INEPTIDÃO DO RECURSO
AUSÊNCIA DE CAUSA DE PEDIR
FUNDAMENTAÇÃO
CONCLUSÕES
Sumário

I – O pedido de revogação da decisão recorrida tem de ser fundamentado, consistindo a causa de pedir de um recurso na ilegalidade por violação de uma norma material ou processual (erro de direito) ou uma injustiça em matéria de facto (erro de facto).
II – A simples manifestação de discordância com o decidido, desacompanhada de qualquer motivação – explicitação dos razões de discordância e das normas jurídicas violadas e de qual o sentido que lhes deve ser atribuído – importará a ineptidão do recurso por ausência de causa de pedir.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Processo nº 276/24.8T8VFX.C1 – Apelação

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: Helena Gomes Melo

2º Adjunto: Maria Catarina Gonçalves

                                                                                               

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

AA instaurou o presente processo especial de insolvência contra a sociedade A...,

Alegando, em síntese,

em 1996, o Requerente celebrou um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel, com a sociedade B..., Ld.ª;

a referida sociedade veio a transmitir a sua posição contratual para o requerido;

o requerido ficou de realizar a escritura definitiva, pois já foram pagos os 70.000,00€;

o requerente foi questionando o requerido sobre a realização do contrato definitivo, mas sem sucesso;

ultimamente, o requerente tem ouvido dizer que o requerido vem atrasando pagamentos, que tem alienado património, que tem vários processos crime a correr contra si e alguns processos executivos;

o requerente sabe que o requerido tem outros credores a reclamar créditos em tribunal, desconhecendo, porém, se existe penhora sobre contas bancárias;

ao que o requerente sabe, o requerido não possui bens livres de ónus ou encargos, ou qualquer património penhorável, capaz de pagar o seu crédito;

consequentemente, não existe qualquer perspetiva do requerido vir a cumprir com as suas obrigações.


*

 

 

Pelo juiz a quo foi proferido Despacho a indeferir liminarmente o pedido de declaração de insolvência formulado pelo requerente, com os seguintes fundamentos:

a) face aos documentos em que faz assentar a sua posição, o requerente não é credor do requerido;

b) dos factos por si alegados não resulta que o requerido se encontre impossibilitado de cumprir pontualmente as suas obrigações.


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Inconformado com tal decisão, o requerente dela interpõe recurso de apelação, com as seguintes alegações:

Fundamentos do Recurso

1. O requerente apresentou-se pedido de insolvência

2. O recorrente fez prova da existência do débito

3. O recorrente demonstrou os contornos do negócio

4. E caso o tribunal recorrido considerasse a peça processual não estar completa deveria ter pedido algo ao recorrente e não o fez

5. O principio da cooperação é reciproco

6. O MM Juiz não se pronunciou sobre esse pedido nem o realizou

7. E crê a recorrente que o devia fazer

8. Antes proferiu a decisão que se recorrer

9. E que deixa mais uma vez a recorrente descrente da justiça

10. Pois olvida-se o que é de facto relevante

11. A decisão proferida não deveria ter ocorrido

12. Donde e salvo opinião em contrário estão devidamente preenchidos os requisitos para que seja proferida a insolvência requerida pelo recorrente

13. Ou se não estivesse devia-se ter dado oportunidade ao requerente de poder dizer alguma coisa mais

14. O recorrente é quem paga o empréstimo do banco se isso não é suficiente para demonstrar a falta de liquidez do requerido

15. E o incumprimento generalizado

16. O que será então

Concluindo a sua motivação, com as seguintes

Conclusões:

1. O despacho recorrido viola os princípios do CIRE.

2. Pois o recorrente não foi contactado para corrigir nada na P.I.

3. Existe gravíssima violação da cooperação dos direitos processuais.

4. A recorrente nem diretamente nem indiretamente disse, outorgou ou afirmou documento que fundamente a decisão de que se recorre.

8. E como tal recorre porque considera a decisão proferida injusta e deve ser alterada.

Nestes termos e nos demais de direito, requer-se a V. Exa que seja revogada a decisão recorrida e deverá os autos prosseguirem.


*
Citado o requerido para os termos do recurso e da causa, ao abrigo do disposto no artigo 641º, nº7, do CPC, o mesmo nada veio dizer.
Dispensados os vistos legais, nos termos do nº 4 do artigo 657º CPC, há que decidir.
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II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., arts. 635º, nº4, e 639º, do Novo Código de Processo Civil, a questões a decidir, seriam as seguintes:
1. O Apelante fez prova do seu débito – ineptidão do recurso por ausência de causa de pedir.
2. Se o tribunal considerasse que a peça processual não estava completa, deveria ter convidado o requerente a corrigir a P.I. – ineptidão do recurso por insuficiência da causa de pedir
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O Requerente/Apelante veio requerer a declaração de insolvência do requerido, alegando ser titular de um crédito de 70.000 € sobre o requerido, por incumprimento de um contrato promessa de compra e venda que celebrou com B..., Lda., cuja posição contratual teria sido transferida para o aqui requerido.

O tribunal a quo veio a indeferir liminarmente o Requerimento inicial, considerando que:

a) dos documentos por si juntos para sustentar tal posição, resulta que o requerente não é credor do requerido:

“No caso em apreço, o requerente alega que é credor do requerido, pelo montante de 70.000,00€, em virtude de ter já efetuado a entrega de tal quantia em cumprimento de um contrato-promessa que celebrou, em 1996, com a empresa B..., Ld.ª, e que esta, entretanto, transmitiu a sua posição contratual para o ora requerido. E acrescenta que nunca foi celebrado consigo o contrato prometido e que o requerido é o atual proprietário da fração autónoma objeto do contrato-promessa.

Ora, tendo em consideração, desde logo, os documentos que o próprio requerente apresentou para comprovar a factualidade que alega, verifica-se que a sociedade B..., Ld.ª, não transmitiu para o requerido qualquer posição contratual no contrato-promessa em referência, nem sequer transmitiu a titularidade das quotas que compõem o seu capital social, uma vez que, por contrato de cessão de quotas celebrado em 02.03.2012, os anteriores sócios e gerentes de tal empresa cederam as suas quotas a BB (se bem que, naquele ato, representado pelo requerido).

Tal facto, em face da narrativa fáctica vertida na petição inicial, permite concluir que o requerente não é credor do requerido, não tendo o direito de exigir deste a realização da prestação alegada de 70.000,00€.

Para mais, os documentos apresentados referentes a alegados pagamentos efetuados, respeitam a terceiras pessoas (transferência bancária efetuada por uma sociedade de nome C.... UNIPESSOAL, LD.ª; e depósito em numerário a favor de CC.

b) dos factos por si alegados não resulta que o requerido se encontre impossibilitado de cumprir pontualmente as suas obrigações:

“Mas, mesmo que assim não se entendesse, sempre se verifica que o requerente alega que tem ouvido dizer que o requerido vem atrasando pagamentos, que tem alienado património, que tem vários processos crime a correr contra si e alguns processos executivos, para além de que, ao que sabe, também não possui bens livres de ónus ou encargos, ou qualquer património penhorável, capaz de pagar o seu crédito.

Ora, estes factos não bastam para que possa ser decretada a insolvência do requerido.

(…)

É certo que de acordo com disposto no artigo 27.º, n.º 2, do CIRE, o juiz deve conceder ao Autor a possibilidade de sanar os vícios da petição, nomeadamente a deficiente alegação dos factos que poderão integrar a causa de insolvência em questão, convidando-o a aperfeiçoar o respetivo articulado.

No entanto, este convite revela-se inútil nos casos, como o presente, em que a falta de alegação dos pressupostos que legitimam a apresentação do pedido de declaração de insolvência resulta, não de insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, mas do desconhecimento, pelo Autor, dos factos imprescindíveis para que o pedido de insolvência possa proceder, ou seja, desconhecimento da suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas por parte do requerido e que o montante da sua dívida já vencida revela a impossibilidade dos meios materiais para aquele a poder solver.”

Da conjugação do alegado na sua motivação de recurso e nas respetivas conclusões, retiramos que o Apelante pede a revogação da decisão recorrida, assumindo as seguintes discordâncias com os fundamentos em que o tribunal baseou o indeferimento liminar da petição inicial:

1. alegando genérica, conclusivamente e, tão só, que “fez prova da existência do débito” e que “demostrou os contornos do negócio”,

2. e ainda que, se o tribunal considerasse que “a peça processual não estava completa”, devia ter convidado o requerente a completá-la.

O pedido de revogação de decisão recorrida tem de ser fundamentado, consistindo a causa de pedir de um recurso a ilegalidade por violação de uma norma material ou processual (erro de direito) ou uma injustiça em matéria de facto (erro de facto)[1].

E no artigo 639º do CPC são concretizados os requisitos formais a que tal fundamentação se encontra sujeita. O requerimento de interposição de recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, na qual o recorrente conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão, sendo que, versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar as normas jurídicas violadas, o sentido das mesmas e, em caso de erro na determinação da norma aplicável, qual a norma que, no seu entendimento deveria ser aplicada (artigos 637º, nº2 e 639º, nº2, do Código de Processo Civil).

As alegações de recurso dividem-se, assim, em duas partes: a motivação, na qual o recorrente “enuncia especificamente os fundamentos do recurso” e as conclusões, “em que o recorrente resume as razões do pedido[2][1] e que definem o objeto do recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (nº 4 do art. 639º do CPC).

João Aveiro Pereira faz a seguinte apreciação do conteúdo dos ónus estruturais de alegação e de formulação de conclusões a que o recorrente se encontra sujeito:

“Interposto recurso em processo civil, o recorrente fica automaticamente sujeito a dois ónus. O primeiro ónus é o de alegar, no cumprimento do qual se espera que o interessado analise e critique a decisão recorrida, refute as incorreções ou omissões de que, na sua ótica, ela enferma, argumentando e postulando as razões de direito e de facto da sua divergência em relação ao julgado. O segundo ónus é o de finalizar essa peça, denominada alegações, com a formulação sintética de conclusões em que o recorrente resuma os fundamentos que desenvolveu no corpo alegatório e pelos quais pretende que o tribunal de recurso altere ou anule a decisão posta em causa. Além destes, existe ainda um ónus de especificação de cada um dos pomos da discórdia do recorrente com a decisão recorrida, seja quanto às normas jurídicas e à sua interpretação, seja a respeito dos factos que considera incorretamente julgados e dos meios de prova que impunham uma decisão diferente.[3]

Sendo as conclusões um resumo, obvia e logicamente pressupõem uma peça anterior que contenha o desenvolvimento do que se resume, no caso a tese que o recorrente vem defender. As conclusões são um apanhado conciso de quanto se desenvolveu no corpo da motivação.

No caso em apreço, não só, o Apelante não cumpre os ónus de alegação relativamente às conclusões de recurso, previstos no artigo 639º (a sua primeira razão de discordância nem sequer é levada às conclusões), como, inclusivamente, ao nível da motivação, as suas alegações não passam de meras manifestações de discordância com o decidido, sem que explicite e concretize quais os concretos fundamentos pelos quais, no seu entender, o tribunal errou ou devia ter concluído de modo diverso, nomeadamente qual, ou quais, as normas jurídicas violadas.

Não lhe basta afirmar que é detentor de um crédito e logrou provar a sua prova – tal afirmação não passa de uma mera opinião conclusiva –, sendo necessário alegar quais as razões que o levam a discordar da apreciação a tal respeito efetuada pelo tribunal recorrido.

Assim como, tendo o juiz a quo considerado que os factos alegados no requerimento inicial não são suficientes para preencher qualquer um dos factos índices enunciados no nº1 do art. 20 CIRE, e que a tal insuficiência não é de aplicar o convite ao aperfeiçoamento previsto no nº2 do art. 27º do CIRE, não lhe basta alegar que não concorda, tem de dizer porquê, nomeadamente qual o sentido que deve ser atribuído a tal norma, ou se tal convite se impunha por força de qualquer outra norma.

No caso em apreço, não se coloca, sequer, a hipótese de convite à correção das conclusões, nos termos do nº 3 do artigo 639º[4], uma vez que as deficiências se situam, desde logo, em momento anterior, ao nível da própria motivação do recurso, na qual não há qualquer explicitação ou concretização das razões pelas quais, no entender do Apelante, a decisão do tribunal a quo conterá algum erro de julgamento.

Como sustenta Rui Pinto, “Uma falta absoluta de alegações consiste na ausência efetiva de afirmações com uma funcionalidade demonstrativa, enquanto que uma falta de conclusões consiste na ausência de afirmações consequentes daquelas mesmas. Em suma: por qualquer destas razões o requerimento de recurso não contém fundamentos, à semelhança de uma petição inepta por falta de causa de pedir[5].

Concluindo, o recurso interposto pelo Apelante, é de considerar inepto por ausência de causa de pedir, nos termos do artigo 186º, nº2, al. a) do CPC, nada havendo a apreciar.

A Apelação é de improceder, sem outras considerações.


*
IV – DECISÃO
 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas a suportar pelo Apelante.                   

                                                  Coimbra, 04 de junho de 2024

V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.

(…).


[1] Rui Pinto, Manual do Recurso Civil, Vol. I, AAFDL, p. 201.
[2] Nas palavras de Alberto dos Reis, “as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação” – Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, Lda., pág. 359.
[3] “O ónus de concluir nas alegações de recurso em processo civil”, disponível in https://trl.mj.pt/wp-content/uploads/2022/09/Joao-Aveiro.pdf
[4] No sentido de que, quanto ao conteúdo mínimo que deve ser respeitado, a lei apenas contém solução expressa relativamente ao segmento das conclusões, a tal se circunscrevendo também a possibilidade de ser admitido despacho de aperfeiçoamento, se pronuncia, António Abrantes Geraldes, “Recursos em Processo Civil”, 7ª ed., Almedina, p. 182.
[5] Obra citada, p. 294.