CRIME DE FURTO
ACUSAÇÃO
DOLO
ELEMENTO VOLITIVO
ACÇÃO LIVRE
ACÇÃO VOLUNTÁRIA
Sumário


I- Na acusação, na qual é imputada a prática de um crime de furto simples p. e p. pelo artigo 203º, nº 1 do C.Penal, refere-se que “o arguido representou e quis abastecer o veículo automóvel por si conduzido sem pagar o preço do combustível, com o propósito de tornar coisa sua o referido combustível, o que fez, sabendo que o mesmo não lhe pertencia, bem como que atuava contra a vontade do seu dono. Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei e tinha capacidade de se determinar de acordo esse conhecimento”.
II- Os factos descritos na acusação afastam a falta de livre arbítrio no modo de agir do arguido, uma vez que quem representa e quer agir, procede de forma voluntária. Ora, agir voluntariamente, em português, tem o significado de quem assim age procede sem qualquer limitação (física ou moral), ou seja, age por forma livre.
III- Mas mais ainda, na acusação refere-se que o arguido, ao proceder do modo descrito, tinha “capacidade de se determinar de acordo com esse conhecimento”, ou seja, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever ser jurídico, o mesmo é dizer por forma livre.
IV- Logo, o arguido não podia ter sido absolvido com fundamento em que na acusação não está suficientemente descrita, quanto ao tipo subjetivo de ilícito imputado, a liberdade de ação

Texto Integral


Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

1. No Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Criminal de Braga – Juiz ..., no processo abreviado nº 222/23...., em que é arguido AA foi realizada audiência de julgamento, no termo da qual foi proferida sentença gravada, com o seguinte dispositivo (transcrição)[1]:

“Pelo exposto, julga-se a acusação totalmente procedente e, em consequência, decide-se:
a) Absolver o arguido BB pela prática, em ../../2023, de crime de furto simples, p. p pelo art. 203.º n.º 1 do Código Penal.
b) Condenar o arguido BB pela prática, em 04/02/2023 e 19/02/2023, de dois crimes de furto simples, ps. ps pelo art. 203.º n.º 1 do Código Penal., na pena de 150 dias de multa, à taxa de 5.00 €, o que perfaz um total 750.00 €, por cada um dos crimes praticados.
c) Em cúmulo jurídico, condenar o arguido na pena única de 230 dias de multa, à taxa de 5.00 €, o que perfaz um total 1150.00 €.
d) Absolver o arguido do pedido de indemnização civil formulado no apenso A, em 05/06/2023.
d) Condenar o arguido nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs - arts. 513.º, n.º 1 do C.P.P. , 8.º, n.º 9, do R.C.P. e tabela III.
e) Sem custas cíveis - art.º 4.º, n.º 1, al. n), do R.C.P.”

 2. Não se conformando com tal decisão, o Ministério Público dela interpôs recurso, tendo concluído nos seguintes termos (transcrição):
1. No dia 19 de Maio de 2023, o Ministério Público deduziu acusação para julgamento em processo abreviado perante Tribunal Singular contra o arguido AA imputando-lhe a prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de furto, p. e p. pelo artigo 203º, nº 1, do Código Penal, ocorrido no dia ../../2023.
2. Por despacho proferido no dia 13 de Junho de 2023, o Tribunal a quo recebeu a aludida acusação pública e, posteriormente, foi designado o dia 13 de Dezembro de 2023 para realização da respectiva audiência de discussão e julgamento.
3. Sucede que, nesse dia, a Mma. Juiz a quo entendeu absolver o arguido da prática do aludido crime por considerar que o libelo acusatório é manifestamente infundado na medida em que o elemento subjectivo se mostra insuficientemente narrado, uma vez que “ na acusação deduzida, nada se diz quanto à liberdade da ação, sendo facto distinto da intenção de agir.”.
4. Todavia, no caso em apreço, a acusação pública deduzida possui todos os factos necessários à subsunção ao crime de furto imputado ao arguido, encontrando-se todos os elementos, objectivo e subjectivo, deste ilícito penal suficientemente narrados.
5. De facto, resulta do libelo acusatório em questão que no dia ../../2023, “ O arguido representou e quis abastecer o veículo automóvel por si conduzido sem pagar o preço do combustível, com o propósito de tornar coisa sua o referido combustível, o que fez, sabendo que o mesmo não lhe pertencia, bem como que actuava contra a vontade do seu dono. “
6. E que o fez sabendo que “sua conduta era proibida e punida por lei e tinha capacidade de se determinar de acordo com esse conhecimento.”.
7. Ou seja, resulta do libelo acusatório que apropriou-se do combustível pertencente à empresa ofendida sem proceder ao respectivo pagamento, apesar de saber que o mesmo não lhe pertencia e que agia contra a vontade da sua legítima proprietária, por determinação da sua vontade, da sua escolha, dos seus motivos, com determinada intenção, de forma resoluta, da sua decisão, ciente do que fazia, não obstante saber que tal colocaria em causa o património da empresa ofendida, e que ao actuar desse modo estava ciente da censurabilidade da sua conduta, que a mesma não era permitida, que tinha capacidade de se determinar segundo esse conhecimento e que incorria na prática de um crime, estando, por conseguinte, suficientemente descritos os elementos volitivo, intelectual e emocional do dolo.
8. O que vale por dizer que resulta da acusação pública deduzida nos autos que o arguido sabia o que fazia, queria fazê-lo e agiu ciente de que praticou um crime e que tal só poderia ter ocorrido de forma livre, como resulta das regras da experiência comum e do normal acontecer.
9. Veja-se, a propósito, o que ficou decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 28 de Março de 2019, proferido no âmbito do Processo nº 373/15.0JACBR.C1.S1, no qual se decidiu que “I- Ao nível do que a doutrina de referência designa por dolo do tipo expresso na formulação “conhecimento e vontade de realização do tipo subjectivo de ilícito” assume-se uma decomposição em dois “momentos” que são o intelectual e o volitivo.
10. II-Como se extrai da leitura do AFJ 1/2015, não há fórmulas sacramentais sendo possível transmitir o “dolo de culpa” ou “tipo-de-culpa dolosa” de diferentes formas desde que inequivocamente signifique, uma atitude, revelada no facto, de contrariedade ou indiferença do agente perante o dever-ser jurídco-penal.
11. III-Incorre em contradição o Acórdão da Relação na analise semântica que faz do facto 18 dado como provado (“Agiram os referidos arguidos deliberada, voluntária e conscientemente, porquanto sabiam que tas condutas eram proibidas e punidas por lei penal”), pois embora reconheça que não há “fórmulas sacramentais” acaba por “exigir” a costumeira fórmula “agiu livre” alegando que ao gente pode agir de forma consciente e voluntária e, no entanto, a sua conduta não decorrer com liberdade, sugerindo que disso é exemplo uma actuação devida a coacção moral, concluindo pela nulidade contemplada na al. b) do nº 3 do art. 311º do CPP, por falta de descrição na acusação dos elementos subjectivos do crime.
12. IV-Um acto voluntário é um acto que se faz sem constrangimento, sem limitação. E se se age deliberadamente, age-se com o propósito de praticar o acto, com resolução prévia, o que é incompatível com um acto “forçado”, um acto praticado por uma qualquer imposição exógena.
13. V- Agir voluntariamente é agir como se quer, e não por imposição, é agir de um modo livre e agir deliberadamente é agir como se decidiu agir. Por conseguinte, o entendimento que se perfilha é o de que o ponto 18 dos factos provados contém a cabal descrição dos elementos subjectivos do crime de tráfico de estupefaciente de menor gravidade (…)”.
14. Bem como o que recentemente decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão proferido no dia 13 de Outubro de 2022, proferido no âmbito do Processo nº 73/22.5PHAMD.L1.9.
15. E o Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão proferido no dia 19 de Setembro de 2023, no âmbito do Processo Abreviado co o nº 19/23.3PFBRG.
16. Pelo que se entende que o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 14º, 26º e 203º, nº1, todos do Código Penal.
Pelo exposto, deverá ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que analise a prova produzida em audiência de discussão e julgamento e aplique a respectiva sanção.
Vossas Excelências, no entanto, decidirão como for de JUSTIÇA.
3. O recurso foi admitido.
4. O arguido, apesar de notificado, não respondeu ao recurso.
5. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto foi de parecer que na acusação se encontram descritos todos os elementos do dolo incluindo a liberdade de ação, pelo que o recurso merece provimento pelas razões nele expendidas.
6. Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do CPP e não foi apresentada qualquer resposta.
7. Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência

II- FUNDAMENTAÇÃO

1- Objeto do recurso

O âmbito do recurso, conforme jurisprudência corrente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo naturalmente das questões de conhecimento oficioso[2] do tribunal, cfr. artigos 402º, 403º, e 412º, nº 1 do C P Penal.
Assim, e tendo presente o disposto no nº 1 do artigo 412º do C.P.P., face às razões de discordância do recorrente e aos fundamentos da decisão recorrida, temos que a questão a decidir no caso sub judice reconduz-se a saber se, na acusação deduzida pelo Ministério Público do apenso A, está suficientemente descrito, quanto ao tipo subjetivo de ilícito imputado ao arguido, a liberdade de ação. E, em caso afirmativo, quais as ilações daí a retirar.

2. A decisão recorrida

2.1- Na sentença recorrida, no que concerne ao objeto do presente recurso, foram considerados como provados os seguintes factos, os quais correspondem ipsis verbis ao teor da acusação do apenso A (factos extraídos da gravação após a sua audição):
“No dia ../../2023, cerca das 23:27h, na Avenida ..., em ..., o arguido conduzia o veículo automóvel com a matrícula ..-..7-XC.
O arguido conduzia o veículo acima referido e entrou no posto de abastecimento de combustível existente naquela artéria denominado ..., propriedade de EMP01... S.A., tendo aí abastecido o automóvel com 41,64 litros de combustível, no valor de € 67,00 (sessenta e sete euros), após o que saiu com a viatura sem que tenha efetuado o respetivo pagamento.
O arguido representou e quis abastecer o veículo automóvel por si conduzido sem pagar o preço do combustível, com o propósito de tornar coisa sua o referido combustível, o que fez, sabendo que o mesmo não lhe pertencia, bem como que atuava contra a vontade do seu dono.
Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei e tinha capacidade de se determinar de acordo com esse conhecimento”.

2.2- Mais foram considerados como provados na sentença recorrida, os seguintes factos relativos ao processo principal (factos também extraídos da gravação após a sua audição):
No dia ../../2023, por volta das 20h31, o arguido, no veículo ligeiro de passageiros, marca ..., ..., cinzento, de matrícula ..-..7-XC, dirigiu-se ao posto de abastecimento de combustíveis “EMP02...”, sito na EN ...01, em ..., ....
Aí chegado abasteceu o aludido veículo com 35,32 litros de gasóleo, no valor de €: 60,01 (sessenta euros e um cêntimo) e ausentou-se do local sem ter procedido ao respetivo pagamento.
No dia 19 de fevereiro de 2023, por volta das 17h29, o arguido, no mesmo veículo, dirigiu-se novamente ao posto identificado em um.
Aí chegado abasteceu o mencionado veículo com 57,00 litros de gasóleo, no valor de €: 90,00 (noventa euros) e ausentou-se do local sem ter procedido ao respetivo pagamento.
O arguido atuou do modo descrito com o propósito concretizado de fazer seu o aludido combustível, bem sabendo que o mesmo não lhe pertencia e que atuava contra a vontade da legítima dona, EMP02..., SA,.
O arguido atuou de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a suas condutas eram proibidas e punidas por lei, não se coibindo ainda assim de as praticar.
2.3- Foi ainda considerado provado na sentença recorrida ((factos igualmente extraídos da gravação após a sua audição) que:
Não são conhecidos rendimentos ao arguido.
No processo nº 997/21...., Juízo Local Criminal de Braga, Juiz ..., por decisão de 06.09.2021, transitada em julgado em 08.06.2022, o arguido foi condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida, na pena de 100 dias multa, à taxa diária de cinco euros. Esta pena foi posteriormente declarada extinta pelo pagamento.

3. Apreciação do recurso

3.1-  A questão colocada no presente recurso tem que ver com os limites dos poderes do tribunal de julgamento ou, dito por outro modo, com o objeto do processo.
Está em causa a decisão de absolvição do arguido pela prática de um crime de furto simples p. e p. pelo artigo 203º, nº 1 do CP (factos relativos ao apenso A), com fundamento no facto de na acusação não constar que o arguido agiu de forma livre, ou seja, a falta de alegação da liberdade de ação do agente.
No seguimento sobretudo do AFJ nº 1/2015[3], in DR 18 I Série, de 27.01.2015, a jurisprudência tem vindo a defender que “I– Relativamente aos elementos subjectivos do crime, terá de ser expresso na acusação, uma fórmula em que se imputa ao agente o ter actuado de forma livre (isto é, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever ser jurídico), voluntária ou deliberadamente (querendo a realização do facto), conscientemente (isto é, tendo representado na sua consciência todas as circunstâncias do facto) e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei (consciência da proibição como sinónimo de consciência da ilicitude); II- Quando numa acusação (…) esta é omissa quanto a um dos elementos subjetivos do tipo de crime que vem imputados à arguida, ou seja, que a arguida ao agir do modo descrito tinha conhecimento da ilicitude dos factos e que estes eram puníveis pela lei penal, a acusação terá de ser rejeitada, por ser manifestamente infundada.”, cfr. Ac. RL 17.02.2022, processo 148/19.8GDLRS.L1-9, disponível em www.dgsi.pt. No mesmo sentido, vide v.g. Ac. RG de 19.06.2017, processo 430/15.3GEGMR.G1;Ac. RG de 09.03.2020, processo 1435/18.8T9VNF.G1; Ac. RC de 13.09.2017, processo 146/16.3 PCCBR.C1; Ac. RC de 07.03.2018, processo 189/14.1PFCBR.C1; Ac. RL de 10.03.2022, processo 8467/19.7T9LSB.L1-9; Ac. Rl de 17.02.2022, processo 148/19.8GDLRS.L1-9, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
No caso vertente, o fundamento da absolvição do arguido consistiu na circunstância de da acusação nada se dizer sobre a liberdade de agir, o que não permite o preenchimento do elemento subjetivo da infração.
Ora, a atipicidade da conduta imputada terá de resultar claramente do texto da acusação[4]. E, sendo assim, importará indagar se efetivamente do seu texto não constam factos que permitam o preenchimento dos elementos típicos do crime imputado.   
Vejamos, então, se assiste razão ao recorrente.
No âmbito dos presentes autos, o Ministério Público deduziu acusação pública contra o arguido, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto simples p. e p. pelo artigo 203º, nº 1 do Código Penal, com base nos seguintes factos:
“No dia ../../2023, cerca das 23:27h, na Avenida ..., em ..., o arguido conduzia o veículo automóvel com a matrícula ..-..7-XC.
O arguido conduzia o veículo acima referido e entrou no posto de abastecimento de combustível existente naquela artéria denominado ..., propriedade de EMP01... S.A., tendo aí abastecido o automóvel com 41,64 litros de combustível, no valor de € 67,00 (sessenta e sete euros), após o que saiu com a viatura sem que tenha efetuado o respetivo pagamento.
O arguido representou e quis abastecer o veículo automóvel por si conduzido sem pagar o preço do combustível, com o propósito de tornar coisa sua o referido combustível, o que fez, sabendo que o mesmo não lhe pertencia, bem como que atuava contra a vontade do seu dono.
Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei e tinha capacidade de se determinar de acordo com esse conhecimento”.
Assim, a acusação não refere no seu texto, por forma expressa e literal, que o arguido agiu por forma livre, isto é, podendo agir de modo diverso, de acordo com o direito ou o dever ser-jurídico.
É de salientar que o M.P., aqui recorrente, defende, nomeadamente, o seguinte:
“…resulta do libelo acusatório em questão que no dia ../../2023, “ O arguido representou e quis abastecer o veículo automóvel por si conduzido sem pagar o preço do combustível, com o propósito de tornar coisa sua o referido combustível, o que fez, sabendo que o mesmo não lhe pertencia, bem como que actuava contra a vontade do seu dono.“
6. E que o fez sabendo que “sua conduta era proibida e punida por lei e tinha capacidade de se determinar de acordo com esse conhecimento.”.
7. Ou seja, resulta do libelo acusatório que apropriou-se do combustível pertencente à empresa ofendida sem proceder ao respectivo pagamento, apesar de saber que o mesmo não lhe pertencia e que agia contra a vontade da sua legítima proprietária, por determinação da sua vontade, da sua escolha, dos seus motivos, com determinada intenção, de forma resoluta, da sua decisão, ciente do que fazia, não obstante saber que tal colocaria em causa o património da empresa ofendida, e que ao actuar desse modo estava ciente da censurabilidade da sua conduta, que a mesma não era permitida, que tinha capacidade de se determinar segundo esse conhecimento e que incorria na prática de um crime, estando, por conseguinte, suficientemente descritos os elementos volitivo, intelectual e emocional do dolo.
8. O que vale por dizer que resulta da acusação pública deduzida nos autos que o arguido sabia o que fazia, queria fazê-lo e agiu ciente de que praticou um crime e que tal só poderia ter ocorrido de forma livre, como resulta das regras da experiência comum e do normal acontecer.”
Por conseguinte, a questão está em saber se, pese embora a falta de referência expressa, no texto da acusação, considerado em sentido literal, ao facto de o arguido ter procedido por forma livre, traduzido habitualmente na prática judiciárias pela fórmula mais ampla “o arguido agiu de forna voluntária, livre e consciente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei” -   se este este facto poderá ser extraído dos demais dizeres vertidos na acusação.
A resposta a esta questão não poderá deixa de ser afirmativa, porque a acusação é suficiente minuciosa na descrição dos factos constitutivos do elementos (objetivo e  subjetivo) que integra o tipo legal de crime de furto simples que imputa ao arguido.  E ao assim proceder, a atuação livre do arguido decorre como uma consequência lógica, segundo as regras da experiência comum e do normal acontecer, dos factos nela narrados e descritos.
Efetivamente, na acusação, depois de se descreverem os factos objetivos em que se traduz o crime de furto simples, refere-se que “o arguido representou e quis abastecer o veículo automóvel por si conduzido sem pagar o preço do combustível, com o propósito de tornar coisa sua o referido combustível, o que fez, sabendo que o mesmo não lhe pertencia, bem como que atuava contra a vontade do seu dono. Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei e tinha capacidade de se determinar de acordo esse conhecimento”.
Ou seja, segundo os dizeres da acusação, não está em causa a liberdade de atuação do arguido, porque nela se diz, por forma clara e inequívoca, que o arguido representou e quis abastecer o veículo automóvel por si conduzido sem pagar o preço do combustível, com o propósito de tornar coisa sua o referido combustível, o que fez, sabendo que o mesmo não lhe pertencia, bem como que atuava contra a vontade do seu dono.
Os factos descritos na acusação afastam a falta de livre arbítrio no modo de agir do arguido, uma vez que quem representa e quer agir, procede de forma voluntária. Ora, agir voluntariamente, em português, tem o significado de quem assim age procede sem qualquer limitação (física ou moral), ou seja, age por forma livre.
Mas mais ainda, na acusação refere-se que o arguido, ao proceder do modo descrito, tinha “capacidade de se determinar de acordo com esse conhecimento”, ou seja, podendo ele agir de modo diverso, em conformidade com o direito ou o dever ser jurídico, o mesmo é dizer por forma livre.
No caso concreto, em face dos factos imputados, a alegação da falta de liberdade de atuação constituiria um facto impeditivo da atuação voluntária, consciente e censurável da conduta do arguido e com capacidade de se determinar de acordo esse conhecimento ( expressamente alegadas), o mesmo é dizer da sua responsabilidade penal.  
 Isto serve para dizer, aliás de acordo com jurisprudência pacífica, que o artigo 283º, nº 3 al. b) do CPP não impõe, no que concerne à descrição dos factos, a escolha de fórmulas preestabelecidas ou sacramentais, por mais frequentes que sejam utilizadas na prática judiciária. Mais importante do que as palavras usadas, é naturalmente o seu real significado, considerando o pedaço de vida, de que falava o prof. Figueiredo Dias[5], que se pretende submeter a julgamento, e que deve ser narrado sinteticamente por forma a fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena.

Neste sentido, vide, por todos, o Ac. STJ de 28.03.2019, processo 373/15.0JACBR.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt, em que estava em causa o crime de tráfico de produtos estupefacientes, mas cuja argumentação é igualmente válida para ocaso em apreço,  com o seguinte sumário:

“I - Ao nível do que a doutrina de referência designa por dolo do tipo expresso na formulação "conhecimento e vontade de realização do tipo subjectivo de ilícito" assume-se uma decomposição em dois "momentos" que são o intelectual e o volitivo.
II - Como se extrai da leitura do AFJ 1/2015, não há fórmulas sacramentais sendo possível transmitir o "dolo de culpa" ou "tipo-de-culpa dolosa" de diferentes formas desde que inequivocamente signifiquem uma atitude, revelada no facto, de contrariedade ou indiferença do agente perante o dever-ser jurídico-penal.
III - Incorre em contradição o Acórdão da Relação na análise semântica que faz do facto 18 dado como provado (“Agiram os referidos arguidos deliberada, voluntária e conscientemente, porquanto sabiam que tais condutas eram proibidas e punidas pela lei penal”), pois embora reconheça que não há «fórmulas sacramentais» acaba por "exigir" a costumeira fórmula "agiu livre" alegando que o agente pode agir de forma consciente e voluntária e, no entanto, a sua conduta não decorrer com liberdade, sugerindo que disso é exemplo uma actuação devida a coacção moral, concluindo pela nulidade contemplada na al. b) do n.º 3 do art. 311.º do CPP, por falta de descrição na acusação dos elementos subjectivos do crime.
IV - Um acto voluntário é um acto que se faz sem constrangimento, sem limitação. E se se age deliberadamente, age-se com o propósito de praticar o acto, com resolução prévia, o que é incompatível com um acto "forçado", um acto praticado por uma qualquer imposição exógena.
V - Agir voluntariamente é agir como se quer, e não por imposição, é agir de um modo livre e agir deliberadamente é agir como se decidiu agir. Por conseguinte, o entendimento que se perfilha é o de que o ponto 18 dos factos provados contém a cabal descrição dos elementos subjectivos do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25.º, al. a) do DL 15/93, de 22-01, reproduzindo o teor da acusação.”

No mesmo sentido, vide ainda v.g., os seguintes arestos:
- Ac. RL de 13.10.2022, processo, 73/22.5PHAMD.L1-9, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário pode ler-se, nomeadamente, que “I. A exigência legal, dirigida à acusação, da narração dos elementos subjectivos do ilícito criminal, que traduzem a atitude interior do agente na sua relação com o facto material, por integradores da parte substantiva da acusação, não impõem uma fórmula semântica única para a sua descrição, sendo o Ministério Público livre de escolher os enunciados linguísticos de que faz utilização, na acusação, para alcançar a descrição dos elementos do tipo objectivo e subjectivo do crime imputado; (…) III. Não há necessidade de afirmar que actuou de forma “livre” e “voluntária”, porquanto os actos materiais descritos como tendo sido executados pelo arguido não se mostram circunstanciados em contexto de qualquer coação ou ausência de livre arbitrio e muito menos poderão ser entendidos como resultado de um acto “reflexo” ou “espasmo corporal”, que não sendo impossíveis, são dificilmente concebíveis no acto de condução de veículo, entendido como acto de dirigir e controlar o veículo, fazendo-o deslocar-se.”.
- Ac. RG de 23.01.2023, processo 5330/20.2T9BRG.G1, disponível em www.dgsi.pt no qual se concluiu no sentido de que “A imputada forma de atuação só poderia ter ocorrido livre e deliberadamente, como se extrai da narração vertida na acusação ao escrever-se que o arguido dirigiu as expressões ao assistente, embora por interposta pessoa, com o propósito, a intenção, a vontade, de provocar neste medo e inquietação, desiderato que alcançou, consciente de que ao assim proceder assumia uma conduta censurável, proibida (ilícita) e punida por lei (criminalmente punida).”.
- Ac. RG de 06.02.2024, processo 647/21.1PCBRG.G1, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário, na parte que releva para o caso em apreço, consta :
II- Se a arguida pretendeu, se quis lesar o assistente na sua honra e consideração social é porque tinha o poder de decidir por si própria, de agir de forma livre, não monopolizada, independente.
- Ac. RG de 20.02.2024, processo 55/23.0PTBRG.G1, disponível em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário:
I- “Um acto voluntário é um acto que se faz sem constrangimento, sem limitação. E se se age deliberadamente, age-se com o propósito de praticar o acto, com resolução prévia, o que é incompatível com um acto “forçado”, um acto praticado por uma qualquer imposição exógena. Agir voluntariamente é agir como se quer, e não por imposição, é agir de um modo livre e agir deliberadamente é agir como se decidiu agir”.
II- Ao constar do libelo acusatório que o arguido não se absteve de proceder à actividade de condução do automóvel, significa necessariamente que o arguido pôde determinar a sua conduta, não foi forçado à mesma, mostrando-se assim preenchido também este elemento subjetivo do tipo, apesar de não constar, nem era obrigatório estar, a expressão costumeira de “livre”.
Por conseguinte, no caso em apreço, da acusação decorre que o arguido agiu por forma livre.
Por isso, nunca o arguido podia ter sido absolvido da prática do crime de furto com fundamento na falta de alegação de tal elemento na acusação que contra ele foi deduzida, pelo que que se impõe a sua revogação nesta parte.
3.2- Assim sendo e uma vez que o processo contém todos os elementos necessários para a decisão, importa dar cumprimento ao AFJ nº 4/2016, Diário da República n.º 36/2016, Série I de 2016-02-22, segundo o qual «Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal.»

Qualificação jurídica dos factos.

Posto isto, e uma vez que o processo contém todos os elementos que nos habilitam a proferir decisão, vejamos:
Ao arguido vem imputada a prática, em autoria material, de um crime de furto simples p. e p. pelo artigo 203º, nº 1 do Código Penal. Comete o aludido crime de furto “Quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia é punido..”.
No crime de furto o que está em causa é a tutela do direito de propriedade, consubstanciada no direito de gozo, fruição e de disposição sobre coisas móveis, ainda que exista uma situação de mera posse ou de detenção em nome de outrem por parte do visado, havendo porém quem sustente tratar-se antes da disponibilidade da fruição das utilidades da coisa com um mínimo de representação - neste último sentido vide Faria da Costa, in "Comentário Conimbricense do Código Penal- Parte Especial", Tomo II, 1999, pág. 30; vide ainda Carlos Codeço, in "O Furto no Código Penal e no Projecto", 1981, pág. 59 e seguintes.
São elementos constitutivos do crime de furto: a subtração; a coisa móvel alheia e a ilegítima intenção de apropriação.
A subtração reconduz-se à ação, podendo ser efetuada pelo agente quer diretamente (mediante a apreensão manual da coisa ou pelo deslocamento provocado), quer indiretamente (através do recurso a instrumentos ou a animais especialmente treinados).
Em relação ao segundo elemento constitutivo do crime em análise: coisa móvel alheia, refira-se que a coisa, para efeitos  penais,  deve ser valorada  mais no sentido que o comum das pessoas (a esfera do valor de uso das palavras referida a um leigo) empresta a tal vocábulo do que expressão daquilo que o artigo 202º do C. Civil define como coisa. E isto, desde logo, pela razão bem simples e linear de que se aceitasse, sem mais, a noção de coisa do direito civil, ficaríamos com um conceito inoperatório, já que não se perceberia, por força da definição legal, como seria possível haver apropriação (no sentido físico) de um direito. Com efeito, se coisa (artigo 202º do C.C.) é “tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas”, é evidente que um direito pode ser objecto de relações jurídicas, sendo, neste sentido, uma coisa. Só que tão lata noção é, como de imediato se percebe, no campo da normatividade jurídico-penal, cfr. Faria da Costa, Comentário Conimbricense ao C. Penal, tomo II, pág. 34 e 35 
A ilegítima intenção de apropriação é preenchida pelo dolo especifico, entendida como a intenção  do  agente,  contra  a vontade  do  proprietário  ou  detentor  da  coisa furtada,   a   haver  para  si   ou   para   outrem, integrando-a na sua esfera patrimonial[6].

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No caso vertente, tendo o arguido apropriado-se, como se apropriou, contra a vontade do respetivo dono, de 41,64 litros de combustível, no valor de € 67,00 (sessenta e sete euros, com a intenção de os fazer seus, encontram-se verificados os elementos objetivos  integradores do crime de furto p. e p. pelo artigo 203º, nº1 do C. Penal.
Por outro lado, havendo o arguido agido de forma deliberada, livre e consciente, sabendo que aquele combustível não lhe pertencia e que o seu comportamento era proibido e punido por lei, atuou com dolo direto – artigo 14º, n.º 1 do C. Penal.

A determinação abstrata da pena
A pena legalmente prevista para o crime de furto simples é de prisão de 30 dias a 3 anos ou multa de 10 a 360 dias - artigos 203º, nº 1, 41º, n.º 1 e 47º, nº 1, ambos do C. Penal;

A escolha e determinação da medida concreta da pena
Tendo presente o comando do artigo 70º do C. Penal “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa ou pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidade da punição".
Às finalidades da punição refere-se o artigo 40º, n.º 1 do C. Penal, que estatui "A aplicação das penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade".
A propósito desta norma a Prof. Fernanda Palma, in Jornadas Sobre a Revisão do Código Penal, AAFDL, ed. 1998, pág. 26, escreveu:
“O artigo 40°, norma sem paralelo no Código de 1982, traça as finalidades da punição: a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
A proteção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos outros cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva).
A proteção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial.
Por outro lado, a reintegração do agente significa a prevenção especial na escolha da pena ou na execução da pena.
E, finalmente, a retribuição não é exigida necessariamente pela protecção de bens jurídicos”.
São puras razões de prevenção geral positiva e de prevenção especial de socialização que dominam a operação de escolha da pena[7]
Porém, como nota Maria João Antunes[8], “São, porém, distintos os critérios que conduzem à preferência pela pena de multa principal e os que levam à escolha da pena de multa de substituição. No primeiro caso, o critério é o da conveniência ou da maior ou menor adequação da pena, ao passo que no segundo o critério é o da necessidade da pena. Assim se compreendendo que o tribunal possa, numa primeira operação, escolher a pena de prisão em detrimento da pena de multa (principal) e acabe por escolher a pena de multa (de substituição) na última operação.”  Aplicação da pena de prisão deverá ser uma última ratio, apenas sendo de aplicar quando efetivamente seja necessária.[9]
No caso vertente, pelas mesmas razões aduzidas na sentença recorrida relativamente aos outros dois crimes de furto perpetrados pelo arguido ( em que se salienta o facto de o arguido ter sido anteriormente condenado pela prática de um crime de natureza diversa, em pena de multa, bem assim o valor diminuto da coisa subtraída), opta-se também quanto ao crime em apreço pela aplicação da pena de multa em detrimento da pena de prisão.
Feita a opção pela pena de multa, há que determinar agora a medida da pena de acordo com os parâmetros fixados pelo artigo 71º, nº1 e 2 do C. Penal.
Na determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, o tribunal atenderá à culpa do agente e às exigências de prevenção bem como a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor do agente ou contra ele (artigo 71.°, n.ºs 1 e 2, do CP).
Logo, num primeiro momento, a medida da pena há de ser dada pela medida de tutela dos bens jurídicos, no caso concreto, traduzindo a ideia de prevenção geral positiva, enquanto reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida.
Valorada em concreto a medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, a culpa funciona como limite máximo da pena, dentro da moldura assim encontrada, que as considerações de prevenção geral, quer positiva ou de integração, quer negativa ou de intimidação, não podem ultrapassar.
Por último, devem actuar considerações de prevenção especial, de socialização ou de suficiente advertência.
Os concretos factores de medida da pena, constantes do elenco, não exaustivo, do n.º2 do artigo 71.° do C. P., relevam tanto pela via da culpa como pela via da prevenção.

No caso concreto, deverá ter-se em conta:
- A culpa do arguido (agiu com direto - artigo 14º, n.º 1 do C. Penal);
- O grau de ilicitude dos factos, que é não é elevada, atendendo sobretudo aos prejuízos sofridos pela ofendida (67,00 euros);
- Por outro lado, são conhe­cidas as particulares necessidades de pre­venção geral relativamente ao crime de furto;
- No que diz respeito à prevenção especial (negativa e positiva ou de socialização) há a considerar:
1. A idade do arguido (na data dos factos o arguido tinha 21 anos de idade), enquanto reveladora de alguma imaturidade;
2. Os seus antecedentes criminais pela prática de um crime de natureza diversa (condenação em pena de multa pela prática de crime de detenção de arma proibida) que não pesam de forma significativa em seu desfavor; 
3. A falta de reparação dos prejuízos causados.
Assim, ponderando o circunstancialismo dos autos e a moldura penal da norma incriminadora, julga-se adequado e justo condenar o arguido na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, fixando-se a respetiva taxa diária em cinco euros, uma vez que não são conhecidos rendimentos ao arguido, cfr. artigo 47º, nº 2 do CP.

Cúmulo jurídico
Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”, cfr. n.º 1 do artigo 77º do C. Penal. Acresce que, como resulta do n.º 2 deste preceito legal há que ter em consideração na elaboração da pena única "as penas concretamente aplicadas aos vários crimes", a qual tem como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e como limite máximo a somas das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo exceder 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias, tratando-se de pena de multa. 
In casu, porque se encontram reunidos os pressupostos para a realização de cúmulo jurídico, a moldura penal do cúmulo jurídico a efetuar situa-se 150 e 450 dias de multa.
Assim, considerando que estamos perante três crimes de furto de combustível, cometidos mediante abastecimento não pago em postos de abastecimento num período de tempo curto de menos de um mês; o valor global de combustível subtraído, o qual perfaz o total de 217,0 euros; os prejuízos causados não se mostram reparados; a personalidade evidenciada pelo arguido; a sua juventude; e a condenação anterior em pela de multa pela prática de crime de natureza diversa, temos como adequada e justa a pena de trezentos dias de multa, à referida taxa diária de cinco euros.       

Pedido de indemnização civil
Vejamos agora o pedido de indemnização civil deduzido pela ofendida EMP01..., SA.
No caso vertente, não há dúvida de que não é admissível o recurso ordinário, face ao disposto no artigo 400.º, nº 2 do Código de Processo Penal e ao valor do pedido civil, de 67,00 €.
Porém, esta inadmissibilidade de recurso não contende com a imposição de, em caso de procedência do recurso criminal, com condenação do arguido, se retirarem as respetivas consequências civis, nos termos do artigo 403.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
 O pedido de indemnização civil apenas pode ser deduzido em processo penal se fundado na prática de um crime, nos termos do disposto no artigo 71º do C. P. Penal e no Ac de Uniformização de Jurisprudência de 17.06.1999, DR, I Série de 3.08.1999.                
Nos termos do disposto no artigo 129º do C. Penal "a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil".        
Esta norma deve ser interpretada no sentido de que a indemnização de perdas e danos emergente da prática de um crime é regulada, quantitativamente e nos seus pressupostos, pela lei civil. Tais pressupostos são os dos artigos 483º e 562º e ss do Código Civil.
Estipula o artº 483º, nº 1 do C.Civil que " aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação ".
Da análise deste preceito, conclui-se que os pressupostos da obrigação de indemnização por factos ilícitos são os seguintes: o facto; a ilicitude; a imputação do facto ao lesante; o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano ( cfr., neste sentido, A. Varela, in Das Obrigações em Geral, 7ª ed., 1991, vol. I, págs. 515 e segs. ).
Em face do que ficou dito na parte criminal, é por demais evidente que os pressupostos da responsabilidade civil encontram-se verificados, pelo que existe obrigação de indemnizar a cargo do arguido. 
Na verdade, o arguido, agindo de forma deliberada, livre e consciente, nas circunstâncias consideradas como provas subtraiu combustível no valor de 67,00 euros.  
Nesta conformidade, o arguido está obrigado a repor a situação em que se encontrava antes dos danos que lhe causou, estando, por isso obrigado a pagar-lhe a referida quantias de €67,00.
A tal quantia, pela qual o arguido é responsável, acrescem juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a notificação do pedido a até integral e efetivo pagamento (artigos 559º, 804º e 805º, nº 3 do C. Civil e Portaria nº 291/2003, de 8.04).

III- DISPOSITIVO  

Nos termos e pelos fundamentos exposto, acordam os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães no seguinte:

1) Em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogar a sentença recorrida na parte em que absolveu o arguido da prática de um crime de furto simples p. e p. pelo artigo 203º, nº 1 do Código Penal (factos relativos ao apenso A);
2)  Relativamente aos aludidos factos (apenso A) considerados provados na sentença recorrida, condenar o arguido pela prática de um crime de furto simples p. e p. pelo artigo 203º, nº 1 do CP, na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de cinco euros; 3)  Desfazer o cúmulo jurídico referido em c) do dispositivo da sentença recorrida e proceder a novo cúmulo jurídico, abrangendo agora os três crimes de furto simples pelos quais o arguido vai condenado nos presentes autos ( factos de 04/02/2023, 14/02/2023 e de 19/02/2023 ) e condenar o arguido na pena única de multa de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de cinco euros, o que perfaz o montante global de 1500,00 (mil e quinhentos) euros;  
4) Em consequência da procedência do recurso, e porque se mostram verificados os respetivos pressupostos, decide-se julgar procedente o pedido de indemnização civil formulado no apenso A por EMP01..., SA, e consequentemente, condenar o arguido a pagar a esta a quantia peticionada de 67,00 (sessenta e sete) euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido, até integral e efetivo pagamento. 
5) Confirmar, quanto ao mais, a sentença recorrida.
Sem custas do recuso e do pedido de indemnização civil.
Texto integralmente elaborado pelo seu relator e revisto pelos seus signatários – artigo 94º, nº 2 do CPP, encontrando-se assinado eletronicamente na 1ª página, nos termos do disposto no artigo 19º da Portaria nº 280/2013, de 26.08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20.09.

Notifique.
Guimarães, 05 de junho de 2024

Os Juízes Desembargadores
Armando Azevedo (relator por vencimento)
Bráulio Martins (vencido, conforme declaração de voto)
Carlos da Cunha Coutinho (2º adjunto)

Voto de vencido.

Não obstante o muito respeito que me merecem os Ilustres Desembargadores cuja posição fez vencimento no presente acórdão, impõe-me a minha consciência que faça constar aqui as razões da minha discordância.
Está em causa saber qual a factualidade necessária para que, desde que provada, se demonstre a liberdade de ação do agente da infração penal, ou, nos termos do AUJ acima citado, “a determinação livre pelo agente”.
A decisão, se bem a interpreto, retira essa liberdade, essencialmente, dos vocábulos representou e quis que constam da acusação.
A questão tem surgido amiúde nestes últimos tempos, e tem havido as mais variadas interpretações sobre a suficiência da alegação da liberdade de ação. O querer, a intenção, a voluntariedade, e outras expressões, em vez de liberdade e factualidade que, indubitavelmente, a integre, têm sido consideradas suficientes. Todavia, parece-me, por exemplo, que a alegação do querer e da voluntariedade, pretendem, ao nível subjetivo (dolo), afastar o descuido, ou seja, a negligência, e não demonstrar a liberdade de determinação, e a intenção, situa-se noutro campo conceitual e dogmático que não o da liberdade; na verdade, um tiro disparado sobre uma pessoa para a matar, estando o agente sob coação moral, consubstancia um movimento voluntário e querido (portanto, doloso) e não um mero espasmo, ato reflexo ou descuidado, ou acidental (que seria negligente) , todavia, é não livre, no sentido referido na decisão recorrida  – foi sempre assim que interpretei estes vocábulos durante décadas de exercício da função.
Quantos inimputáveis, por exemplo, insultam e batem, e muitas vezes, certamente, para (ou seja, voluntariamente) ofender e aleijar, sabendo que isso ofende e que dói, mas sem capacidade de se determinarem de acordo com as normas, e, portanto, ainda que noutra perspetiva, sem liberdade. O querer e a voluntariedade parece, assim, não bastarem. É neste segmento, ou seja, da imputabilidade penal, que releva o que consta da acusação sobre a capacidade de se determinar, mas não sobre a liberdade de atuação em sentido estrito.
Tenha-se presente, por exemplo, que para aceitar uma confissão, e sob pena de nulidade, o tribunal tem de se assegurar especificamente que ela é feita de livre vontade e fora de qualquer coação, não bastando, certamente, o arguido afirmá-lo (artigo 344.º do CPP), ou dizer que a quer fazer voluntariamente, ficando, obrigatoriamente, tais expressões a constar da ata, juntamente com o juízo feito pelo tribunal sobre esses parâmetros, para que aquela confissão possa operar; assim, e por maioria de razão, se devem averiguar estritamente, e não através de esforços interpretativos, tais parâmetros quanto ao preenchimento dos pressupostos da punição.
Discordo ainda da configuração teórica de factos impeditivos em processo penal no que toca aos pressupostos da punição – não avançando o grau de exigência de alegação para os chamados elementos negativos do tipo, parece-me, contudo, que cumpre ao acusador alegar toda a factualidade inerente ao preenchimento daqueles pressupostos.
Parece-me ainda que é de toda a conveniência, não obstante a unânime rejeição das fórmulas sacramentais, com que, naturalmente, também concordo, assegurar sempre a exigência de um mínimo de alegação diferenciada e conceitualmente cristalina, e não amalgamante ou osmótica, que dispense, por parte do julgador, esforços interpretativos, semânticos, e análises psicológicas ou filosóficos da matéria alegada, em segmentos tão críticos como este, sendo muito fácil a tudo isso obviar, bastando algumas palavras – ainda que com alguns custos, evita-se a insegurança, garante-se a certeza, um dos pilares da justiça. Todo o cuidado é pouco, porque, como decorre da lapidar afirmação de Jeschek: “Não há nenhuma teoria da infração que possa ser mais do que um projeto passageiro.” - citado por Teresa Pizarro Beleza, Direito Penal, AAFDL., pag. 45.
Julgaria, portanto, o recurso improcedente, e confirmaria a decisão recorrida.
A minha posição está mais completamente esclarecida no acórdão 1227/21.7PBBRG.G1, de 19/12/2023, desta Relação, de que fui relator, e que se encontra publicado em www.dgsi.pt.

Bráulio Martins
 


[1] Nas transcrições das peças processuais irá reproduzir-se a ortografia segundo o texto original, sem prejuízo da correção de lapsos manifestos e da formatação do texto, da responsabilidade do relator.
[2] De entre as questões de conhecimento oficioso do tribunal estão os vícios da sentença do nº 2 do artigo 410º do C.P.P., cfr.  Ac. do STJ nº 7/95, de 19.10, in DR, I-A, de 28.12.1995, as nulidades da sentença do artigo 379º, nº 1 e nº 2 do CPP, irregularidades no caso no nº 2 do artigo 123º do CPP e as nulidades insanáveis do artigo 119º do C.P.P..
[3] Este aresto fixou jurisprudência no sentido de que «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjetivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do Código de Processo Penal.»
[4] Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal,  Universidade Católica Editora, 2ª edição atualizada, pág. 791.
[5] Cfr. Mário Tenreiro, “Considerações sobre o objeto do processo penal”, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 47.º - III – Dez. 1987, pág. 997
[6] Sobre os elementos típicos do crime de furto vide Paulo Saragoça da Mata, “Subtracção de Coisa Móvel Alheia”, Os efeitos do admirável mundo novo num crime “clássico”, Liber Discipulorum para F. Dias, Coimbra Editora, 2003, p. 994 e ss..
[7] Neste sentido vide R. Cordeiro, Jornadas de Direito Criminal, Centro de Estudos Judiciários, V. II, p. 48.
[8] In Penas e Medidas de Segurança, Almedina, 2017, pág. 76.
[9] Sobre esta matéria vide F. Di­as, A pena de multa de substituição, R.L.J., ano 125º, pág. 202).