarreta a referida nulidade da sentença.

Em relação à segunda questão a que alude a Apelante, é certo não ter existido qualquer omissão de pronúncia; a sentença recorrida pronunciou-se expressamente sobre a questão, concluindo que, à luz da matéria de facto provada, não era “...possível subsumir a relação estabelecida entre a ré e a sua mãe DD como um contrato de mandato, que pudesse, eventualmente, ser gerador de uma obrigação de prestar contas”. A decisão recorrida não concluiu – é certo – no sentido pretendido pela Apelante, sendo certo que considerou não ser possível concluir pela existência de uma relação de mandato, mas não será legítimo afirmar que omitiu apreciação sobre essa questão. Assim sendo, o máximo que poderia existir era um erro de julgamento, não existindo, contudo, qualquer nulidade por omissão de pronúncia.

Em relação à segunda questão a que alude a Apelante – alegada falta de pronúncia sobre quem procedeu ao levantamento dos certificados de aforro referidos no ponto 6 – também não poderemos ter como verificada a apontada nulidade.

No que diz respeito a esta matéria, importará notar que as questões que devem ser apreciadas na sentença, sob pena de nulidade, são as questões – sejam elas de natureza substantiva ou processual – que as partes submetem à apreciação do tribunal, reclamando a sua apreciação e decisão e que não podem ser confundidas com os argumentos (sejam eles de facto ou de direito) que as partes apresentam e que têm por idóneos para fazer valer a sua pretensão.

Com efeito – e como tem sido amplamente reconhecido[2] – o juiz tem o dever de se pronunciar (sob pena de nulidade da sentença) sobre todas as questões que tenham sido submetidas à sua apreciação, mas já não tem o dever de se pronunciar sobre cada um dos argumentos, afirmações ou considerações que as partes utilizam para fazer valer a sua pretensão. Isso mesmo já dizia Alberto dos Reis[3] no seguinte excerto: “Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão”. No mesmo sentido, dizem José Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto[4]: ““Resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação” não significa considerar todos os argumentos que …as partes tenham deduzido…”.

Ora, o que está em causa, segundo a alegação da Apelante, é a alegada falta de pronúncia sobre determinado facto (quem procedeu ao levantamento dos certificados de aforro) e os factos alegados, individualmente considerados, não correspondem a “questões”, mas sim a argumentos (de natureza factual) que, uma vez provados, irão servir de base à apreciação das questões suscitadas.

Isso não significa, naturalmente, que o juiz não tenha o dever de se pronunciar sobre os factos alegados (para o efeito de os julgar ou não provados) – pelo menos os factos que, tendo em conta as várias soluções plausíveis, poderão ser relevantes para a decisão –, pois é certo que tal dever resulta do disposto no art.º 607.º, nºs 3 e 4 do CPC; no entanto e porque, conforme referimos, esses factos não correspondem a “questões”, mas sim a “argumentos”, o eventual incumprimento desse dever – com a desconsideração de factos que sejam relevantes para a decisão – não determina a nulidade da sentença, podendo apenas configurar um erro de julgamento, seja ao nível da decisão proferida sobre a matéria de facto, seja ao nível da decisão da causa que veio a ser tomada sem a consideração daqueles factos.

No caso em análise, a questão que estava submetida à apreciação do juiz reconduzia-se, no essencial, à questão de saber se a Ré estava (ou não) obrigada a prestar contas da gestão do património dos seus pais e essa questão foi apreciada e foi decidida, não existindo, por isso, qualquer nulidade da sentença por omissão de pronúncia; o facto referido pela Apelante não correspondia, conforme referido, a qualquer “questão” para os efeitos da norma citada e, portanto, a sua desconsideração não interfere com a validade formal da sentença e apenas se poderia reconduzir a vício ou erro de julgamento que poderia, eventualmente, determinar a alteração ou ampliação da matéria de facto. Refira-se, além do mais, que o facto em questão nem sequer foi alegado, sendo certo que nenhum dos articulados apresentados alude ao facto em questão, ou seja, à identidade da pessoa que procedeu ao levantamento dos referidos certificados de aforro.

Não se configura, portanto, qualquer nulidade da sentença por omissão de pronúncia.

A Apelante invoca ainda a nulidade da sentença por alegada “contradição insanável entre a prova produzida e a decisão”, argumentando que, apesar de ter declarado como provado que “A ré efetuou levantamentos e transferências a partir da conta bancária de DD” – conta essa que também é titulada pela Ré e que foi aberta com fundos provenientes de depósitos pertencentes, em parte, à herança de CC –, a sentença recorrida não condenou a Ré a prestar contas de tais levantamentos.

Apesar de aludir à alínea d) do n.º 1 do citado art.º 615.º (que, manifestamente, não se reporta à situação descrita), a Apelante terá pretendido reportar-se à alínea c), onde se determina que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.

É certo, no entanto, que tal nulidade também não se verifica.

 A oposição a que alude a referida disposição legal – geradora da dita nulidade – é uma oposição ou contradição entre os fundamentos e a decisão e reporta-se à situação em que os fundamentos invocados conduzem, em termos lógicos, a uma decisão diferente daquela que ali foi proferida, de tal forma que seja possível afirmar a existência de um vício ou erro lógico no raciocínio do julgador. Como afirma Cardona Ferreira, in, Guia de Recursos em Processo Civil, o Novo Regime Recursório Civil, 4ª. Ed., pág. 56, «A hipótese da alínea c) reporta-se ao processo lógico de raciocínio e não a opção voluntária decisória, ou seja, jurídico-processualmente, nulidade não é o mesmo que erro de julgamento».

É evidente que, no caso em análise, não se verifica essa situação, pois é certo que nada se disse na fundamentação que apontasse para uma decisão que não fosse a decisão que foi efectivamente proferida.

O que resulta da alegação da Apelante é que, tendo resultado provado que a Ré efetuou levantamentos e transferências a partir da conta bancária de DD, e uma vez que essa conta também era titulada pela Ré e havia sido aberta com fundos provenientes de depósitos pertencentes, em parte, à herança de CC, a Ré deveria ter sido condenada a prestar contas desses levantamentos. Mas, o que isso traduz é um erro de julgamento; ou seja, o que a Apelante diz – com a sua argumentação – é que a sentença recorrida errou na apreciação que fez da matéria de facto e nas consequências jurídicas que dela retirou à luz das normas aplicáveis, porque, em face desses factos, deveria ter condenado a Ré a prestar contas. Estaria em causa, portanto, um erro de julgamento e não um vício formal que determinasse a nulidade da sentença; a decisão proferida foi – claramente – o resultado de uma opção voluntária do julgador em face das consequências jurídicas que retirou da matéria de facto provada e das normas jurídicas aplicáveis, sem que se evidencie qualquer contradição resultante de vício ou erro lógico no raciocínio do julgador que seja susceptível de afectar a validade formal da sentença e determinar a sua nulidade.

Não se configura, portanto, a apontada nulidade da sentença.

Ainda que o tenha qualificado (erradamente) como nulidade da sentença, o que está subjacente à alegação da Apelante é a invocação de um erro de julgamento que consideramos incluído no objecto do recurso e que, como tal, se impõe apreciar.

Tendo em conta a alegação constante da alínea c) das conclusões das alegações, considera a Apelante que, tendo resultado provado que a Ré efectuou levantamentos e transferências a partir da conta bancária de DD, e uma vez que essa conta também era titulada pela Ré e havia sido aberta com fundos provenientes de depósitos pertencentes, em parte, à herança de CC, a Ré deveria ter sido condenada a prestar contas desses levantamentos.

Está em causa, portanto, o segmento da decisão que não reconheceu a obrigação da Ré de prestar contas à Autora da administração do património de CC e de DD, no período de 20 de Novembro de 2014 (data do óbito de CC) a 6 de Dezembro de 2020 (dia anterior ao óbito de DD) e que, em consequência, a absolveu desse pedido.

Importa, portanto, saber se a Ré está obrigada a prestar contas com referência a esse período (sendo certo que tal obrigação foi reconhecida em relação ao período posterior ao óbito de DD).

E, adiantando a resposta, pensamos que sim.

Não existindo nenhuma disposição legal que, de forma genérica, determine quando é que uma pessoa tem a obrigação de prestar contas a outrem – existindo apenas diversas normas que, de forma casuística, estabelecem essa obrigação – poder-se-á, no entanto, estabelecer como princípio geral (de algum modo consignado no art.º 941.º do CPC) que quem administra bens ou interesses alheios está obrigado a prestar contas da sua administração ao titular desses bens ou interesses[5].

Ora, resultando provado que a Ré movimentava efectivamente a conta aforro e a conta na Banco 1... de que era titular DD (contas que, ao que tudo indica, continham fundos pertencentes à herança aberta por óbito de CC), o que fazia mediante autorização que por esta lhe havia sido concedida (fosse mediante cláusula de movimentação a seu favor ou fosse mediante a entrega do respectivo cartão bancário e respectivos códigos), pensamos ser de concluir que, estava, de facto, a administrar bens e interesses alheios e, portanto, estava obrigada a prestar contas dessa administração/movimentação à titular da conta, dando conta dos movimentos/levantamentos efectuados e da utilização dada aos valores monetários levantados.

Não compartilhamos, portanto, das dúvidas e da posição assumida pela decisão recorrida quando fala em ausência de prova no que se refere à gestão pela Ré das contas de DD, quando diz que não é possível afirmar que não tenha sido DD a realizar os movimentos bancários ou que não tivesse dado ordens para o efeito, já que resultou provado que esta geria a sua conta bancária, pese embora o auxílio que dispunha para o efeito (facto provado 6). O que sabemos – e temos como certo (na medida em que resultou provado) – é que a Ré movimentou, com a autorização da sua mãe, uma conta que não lhe pertencia (estava na titularidade da mãe), dela fazendo levantamentos e transferências, e isso basta, a nosso ver, para concluir que a Ré estava, de facto, a administrar essa conta (alheia) e que, como tal, estava obrigada a prestar contas à titular da conta que a encarregou e autorizou a fazer essa gestão/administração.

Refira-se que, ao contrário do que resulta da contestação da Ré, a sua obrigação de prestar contas não assenta no exercício de funções de cabeça de casal relativamente à herança aberta por óbito de CC (tendo em conta que não temos notícia de que tais funções tenham sido exercidas pela Ré), mas sim no acordo estabelecido entre a Ré e a sua mãe (DD) – e na subsequente relação que entre elas se estabeleceu – por via do qual esta (em seu nome pessoal e na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito do seu marido) autorizou a Ré a movimentar as contas (que estavam na sua titularidade), encarregando-se de proceder a levantamentos e pagamentos com os valores aí existentes. E porque assim é, era à sua mãe – e não aos herdeiros do referido CC – que a Ré estava obrigada a prestar contas, sem prejuízo – como veremos – de as dever prestar aos herdeiros por não ter sido alegado e provado que as tenhas prestado à mãe em vida desta.

Estando a Ré obrigada – como se concluiu – a prestar contas à sua mãe, sobre ela recaía o ónus de provar que havia cumprido essa obrigação, dando conta à mãe (em vida desta, naturalmente) dos movimentos/levantamentos efectuados e prestando-lhe toda a informação relevante no que toca, designadamente, à utilização dada aos valores monetários levantados.

Não tendo sido alegado e provado que a Ré tivesse cumprido essa obrigação em vida da sua mãe, impor-se-á concluir que o direito de exigir a prestação de contas se transferiu para os respectivos herdeiros, uma vez que está em causa uma relação jurídica de natureza patrimonial que, como tal e conforme se diz no Acórdão da Relação do Porto de 23/01/2023[6], “...pode ser objeto de sucessão, transmitindo-se, enquanto obrigação, aos herdeiros do mandatário, e, enquanto direito, aos herdeiros do mandante - artº 2024º, do CC”.

Importa, portanto, em face do exposto, revogar a decisão recorrida na parte em que não reconheceu a obrigação da Ré de prestar contas (à Autora) da administração do património de CC e de DD, no período de 20 de Novembro de 2014 a 6 de Dezembro de 2020, reconhecendo-se e determinando-se que a Ré está obrigada a prestar contas à Autora relativamente à administração das contas que estavam na titularidade de DD no período compreendido entre 20/11/2014 a 06/12/2020.


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V.
Pelo exposto, concede-se provimento ao presente recurso e, em consequência, decide-se revogar a decisão recorrida na parte em que não reconheceu a obrigação da Ré de prestar contas (à Autora) da administração do património de CC e de DD, no período de 20 de Novembro de 2014 a 6 de Dezembro de 2020, reconhecendo-se e determinando-se que a Ré está obrigada a prestar contas à Autora relativamente à administração das contas que estavam na titularidade de DD, no período compreendido entre 20/11/2014 a 06/12/2020, devendo ser, oportunamente, notificada para prestar essas contas nos termos previstos no n.º 5 do art.º 942.º do CPC.

Custas a cargo da Apelada.
Notifique.

                              Coimbra,

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                                (José Avelino Gonçalves)

                                                      (Paulo Correia)


[1] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2.ª edição Revista e Actualizada, pág. 91.
[2] Cfr. designadamente, o Acórdão do STJ de 04/06/2019, proferido no processo n.º 65/15.0 T8BJA.E1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt. e demais jurisprudência aí citada.
[3] Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 143.
[4] Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2.º, 2.ª edição, pág. 680.
[5] Cfr. Alberto dos Reis, "Processos Especiais", Vol. I, pág. 303.  
[6] Proferido no processo n.º 6611/21.3T8VNG.P1, disponível em http://www.dgsi.pt.