INVENTÁRIO
ABERTURA DE LICITAÇÕES
VENDA EXECUTIVA DOS BENS DA HERANÇA
VALOR DE ADJUDICAÇÃO
Sumário

I – A venda executiva dos bens da herança, enquanto meio de composição dos quinhões, apenas se encontra prevista no caso de acordo dos interessados, por unanimidade e com a concordância do ministério publico se tiver intervenção como parte principal (artigo 1112º, nº 2, al. c) CPC).
II – Com a abertura das licitações fica definitivamente fixado o valor dos bens constantes da relação de bens, pelo que a adjudicação dos mesmos a algum herdeiro, por valor inferior, só pode ocorrer com o acordo unânime dos restantes interessados.
III – Na ausência de acordo entre os interessados sobre a composição dos quinhões, e consideradas desertas as licitações relativamente a todos os bens da herança, tais bens serão adjudicados aos interessados em conformidade com os critérios previstos no artigo 1117º do CPC.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Processo nº 133/21.0T8SAT-A.C1 – Apelação

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: Maria Catarina Gonçalves

2º Adjunto: Helena Gomes Melo

                                                                                               

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

Nos presentes autos de inventário para partilha da herança por óbito do falecido casal, AA e BB, requerido pela cabeça de casal, CC, e em que são herdeiros a requerente e DD, filhos dos inventariados,

Foi proferido despacho de saneamento do processo, com decisão sobre o modo de proceder à partilha e designação de Conferência de interessados, nos termos do artigo 1110º do CPC.

Iniciada a Conferência de Interessados, e requerida pela Cabeça de casal a avaliação de todas as verbas da relação de bens, foi determinada a avaliação dos bens por um perito, nos termos do artigo 1114º CPC.

Realizada tal avaliação, foi retomada a Conferência de Interessados, que teve lugar no dia 08-01-2024, constando da respetiva ata:

- pelo juiz a quo foi decidido que, na falta de impugnação ao relatório de avaliação dos bens, considerava os valores ali indicados relativamente a todas as verbas;

- não houve possibilidade de acordo quanto à composição dos quinhões;

- na ausência de acordo entre os interessados, procedeu-se à abertura de licitações, sem que qualquer interessado tenha licitado em alguma das verbas;

- o mandatário do interessado DD, pediu a adjudicação das verbas nºs. 1, 2, 3 e 4, por valor inferior ao fixado pelo tribunal;

- face à oposição da requerente, pelo juiz a quo foi proferido Despacho, que culminou com a seguinte decisão:

Concluindo, na falta de acordo dos interessados para uma nova alteração do valor dos bens, o valor da avaliação e bem assim os valores chegados na apresente conferência constituiu a base de partida das licitações.

Deverão considerar-se as licitações desertas, se não for suscitado a abertura de licitações, nestes termos agora definidos.

Em face do exposto, as licitações serão consideradas desertas, uma vez que as partes nada vieram arguir em face do ora decidido ou licitar nos termos agora definidos, notificando o Tribunal as partes para em 10 dias virem dar conta acerca das modalidades de venda e preços mínimos a propor, uma vez que poderá neste inventário proceder-se à venda executiva nos termos do 549º, 2, do CPC.

Notifique.”


*

Não se conformado com tal decisão, o interessado DD vem dela interpor recurso de Apelação, terminando as suas alegações, com as seguintes conclusões:

 1 – Em processo Judicial de inventario, só os interessados diretos na partilha podem licitar nos bens que compõem a relação de bens.

2- Não tem suporte legal remeter o processo de licitação dos bens que compõem a relação de bens para venda aberta a terceiros se algum dos interessados não concordar.

3- O interessado na partilha não pode abster-se de licitar apenas porque o valor das propostas existentes é inferior ao valor da avaliação que ele próprio promoveu e suportou no seu exclusivo interesse.

4- No caso o recorrente foi o único que licitou nas verbas que constam da relação de bens, não tendo a cc apresentado melhor proposta, pelo que devem as mesmas ser-lhe adjudicadas.

5º- o valor de avaliação das verbas que compõem a relação de bens não tem qualquer utilidade na limitação do valor das propostas a submeter à conferencia de interessados, mormente quando o interessado declara não pretender licitar.

Pretende-se assim violadas as normas previstas nos artigos 1113º do Código de Processo Civil, e à contrario o artigo 549 nº 1 e 2 do mesmo código.

Termos em que

Sempre com o douto suprimento de Vs:Exas deverá o presente recurso ser julgado procedente e as verbas constantes da relação de bens serem adjudicadas ao recorrente, repondo-se a Justiça do caso concreto.


*

A Requerente apresentou contra-alegações, no sentido da improcedência do recurso
Dispensados que foram os vistos legais, nos termos previstos no artigo 657º, nº4, in fine, do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Inviabilidade da remessa da licitação para uma venda executiva aberta a terceiros.
2. Se, na ausência de licitações pelo valor atribuído aos bens na avaliação, deverão ser adjudicadas ao interessado/Apelante, pelo valor por si oferecido.
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Inviabilidade da remessa da licitação para uma venda executiva aberta a terceiros

O Apelante manifesta a sua discordância com a decisão recorrida que, face à inexistência de licitações, determinou a venda executiva dos bens da herança, alegando não ter suporte legal remeter o processo de licitação dos bens que compõem a relação de bens para venda aberta a terceiros se algum dos interessados não concordar.

 A conferência de interessados destina-se, entre outros fins, a designar as verbas que vão compor os quinhões de cada um dos interessados.

Depois de, no nº1, do artigo 1111º do Código de Processo Civil, se consagrar o dever de o juiz “incentivar os interessados a procurar uma solução amigável para a partilha”, dispõe o seu nº2:

“2. Os Interessados podem acordar, por unanimidade e com a concordância do Ministério Publico que tenha intervenção principal, que a composição dos quinhões se realize por algum dos modos seguintes:

a) Designação das verbas que vão compor, no todo ou em parte, o quinhão de cada um dos interessados e os valores por que são adjudicados;

b) Indicação das verbas ou lotes e respetivos valores, para que, no todo ou em parte, sejam objeto de sorteio entre todos os interessados;

c) Acordo na venda total ou parcial dos bens da herança e na distribuição do produto da alienação pelos diversos interessados.

Já para a falta de acordo entre os interessados, rege o artigo 1113º, sob a epigrafe, “Licitações”:

1. Na falta de acordo entre os interessados nos termos dos artigos anteriores, procede-se na própria conferência de interessados, à abertura de licitação entre eles.

2. Cada verba deve ser licitada separadamente, salvo se todos concordarem ou o juiz determinar na formação de lotes, com vista a possibilitar uma repartição tendencialmente igualitária do acervo hereditário.

3. A licitação tem a estrutura de uma arrematação, sendo apenas admitidos a votar os interessados diretos na partilha, salvos os casos em que, nos termos da lei, também devam ser admitidos os donatários e os legatários.

(…)

5. Vários interessados podem, por acordo, licitar a mesma verba ou lote para lhes ser adjudicado em comum na partilha”.

Por fim, dispõe o artigo 1117º, sob a epígrafe, “Composição igualitária de quinhões de não licitantes”:

1. Na falta de acordo sobre a composição dos quinhões dos interessados não conferentes ou não licitantes, o juiz determina a formação de lotes que assegurem, quanto possível, que a todos os interessados são atribuídos bens da mesma espécie e natureza dos doados ou licitados ou, procedendo-se depois ao sorteio entre os co-herdeiros.

2.  Se não for possível a formação de lotes nos termos do numero anterior, por não haver bens da mesma espécie e natureza dos doados ou licitados, os não conferentes ou não licitantes são inteirados:

a) mediante sorteio entre vários lotes, devendo o juiz, ao constituí-los, procurar assegurar o maior equilíbrio possível entre os mesmos;

b) por adjudicação em comum, pelo juiz, dos bens sobrantes aos interessados, na proporção do valor que lhes falta para preenchimento dos seus quinhões.

A venda executiva de um, de alguns ou de todos, os bens da herança, só é possível por acordo, exigindo a lei a unanimidade de todos os interessados, sem que se encontre prevista a possibilidade de a mesma ser determinada pelo tribunal.

Em caso de ausência de acordo, os não licitantes serão inteirados de bens da herança:

a) mediante a formação de lotes, por sorteio, caso esta solução permita uma distribuição igualitária de bens da herança, ou, não sendo possível;

b) a adjudicação aos interessados dos bens da herança, em comum, na proporção das respetivas quotas.

Tal solução sai ainda reforçada pelo disposto no nº artigo 1120º, relativo à elaboração do mapa da partilha, onde se prescreve que, no preenchimento dos quinhões se observam as seguintes regras:

a) os bens licitados são adjudicados ao respetivo licitante e os bens doados ou legados são adjudicados ao respetivo donatário ou legatário;

b) a quota dos não conferentes ou não licitantes é integrada de acordo com o disposto no artigo 1117º.

O artigo 1117º dispõe sobre a composição de quinhões com os bens sobrantes, em particular, com aqueles sobre os quais nenhum interessado tiver licitado.

O inventário destina-se a pôr termo à comunhão hereditária, mediante a repartição dos bens da herança pelos interessados, na proporção das suas quotas hereditárias, determinando-se quais os bens que, em concreto, hão de preencher o quinhão de cada interessado.

“Ao contrário do que se encontrava estatuído no art.1374º, al. b), 2ª parte, CPC/61, não se estabeleceu que, perante a atribuição aos não conferentes de bens de natureza diferente dos doados ou licitados, estes gozam da faculdade de exigir a composição em dinheiro dos seus quinhões, realizada através da venda dos bens para obter as quantias pecuniárias necessárias. Entendeu-se que, no contexto da composição final de quinhões hereditários, não constituiu função do inventário proceder a uma liquidação da herança, mas apenas e tão somente partilhar o mais igualitariamente que for possível os bens que integram a comunhão hereditária. Os interessados a que os bens vierem a ser adjudicados poderão, naturalmente, fazer deles o que lhes aprouver[1]”.

Atualmente, a venda executiva no processo de inventário, fora do acordo dos interessados, só se encontra prevista nos termos do artigo 1122º, nº2, como forma de satisfação das tornas a que algum interessado tenha direito:

“2. Depois do trânsito em julgado da sentença homologatória, se houver direito a tornas, os requerentes podem pedir que se proceda, no processo, à venda dos bens adjudicados ao devedor até onde seja necessário para o seu pagamento.”

Mas aqui, encontramo-nos, já não, perante a venda de bens da herança com um eventual intuito de preencher em dinheiro o quinhão de algum interessado, mas da venda de bens que hajam sido adjudicados ao devedor de tornas que tenha incumprido tal dever: “A homologação da partilha transforma o direito dos herdeiros sobre um património indiviso em direitos individualizados em bens determinados[2]”.

Com a sentença homologatória da partilha, dá-se a aquisição do direito real por via sucessória, pelo que esta venda consiste num procedimento executivo enxertado no processo de inventário, e destinado a satisfazer o credor de tornas, pelo produto da venda de um bem da herança adquirido pelo interessado, seguindo-se o regime da venda executiva (art.549º, nº2, CPC)

Como tal, no caso em apreço, a opção tomada no despacho recorrido, de, na ausência de licitações em relação a todos os bens relacionados, determinar a venda executiva de todos eles (supõe-se que, para posterior distribuição dos interessados na proporção dos seus quinhões) não tem qualquer cabimento legal.

2. Se os bens podiam ser adjudicados ao interessado Apelante pelo valor por si oferecido.

Insurge-se ainda o Apelante contra a decisão recorrida, sustentando que os bens lhe deviam ser adjudicados pelo valor por si oferecido, apesar de inferior ao da avaliação, com os seguintes fundamentos:

o interessado na partilha não pode abster-se de licitar apenas porque o valor das propostas existentes é inferior ao valor da avaliação que ele próprio promoveu e suportou no seu exclusivo interesse;

no caso, o recorrente foi o único que licitou nas verbas que constam da relação de bens, não tendo a cabeça de casal apresentado melhor proposta, pelo que devem as mesmas ser-lhe adjudicadas.

Cumpre apreciar

Ao cabeça de casal, aquando da apresentação da relação de bens, incumbe a indicação do valor que atribui a cada um dos bens relacionados, sendo que, se, em geral, deverá corresponder ao valor económico (de mercado), relativamente a certas categorias de bens a atribuição de valor tem de obedecer às regras previstas nas als. a), b) e c), do nº1 do artigo 1098º do CPC[3] (por ex. para os imóveis, corresponderá ao respetivo valor tributário).

O valor assim atribuído pode vir a ser impugnado pelos interessados diretos e pelo Ministério Publico, em reclamação à relação de bens, no âmbito da oposição ao inventário a deduzir no prazo de 30 dias a contar da sua citação, nos termos do artigo 1104º, nº1, al. d), e ainda, posteriormente, por qualquer interessado (direto ou indireto), requerendo a respetiva avaliação, nos termos do artigo 1114º.

A avaliação tem de ser requerida até à abertura das licitações (nº1, do artigo 1114º), sendo que, “o deferimento do requerimento de avaliação suspende as licitações até fixação definitiva do valor dos bens” (nº4, artigo 1114º).

Daqui se retira que, no momento em que se iniciarem as licitações, o valor dos bens tem de estar definitivamente apurado – a abertura das licitações constituiu o termo final para requerer a avaliação; com a abertura das licitações, estão definitivamente resolvidas as questões relativas ao valor a atribuir definitivamente aos bens[4].

Fixado o valor aos bens constantes da relação de bens da herança, por decisão do juiz, após avaliação solicitada por algum interessado ao abrigo do disposto no artigo 1114º do CPC, tal valor só pode vir a ser aumentado pela via das licitações ou por acordo dos interessados.

Após a abertura das licitações, os bens só poderão ser adjudicados por valor inferior a algum interessado, em caso de acordo unânime dos restantes interessados.

 Como tal, nesta parte, a pretensão do Apelante é de improceder.

A apelação será de proceder parcialmente.


*

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a Apelação parcialmente procedente, revogando a decisão recorrida, que, considerando desertas as licitações, determinou que se procedesse à venda executiva dos bens da herança.

Custas a suportar pelos interessados, a final, na proporção dos respetivos quinhões.

                                                                               Coimbra, 04 de junho de 2024


V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
(…).


[1] Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, “O Novo Regime do Processo de Inventário e outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, p. 121.
[2] Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, obra citada, p. 133.
[3] Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, obra citada, p. 66.
[4] Carla Câmara, “O Processo de Inventário Judicial e o Processo de Inventário Notarial”, Almedina, pp. 90 e 95.