CONTRATO DE MEDIAÇÃO DE SEGUROS
RESOLUÇÃO
JUSTA CAUSA
INDEMNIZAÇÃO DE CLIENTELA
TU QUOQUE
Sumário


I - O contrato de mediação de seguros celebrado entre um agente de seguros e uma companhia de seguros constitui um subtipo do contrato de agência
II - É possível que em tal contrato a seguradora atribua poderes de representação ao agente de seguros, seja para celebrar contratos de seguros em seu nome, seja para cobrar os prémios devidos pelos respetivos tomadores.
III - Uma cláusula nesse sentido é característica do mandato com representação e, sendo o interesse primário prosseguido através da sua consagração titulado pela companhia de seguros, esta pode proceder à sua revogação ad nutum a todo o tempo.
IV - Não é abusiva, à luz do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, a cláusula que confere à companhia de seguros o direito de resolver, em determinadas situações, o contrato complementar do contrato de mediação pelo qual a mesma se obrigou a disponibilizar o acesso e a utilização dos seus sistemas informáticos pelo mediador para a prossecução da sua atividade nos termos contratualizados.
V - Um dos efeitos da cessação do contrato, independentemente da causa, com exceção da resolução sem justa causa por parte do mediador e da resolução com justa causa por parte da companhia de seguros, é a constituição, na esfera jurídica daquele, do direito à indemnização de clientela.
VI - Num contrato de relação como é o da mediação de seguros, em que as partes devem comungar finalidades ou objetivos comuns, não interessa apenas que as prestações principais sejam cumpridas, mas também que sejam cumpridas com lealdade, respeito, espírito de colaboração e cooperação.
VII - Existe justa causa para a resolução do contrato quando, num juízo de prognose, feito à luz de critérios de razoabilidade, se conclua que, em virtude de um incumprimento ou da violação de um dever, ficou irremediavelmente frustrada a confiança da parte fiel no cumprimento futuro da parte infiel.
VIII - Viola os deveres de respeito e lealdade para com a companhia de seguros o mediador que, em reuniões realizadas entre as partes, afirma perentoriamente não ter mais interesse no contrato, sobretudo se tal sucede num contexto de quebra acentuada e abrupta da carteira de clientes.
IX - A resolução do contrato por parte desse mediador, invocando, como justa causa, um incumprimento ulterior por parte da companhia de seguros, deve ser enquadrada na figura jurídica do tu quoque, levando à paralisação do direito à indemnização de clientela que lhe poderia assistir, por força do regime do abuso do direito.

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I.
1) EMP01..., SA, intentou a presente ação declarativa, sob a forma comum, contra EMP02..., SA, pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de € 73 221,61, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação e até efetivo e integral pagamento, a “título de indemnização por todos os danos patrimoniais sofridos.”

Alegou, em síntese, que: a Autora é uma sociedade comercial que tem como objeto, entre o mais, a atividade de mediação de seguros; em 21 de maio de 2012, celebrou com a Ré um contrato, denominado “Agente de Seguros EMP02...”, destinado ao agenciamento e mediação de contratos de seguro em representação da Ré, mediante o pagamento de comissões; na mesma data, celebrou com a Ré um “Acordo de Utilização de Acessos Informáticos”, por via do qual lhe foi por esta facultado o acesso à plataforma “...” e ao “portal de Agentes EMP02...”, ferramentas necessárias para o exercício da sua atividade; até finais de 2020, a Autora auferiu da Ré comissões de 7% e 8%, acrescidas de uma taxa suplementar de 4%, por ser “agente clube”, em resultado do volume de clientes que angariou; naquela ocasião, a Ré propôs-lhe a alteração do contrato em termos que iriam implicar uma redução significativa das comissões e o corte da taxa suplementar; apesar de a Autora ter recusado essa alteração, a Ré passou a aplicar as novas taxas de comissões, o que levou a uma diminuição significativa dos rendimentos obtidos por aquela; concomitantemente, a Ré comunicou à Autora a resolução do “Acordo de Utilização de Acessos Informáticos”, com apoio nas respetivas cláusulas 9.ª e 10.ª, e a revogação dos poderes de cobrança dos prémios de seguro, invocando, para esse efeito, a cláusula 5.2. do contrato de “Agente de Seguros EMP02...”; a Ré deu conhecimento desse facto a todos os clientes da carteira angariada pela Autora, indicando-lhes ainda um concorrente desta junto do qual poderiam fazer o pagamento dos prémios; a Autora ficou, assim, impossibilitada de exercer a sua atividade; por isso, através de carta registada com a/r, comunicou à Ré que, perante o boicote desta à sua atividade, o contrato de serviços de agência se tinha tornado inexequível e que, por isso, o resolvia com justa causa; solicitou-lhe ainda o pagamento das comissões a que tinha direito, bem como o pagamento de uma indemnização; a referida cláusula 5.2. do contrato de “Agente de Seguros EMP02...”, bem como as cláusulas 9.ª e 10.ª do “Acordo de Utilização de Acessos Informáticos” foram elaboradas unilateralmente pela Ré, que as impôs à Autora sem que prestasse a esta qualquer informação ou explicação acerca do respetivo conteúdo e alcance prático e jurídico, em violação do previsto no art. 5.º do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais, aprovado pelo DL n.º 446/85, de 25.10, pelo que devem considerar-se excluídas; para além disso, tais cláusulas estabelecem obrigações cujo tempo de vigência dependia apenas da vontade de quem as predispôs, pelo que são abusivas, devendo, portanto, ser consideradas nulas, nos termos do disposto nos arts. 16.º e 18.º, j), do mesmo diploma; para além do mais, o comportamento da Ré deve ser considerado ilícito, por integrar o abuso de posição dominante, conforme previsto nos arts. 11.º e 12.º da Lei n.º 19/2012, de 8.05; havendo justa causa para a resolução do contrato, a Autora tem direito à indemnização de clientela, conforme previsto no art. 33 do DL n.º 178/86, de 3.07; tendo em conta as comissões auferidas pela Autora nos anos de 2016 a 2020, num total de € 183 054,03, essa indemnização deve ser calculada em € 73 221,61.
Citada, a Ré contestou dizendo, também em síntese, que: de acordo com o previsto na cláusula 5.2. do contrato “Agente de Seguros EMP02...”, podia revogar os poderes de cobrança atribuídos à Autora a todo o tempo e sem necessidade de qualquer justificação; de igual modo, de acordo com a cláusula 9.ª do “Acordo de Utilização de Acessos Informáticos”, podia resolver esse acordo mediante mera comunicação verbal, em especial em caso de diminuição significativa da carteira de seguros; no ano de 2018, o volume da carteira de seguros da Autora teve um decréscimo de 11,4% em relação ao ano anterior; esse decréscimo continuou nos anos seguintes: foi de 8,68%, em 2019, e de 24,76%, em 2020; tal deveu-se à transferência, patrocinada pela Autora, de clientes da Ré para outras seguradoras de que aquela também era mediadora; quando a Ré propôs a aplicação de uma nova tabela de comissões, a Autora recusou e afirmou expressamente que não tinha interesse em continuar como mediadora da EMP02..., apelidando-a de “laranja podre”; a situação manteve-se e, no ano de 2021, a carteira de clientes da Autora teve um decréscimo de 52,1%; para impedir a transferência de toda a carteira para outras seguradoras, a Ré viu-se obrigada a revogar os poderes de cobrança e a resolver o “Acordo de Utilização de Acessos Informáticos”; não obstante, o contrato de mediação continuou em vigor, não havendo qualquer obstáculo a que a Autora continuasse a cumprir a sua obrigação, ainda que com maior dificuldade; as comissões pagas à Autora não foram contabilizadas em percentagem inferior à contratualizada; o que sucedeu foi que a Autora, por ter deixado de ter uma carteira superior a € 200 000,00, perdeu o estatuto de “agente clube” e o correspondente direito à taxa suplementar de 4%; as referidas cláusulas 5.2. do contrato “Agente de Seguros EMP02...” e 9.ª do “Acordo de Utilização de Acessos Informáticos” , sendo embora iguais em todos os contratos celebrados com os mediadores da Ré, não se enquadram nas proibições do Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais, não sendo, por isso proibidas; de qualquer modo, foram prestados à Autora todas as informações e esclarecimentos sobre o seu conteúdo e significado; ainda que tais cláusulas fossem nulas, sempre haveria justa causa para a revogação dos poderes de cobrança e para a resolução do “Acordo de Utilização de Acessos Informáticos” uma vez que a Autora, ao transferir ou permitir a transferência de contratos para outras seguradoras e ao comunicar aos representantes da Ré que não tinha interesse em continuar como seu mediador, apelidando-a de “laranja podre”, violou deveres de lealdade e confiança entre as partes; a situação não é subsumível ao regime da concorrência, tanto mais que a Autora não era mediadora exclusiva da Ré; não tendo havido justa causa para a resolução do contrato pela Autora, esta não tem direito a qualquer indemnização; de qualquer modo, a média das remunerações dos últimos cinco anos foi de € 28 343,52, pelo que a indemnização nunca poderá ser superior a € 56 687,04.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho a: afirmar, em termos tabulares, a verificação dos pressupostos processais; fixar o valor processual em € 73 221,61; identificar o objeto do litígio; e enunciar os temas da prova.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença a julgar a ação improcedente e a absolver a Ré do pedido formulado pela Autora.

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2) Inconformada, a Autora (daqui em diante, Recorrente) interpôs o presente recurso, através de requerimento composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):
[…]
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3) a Ré (daqui em diante, Recorrida) respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
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4) O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos autos e efeito meramente devolutivo.
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5) Foram colhidos os vistos das Exmas. Sras. Juízas Desembargadoras Adjuntas.
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II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Tento isto presente, as questões que se colocam neste recurso podem ser sintetizadas nos seguintes termos:
1.ª Impugnação da matéria de facto: erro de julgamento quanto à afirmação “[e]m 2021 porque já não era agente Clube (o que importava um acréscimo de mais de 4% nas comissões fixada) recebeu as comissões da R. sem esses 4% adicionais", constante do ponto 24 do rol dos factos provados, que deve ser considerada como não provada; erro de julgamento quanto às afirmações de facto discriminadas nas conclusões A. e B., que devem ser consideradas como provadas;
2.ª Erro na subsunção quanto às seguintes questões: exclusão da cláusula 5.2. do contrato denominado “Agente de Seguros EMP02...” e das cláusulas 9.ª e 10.ª do “Acordo de Utilização de Acessos Informáticos”, por infração dos deveres de comunicação e informação impostos pelo Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais; nulidade de tais cláusulas, nos termos do art. 18, j), do mesmo diploma legal, por serem contrárias à boa fé; ilicitude do comportamento da Recorrida (revogação dos poderes de cobrança e resolução do “Acordo de Utilização de Acessos Informáticos”), nos termos dos arts. 11.º e 12.º do Regime Jurídico da Concorrência, por configurar abuso de posição dominante; existência de justa causa para a resolução do contrato denominado “Agente de Seguros EMP02...” por parte da Recorrente.
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III.
1).1. Na resposta às questões enunciadas, começamos por respigar a fundamentação de facto da sentença recorrida, destacando (itálico) os segmentos objeto de impugnação (transcrição):
“Factos provados
[…]
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IV.
1).1. Isto posto, vejamos a resposta à primeira questão.
[…]
***
1).5. Respondida que está a 1.ª questão, cumpre agora proceder à reordenação dos factos provados de acordo com a sequência lógica e cronológica que é conforme à realidade histórica que é suposto retratarem[1]:

1 A é uma sociedade comercial que se dedica à atividade de mediação de seguros com exclusão da atividade de corretor, prestação de serviços na área da fotografia e vídeo, comércio, importação e exportação de equipamentos de segurança e de proteção individual, administração de condomínios, atividades de higiene e segurança no trabalho, exploração de gabinete de psicologia e atividades de formação profissional, com fins lucrativos, conforme resulta da certidão permanente com o código de acesso nº ...45, junta a fls. 14v e ss. (1.).
2 A Ré é uma companhia de seguros, de âmbito nacional, que desenvolve a sua atividade no campo da realização de contratos de seguro, no ramo vida e não vida (2).
3 Em 21 de Maio de 2012, no âmbito das respetivas atividades comerciais, a R. celebrou com a A. um contrato denominado de “Contrato Agente de Seguros EMP02...”, destinado ao agenciamento e mediação de contratos de seguros por parte da A., em representação da R., junto a fls. 15 e ss., aqui dado por inteiramente reproduzido (3).
4 Através de tal acordo a A. obrigou-se: "(i) Promover a criação, manutenção e desenvolvimento de uma carteira de seguros tendo em vista atingir os objetivos de crescimento, sinistralidade e rentabilidade fixados anualmente pela EMP02...; (ii) Promover a assistência e manutenção da carteira de clientes já existentes na EMP02..., e efetuar a prospeção de novos clientes;  (iii) Respeitar sempre as regras de comunicação corporativas da EMP02... e não efetuar qualquer tipo de ação publicitária com a identificação da EMP02..., sem prévia autorização escrita desta; (iv) Representar a EMP02... em quaisquer atos ou eventos relacionados com a atividade seguradora, quando para isso solicitado pela EMP02... ou por sua iniciativa desde que devidamente autorizados pela EMP02...; (v) Prestar diligentemente toda a assistência aos contratos de seguro que compõem a sua carteira, e apoiar, de acordo com as orientações que lhe forem dadas pela EMP02..., os tomadores de seguro, segurados, pessoas seguras e sinistrados; (vi) Não prestar ao tomador do seguro, em nome e representação da EMP02..., outros serviços para além dos que estejam diretamente relacionados com a atividade de mediação, salvo quando prévia e expressamente autorizado pela EMP02...; (vii) Conhecer adequadamente e manter-se atualizado sobre todos os produtos disponibilizados pela EMP02..., informando corretamente os seus clientes; (viii) Não facultar aos clientes qualquer informação relativa aos produtos da EMP02... que não tenha sido aprovada e facultada por esta última; (ix) Cumprir todas as disposições legais aplicáveis à atividade de mediação, bem como as normas reguladoras da atividade seguradora, e bem assim todas as instruções da EMP02...; (x) Respeitar o segredo profissional aplicável à sua atividade, bem como o regime legal de proteção de dados pessoais; (xi) Recolher toda a informação relativa à identificação dos clientes, bem como a demais que seja necessária para a elaboração dos contratos de seguro; (xii) Não promover contratos de seguro em condições diferentes das fixadas pela EMP02...; (xiii) Manter todo o seu arquivo devidamente organizado e atualizado e permitir a sua consulta pela EMP02..., sempre que por esta solicitado; (xiv) Participar assiduamente nas ações de formação conduzidas pela EMP02...; (xv) Providenciar para que as cobranças sejam feitas no mais curto espaço de tempo e sempre dentro dos prazos fixados pela lei (4).
5 Por sua vez, nos termos do ponto 4. do contrato supra aludido, a Ré obrigou-se a prestar apoio à A. na prestação daquele serviço, garantindo: (i) Proporcionar ao Segundo Outorgante a formação técnica na área dos seguros; (ii) Fornecer ao Segundo Outorgante o material de divulgação de novas técnicas utilizadas na Indústria Seguradora, de modo a que possa ser assegurada formação contínua; e (iii) Prestar assistência ao Segundo Outorgante no domínio técnico relativamente a todos os serviços relacionados com a atividade seguradora desenvolvida no âmbito do presente Contrato (5).
6 Mais consta deste contrato, designadamente, do seu anexo 2 (junto a fls. 19 e 19v, a tabela das comissões a pagar pela Ré à A., aprovadas à data, como remuneração do agente (6).
7 Nos termos do considerando III deste contrato, pretendeu-se que fossem “desenvolvidos com a máxima extensão possível os negócios da EMP02..., para o que esta facultará a tecnologia da Industria Seguradora que possui, tornando, assim viável a formação e reciclagens necessárias ao Segurado Outorgante, que as utilizará para o desenvolvimento da carteira de seguros que a EMP02... já possui e daquela que venha a possuir” (7)
8 Prevê o contrato celebrado entre as partes no ponto 8, sob o título Cessação do Contrato (ver fls. 17), o seguinte (60):

9. Prevendo quanto à indemnização de clientela (ver fls. 17v) (61):

8.3. Indemnização de Clientela





9 Para execução do conteúdo contratado de agente, nessa mesma data de ../../2012, foi celebrado pela A. e R. um acordo de utilização de acessos informáticos, o qual viria ser objeto de um aditamento em 06/07/2016, conforme documentos juntos a fls. 20 a 23 (8).
10 As plataformas informáticas disponibilizadas pela R à A. denominam-se “...” e “Portal de Agentes EMP02...” (9).
11 Tais plataformas informáticas permitiam à A. efetuar a recolha de informação das apólices e contratos de seguro, acompanhamento de processos, assistência de seguros angariados e/ou cobrados na carteira da Ré, bem como aceder, visualizar e usufruir dos sistemas centrais implementados pela Ré, fazer a prestação de contas semanal e outros (10).
12 Nos termos da cláusula 2ª do referido acordo de utilização, a A. obrigou- se perante a R. a utilizar os referidos acessos informáticos para o desenvolvimento das atividades descritas no anexo 1, ou seja: - Consultar a carteira de apólices da sua angariação;  - Consulta dos processos de sinistro da carteira de apólices da sua angariação; - Consulta da situação dos recibos referentes à carteira de apólices da sua angariação; - Execução das prestações de contas dos recibos cobrados referentes à carteira de apólices da sua angariação; - Alteração dos dados dos clientes (segurados) da carteira de apólices da sua angariação; - Emissão de contratos dos ramos Automóvel, Acidentes Pessoais e Multi-Riscos, exceto dos riscos excluídos da política de aceitação da EMP02..., SA; (a partir do aditamento em 2016); - Emissão de contratos dos ramos disponibilizados a partir dos simuladores existentes no Portal de Agentes, exceto dos riscos excluídos da política de aceitação da EMP02..., S.A.; - Para emissão imediata, o desconto máximo permitido será aquele que em cada momento constar do sistema informático cujos acessos sejam concedidos ao Segundo Outorgante pela Primeira. Nos casos em que o desconto seja superior, a proposta fica pendente de emissão (11).
13 A permissão de acesso e utilização destes acessos informáticos facilita e simplifica a atividade do agente ao nível de todo o trabalho ligado à emissão de novas apólices de seguro, com simulação de preços e contratos, cotações, emissão de apólices (12).
14 Também quanto a apólices já emitidas, permite com a consulta do estado dos processos de sinistro para poder dar a informação aos segurados e controlo do vencimento das apólices para cobrança e prestação semanal de contas à Ré (13)
15 Estando disponíveis a partir destes acessos informáticos, toda a base de dados e identificação completa dos tomadores de seguros e dos produtos ou contratos de seguro contratados com a Ré (14).
16 No âmbito do contrato supra aludido, na cláusula 5.2 estipula-se que a R. podia a todo tempo e sem necessidade de justificação, revogar os poderes de cobrança à R., mediante simples comunicação, da qual fique registo escrito (15).
17 16º No âmbito do Acordo de utilização de acessos informáticos (junto a fls. 20), na cláusula 9º e 10º estipula-se (16):


18 As cláusulas dos acordos celebrados entre as partes não foram negociadas individualmente entre as partes (57).
19 Limitando-se a A. a subscrever e a aceitar os conteúdos dos contratos com as cláusulas que lhe foram apresentadas unilateralmente pela Ré aquando da respetiva assinatura (58).
20 Não tendo sido permitido à A. qualquer negociação dos seus termos (59).
21 Desde ../../2012, a A. foi desenvolvendo a sua atividade de angariação de clientes para a Ré, possibilitando a celebração de novos contratos de seguro e recebendo em contrapartida o pagamento das comissões acordadas (15 bis)
22 Tendo a A. angariado e agenciado em nome da Ré grande número contratos de seguro e uma vasta clientela, nos termos e condições definidos no contrato entre ambas celebrado (18).
23 Até finais do ano de 2020 a A. auferia da Ré comissões de 7% e 8%, acrescida de uma taxa suplementar de 4%, - por ser agente "Clube" - em face do volume da carteira de clientes que a Autora angariava (carteira superior a 200.000,00€) (19).
24 Em finais de 2020, a Ré comunicou à A. que pretendia alterar os termos do contrato existente, enviando à A., dois documentos intitulados de “Manual de Procedimentos” e "Regulamento de Incentivos - Distribuidores de Seguros que integram a rede de Parceiros da EMP02... Seguros – Sucursal Portugal", juntos a fls. 23 v e ss. (20).
25 A A. recusou-se a assinar o novo contrato proposto pela R., por entender que as suas comissões ficavam reduzidas, face aos novos termos propostos (21).
26 Foram efetuadas reuniões entre a A. e a R., através dos meios eletrónicos à distância, mantendo a A. a sua posição de não aceitar a celebração de um novo contrato (22).
27 Referindo o Sr. AA, que sempre negociou com a R., em nome da A., “que já não tinha interesse em continuar como mediador da EMP02..., que esta não lhe merecia qualquer consideração e que era uma laranja podre” (23).
28 A partir do final do ano de 2020 a A. já não reunia os requisitos para ser agente Clube (24).
29 Tendo diminuído a sua carteira de clientes 32,5% em relação a 2019 (ascendendo a carteira a 163.000,00€) (25).
30 A partir de janeiro de 2021[,] a Ré passou a aplicar as novas tabelas de comissão aos prémios de seguro da Autora, mesmo sem o novo contrato de mediação ter sido assinado, por a Autora se ter recusado a tal (facto aditado).
31 Em 2021, a Autora recebeu as comissões da Ré, calculados à taxa de 9%, em resultado da aplicação das novas tabelas, sem os 4% adicionais referidos no ponto 19 (24 bis, com nova redação).
32 Entre ../../2019 e ../../2020, a A. cobrou de prémios de seguro 97.210,26€, e recebeu de comissões o montante de 15.778,78€, no mesmo período homologo entre 28/11/2020 e 30/06/2021, a A. cobrou de prémios de seguros 48.024,73€ e recebeu da Ré de comissões 5.327,34€ (24A).
33 Em junho de 2021 a carteira de clientes da A. tinha decrescido 52,1% em relação a 2020, havendo um decréscimo de cerca de 70% em 2021 face a 2018 (25).
34 Perante a recusa da A. na celebração do novo contrato apresentado, as afirmações que não tinha a A. interesse em continuar como mediadora da EMP02..., que era “uma laranja podre” e o decréscimo da carteira aludido em 25., e com o fito de evitar a total transferência da carteira por banda da A. para outras seguradoras, a R. remeteu a 21.6.2021, à A. a carta que consta de fls. 63, comunicando-lhe que nos termos da cláusula 5.2 do contrato de agente celebrado em ../../2012 lhe revogava os poderes de cobrança aos tomadores de seguro de quem era mediadora (26).
35 Mais comunicou nesta mesma carta que naquela data tinha procedido à resolução do Acordo de Utilização de Acessos Informáticos, nos termos da cláusula 9ª e 10ª daquele acordo (27).
36 Por email de 23/06/2021, junto a fls. 63v, a A. solicitou à Ré que lhe fossem mantidos os acessos informáticos (28).
37 Tendo a R respondido a esse email a ../../2021, pelo modo que consta de fls. 64 onde se disponibiliza para reunir coma A., referindo que "…nunca tomamos uma decisão desta natureza de ânimo leve, só o fazemos quando esgotamos todas as tentativas de manter um relacionamento profissional profícuo para ambas as instituições (agente e companhia), pois terminar uma relação com os nossos parceiros é algo que nunca gostamos de fazer” (29).
38 A A. respondeu nesse mesmo dia, pelo modo que consta de fls. 64v, classificando de leviana a decisão da R., e solicitando, além do mais, a reposição imediata dos acessos (30).
39 Ao que a R respondeu, ainda dia 24 de junho, como consta de fls. 65, referindo que a reunião dado o teor do e mail nada traria de novo, indicando e-mail e telefone de apoio a agentes, para a A. lograr continuar a exercer a atividade e apoiar os clientes de ambas (31). 
40 A R remeteu a ../../2021, a vários clientes angariados pela A., missivas dando-lhes conta da revogação dos poderes de cobrança e indicando outro agente mediador, EMP03..., Lda., com sede na Avª ..., ... ..., concorrente da A. onde poderiam proceder aos pagamentos, caso não pretendessem pagar por débito direto, multibanco ou nos Correios... – ver cartas de fls. 65v a 88 (32).
41 Com a revogação dos poderes de cobrança a A. deixou de ter contacto com clientes/tomadores aquando do pagamento dos prémios (33).
42 No dia ../../2021 pelas 7h49 ( ver fls. 89v) a A. solicitou à R. – para o email da colaboradora BB –a relação de recibos emitidos da carteira em ../../2021 (34).
43 Nesse mesmo dia e pelos mesmo modo, pelas 7h51 solicitou a relação dos recibos cobrados no período de 12.6.2021 a ../../2021 (ver fls. 90) (35).
44 Mais solicitando pelas 7h59 número de processo relativo a sinistro relativo a CC (ver fls. 90v) (36).
45 Pelas 11h50 fez nova solicitação a pedir numero do processo para enviar faturas (ver fls. 91) (37).
46 No dia 24 de junho solicitou a relação dos recibos cobrados entre ../../2021 e ../../2021 (ver fls. 91v) (38).
47 No dia 24 de junho solicitou a relação dos recibos cobrados entre ../../2021 e ../../2021 (ver fls. 92) (39).
48 No dia 25 de junho, pelas 9h24, solicitou a relação dos recibos cobrados entre ../../2021 e ../../2021 – ver fls. 93 (40).
49 41. No dia 28 de junho, pelas 9h27, solicitou enviou urgente do recibo nº ...81 – ver fls. 92v. (41).
50 Mais solicitou pelas 10h22 relação dos recibos cobrados entre ../../2021 e ../../2021 – ver fls. 93 – e pelas 10h23 além dos referidos recibos os avisos de cobrança da carteira entre ../../2021 a ../../2021 (41 bis).
51 Pelas 14h11 solicitou o envio do recibo de cobrança nº ...36 do cliente DD – ver fls. 89 (42).
52 A estes pedidos respondeu a R. – a sua colaboradora BB – pelas 14h43 do dia 28.6.2021 informando no atinente ao recibo ...36, que seria enviado via Correios... para o segurado a 2.07, e que a data de vencimento era 6.08. – Ver fls. 88v final e fls. 89 (43).
53 Pelas 14h46 reiterou a A. que o cliente iria lá buscar o recibo nesse dia (ver fls. 88v) (44).
54 Respondendo a colaboradora da R., pelas 15h58, referindo que como os acessos haviam sido retirados não lhe podiam enviar qualquer documentação relacionada com cobranças nem as listagens de continuados emitidos – ver fls. 88v. (45).
55 Por carta de 20/07/2021 - registada com A/R - , constante de fls. 94v a A. referiu à R que entendia como ilícito e abusivo o comportamento por ela assumido e interpelou a R., uma vez mais, que lhe fossem repostos os poderes de cobrança e o acesso à plataforma informática para poder continuar com a execução do contrato de agente de seguros, bem como fosse efetuada a prestação de contas até àquela data, sob pena do referido contrato se tornar inexequível e, como tal, considerar o contrato celebrado entre as partes automaticamente resolvido com justa causa (46).
56 Uma vez que a Ré não repôs o acesso da A. à plataforma informática, nem lhe restituiu os poderes de cobrança dos prémios de seguros, por carta de 30/07/2021 registada com A/R, junta a fls. 96v, a A. comunicou à R. que o contrato de prestação de serviços de agência se tinha tornado inexequível por sua culpa exclusiva, e que, em consequência, considerava o contrato de agente de seguros celebrado em ../../2012 resolvido com justa causa, solicitando o pagamento de todas as comissões a que tinha direito, bem como o pagamento da indemnização legal a que tinha direito pela resolução com justa causa do referido contrato (47).
57 As missivas antes referidas foram recebidas pela R. ver fls. 95v e 97v. (48).
58 Por carta datada de 27/08/2021 junta a fls. 98, a Ré comunicou à A. que mantinha a posição assumida e que a retirada dos poderes de cobrança e a resolução do acordo de utilização de acessos informáticos não se confunde com a resolução do contrato de agente, transmitindo à A. que não tinha ocorrido a resolução do contrato e que o mesmo permanecia em vigor entre as partes, pelo que o agente não estava impedido de prosseguir a sua atividade, nem dar cumprimento às suas obrigações legais e contratuais, disponibilizando-se para facultar as listagens sempre que solicitadas, acrescentando entender não ser devida qualquer indemnização de clientela, por falta de preenchimentos dos seus requisitos legais e contratuais (49).
59 Por carta de 22.5.2022 junta a fls. 101, a A. solicitou à R indemnização de clientela nos termos previstos na clausula 8.3.1 do contrato, peticionando a quantia de 73.221,61€, correspondente ao dobro da remuneração média anual dos últimos 5 anos de vigência do contrato, considerando para tal as comissões recebidas entre 2016 e 2020 (50).
60 A recebeu - ver fls. 98 v e ss. em 2016 - 45 835,46 € de comissões da R. (51).
61 Em 2017, 40.046,55€ (52).
62 No ano de 2018, 36.943,83€ (53).
63 No ano de 2019, 34.993,24€ (54).
64 No ano de 2020, 23.689,37€ (55).
65 No ano de 2021 - por atividade desenvolvida até final julho de 2021, data em que a A. pôs fim ao contrato - recebeu 6 044,62€ (56).
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2).1 Avançamos com a resposta à segunda questão, começando por dizer que há consenso entre as partes quanto à qualificação do contrato entre elas celebrado, através de escrito datado de 21 de maio de 2012, denominado de “Agente de Seguros EMP02...”, como um contrato de mediação de seguros. Também assim foi entendido na sentença recorrida.
Impõem-se, não obstante, algumas considerações e precisões sobre este aspeto, as quais facilitarão depois a definição do regime jurídico que deve ser aplicado ao contrato, em especial no que concerne à sua cessação e ao direito da Recorrente à indemnização de clientela que, através da ação, reclama da Recorrida.
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2).1.1. Não existe uma definição legal da espécie contrato de mediação, nem sequer um regime jurídico que o trate. O que encontramos são diplomas que regulam diversas atividades que designam por mediação e por intermediação, um dos quais o Regime Jurídico do Acesso e do Exercício da Atividade de Mediação de Seguros ou de Resseguros (RJAEAM), aprovado pelo DL n.º 114/2006, de 31.07, que com as redações introduzidas pelo DL n.º 359/2007, de 2.11, e pela Lei n.º 46/2011, de 24.06, estava em vigor no dia 21 de maio de 2012, tendo, entretanto, sido objeto de revogação pelo art. 15 da Lei n.º 7/2019, de 16.01, que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva (UE) 2016/97 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de janeiro de 2016 sobre a distribuição de seguros e aprovou o Regime Jurídico da Distribuição de Seguros e Resseguros (RJDSR).
O referido diploma, que regulava a atividade de mediação de seguros, não continha uma definição do contrato de mediação de seguros, afastando-se, portanto, da técnica habitualmente adotada pelo legislador quando se trata de consagrar um tipo legal.[2] Tratava a mediação de seguros do ponto de vista da atividade desenvolvida e não a partir dos seus suportes contratuais, conforme assinala Higina Castelo (Contrato de Mediação. Estudo das Prestações Principais, Lisboa: FDUNL, 2013, p. 24).
No seu art. 5.º, c), definia-se a mediação de seguros como “qualquer atividade que consista em apresentar ou propor um contrato de seguro ou praticar outro ato preparatório da sua celebração, em celebrar o contrato de seguro, ou em apoiar a gestão e execução desse contrato, em especial em caso de sinistro.”
Como se constata, estão presentes nesta definição três atividades distintas que, como nota Higina Castelo, “correspondem a três fases sucessivas da linha temporal dos contratos: negociação, celebração e execução.”
Na alínea e) do mesmo art. 5.º, definia-se “mediador de seguros” como qualquer pessoa singular ou coletiva que inicie ou exerça, mediante remuneração, a atividade de mediação de seguros.” Na sequência, previam-se, no art. 8.º, três categorias de mediadores de seguros: “a) Mediador de seguros ligado - categoria em que a pessoa exerce a atividade de mediação de seguros: i) Em nome e por conta de uma empresa de seguros ou, com autorização desta, de várias empresas de seguros, desde que os produtos que promova não sejam concorrentes, não recebendo prémios ou somas destinados aos tomadores de seguros, segurados ou beneficiários e atuando sob inteira responsabilidade dessa ou dessas empresas de seguros, no que se refere à mediação dos respetivos produtos; ii) Em complemento da sua atividade profissional, sempre que o seguro seja acessório do bem ou serviço fornecido no âmbito dessa atividade principal, não recebendo prémios ou somas destinados aos tomadores de seguros, segurados ou beneficiários e atuando sob inteira responsabilidade de uma ou várias empresas de seguros, no que se refere à mediação dos respetivos produtos; b) Agente de seguros - categoria em que a pessoa exerce a atividade de mediação de seguros em nome e por conta de uma ou mais empresas de seguros ou de outro mediador de seguros, nos termos do ou dos contratos que celebre com essas entidades; c) Corretor de seguros - categoria em que a pessoa exerce a atividade de mediação de seguros de forma independente face às empresas de seguros, baseando a sua atividade numa análise imparcial de um número suficiente de contratos de seguro disponíveis no mercado que lhe permita aconselhar o cliente tendo em conta as suas necessidades específicas.”
Nos arts. 28 a 34, eram elencados direitos e deveres dos mediadores de seguros, dos quais se destacavam o direito de receber atempadamente das empresas de seguros as remunerações respeitantes aos contratos da sua carteira cujos prémios não estivesse autorizado a cobrar (art. 28, c)), e o direito de descontar, aquando da prestação de contas, as remunerações relativas aos prémios cuja cobrança tivesse, com autorização, efetuado (art. 28, d)); o dever de celebrar contratos em nome da empresa de seguros quando esta lhe tivesse conferido os poderes necessários (art. 29, a)); o dever de prestar contas à empresa de seguros nos termos legal e contratualmente estabelecidos (art. 30, c)).
Com interesse, o acesso à categoria de agente de seguros, na qual se enquadrava a Autora, passava pela celebração de um contrato escrito com cada uma das empresas de seguros representadas, através do qual a empresa de seguros mandatava o agente para, em seu nome e por sua conta, exercer a atividade de mediação, devendo aquele contrato delimitar os termos desse exercício e conter o conteúdo definido pelo Instituto de Seguros de Portugal em norma regulamentar (art. 17/1 e 2). Essa norma constava, em 21 de maio de 2012, do n.º 1 do art. 8.º da Norma n.º 17/2006-R, de 29/12, alterada pelas Normas n.ºs 19/2007-R, de 31 de dezembro, 17/2008-R, de 23 de dezembro, e 23/2010-R, de 16 de dezembro, que previa o seguinte conteúdo mínimo: a) Identificação das partes; b) Ramos e modalidades ou produtos, a intermediar pelo agente de seguros no âmbito do contrato; c) Delimitação dos termos do exercício, incluindo, designadamente, a existência ou não de vínculos de exclusividade; d) Possibilidade, ou não, do agente de seguros colaborar com outros mediadores de seguros; e) Referência à outorga, ou não, de poderes para celebrar contratos de seguro em nome da empresa de seguros; f) Referência à outorga, ou não, de poderes de cobrança e/ou de regularização de sinistros e modo de prestação de contas; g) Montante, forma de cálculo e de atualização da remuneração; h) Regras relativas à indemnização de clientela; i) Período de vigência e âmbito territorial do contrato.” O n.º 2 acrescentava que, “[e]m caso de mudança de categoria do mediador que não determine a impossibilidade de prestar assistência aos contratos, se as partes pretenderem que os contratos de seguro integrantes da respetiva carteira passem a diretos, esse facto deve estar previsto no contrato.”
Por seu turno, o art. 45/2 consagrava, como veremos com maior detalhe, o direito do mediador à indemnização de clientela em caso de cessação do contrato, desde que verificados requisitos semelhantes aos exigidos no art. 33 do Regime Jurídico do Contrato de Agência (RJCA), aprovado pelo DL n.º 178/86, de 3.07, na redação do DL n.º 118/93, de 13.04.
Do que antecede, concluímos, na esteira de Higina Castelo (Contrato de Mediação cit., pp. 29-30), que as regras referentes aos contratos a celebrar entre agentes de seguros e mediadores de seguros ligados, por um lado, e seguradoras, por outro, eram bastante pormenorizadas no que tange à qualidade das partes (de um dos lados destes contratos estavam pessoas com especiais qualidades, administrativamente reconhecidas, de empresa de seguros, como decorre da conjugação dos arts. 15 e 17 com as condições e os procedimentos impostos pelo DL 94-B/98, de 17.04, sobre o regime de acesso e de exercício da atividade seguradora), a função socioeconómica do contrato (facilitar a celebração e/ou a gestão de contratos de seguro, presente nas normas que descreviam as atividades dos mediadores), o objeto mediato (atividade mediadora prevista no art. 5.º, c)), a remuneração do mediador (arts. 5.º, e), e 28, c) e d)); a execução continuada.
Os dados da questão não sofreram alteração com o Regime Jurídico da Distribuição de Seguros e Resseguros, aprovado pela já referida Lei n.º 7/2019, de 16.01. Este continua a não definir o contrato, mas apenas as atividades que podem constituir o seu objeto mediato. Assim, no respetivo art. 4.º, diz-se que: a) por distribuição de seguros entende-se “qualquer atividade que consista em prestar aconselhamento, propor ou praticar outros atos preparatórios da celebração de contratos de seguro, em celebrar esses contratos ou em apoiar a gestão e a execução desses contratos, em especial em caso de sinistro, incluindo a prestação de informações sobre um ou mais contratos de seguro, de acordo com os critérios selecionados pelos clientes através de qualquer meio, nomeadamente através de um sítio na Internet, e a compilação de uma lista de classificação de produtos de seguros, incluindo a comparação de preços e de produtos ou um desconto sobre o preço de um contrato de seguro, quando o cliente puder celebrar direta ou indiretamente um contrato de seguro, nomeadamente recorrendo a um sítio na Internet ou a outros meios”; b) por distribuidor de seguros entende-se “um mediador de seguros, um mediador de seguros a título acessório ou uma empresa de seguros;” c) por mediador de seguros entende-se “qualquer pessoa singular ou coletiva, com exceção de empresas de seguros ou de resseguros e dos seus trabalhadores e de mediadores de seguros a título acessório, que inicie ou exerça, mediante remuneração, a atividade de distribuição de seguros.” Acrescenta-se, no art. 16/1, que o acesso à atividade pressupõe, para além dos requisitos de inscrição no registo, junto da Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, como agente de seguros, a celebração de um contrato escrito “com cada uma das empresas se seguros” representadas, “através do qual a empresa de seguros mandata o agente para, em seu nome e por sua conta, exercer a atividade de distribuição, devendo aquele contrato delimitar os termos desse exercício.” No art. 23, estabelecem-se direitos do mediador de seguros relativamente às empresas de seguros (obter atempadamente das empresas de seguros todos os elementos, informações e esclarecimentos necessários ao desempenho da sua atividade e à gestão eficiente da sua carteira; ser informado pelas empresas de seguros da cessação de contratos de seguro da respetiva carteira de seguros; receber atempadamente das empresas de seguros as remunerações respeitantes aos contratos da sua carteira de seguros, bem como outros montantes que lhe sejam devidos nos termos contratualmente definidos; descontar, no momento da prestação de contas com as empresas de seguros, as remunerações relativas aos prémios cuja cobrança tenha efetuado e esteja autorizado a cobrar). No art. 24, prevêem-se deveres gerais do mediador de seguros, entre eles merecendo destaque o de “[c]elebrar contratos em nome da empresa de seguros apenas quando esta lhe tenha conferido, por escrito, os necessários poderes” e, no art. 29, deveres do mediador de seguros para com as empresas de seguros, como sejam os de informar de todos os recebimentos de prémios e pagamentos de estornos ou sinistros, através de prestação de contas realizada nos termos e pelos meios acordados, entregar, nos prazos acordados, os montantes devidos, resultantes das prestações de contas mencionadas na alínea anterior; atuar com lealdade e informar sobre todos os factos de que tenha conhecimento e que possam influir na regularização de sinistros. Finalmente, no art. 55, contempla-se o direito do mediador à indemnização de clientela em caso de cessação do contrato.
Como é sabido, da inexistência de uma definição legal não resulta um impedimento a que se reconheça a tipicidade de um determinado contrato; o legislador também recorre a outras técnicas, como sejam a fixação das características necessárias e suficientes para a qualificação ou a fixação dos efeitos do contrato. A propósito, Pedro Pais de Vasconcelos (Contrato cit., pp. 90-91) e Rui Pinto Duarte (Tipicidade cit., pp. 65-67).
Tendo isto em conta, afigura-se que os aspetos legais apontados parecem suficientes para caracterizar os contratos utilizáveis pelos agentes de seguros e pelos mediadores de seguros ligados, nas suas relações com as seguradoras, na vigência do RJAEAM, o mesmo valendo, dada a identidade de razões, no que tange aos contratos celebrados pelos agentes de seguros no regime jurídico atualmente em vigor.
Acresce que os efeitos que o legislador instituiu como típicos destes contratos são suficientemente completos para serem olhados como regimes jurídicos próprios. O mesmo sucede com o regime de responsabilidade da seguradora pelos atos do mediador (de qualquer das categorias) que, sem poderes de representação conferidos por escrito, age com aparência de os ter –, consagrado no art. 30 do DL n.º 72/2008, de 16.04, e que é idêntico ao regime previsto nos arts. 22 e 23 do Regime Jurídico do Contrato de Agência.
Tudo isto leva a crer estarmos perante contratos típicos, que apenas se distinguem entre si, grosso modo, pelo grau de vinculação da seguradora – mais forte, em resultado da maior responsabilidade pela atuação mediador, no caso dos mediadores de seguros ligados do que no dos agentes de seguros.
Há, no entanto, duas caraterísticas comuns que tipicamente os afastam do contrato de mediação: a representação jurídica e a estabilidade. Neste sentido, Coutinho de Abreu (Curso de Direito Comercial, I, Introdução, atos de comércio, comerciantes, empresas, sinais distintivos, 8.ª ed., Coimbra: Almedina, 2011., p. 143, nota 117), entende que[,] “entre os mediadores de seguros, somente o corretor de seguros merece a qualificação de mediador em sentido próprio. O mediador de seguros ligado e o agente de seguros vinculam-se a uma ou mais empresas seguradoras (v. os arts. 8.º, a) e b), 15.º-18.º do RJAEAM); o mediador de seguros ligado pode, inclusive, ser trabalhador de empresa seguradora (arts. 14.º, 1, a), 32.º, 1, g)).” De igual modo, Carlos Lacerda Barata, “Contrato de mediação”, AAVV, Luís Menezes Leitão (coord.), Estudos do Instituto do Direito do Consumo, I, Coimbra, Almedina, 2002, pp. 185-231), tendo como referência a legislação anterior ao RJAEAM, escreve que “[é] inegável que não se trata de mediação pura e simples. Quer o agente, quer o angariador, quer o corretor de seguros, não se limitam a – de modo imparcial – aproximar contraentes, com vista à celebração de certo contrato de seguro. Acrescem outras prestações. Em alguns casos, só por si, não incompatíveis com a mediação; noutros, frontalmente inconciliáveis com esta.” Segundo o mesmo Autor, a aferição da natureza jurídica do contrato de mediação de seguros deve “fazer-se na consideração isolada de cada uma das categorias”, pois trata-se de uma figura híbrida com traços de mediação (apresentação e preparação de contratos), agência com representação (celebração de contratos) e prestação de serviço (assistência, regularização de sinistros, consultadoria).”
J. C. Moitinho de Almeida (“O mediador na conclusão e execução do contrato de seguro”, Scientia Iuridica, 55: 305, jan./mar. de 2006, pp. 23-60), entende tratarem-se de contratos de agência. Este entendimento é também perfilhado por Luís Poças (“Aspetos da mediação de seguros”, Estudos de Direito dos Seguros, Porto: Elcla, 2008 pp. 117-249) que salienta estarem presentes “os traços típicos do contrato de agência – promoção da celebração de contratos, por conta de outrem, de modo autónomo e estável, e mediante retribuição – que permitem a identificação da natureza jurídica do contrato de mediação de seguros, nas categorias mediador de seguros ligado e agente de seguros, com o contrato de agência. Acresce que, como no contrato de agência, estas duas categorias de mediação de seguros beneficiam igualmente do direito a uma indemnização de clientela em caso de cessação do contrato, para além de que normalmente as mesmas operam contratualmente pela atribuição de uma área territorial definida.” Também Higina Castelo (Contratos de Mediação cit., p. 31) conclui que os referidos contratos são subtipos do contrato de agência.
Na jurisprudência, foi entendido, em RC 15.12.2016 (1138/15.5T8CTB.C1), relatado por Luís Cravo, que: I. O contrato de mediação de seguros é um contrato típico, encontrando-se atualmente regulado pelo DL 144/2006, de 31.07 (sendo a sua atual redação decorrente da alteração introduzida pela Lei nº 46/2011 de 24.06). II. O regime legal aplicável a esse contrato é ainda o que resultar das cláusulas contratuais acordadas expressamente entre as partes e, subsidiariamente, dos princípios e regras gerais dos contratos, sendo que, na medida em que a subespécie dos contratos de mediação de seguros, tal como a dos contratos de agência, integra a categoria dos denominados “contratos de distribuição”, deve funcionar o regime jurídico do contrato de agência, previsto no DL 178/86 de 03.07, como regime modelo, por aplicação analógica (artigo 10º do Código Civil).”
Aderimos, data venia, a este entendimento. Na verdade, os contratos em apreço, em especial os celebrados entre agentes de seguros e seguradoras, apresentam os mesmos elementos definidores essenciais que caraterizam o contrato de agência, tal como este é definido no art. 1.º do RJCA, a saber: a promoção da celebração de contratos, a atuação por conta do principal, a autonomia, a estabilidade e a onerosidade (cf. José Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Coimbra: Almedina, 2009, pp. 440-441).
O primeiro destes elementos, normalmente apontado como o “mais relevante traço da agência” (José Engrácia Antunes, idem), consiste numa obrigação consubstanciada numa prestação de facto complexa que, devendo ser executada de boa fé no respeito dos interesses do principal (art. 6.º do RJCA), se traduz num conjunto variado de atos materiais que vão desde a prospeção do mercado, a difusão publicitária dos produtos e serviços do principal, até à angariação de novos clientes, ao estabelecimento de negociações e à fidelização dos clientes já angariados. Os contratos não são celebrados pelo agente com os clientes. Aquele limita-se a promover e preparar a sua celebração pelo principal. Prevê-se, no entanto, a possibilidade de o agente ser autorizado, através de disposição contratual expressa, a celebrar tais contratos na qualidade de representante do principal (art. 2.º) e a cobrar os créditos daqueles emergentes (art. 3.º). Esta possibilidade está, como vimos, também prevista nos contratos de mediação de seguros celebrados com agentes de seguros, o que suscita no âmbito deles, à semelhança do que sucede nos contratos de agência, o problema da tutela de terceiros (designadamente clientes) que negociaram com um mediador sem poderes de representação atribuídos pela seguradora, acerca do qual encontramos a maior parte dos arestos produzidos pela jurisprudência dos tribunais superiores no domínio da mediação de seguros – inter alia, STJ 13.04.2021 (2347/18.0T8VRL.G1.S1), relatado por Rosa Tching, e STJ 27.02.2024 (18693/19.3T8PRT.P1.S1), relatado por Manuel Aguiar Pereira. A solução encontrada pelo legislador no art. 30 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16.04, é semelhante à prevista, para o contrato de agência, nos arts. 222 e 23 do RJCA: com vista a proteger a boa fé dos terceiros, o legislador consagrou a ratificação tácita desses negócios caso a seguradora (ou o principal) a eles se não oponha no prazo de cinco dias após o seu conhecimento e ainda a relevância da denominada representação aparente.
O segundo elemento – a atuação do agente por conta do principal – significa, por um lado, que os atos que o agente pratica se destinam a ser projetados ou repercutidos na esfera jurídica do principal, verdadeiro dominus negotii, e, por outro, que a atuação do agente deverá ser realizada em benefício ou em vantagem do principal, prosseguindo aquilo que sabe ou pensa ser o interesse deste último. Dito de outra forma, as utilidades da atuação do agente devem atingir os fins do principal (Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, “Art. 1157”, AAVV, Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Contratos em Especial, Lisboa: UCE, 2023, p. 667).
Do terceiro elemento – a autonomia – resulta que o agente, embora atue por conta e no interesse do principal, exerce a sua atividade de um modo independente, gozando de autonomia quanto à execução da sua obrigação de promoção contratual. É o traço que permite distinguir o agente do trabalhador ou de outros colaboradores dependentes do principal.
O quarto elemento – estabilidade – evidencia a natureza estável e continuada da atividade do principal, que é consequência na natureza duradoura do contrato de agência – seja esta indeterminada ou determinada. Não está em causa uma operação esporádica, mas uma pluralidade de operações que se prolongam no tempo. É este, como vimos, um aspeto em que os contratos de mediação de seguros se afastam do conceito de mediação: no dizer de José Engrácia Antunes (Direito dos Contratos Comerciais cit., p. 443), “conquanto o mediador exerça também uma atividade de intermediação negocial semelhante à do agente, a verdade é que ela se traduz numa intermediação isolada ou pontual, quando solicitado para a preparação de um determinado negócio em concreto.”
O quinto elemento – onerosidade – resulta de o agente ter direito a receber, em contrapartida da sua atividade, uma remuneração do principal, a qual consistirá usualmente numa comissão, calculada em função do volume de negócios angariados para o principal (arts. 16 a 18 do RJCA), sendo determinada, na falta de convenção das partes, segundo os usos mercantis ou a equidade (art. 15 do RJCA).
Para além desta similitude no que tange aos elementos essenciais, os contratos de mediação de seguros apresentam, potencialmente, outras com o contrato de agência, estas relativas a elementos eventuais, dependentes de consenso entre as partes: para além da já referida possibilidade de serem atribuídos ao mediador poderes de representação da seguradora, com a inerente contemplatio domini, também a possibilidade de ser atribuída ao mediador uma “certa zona” ou um “determinado círculo de clientes” e a possibilidade de exclusividade recíproca da relação.
As especialidades dos contratos de mediação de seguros em relação ao contrato de agência, que justificam um tratamento legislativo próprio, focado na atividade que constitui o respetivo objeto mediato, são explicadas pela natureza desta, a demandar uma concreta e específica regulamentação estadual, e pelo específico acompanhamento que os mediadores de seguros fazem dos contratos que, com a sua intervenção, sejam celebrados entre a seguradora e os tomadores.
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2).1.2. Com o que antecede, não fica esgotada a qualificação jurídica da relação contratual estabelecida entre Recorrente e Recorrida. Impõe-se ainda acrescentar que, no caso, a Recorrida atribuiu poderes à Recorrente para, em seu nome e representação, celebrar contratos de seguro com os respetivos tomadores e, bem assim, para cobrar os prémios devidos por estes.
A relevância da atribuição daqueles poderes representativos é evidente: como se sabe, a regra é a de que apenas o titular dos interesses a regular por um determinado negócio deve intervir na sua realização. No dizer de Inocêncio Galvão Telles (Manual dos Contratos em Geral, 3.ª ed., Lisboa, 1965, p. 301), “o normal é que o sujeito do negócio jurídico, a parte em sentido formal, coincida com o sujeito do interesse, a parte em sentido substancial.” E isto é assim porque cada um tem a sua própria esfera de competência dispositiva: árbitro dos seus interesses, e destes apenas, não pode ingerir-se na esfera de interesses alheios.” Por isso, como escreve Emílio Betti (Teoria Geral do Negócio Jurídico, II, Coimbra: Coimbra Editora, 1969, pp. 32-33), “cada um dispõe das coisas que lhe pertencem; renuncia aos seus direitos; adquire para si; assume obrigações por si.” Existe, deste modo, um princípio de coincidência, entre sujeito da declaração e sujeito do interesse que é regulado por via dos efeitos reais, obrigacionais, aquisitivos, dispositivos ou outros, de que aquela é fonte. A coincidência deriva, de modo positivo e negativo, do princípio da autonomia privada – i. é, do poder que cada um tem de autorregular os seus próprios interesses de modo a prosseguir finalidades particulares. De modo positivo, na medida em que tem por condição o reconhecimento de que um sujeito pode regular os seus interesses; mas, ao mesmo tempo, cada autonomia é limitada à esfera desses mesmos interesses, não podendo servir para ingerências em esferas jurídicas alheias, sob pena de esmagamentos da autonomia dos sujeitos respetivos (Rui Pinto, Falta e Abuso de Poderes na Representação Voluntária, Lisboa: AAFDL, 1994, p. 10).
Para dar resposta às necessidades do tráfico jurídico, admite-se, todavia, que alguém possa intervir numa esfera que não a sua, produzindo nela efeitos jurídicos. Para que isso aconteça – e não haja ilegitimidade – é necessário ou uma situação típica tabelada na lei, funcionando automaticamente ou mediante intervenção judicial, ou ainda que seja o titular dessa esfera a requerer a intervenção. Está-se, então, perante a legitimidade indireta, também dita de segundo grau (Emílio Betti, Teoria cit., pp. 34 e ss.). É neste contexto que surge o instituto da representação, seja legal ou voluntária, dispondo o art. 258 do Código Civil que [o] negócio jurídico realizado pelo representante, em nome do representado, nos limites dos poderes que lhe competem, produz os seus efeitos na esfera jurídica deste último.”
Apesar de a norma se referir, prima facie, aos efeitos da representação, é possível construir a partir dela um conceito de representação no qual se encerrem os elementos definidores do instituto em geral e da representação, em particular.
Assim, a representação consiste em alguém (o representante) realizar atos jurídicos em nome e no interesse de outrem (o representado), nos limites de poderes conferidos por este ou pela lei. Não se inclui no conceito de representação a produção direta dos efeitos do negócio na esfera jurídica do representante, uma vez que isso é uma consequência direta daquela ação e não um seu elemento (Rui Pinto, Falta e Abuso de Poderes na Representação Voluntária, Lisboa: AAFDL, 1994, p. 14).
O representante, embora seja parte formal no negócio celebrado com terceiro, atua em nome de outrem – o dono do negócio ou dominus negotii – e não em seu próprio nome, como sucede no mandato sem representação (art. 1180), em que o mandatário age em nome próprio, apesar de “praticar um ou mais atos jurídicos por conta” do mandante (art. 1157). Isto significa que o representante deve mostrar-se perante terceiros como substituindo a pessoa em lugar de quem age e em relação à qual se referem, por isso, os efeitos do negócio jurídico. Esta ideia é expressa pelo brocardo latino contemplatio domini. O representante, ao atuar em nome alheio, mostra que não quer os efeitos do negócio para si, mas para o dominus.
A representação pressupõe ainda que o representante atue ao abrigo de poderes que lhe permitam agir em nome alheio. Caso contrário, os efeitos negociais não se fazem sentir na esfera jurídica do dominus.
O poder de representação é uma posição jurídica ativa que integra a esfera jurídica do agente, atribuindo-lhe legitimidade para afetar a esfera jurídica do dominus através da produção nela de efeitos de negócio em que este não interveio formalmente. Este poder tem, portanto, uma função de legitimação (Emílio Betti, Teoria cit., III, p. 238).
O mesmo tipo de raciocínio explica a importância dos poderes de cobrança: sem eles – e ressalvados os casos de representação aparente –, os pagamentos feitos pelos tomadores ao mediador não terão o efeito de extinguir a obrigação de pagar os prémios devidos à seguradora (cf. art. 770 do Código Civil).
As cláusulas que atribuem poderes para a celebração de negócios jurídicos em nome do principal e para a prática de atos jurídicos como a cobrança de créditos são típicas do mandato com representação (arts. 1157 e 1178/1 do Código Civil).
O que antecede permite-nos concluir que as partes previram, num mesmo instrumento negocial, prestações próprias dos contratos de mediação de seguros e de mandato com representação. Estamos, assim, perante um contrato misto, espécie dentro da qual a doutrina distingue várias categorias. Assim, Vaz Serra (União de Contratos – Contratos Mistos, BMJ, n.º 91, pp. 41 e ss.), classifica os contratos mistos em (i)) contratos combinados ou gémeos, em que um dos contraentes se obriga a várias prestações principais, correspondentes a diferentes tipos de contrato, e o outro contraente se obriga a uma prestação unitária”, (ii)) contratos de tipo duplo, “em que o conteúdo total do contrato se enquadra em dois tipos diferentes de contrato, havendo, portanto, um conteúdo que se revela como sendo, ao mesmo tempo, o de dois contratos”, e (iii)) os contratos mistos stricto sensu, que são aqueles que têm “um elemento que representa, ao mesmo tempo, um contrato de outro tipo.” Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, I, 10.ª ed., Coimbra: Almedina, 2000, pp. 290 e ss.) distingue os (i)) contratos combinados, em que “a prestação global de uma das partes se compõe de duas ou mais prestações, integradoras de contratos (típicos) diferentes, enquanto a outra se vincula a uma prestação unitária”, os (ii)) contratos de tipo duplo, em que uma das partes se obriga a uma prestação de certo tipo contratual e a outra a uma contraprestação de um outro tipo contratual, e os (iii)) contratos mistos em sentido estrito, em que a estrutura própria de um tipo contratual é utilizada como meio ou instrumento e é afeiçoada de modo a que “o contrato sirva, ao lado da função que lhe compete, a função própria de um outro contrato.” Para Inocêncio Galvão Telles (Dos Contratos em Geral, Coimbra, 1947, p. 326), há que distinguir entre os contratos múltiplos, que correspondem aos contratos combinados de Antunes Varela, os contratos geminados, os contratos cumulativos e os contratos complementares. Menezes Cordeiro (Direitos das Obrigações, I, Lisboa: AAFDL, p. 425), integra as classificações de Antunes Varela e de Inocêncio Galvão Telles e propõe uma classificação quadripartida em (i)) contratos múltiplos ou combinados, que são “aqueles em que uma das partes se encontra adstrita a prestações próprias de vários tipos contratuais, face à outra, obrigada a uma prestação única”, (ii)) contratos de tipo duplo ou geminados, que são “aqueles em que uma das partes está adstrita a uma prestação típica de um contrato e a outra a uma prestação própria de outro”, (iii)) contratos mistos stricto sensu ou cumulativos ou indiretos, que são “aqueles que se encontram concebidos de tal forma que, através da utilização de um tipo contratual, se prossegue, também, a regulamentação propugnada por outro” e (iv)) contratos complementares, que são “aqueles em que uma obrigação própria de um tipo contratual é acompanhada, acessoriamente, por obrigações oriundas de tipos diferentes.”
Se tomarmos em conta que as cláusulas típicas do mandato tiveram como razão de ser o exercício da atividade de mediação de seguros que a Recorrente se obrigou a exercer por conta da Recorrida, temos de concluir que aquelas são complementar das cláusulas que conformam e, logo, de qualificar o contrato como um contrato misto do 4.º tipo a que se refere Menezes Cordeiro.
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2).1.3. Impõe-se, finalmente, dizer que, complementarmente, as partes celebraram o denominado “Acordo de Utilização de Acessos Informáticos”, através do qual a Recorrida se obrigou a permitir o acesso da Recorrente aos sistemas informáticos por si implementados, para a realização das operações discriminadas no respetivo anexo I, todas elas relacionadas com o exercício da atividade que a segunda se obrigou a exercer “por conta e no interesse da primeira”, através do “Contrato de Agente EMP02...”.
É evidente a conexão entre os dois contratos, caracterizada pela dependência funcional de um deles – o de Utilização de Acessos Informáticos – em relação ao outro – o “Contrato de Agente EMP02....” Ambos visam a mesma operação económica global ou, dito como mais rigor, a mesma causa contratual.
Isto leva-nos a entender que a situação é enquadrável na figura que a doutrina habitualmente denomina de união interna de contratos, em que a validade e a vigência de um ou de ambos os contratos dependem da validade e da vigência do outro. A propósito, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 9.ª ed., Coimbra: Almedina, 1996, pp. 288-289.
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2).2.1. Definido o quadro negocial em que a Recorrente estriba a sua pretensão indemnizatória, cabe agora acrescentar que esta se resume à denominada indemnização de clientela e tem como pressuposto a existência de uma justa causa para a resolução do “Contrato de Agente EMP02...”, levada a cabo pela Recorrente através da declaração resolutória plasmada na carta enviada à Recorrida no dia 30 de julho de 2021 e por esta recebida. Na tese gizada pela Recorrente na petição inicial, com arrimo na declaração resolutória de 30 de julho de 2021, referida no ponto 47 da fundamentação de facto da sentença, essa justa causa consistiu, por um lado, na revogação dos poderes de cobrança e, por outro, na revogação unilateral, por parte da Recorrida, do “Acordo de Utilização de Acessos Informáticos.” Não consistiu na aplicação, feita a partir de janeiro de 2021, da nova tabela de comissões.
Diz o art. 33/1 do RJCA que, “[s]em prejuízo de qualquer outra indemnização a que haja lugar, nos termos das disposições anteriores, o agente tem direito, após a cessação do contrato, a uma indemnização de clientela, desde que sejam preenchidos, cumulativamente, os requisitos seguintes: a) O agente tenha angariado novos clientes para a outra parte ou aumentado substancialmente o volume de negócios com a clientela já existente; b) A outra parte venha a beneficiar consideravelmente, após a cessação do contrato, da atividade desenvolvida pelo agente; c) O agente deixe de receber qualquer retribuição por contratos negociados ou concluídos, após a cessação do contrato, com os clientes referidos na alínea a).”
Existem, basicamente, duas linhas de orientação acerca do fundamento deste instituto. Ambas partem da genérica constatação de que, ao longo da execução do contrato e mercê do cumprimento das respetivas obrigações, o agente vai fidelizando uma base de clientela para os produtos ou serviços fornecidos pelo principal, contribuindo, desse modo, para incrementar a goodwill da respetiva empresa, e, uma vez finda a relação entre as partes, deixa nas mãos do principal um benefício ou vantagem que se presume não ter sido (ainda) devidamente compensado ou retribuído.
Para a primeira das referidas teses, a indemnização de clientela consiste numa pretensão retributiva ou remuneratória. Está nela em causa o pagamento de uma retribuição suplementar a que o agente tem direito pela atividade que anteriormente exerceu. Para a segunda, a indemnização de clientela baseia-se no princípio da compensação do enriquecimento sem causa. Consiste mesmo numa manifestação direta deste instituto. Parte-se do pressuposto de que, no termo do contrato, o principal sai injustamente beneficiado com as vantagens económicas associadas à prossecução dos contactos negociais com os clientes fidelizados pelo anterior agente, acrescentando-se, por vezes, que este fica, por seu turno, empobrecido na medida das comissões que lhe caberia receber se o vínculo de agência não se houvesse extinguido. Há um aproveitamento da referida clientela ou uma apropriação da mais-valia que se presume não ter sido compensada em vida do contrato, cabendo à indemnização de clientela remover essa deslocação ou acréscimo patrimonial.
Como explica Fernando Ferreira Pinto (“A indemnização de clientela no âmbito dos contratos de distribuição”, Revista de Direito Comercial, disponível em www.revistadedireitocomercial.com), as duas orientações não são incompatíveis entre si, podendo mesmo dizer-se que se complementam. O autor acrescenta que “[n]enhuma delas se mostra, porém, capaz de fornecer uma justificação inteiramente satisfatória para a consagração da figura, sendo geralmente reconhecido que ambas apresentam problemas de compatibilização com aspetos fulcrais do regime da indemnização de clientela.  Assim, qualquer das referidas orientações revela-se dificilmente compaginável com a circunstância de a indemnização não ser devida quando o contrato venha a cessar por impulso discricionário do agente ou por motivo que lhe seja imputável. Não só tal não acontece quando esteja em causa uma verdadeira remuneração, como o regime do enriquecimento sem causa não se mostra sensível à “culpa” da parte que suporta o empobrecimento. Da mesma maneira, partindo-se da ideia de retribuição ou de compensação de uma deslocação patrimonial, não se torna fácil compreender porque é que a indemnização há-de ficar sujeita a um limite máximo e ser calculada segundo juízos de equidade.  Acresce, no que respeita, em particular, à perspetiva que vê na indemnização de clientela uma pura manifestação do direito à retribuição, que se projeta para além da cessação do contrato, constituindo uma espécie de sucedâneo das comissões esperadas pelo agente, que tal conceção não tem hoje qualquer suporte legal, pois a indemnização de clientela pode ser atribuída mesmo que o agente não perca quaisquer comissões com a cessação do contrato.”
Defende, assim, que “a ideia-chave que inspirou o legislador ao consagrar este original instrumento de engenharia jurídica foi, na realidade, a de procurar compensar o desnível que, uma vez que o vínculo se extinga, muitas vezes se verificará entre as vantagens proporcionadas pelo contrato a cada uma das partes, com acentuado proveito para o principal. A intenção básica que subjaz ao instituto é, pois, a da compensação de vantagens (Vorteilsausgleich), isto é, a de procurar restabelecer o equilíbrio rompido com a cessação do vínculo, quando se torne manifesto que, ou por virtude do modelo de remuneração adotado pelas partes, ou em consequência do modo como a relação se desenrolou e veio a findar, os benefícios proporcionados ao comitente através da futura manutenção de relações de negócios com clientes captados ou incentivados pelo agente, não foram espontaneamente compensados, em vida do contrato, mediante os pagamentos que aquele haja efetuado a este último, tendo presente o padrão (objetivo) de justiça contratual que inere ao modelo retributivo consagrado (a título supletivo) na própria lei. A indemnização de clientela visa, precisamente, remover o diferencial de ganho decorrente da falta de equivalência entre as atribuições patrimoniais recíprocas dos intervenientes, sempre que ele se revele impressivo e se traduza num acrescido potencial de ganho futuro para a empresa do principal, procurando assegurar a tendencial paridade de valor entre essas atribuições, mesmo para além do período de vigência da relação contratual.”
Partindo daqui, depois de recusar a ideia de reconduzir a figura em institutos civis gerais, designadamente no da proibição dos enriquecimentos indevidos ou injustos, o autor indica, como explicação para ela, a “circunstância de as características da atividade empresarial do agente e a estrutura típica da sua retribuição o exporem a um risco anormal de aproveitamento ilegítimo ou injusto da situação de vantagem que a cessação do contrato pode proporcionar ao principal. Dito por outras palavras: a função prototípica do agente – que se traduz em promover negócios e em captar clientes estáveis, diretamente para a contraparte –, o perfil jurídico da respetiva atuação – agindo no interesse e por conta do principal e sujeitando-se às instruções que dele receba no que toca à política comercial a implementar –, a variabilidade das modalidades que pode revestir a sua remuneração e o carácter contingente da que se encontra prevista na lei – ontologicamente dependente da obtenção de um resultado, cuja consecução é afetada por múltiplas condicionantes – e, como corolário de tudo isso, as características da sua empresa – em que o fator trabalho prepondera sobre todos os demais – e a natureza imaterial do ativo em que se corporiza o essencial do seu investimento – a clientela que logrou fidelizar –, expõem-no a uma situação de grande vulnerabilidade, que pode ser facilmente explorada pela contraparte, na medida em que os próprios mecanismos do contrato, conjugados com a racionalidade empresarial do comitente, estimulam o aproveitamento dessa situação de debilidade estrutural.” E conclui tratar-se de “uma intervenção legislativa destinada a contrabalançar o risco excessivo de uma turbação do equilíbrio económico do contrato e que se justifica pelas próprias características da atividade do agente, pelo modo como ele é remunerado e pela falta de incentivos adequados à detenção do oportunismo do principal.”
Ora, esse risco ocorre quando “o principal mobiliza de forma oportunista os mecanismos de cessação do contrato ao seu dispor ou quando simplesmente se aproveita da extinção do vínculo (em especial, se for devida a circunstâncias não imputáveis a qualquer das partes) para capturar essas vantagens, as quais persistem por a duração do vínculo ou o modo como ele se desenvolveu não terem permitido que o equilíbrio entre as atribuições patrimoniais respetivas se concretizasse até esse momento. É esta a ideia que explica cabalmente as situações em que a lei exclui o direito à indemnização de clientela (bem como aquelas em que, simetricamente, confirma a sua constituição) e é também ela que permite acomodar os requisitos a que, positivamente, sujeita a procedência da pretensão do agente. Na realidade, nas situações em que a lei exclui, a priori, a atribuição da indemnização ao agente, parece óbvio que a cessação do contrato não poderá nunca ter como móbil a expropriação da respetiva carteira de clientes por banda do principal. Nas restantes situações, não está afastado o risco de aproveitamento censurável ou ilegítimo da situação de vantagem proporcionada ao principal, pelo que se deverá indagar se, em termos de equidade, a pretensão do agente deve realmente proceder, tendo em conta todas as circunstâncias que caracterizam a factispécie e, nomeadamente, o modo como a relação cessou.”
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2).2.2. Como vimos, nos contratos de mediação de seguros está também prevista a indemnização de clientela em termos que não apresentam diferença de tomo relativamente ao regime, diremos geral, do contrato de agência. Assim, dizia o art. 45/2 do RJAEAM e diz agora o art. 55/1 do RJDSR, que, em caso de cessação do contrato, “e sem prejuízo de qualquer outra indemnização a que haja lugar, o mediador de seguros tem direito a uma indemnização de clientela, desde que tenha angariado novos clientes para a empresa de seguros ou aumentado substancialmente o volume de negócios com clientela já existente e a empresa de seguros venha a beneficiar, após a cessação do contrato, da atividade por si desenvolvida.” Como se vê, não se exige o requisito consagrado na alínea c) do n.º 1 do art. 33 do RJCA. Não obstante, tendo em conta a intencionalidade subjacente à indemnização de clientela, deve entender-se que deixa de se justificar esta compensação caso o agente receba alguma retribuição por contratos negociados ou concluídos, após a cessação do contrato, com os novos clientes angariados. Neste sentido, Mafalda Miranda Barbosa (“Anotação ao art. 55.º”, Pedro Romano Martinez / Filipe Albuquerque Matos (org.), Lei da Distribuição de Seguros Anotada, Coimbra: Almedina, 2019, p. 451).
Diga-se que a consagração deste direito no âmbito da mediação de seguros não merece o apoio da doutrina. Para Maria Inês Oliveira Martins (“Anotação ao art. 55.º”, AAVV, Pedro Romano Martinez / Filipe Albuquerque Matos (org.), Lei da Distribuição de Seguros Anotada, Coimbra: Almedina, 2019, pp. 440-441), a lógica da indemnização de clientela é de fácil  apreensão “quando pensada a vantagem conseguida para um principal que seja um vendedor de bens: nestas hipóteses, importa sobretudo angariar novos clientes que plausivelmente no futuro celebrarão repetidamente novos negócios com o principal (no comum dos casos, far-lhe-ão novas encomendas dos bens fornecidos); e o mesmo é de esperar quando o agente consiga gerar um aumento substancial do volume das encomendas destes fornecedores. Por isso, o ganho que o agente gera para o principal é a chance desses contratos futuros com clientes novos, ou clientes já existentes, mas que alargaram o volume dos negócios que celebram com o principal. As coisas não se passam, porém, do mesmo modo num contrato duradouro, como é o contrato de seguro. Aqui, não é pelo facto de um sujeito se ter tornado tomador-cliente do segurador que irá no futuro plausivelmente celebrar repetidamente novos contratos com ele. A vantagem de que o segurador continua a beneficiar depois da cessação do contrato com o seu agente consiste nos prémios que continuarão a ser pagos por contratos que o agente angariou – face aos quais, por sua vez, o mediador cessante deixará de receber as comissões que lhes estão associadas.” Para Luís Poças (“Anotação ao art. 55.º”, AAVV, Pedro Romano Martinez / Filipe Albuquerque Matos (org.), Lei da Distribuição de Seguros Anotada, Coimbra: Almedina, 2019, pp. 445-446), há que ressalvar algumas diferenças entre o contrato de mediação de seguros e o de agência. Na verdade, escreve, “a especial configuração da mediação de seguros – onde o mediador granjeia um especial laço de confiança com o cliente (mercê da proximidade física, do conhecimento pessoal e dos serviços prestados no âmbito da mediação) e onde a marca do segurador constitui um elemento menos relevante de fixação de clientela – justifica menos esta solução legal do que no contrato de agência. De facto, na atividade seguradora, o mediador constitui ainda, sobretudo em pequenos centros urbanos e no interior rural, o grande polo de fixação de clientela, podendo a cessação do contrato de mediação conduzir à deslocação da inerente carteira para outro segurador com quem o mediador venha a celebrar novo contrato de mediação. Desta forma, afigura-se incoerente, perante a natureza compensatória da figura, resultante de desequilíbrio patrimonial, a diversidade de fórmulas de cálculo da indemnização entre o contrato de mediação de seguros (em que a mesma deverá ter por valor mínimo o dobro da remuneração média anual do mediador nos últimos cinco anos) e o contrato de agência (em que ela deverá ter por valor máximo a remuneração média anual dos últimos cinco anos). Em suma, é muito discutível a bondade da solução legislativa implementada.”
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2).2.3. Em termos gerais, as causas de cessação do contrato de mediação são a caducidade (por exemplo, no termo de um prazo não sujeito a renovação, ou por morte do mediador pessoa singular ou extinção da pessoa coletiva), a cessação por mútuo acordo (acordo revogatório), a denúncia, com aviso prévio, por iniciativa discricionária de uma das partes, ou a resolução.
A última causa de cessação, na qual vamos centrar a nossa atenção, por ser a invocada pela Recorrente, pressupõe, como veremos, a ocorrência de uma justa causa, conceito próprio dos contratos duradouros, sendo de destacar que o direito à indemnização de clientela é excluído, como dizia a alínea a) do n.º 5 do art. 45 do RJAEAM e replica agora a alínea a) do n.º 5 do art. 55 do RJSR, quando o contrato tenha sido resolvido por iniciativa do mediador sem justa causa ou por iniciativa da empresa de seguros com justa causa. O ónus da prova da existência de justa causa na cessação cabe à parte que faz cessar o contrato, como expressamente afirmava o n.º 6 do art. 45 do RJAEAM numa redação copiada pelo n.º 6 do art. 55 do RJDSR.
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2).2.3.1. Aludimos à natureza duradoura dos contratos de mediação. Tal decorre da própria estrutura das obrigações reciprocamente assumidas pelas partes, destinadas a prolongarem-se no tempo de tal modo que podemos afirmar que, ao contrário do que sucede nas obrigações instantâneas, o interesse do credor dirige-se à maior duração da obrigação e não à obtenção do seu cumprimento no mais curto prazo possível. Ainda que existam atos de cumprimento pontuais que se esgotam em si mesmos (v.g., o pagamento de uma comissão), eles não importam a extinção das obrigações assumidas, de tal modo que pode dizer-se que o “tempo é um fator determinante do conteúdo global da prestação” (Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1992, pp. 637-638). Dito de outra forma, o contrato visa dar satisfação a necessidades permanentes, de tal modo que o interesse do credor não é satisfeito num único momento, mas a todo o tempo, durante a sua execução contínua ou intermitente (Paulo Henriques, “A desvinculação unilateral ad nutum nos contratos civis de sociedade e de mandato”, Studia Iuridica, 54, 2001, pp. 194-195). Estabelece-se, assim, uma relação de colaboração recíproca entre os contraentes, pautada por comportamentos permanentes ou periódicos de cumprimento na prossecução do escopo contratual, o que acentua a importância dos deveres de lealdade, fidelidade, cooperação e confiança (Paulo Henriques, “A desvinculação cit., pp. 199-200).
Esta razão explica que a resolução apresente algumas especificidades relativamente àquele que é o seu regime geral.
Como é sabido, a resolução de um contrato é a extinção da relação contratual por declaração unilateral de um dos contraentes, baseada num fundamento superveniente à sua celebração (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 1997, p. 275). Caracteriza-se por ser de exercício vinculado, só podendo ocorrer quando se verifique um fundamento, legal ou convencional, que autorize o seu exercício (art. 432/1 do Código Civil).
Para além dos fundamentos legais, as partes podem convencionar, através de cláusulas resolutivas expressas, todo um conjunto de “circunstâncias cuja verificação eventual permite o recurso à resolução do contrato” (Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, II, 9.ª ed., Coimbra: Almedina, 2009, p. 95). Reconhece-se uma “tendencialmente livre” estipulação das cláusulas resolutivas (David Magalhães, A Resolução cit., p.48). A cláusula resolutiva expressa é assim a convenção pela qual as partes estipulam o poder de extinção da relação contratual com a verificação de certo facto futuro e incerto, com efeitos retroativos. Esta cláusula distingue-se da denominada cláusula resolutiva tácita, que “designa tradicionalmente a condição imprópria que se entende inserta, por força de lei, em qualquer contrato sinalagmático ou com prestações recíprocas, segundo a qual, se uma das partes não cumprir, pode a outra resolvê-lo.” No dizer de José Carlos Brandão Proença (Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, 3.ª ed., Porto: UCE, 2019, p. 466), “[o] poder resolutivo privado mais não é que uma expressão da chamada autotutela de direitos, traduzindo-se no poder potestativo unilateral ou bilateral de, com base em determinado(s) fundamento(s), quase sempre atinentes a um incumprimento, inseridos(s), por norma, no próprio contrato e no momento da sua celebração, o contraente legitimado fazer cessar o contrato.”
A resolução é exercida habitualmente segundo um de dois modelos legais: o modelo francês, que assenta numa resolução judicial (artigo 1184.º, III, do CC Francês); o modelo alemão, que se baseia no exercício extrajudicial da resolução mediante uma comunicação à contraparte (§ 349 do BGB). Este último foi o adotado pelo Código Civil. Não obstante, o fundamento resolutivo pode ser sempre questionado judicialmente. Nestas situações, o tribunal não decreta a resolução, antes se pronuncia sobre o preenchimento dos requisitos do seu exercício. Por isso, em regra, a resolução opera por mera declaração à contraparte, tendo esta declaração eficácia constitutiva (Antunes Varela, Das Obrigações cit., p. 276).
Como sintetiza David Magalhães (A Resolução do Contrato de Arrendamento Urbano, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, pp. 48-51), existem, em geral, três situações que podem constituir fundamento da resolução: o incumprimento de obrigações contratuais; a alteração das circunstâncias em que as partes basearam a decisão de contratar; e, em certa medida, o direito de arrependimento.
Na primeira, a única que iremos abordar, importa o incumprimento (art. 802/2 do Código Civil) e a colocação em causa do interesse do credor (art. 808 do Código Civil), o que encontra especificidades nos contratos duradouros, em que o incumprimento raramente é total. Nestes, para além da existência do ato de incumprimento, exige-se que, pela sua gravidade e/ou reiteração, resulte perturbada a confiança da outra parte, o que nos conduz à ideia de inexigibilidade que mais não é, no dizer de Pedro Rodrigues dos Santos (A Justa Causa na Cessação dos Contratos Duradouros, Coimbra: FDUC, 2023, p. 37, disponível em https://hdl.handle.net/10316/106623), que um juízo de antecipação ou prognose sobre o que seria o contrato no futuro, em face daquele ato de incumprimento, sobretudo, tendo em conta a confiança da contraparte.
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2).2.3.2. Concretizando, diremos que o devedor deve cumprir pontualmente a sua prestação (arts. 406/1 e 762/1 do Código Civil), na sua totalidade e não parcialmente (art. 763 do Código Civil), sempre pautado pelos ditames da boa fé e evitando causar prejuízos ao credor (art. 762/2).
O principal fundamento da resolução é, precisamente, o incumprimento ilícito e culposo.
A ilicitude manifesta-se, desde logo, pela referência contratual, a violação de uma obrigação contratual. Essa ilicitude tem que assumir uma gravidade que justifique, em termos de adequação e proporcionalidade, a rutura do vínculo contratual, para que se possa dizer que esta é conforme à boa fé. O que está em causa é, no essencial, a “relação de desconformidade entre a conduta devida (a prestação debitória) e o comportamento observado” (Antunes Varela, Das Obrigações cit., p. 93). A ilicitude pode ser afastada em determinadas situações, mais concretamente na exceção de não cumprimento da obrigação (art. 428 do Código Civil) e no exercício do direito de retenção (arts. 754 e ss. do Código Civil)
Por outro lado, o comportamento ilícito tem, em regra, de ser culposo, o que se presume iuris tantum (art. 799/2 do Código Civil). A culpa é apreciada de acordo com o comportamento ou diligência de um bom pai de família (arts. 487/2 e 799/2, do Código Civil). A ideia de culpa resulta da imputação pessoal ao devedor de um juízo de censura ou reprovação, porque não só devia, como podia ter agido de outro modo (Antunes Varela, Das Obrigações cit., p. 95). A presunção de culpa, por seu lado, resulta do facto de o dever jurídico “estar de tal forma concretizado, individualizado ou personalizado, que se justifica que seja o devedor a pessoa onerada com a alegação e a prova das razões justificativas ou explicativas do não cumprimento” (Antunes Varela, Das Obrigações cit., pp. 99-100) e da sua demonstração ser mais fácil para o devedor do que o contrário para o credor.
Trata-se, portanto, de uma responsabilidade subjetiva, muito embora se reconheçam algumas aberturas para o objetivismo nos critérios de imputação, como imperativo da tutela do crédito. É isto que justifica que o devedor responda pelos atos dos representantes legais ou auxiliares que utilize no cumprimento da obrigação (art. 800 do Código Civil).
No conteúdo do incumprimento distinguem-se, essencialmente, dois tipos de situações: a mora e o incumprimento definitivo (art. 798 do Código Civil). 
Em regra, só o incumprimento definitivo, que se verifica nas situações de impossibilidade da prestação e de perda objetiva do interesse do credor, justifica a atribuição ao credor do direito potestativo de resolução contratual. Para que o mesmo suceda com a mora, esta tem que ser convertida em incumprimento definitivo através de uma interpelação admonitória (art. 808/1 do Código Civil). A interpelação pode ser dispensada nos casos de recusa terminante do devedor a cumprir.[3] O não cumprimento no prazo admonitório ou a recusa da prestação não são incompatíveis com a alternativa concedida ao credor de recorrer ao regime do incumprimento definitivo ou à realização coativa da prestação prevista nos arts. 817 e ss. do Código Civil, sem que lhe fique vedada a possibilidade de posteriormente, frustrando-se a realização coativa, recorrer ao regime do incumprimento definitivo, resolvendo o contrato (Pedro Rodrigues dos Santos, A Justa Causa cit., p. 49).
A resolução pressupõe ainda que o incumprimento (definitivo) se apresente como grave – ou, dito de outra forma, que atendendo à sua relevância não se justifique a subsistência do vínculo contratual. É isto que explica que o art. 802/2 do Código Civil consagre a regra da exclusão do direito de resolução nas situações de incumprimento parcial de “escassa importância.”
A relevância do incumprimento é apreciada tendo em conta o interesse do credor, em especial as consequências que o mesmo gera na sua esfera jurídica considerando o tipo contratual e as especificidades do negócio (Pedro Romano Martinez, Da cessação do contrato, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2015, p. 141).
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2).2.3.3. Assim traçados os quadros gerais do instituto da resolução, impõe-se atentar nas suas especificidades nos contratos duradouros.
Uma delas situa-se ao nível dos efeitos: o art. 434/2 do Código Civil estabelece que a resolução não abrange as prestações já efetuadas, “exceto se entre estas e a resolução existir um vínculo que legitime a resolução de todas elas.”
Mas aquela que interessa para o conhecimento do recurso é a que diz respeito ao requisito da justa causa como elemento essencial da admissibilidade da resolução.
Como escreve Pedro Rodrigues dos Santos (A Justa Causa cit., p. 49), os contratos duradouros implicam, pela sua natureza, “uma intensificação da relação pessoal entre as partes, um contacto prolongado e a vinculação a objetivos e finalidades que, dentro da sua diversidade, têm necessariamente um múltiplo denominador comum que se traduz na necessidade de cooperação e colaboração para o desenvolvimento de uma atividade económica subjacente de que ambas as partes beneficiam.” Isto é especialmente notório nos contratos de colaboração, de que a mediação de seguros constitui um exemplo paradigmático. Compreende-se, assim, que David Magalhães (A Resolução cit., p. 61) escreva que “[d]a particular estrutura da relação obrigacional duradoura e desta teia de vínculos que a compõem surge como fundamento da resolução dos contratos duradouros a chamada justa causa, isto é, uma circunstância que, atento o caso concreto e os interesses envolvidos, torna inexigível a uma das partes a continuação da relação contratual até à verificação do seu termo final ou ao decurso do prazo de pré-aviso necessário para que a respetiva denúncia produza efeitos, legitimando a extinção imediata.” Dito de outra forma, “[a] inexigibilidade constitui, em caso de ocorrência de uma circunstância perturbadora da execução do contrato, de natureza subjetiva ou objetiva, a linha de fronteira entre a manutenção e a extinção daquele. Pode afirmar-se que um contrato duradouro poderá ser resolvido quando, segundo os princípios que baseiam o ordenamento jurídico, um evento torne incomportável a continuação do contrato ou provoque o seu desequilíbrio. O padrão de apreciação da justa causa, mais concretamente da inexigibilidade, assenta numa ponderação dos interesses em presença, atento o tipo negocial em causa e os valores que este visa, questionando-se se o princípio da boa fé impõe a uma das partes a continuação daquela vinculação, seja por existirem alterações objetivas (relacionadas com o contexto ou o ambiente em que o contrato se executa), seja por ocorrerem circunstâncias subjetivas (baseadas no incumprimento de uma obrigação contratual)” (Pedro Rodrigues dos Santos (A Justa Causa cit., p. 54).
Aqui importa fazer uma precisão: nos contratos de execução continuada, a falta da prestação durante um período de tempo é imediatamente irrecuperável. Existe, desde logo, uma impossibilidade definitiva da sua prestação no período de tempo em falta, na medida em que “a substância da prestação (e o interesse do credor) consome-se no decurso do momento temporal que lhe foi determinado, sem hipótese de recuperação posterior” (David Magalhães, A Resolução cit. P. 65). Por um lado, constata-se a dificuldade de aplicação do regime do incumprimento definitivo, pois o art. 808/1 do Código Civil, não se pode aplicar nos termos já definidos, conforme, de resto, foi entendido em STJ 9.01.2007 (06A4416), relatado por Sebastião Póvoas. Não se pode afirmar que o credor perdeu objetivamente o interesse na prestação, porque em regra continua a mantê-lo, estando em causa, sobretudo, a perda do interesse na continuação do contrato com aquela contraparte (Pedro Rodrigues dos Santos, A Justa Causa cit., p. 55).
Deste modo, como escreve Pedro Rodrigues dos Santos (A Justa Causa cit., pp. 57-58), a ideia de inexigibilidade baseia-se “num juízo de prognose sobre a frustração da parte fiel relativamente ao cumprimento futuro da parte infiel, mas, mais do que isso, assenta na projeção de determinada situação, neste caso uma situação de cumprimento defeituoso, na manutenção do contrato. No âmbito do cumprimento defeituoso insere-se todo um conjunto de perturbações da conformidade contratual, designadamente a violação de deveres acessórios de conduta que, muitas vezes, assumem grande importância em contratos duradouros, sendo que essa importância é tanto maior quanto maior for o carácter associativo do contrato. Num contrato de relação, em que as partes devem comungar finalidades ou objetivos comuns, não interessa apenas que as prestações principais sejam cumpridas, mas também que sejam cumpridas com lealdade, respeito, espirito de colaboração e cooperação. Desta forma, pode dizer-se que a medida da importância do cumprimento defeituoso, mais concretamente do cumprimento com violação de deveres acessórios de conduta, é tanto maior quanto maior foi o carácter relacional do contrato e, por isso, neste tipo de contratos um cumprimento defeituoso pode até ser mais importante, para efeitos de apreciação da imposição à contraparte da tolerância na manutenção do contrato do que o incumprimento de prestações principais.”
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2).2.3.4. Tanto o RJAEAM como o RJDSR são omissos quanto ao que deve entender-se por justa causa. Já assim não sucede com o RJCA, cujo art. 30 diz que: “[o] contrato de agência pode ser resolvido por qualquer das partes: a) Se a outra parte faltar ao cumprimento das suas obrigações, quando, pela sua gravidade ou reiteração, não seja exigível a subsistência do vínculo contratual; b) Se ocorrerem circunstâncias que tornem impossível ou prejudiquem gravemente a realização do fim contratual, em termos de não ser exigível que o contrato se mantenha até expirar o prazo convencionado ou imposto em caso de denúncia.”
Sendo os contratos de mediação de seguros subtipos do contrato de agência, conforme começamos por dizer, esta disposição deve aplicar-se-lhes de uma forma direta ou, pelo menos, com o recurso à analogia (art. 10.º do Código Civil).
Interessa-nos a previsão da alínea a), na qual está em causa a violação culposa do contrato pela parte contrária – no caso, pelo principal.
Constata-se que, ao contrário do que sucede com outros contratos de natureza duradoura, como é o caso do arrendamento, o legislador não complementou a formulação de uma cláusula geral com a enumeração, taxativa ou exemplificativa, de um conjunto de situações de violação de obrigações contratuais suscetíveis de enquadramento numa situação de “falta de cumprimento” relevante para efeitos resolutivos.
Daqui resulta que qualquer “falta de cumprimento” pode justificar a resolução, desde que pela sua gravidade e/ou reiteração torne inexigível a manutenção do contrato.
Será o caso, desde logo, do incumprimento das obrigações essenciais do contrato: a promoção de negócios, para o agente, e o pagamento da retribuição, para o principal. Será também o caso de incumprimento de outras obrigações que, atento o carácter complexo, a continuidade e a estabilidade da relação contratual, pode motivar a resolução.  Tais obrigações podem resultar do próprio contrato ou de outros com ele coligados em termos que constituam uma unidade operativa, como sucede com as que são instrumentais das obrigações principais.
Aqui importa notar que há um dever recíproco de execução do contrato de acordo com a boa fé objetiva que, apesar de ser comum a todos os outros tipos contratuais, assume especial relevância no plano de contratos com carácter duradouro, caraterizados por especiais deveres de colaboração, cooperação, respeito e lealdade que podem justificar, caso sejam postos em causa, a existência de um fundamento resolutivo autónomo relativamente aos deveres contratuais expressamente elencados (Pedro Rodrigues dos Santos, A Justa Causa cit., p. 59).
Por outro lado, o incumprimento definitivo de uma obrigação neste tipo de contratos é, quase sempre, um incumprimento parcial. Para além disso, não se pode afastar a possibilidade de resolução do contrato por cumprimento defeituoso das obrigações das partes. Acresce a exigência de uma especial gravidade da falta de cumprimento. No dizer de António Pinto Monteiro (Contrato de Agência. Anotação ao Decreto-Lei n.º 178/86, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 1993, p. 98), “a lei exige que a falta de cumprimento assuma especial importância, quer pela sua gravidade (em função da própria natureza da infração, das circunstâncias de que se rodeia, ou da perda de confiança que justificadamente cria na contraparte, por ex.), quer pelo seu carácter reiterado.” Só situações de incumprimento contratual ou de cumprimento defeituoso importantes, relevantes ou essenciais podem justificar a resolução.
A importância, relevância ou essencialidade da falta de cumprimento tem que revestir um de dois requisitos: gravidade ou reiteração. De facto, a norma faz referência à gravidade e à reiteração em termos alternativos.
A resolução exige um terceiro requisito que, do ponto de vista prático e substantivo, é uma consequência (Pedro Rodrigues dos Santos, A Justa Causa cit., p. 60) e se reconduz ao requisito da inexigibilidade. É necessário que a falta de cumprimento importante, seja pela sua gravidade, seja pela sua reiteração, torne inexigível para a contraparte a subsistência contratual.
De acordo com Pedro Rodrigues dos Santos (A Justa Causa cit., pp. 60 e ss.), “[n]a sua configuração de um conceito operativo de justa causa surgem vários planos de relevância: por um lado, a ponderação dos dois interesses em presença, do interesse do principal em ter uma rede de distribuição comercial adequada ao desenvolvimento do seu negócio e do interesse do agente em manter a representação comercial de produtos ou serviços de marca alheia, angariando, pela promoção, uma retribuição suficiente para manter o seu negócio.”
Por outro lado, partindo daquela ponderação de interesses, há que apurar se existem condições práticas para que o contrato se mantenha no futuro. Assim não será quando o comportamento do principal ou do agente tiver colocado o estado de confiança de uma pessoa normal ou média, colocada na posição daquele real agente ou principal, em condições que inviabilizem a continuação da prestação de promoção de negócios em nome do principal e do recebimento dessa prestação, com pagamento da retribuição correspondente, em condições de mínima ou de adequada normalidade.
Isto parte do pressuposto de que a estabilidade do contrato de agência é um fator presente no seu regime; mas, perante as circunstâncias concretas, será necessário apurar, num juízo de prognose, se a manutenção do vínculo, atenta toda a factualidade relevante, constitui um sacrifício injustificado para a parte fiel.
Aqui entram em jogo fatores como o grau de lesão dos interesses das partes, o prejuízo causado, o carácter das relações entre as partes e destas com os clientes ou potenciais clientes, os costumes ou usos no ramo de atividade em causa, a prática habitual da relação do principal com outros agentes, o conjunto de regras práticas que regem a relação entre principal e agentes, o reflexo da conduta da outra parte na imagem e nome comercial da parte fiel, a existência de advertências quanto a condutas semelhantes passadas, a antiguidade da relação existente e outras circunstâncias que, no caso, se afigurem relevantes para avaliar a forma como este comportamento se pode refletir na relação entre principal e agente (Pedro Rodrigues dos Santos, A Justa Causa cit., pp. 61-62).
Na jurisprudência portuguesa encontramos poucas situações em que tenha sido suscitada a questão da justa causa de resolução do contrato de agência e, em especial, do contrato de mediação de seguros. No que concerne àquele, dá-se relevo, em STJ 14.02.2012 (1889/03.7TBVFR.P1.S1), relatado por Gabriel Catarino, ao aproveitamento dos meios e recursos do principal e o seu desvio para empresa concorrente, para permitir a produção dos produtos a preços mais baixos. Considerou-se que “[p]rovado que o autor, a partir de determinado altura, começou a transferir para outra firma, concorrente das rés, modelos de calçado, para serem produzidos por essa firma a preços mais baixos, e passou a deixar de comparecer às reuniões destinadas a programar e projetar as novas coleções e as feiras onde essas coleções seriam expostas para promoção e venda, verifica-se que a passagem para firmas concorrentes dos modelos de sapatos, que viriam a ser produzidos por essas empresas em concorrência com a empresa principal, configura uma grave violação, pelo agente, do dever de confiança e lealdade, a qual justifica, pela gravidade que assume, a faculdade do exercício de resolução prevista pelo art. 30.º, al. a), do DL n.º 178/86” e que, “[t]ratando-se de um contrato intuitu personae, a relação de confiança assume uma relevância acrescida, pelo que não parece razoável que o principal mantenha uma relação contratual em que as partes já não se reveem num relacionamento degradado e deteriorado pela quebra de um vinculo de recíproca e mútua confiança.” Em RC 15.12.2016 (1138/15.5T8CTB.C1), relatado por Luís Cravo, já citado, considerou-se, a propósito de um contrato de mediação de seguros, que não integram justa causa de resolução fundamentos relacionados com a organização interna da estrutura do mediador. Em RL 26.02.2019 (13603/16.2T8SNT.L1-1), relatado por Isabel Fonseca, entendeu-se que constituem justa causa para a resolução de um contrato de subagência a não realização das ações de formação que o agente se obrigara perante os subagentes, bem como a falta de pagamento a estes e a violação da obrigação de não encerrar o estabelecimento, podendo ler-se que “a violação das obrigações contratuais pelos RR. não ocorreu de forma isolada, antes se consubstanciando num conjunto de comportamentos violadores do contrato, que se sucederam ao longo dos primeiros meses de 2015, culminando com o encerramento da agência por parte da 2ª Ré. (…) em face das consecutivas violações contratuais por parte dos RR. e sem que existisse qualquer demonstração no sentido de as partes poderem voltar a estabelecer plataformas de entendimento, o encerramento da agência constitui motivo determinante para a resolução do contrato com justa causa por parte das AA., aliás como as partes expressamente consignaram no contrato que celebraram. Com efeito, estatui a "Cláusula sétima - Estabelecimento Comercial e Mobiliário - 5. A violação reiterada das obrigações decorrentes do nos n's 1, 2, e 3 da presente Cláusula, constituem, por si só, fundamentos para a resolução do presente contrato, por justa causa imputável à Terceira Contraente.”
Encontramos ainda alguns arestos em que a questão foi abordada a propósito de outros contratos duradouros, também incluídos habitualmente no conceito de contratos de distribuição, em que se discutia o direito à indemnização de clientela, por analogia com o previsto para o contrato de agência. É o caso de RC 15.07.2009 (147/06.0TBPNH.C1), relatado por Sílvia Pires, onde, a propósito de um contrato de concessão comercial, se considerou que “[a]tentas as características e fim do contrato de concessão comercial não é exigível que o concessionário continue vinculado ao mesmo, quando a outra parte recusa de forma persistente, sem qualquer causa justificativa, fazer os necessários fornecimentos ao desenvolvimento da sua atividade” e que, “[a]tuando o concessionário em nome próprio, no desenvolvimento da sua atividade, a recusa persistente de fornecimento dos produtos pelo concedente, impossibilita a manutenção desse contrato, estando assim justificada a resolução levada a efeito pelo Autor, uma vez que a mesma também, nos moldes em que foi efetuada, deu cumprimento ao formalismo exigido pelo art.º 31º, do DL 178/86, respeitando a forma e prazo e, indicando as razões que a justificam.” É também o caso de RL 23.03.2021 (2348/16.3T8VFR.L1-7), relatado por Luís Pires de Sousa, onde, também a propósito de um contrato de concessão comercial, se considerou que “[n]ão ocorre fundamento para resolução do contrato pela concessionária num contexto em que: à data da expedição da carta resolutiva pela concessionária, a ré encontrava-se em mora há apenas cinco dias no fornecimento de mercadoria; a nota de encomenda em causa era de valor mais elevado do que as antecedentes notas de encomenda, tendo sido formulada num contexto em que a autora teve uma reação litigiosa após ter sido informada da alteração futura do esquema de distribuição da ré/concedente.”
Neste conspecto, o elemento fundamental para aferir da existência de justa causa é a frustração relevante dos interesses económicos das partes. Ao escrevermos isto temos presente que o contrato de agência – e, por identidade de razões, o  contrato de mediação de seguros – é um contrato de distribuição comercial que visa, por um lado, permitir ao principal o estabelecimento de uma rede de distribuição com menores custos de estrutura e, por outro, possibilitar ao agente um meio de fazer parte da estrutura comercial de uma empresa com marca já existente e beneficiar dessa estrutura para angariar meios económicos para a sua atividade e subsistência financeira.
É também este interesse económico que, segundo Pedro Rodrigues dos Santos (A Justa Causa cit., p. 63), está presente nas situações sugeridas na doutrina como de justa causa de resolução, salientando-se situações de falhas repetidas de fornecimento de bens e serviços; a redução unilateral da comissão; a alteração das condições do pagamento; a perda de clientes importantes; ou a violação continuada da obrigação de liquidação das comissões. Outras situações que são necessariamente de ponderar no âmbito da justa causa são o não cumprimento e a violação da obrigação de sigilo; o mau relacionamento entre as partes; e a recusa de documento.
Será em função da frustração dos objetivos da parte lesada que se poderá concluir, numa primeira linha, pela existência ou não de justa causa, sendo certo que não está em causa apenas a obtenção dos objetivos financeiros propostos, mas, sobretudo, a forma como as circunstâncias da sua não obtenção afetam a confiança das partes no sentido de que a relação de colaboração permitirá a obtenção ou a continuação da obtenção desses objetivos no futuro, pois a perspetivação da justa causa não pode bastar-se com a situação de incumprimento em si, devendo, antes de mais, atender à forma como essa situação se perspetiva no cumprimento das finalidades contratuais futuras.
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2).2.4. Aqui chegados, impõe-se fazer uma primeira abordagem ao caso dos autos à luz das precedentes considerações.
Assim, começamos por notar que a Recorrente, na declaração de resolução, plasmada na carta datada de 30 de julho de 2021, que remete para a carta de 20 de julho de 2021, invocou, como fundamentos para a resolução, a retirada dos poderes de cobrança, a comunicação deste facto aos tomadores dos seguros, com a indicação de um outro mediador de seguros habilitado a receber os prémios, o termo da permissão de acesso e de utilização dos sistemas informáticos da Recorrida e a não disponibilização dos documentos necessários à prestação de contas. Como bem assinalado na sentença do Tribunal a quo, não foi invocado, como fundamento, o facto de a Recorrida, a partir de janeiro de 2021, ter alterado, de forma unilateral, a percentagem das comissões pagas à Recorrente, o que exclui a possibilidade de este ser considerado para esse efeito, ao contrário do que é pretendido, em termos verdadeiramente inovadores, por isso não admissíveis, nas alegações de recurso. De qualquer modo, sempre diremos, que aquele facto nunca poderia ser invocado como justa causa. Desde logo, porque não ficou demonstrado que a percentagem das novas comissões fosse inferior à prevista no contrato de 2012 (pelo contrário, era mesmo superior). Depois, porque o acréscimo de 4% que a Recorrente recebeu até ao final de 2020 não estava previsto no contrato de 2012, não passando, por isso, de um mero incentivo atribuído pela Recorrida aos seus mediadores, sem qualquer natureza cogente ou sem que os mediadores tivessem um direito subjetivo a exigi-lo.
O contrato tinha, do ponto de vista da Recorrente, uma utilidade muito clara: o desenvolvimento do seu negócio como um verdadeiro representante da seguradora na sua área geográfica de atuação, o que pressupunha a existência dos poderes de representação que lhe foram atribuídos. Tal passava, necessariamente, pela possibilidade de celebrar contratos com os tomadores, em nome da Recorrida, e de cobrar os prémios devidos a esta, fazendo previamente o apuramento das comissões.
Tendo isto presente, podemos afirmar, sem qualquer rebuço, que a retirada da parte dos poderes de representação relativa à cobrança dos prémios de seguro, somada à impossibilidade prática de exercer os demais – consequência necessária da perda do acesso e da possibilidade de utilização dos sistemas informáticos –, foram um rude golpe para a Recorrente. Com ele, o âmbito da sua atividade contratual ficou consideravelmente reduzido àquele que é o núcleo mínimo do contrato de mediação de seguros: o aconselhamento, a proposta e a prática de atos preparatórios de contratos de seguro. E ficou seriamente comprometido em relação aos demais – designadamente no apoio à gestão e execução dos contratos de seguro –, certo como é que as vias de comunicação com a seguradora passaram a ser mais burocratizadas, com as inerentes perdas de tempo.
Perante isto, numa primeira abordagem, podemos dizer que os atos da Recorrida discriminados na declaração resolutória, quando isolados de tudo o mais, são suscetíveis de redundar em incumprimentos do programa contratual que, pelos seus efeitos, tornam inexigível para a Recorrente a manutenção da relação contratual.
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2).2.5. A análise da situação tem de ser, porém, mais profunda.
A primeira dificuldade surge, precisamente, quando se questiona se os atos da Recorrida podem ser qualificados como ilícitos. É uma questão pertinente: o contrato (rectius, contratos) permitiam que esta levasse a cabo os atos questionados. Com efeito, resultava da cláusula 5.2. do “Contrato Agente de Seguros EMP02...” a possibilidade da Recorrida, “a todo o tempo e sem necessidade de qualquer justificação, revogar os poderes de cobrança” conferidos à Recorrente, mediante simples comunicação de que ficasse registo escrito. E resultava da cláusula 9.ª do “Acordo de Utilização de Acessos Informáticos” que a Recorrida podia, “a todo o tempo, sem necessidade de qualquer pré-aviso, resolver o (…) acordo, mediante mera comunicação verbal”, particularizando-se situações em que tal poderia suceder, entre as quais cumpre destacar a “diminuição significativa das carteiras de seguros” da Recorrida de “modo que torne injustificável a manutenção dos acessos informáticos.”
De acordo com estas cláusulas, a Recorrente, no momento da celebração dos dois referidos contratos – o segundo dos quais instrumental do primeiro –, abriu mão de parte da sua autonomia, permitindo que a Recorrida se desvinculasse de parte do conteúdo do primeiro e da totalidade do conteúdo do segundo por ato unilateral - ad nutum, no caso da primeira cláusula, o que nos conduz, às figuras da modificação unilateral e da revogação unilateral, e vinculado no da segunda, como melhor veremos.
Aqui importa notar que o art. 406/1 do Código Civil estabelece a regra segundo a qual qualquer modificação ou extinção do contrato depende do consentimento de todos os contraentes. É, no entanto, possível que as partes consensualizem a possibilidade de modificação ou revogação por uma delas dos contratos, seja de forma discricionária, ad nutum ou ad libitum, seja de forma vinculada. Semelhante possibilidade tem a sua fonte no próprio contrato e é justificada com base no princípio da liberdade contratual genericamente consagrado no art. 405/1 do Código Civil. Neste sentido, Pedro Romano Martinez (Da Cessação cit., p. 55), que escreve: “Excecionalmente, alude-se à revogação unilateral, quando, com base legal ou convencional, se admita uma desvinculação sem acordo. A revogação unilateral de negócios bilaterais só se admite nos casos especialmente previstos na lei ou acordados pelas partes.” O mesmo autor acrescenta (Da Cessação cit., p. 60) que, “[s]endo a revogação unilateral, trata-se de uma declaração negocial, nos termos prescritos nos arts. 217 e ss. do Código Civil, justificada com base na previsão legal ou no acordo das partes. A previsão legal assenta numa especial tutela conferida a uma das partes que se pode fundar num princípio de proteção do contraente débil ou no interesse subjetivo prosseguido pelo contrato (p. ex., mandato).”
É também possível, como vimos, que as partes estabeleçam fundamentos de resolução, o que também encontra fundamento legal no art. 406/1 do Código Civil e, sobretudo, no art. 432 do mesmo diploma.
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2).2.6. É aqui que entronca a pretensão da Recorrente no sentido da exclusão da cláusula 5.2. do “Contrato Agente de Seguros EMP02...” e da cláusula 9.ª do “Acordo de Utilização de Acessos Informáticos” do conteúdo dos respetivos contratos ou, subsidiariamente, no da declaração de nulidade das mesmas com fundamento no regime jurídico das cláusulas contratuais gerais. Para o efeito, alega, a um tempo, que tais cláusulas foram redigidas de forma unilateral pela Recorrida e inseridas em contratos a que se limitou a aderir, não lhe tendo sido previamente comunicadas nem explicadas e, a outro, que são abusivas por permitirem que a vigência dos contratos fique na exclusiva disponibilidade de que as predispôs.
É indiscutível, face à matéria de facto provada, que estamos perante contratos de adesão. No plano jurídico, é também indiscutível que os contraentes serem sociedades comerciais, tem aplicação o regime aprovado pelo DL n.º 446/85, de 25.10 (LCG), mais concretamente, em termos de matéria substantiva, os respetivos capítulos I, II, III, IV e as Secções I (Disposições comuns por natureza) e II (Relações entre empresários ou entidades equiparadas) do Capítulo V.
A este propósito, respigamos a seguinte passagem de RG 23.09.2023 (1880/22.4T8GMR.G1), relatado por Pedro Maurício:

O diploma legal que regula as cláusulas contratuais gerais (Dec.-Lei nº446/85, de 25/10, na redação posterior ao Dec.-Lei nº109-G/2021, de 10/12[3]) não define o que são cláusulas contratuais, limitando-se no seu art. 1º a de­limitar as características que as identificam: a) tratam-se de cláusulas pré-elaboradas, existindo disponíveis antes de surgir a declaração que as perfilha; b) apresentam-se rígidas, independentemente de obterem ou não a adesão das partes, sem possibilidade de alterações; c) e podem ser utilizadas por pessoas indeterminadas, quer como pro­ponentes, quer como destinatários.
Perante tais características, podemos assentar que ao falar de cláusulas contratuais gerais têm-se em vista, em princípio, as cláusulas elaboradas, sem prévia negociação individual, como elemento de um projeto de contrato de adesão, destinadas a tornar-se vinculativas quando proponentes ou destinatários indeterminados se limitem a subscrever ou aceitar esse projeto.
Assim, as cláusulas contratuais gerais podem ser definidas como um conjunto de proposições pré-elaboradas que proponentes ou destinatários indeterminados se limitam a propor ou aceitar. Esta noção básica pode ser decomposta em vários elementos esclarecedores: “(i) as cláusulas contratuais gerais destinam-se ou a ser propostas a destinatários indeterminados ou a ser subscritas por proponentes indeterminados; no primeiro caso, certos utilizadores propõem a uma generalidade de pessoas certos negócios, mediante a simples adesão; no segundo, certos utilizadores declaram aceitar apenas propostas que lhes sejam dirigidas nos moldes das cláusulas contratuais pré-elaboradas; podem, naturalmente, todos os intervenientes ser indeterminados, sobretudo quando as cláusulas sejam recomendadas por terceiros (generalidade); (ii) - as cláusulas contratuais gerais devem ser recebidas em bloco por quem as subscreve ou aceite; os intervenientes não têm a possibilidade de modelar o seu conteúdo, introduzindo, nelas, alterações (rigidez)”.
Para que se esteja perante cláusulas contratuais gerais é necessário que se tratem de condições unilateralmente pré-formuladas, ou seja, que se tratem de cláusulas preparadas ou “organizadas” antes da conclusão do contrato, independentemente da forma externa sob a qual tal pré-elaboração se manifesta e de esta pré-elaboração provir do próprio utilizador, de outro sujeito jurídico sob a sua direta incumbência ou ainda de um terceiro. Também é necessário que se tratem de cláusulas pré-elaboradas e dirigidas a uma pluralidade de contratos ou a uma generalidade de pessoas: exige-se que as mesmas sejam destinadas a integrar o conteúdo dos múltiplos contratos a celebrar no futuro, mediante a sua oferta, em massa, ao público interessado (a proposta não pode ser projetada tão-só para a concreta conclusão de um contrato com um sujeito determinado; tem que ser projetada para funcionar como base de um uniforme regulamento jurídico, dirigido a diversificados parceiro negociais)[7]. Por último, exige-se a sua imodificabilidade, ou seja, que se tratem de condições cujo conteúdo não possa ser alterado ou negociado, ficando a contraparte sem qualquer poder para interferir na conformação do conteúdo negocial que lhe e proposto.
Concluindo, e como explica Menezes Leitão, “as cláusulas contratuais gerais, que se encontram submetidas ao regime fixado pelo DL nº 446/85, de 25/10…, consistem em situações típicas do tráfego negocial de massas em que as declarações negociais de uma das partes se caracterizam pela pré-elaboração, generalidade e rigidez. Efetivamente, está-se nesses casos perante situações em que uma das partes elabora a sua declaração negocial previamente à entrada em negociações (pré-elaboração), a qual aplica genericamente a todos os seus contraentes (generalidade), sem que a estes seja concedida outra possibilidade que não seja a da sua aceitação ou rejeição, estando-lhes por isso vedada a possibilidade de discutir o conteúdo do contrato (rigidez)”.
A contratação com base em condições ou cláusulas contratuais gerais, previamente elaboradas, a que o cliente se limita a aderir, constitui uma característica da sociedade industrial hodierna, onde rapidamente se impôs como uma forma de negociação imprescindível, porque funcionalmente ajustada às exigências das estruturas de produção e distribuição de bens e serviços: necessidades de racionalização, planeamento, celeridade e eficácia tornaram a contratação com base nestas cláusulas gerais uma forma indispensável de negociação da empresa. À produção e distribuição em massa corresponde necessariamente a contratação em massa, sendo impensável, neste quadro, um processo de negociação tradicional, com os milhares ou milhões de consumidores ou utentes.
Este modelo contratual constitui uma limitação ao princípio da liberdade contratual, previsto do art. 405º do C.Civil, na vertente de liberdade de fixação do conteúdo dos contratos, princípio este que assume primordial importância no modelo de contratação tradicional: neste modelo tradicional o contrato resume-se a um acordo de vontades, consequência da livre negociação entre os contraentes; porém, no modelo negocial das cláusulas contratuais gerais, a contratação não é precedida de qualquer discussão prévia, em ordem à concertação dos interesses de ambos os intervenientes (isto é, com vista à obtenção daquele acordo de vontades também sobre o conteúdo do contrato), mas consiste na apresentação de cláusulas previamente formuladas, unilateralmente no todo ou em parte, por uma das partes, normalmente uma empresa, limitando-se a outra parte a aceitar ou rejeitar tais condições, mediante adesão ao modelo que lhe é apresentado, sem qualquer possibilidade de modificar o ordenamento negocial apresentado: “Teoricamente não há aqui restrições à liberdade de contratar. O consumidor do bem ou serviço, se não está de acordo com as condições constantes do modelo ou impresso elaborado pelo fornecedor, é livre de rejeitar o contrato. Simplesmente esta liberdade seria a liberdade de não satisfazer uma necessidade importante, pois os contratos de adesão surgem normalmente em zona de comércio onde o fornecedor está em situação de monopólio ou quase monopólio. Rejeitar as condições apresentadas, e o que o apresentante não aceita discutir, significa a impossibilidade de satisfazer com outro parceiro contratual a respetiva necessidade. Daí que o particular, impelido pela necessidade, aceite as condições elaboradas pela outra parte, mesmo que lhe sejam desfavoráveis ou pouco equitativas - daí a restrição factual à liberdade de contratar”.
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2).2.6.1. Prosseguindo, acrescentamos que as figuras das cláusulas contratuais gerais e dos contratos de adesão suscitam, no essencial, ao nível substantivo, duas questões: a primeira, situa-se no plano da formação do contrato; o segundo, no da justiça contratual das cláusulas. A propósito, António Pinto Monteiro, “O novo regime jurídico dos contratos de adesão – cláusulas contratuais gerais”, ROA, Ano 62, Volume I, janeiro de 2002, disponível em https://portal.oa.pt/publicacoes/.
Sobre a primeira, importa esclarecer que as cláusulas contratuais gerais per se constituem meros modelos contratuais padronizados e uniformes que, sendo elaborados para uma pluralidade indeterminada de contratos, apenas adquirem relevância jurídica quando são inseridas em contratos de adesão individuais e concretos, mediante a adesão ou a aceitação do destinatário (art. 4.º da LCG). É justamente para assegurar a proteção do aderente logo na fase pré-contratual e de formação do contrato que o legislador prevê uma disciplina especial, fazendo depender a inserção das cláusulas contratuais gerais nos contratos singulares de um dever de as comunicar ao aderente (art. 5.º da LCG), de um dever de informar o aderente sobre o seu conteúdo (art. 6.º da LCG) e da inexistência de cláusulas contratuais especiais prevalecentes (art. 7.º): a inobservância destes deveres é sancionada com a expurgação da cláusula do contrato de adesão celebrado (art. 8.º da LCG), subsistindo este, em princípio, mediante o recurso às normas supletivas e integradoras gerais (art. 9.º da LCG).  Compreende-se que assim seja: da infração destes deveres resulta que sobre as cláusulas contratuais gerais não foi estabelecido o mútuo consenso que é pressuposto do acordo e expressão da autonomia da vontade dos contraentes, em especial do aderente.
Sobre o dever de comunicação, diz o art. 5.º/1 da LCG que “[a]s cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las.” O n.º 2 do preceito acrescenta que “[a] comunicação deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidades das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efetivo por quem use de comum diligência.”
Esta obrigação de comunicação é expressão do dever de agir de boa fé na formação do contrato, imposto pelo art. 227 do Código Civil. Neste sentido, Joaquim de Sousa Ribeiro (“O princípio da transparência no direito europeu dos contratos”, Direito dos Contratos. Estudos, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 89) escreve que esta conceção, que designa por transparência, se estriba no “princípio comum da boa fé de que constitui uma derivação concretizadora.” De igual modo, Ana Prata (Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, p. 226) escreve que “[é] coessencial à noção de contrato, tal como o foi concebido e permanece, o acordo livre e esclarecido; a boa fé só pode ser invocada na medida em que dela resulta, na fase dos preliminares como na da conclusão do contrato, a obrigação de comunicação, clara e suficientemente informativa, por uma das partes à outra, da integralidade dos elementos constantes da proposta contratual.” Esta ideia está presente em STJ 2.05.2007 (07A1337), relatado por Sebastião Póvoas, onde se pode ler que “[e]ste regime já podia ser detetado nos artigos 227º nº 1 e 232º do Código Civil. Aquele impondo a quem faz uma proposta de contrato, ou quem a recebe, e entra em negociações a seu respeito, a obrigação de diligencia para com a outra parte. Devem as partes comportar se de boa fé (…) sob pena de responsabilidade por culpa in contraendo. O artigo 232º impõe a coincidência entre a aceitação e a oferta relativamente aos elementos essenciais do negocio, sob pena de não conclusão do contrato.
Nas clausulas contratuais gerais, por constarem de modelos pré-elaborados, a adesão faz se na emissão da proposta e na aceitação do modelo.
Só que para uma perfeita formação da vontade negocial há que garantir ao aderente um conhecimento exato do clausulado, com a comunicação integral, percetível e clara, do projeto negocial.”
Trata-se de uma obrigação de meios, como salientam Almeida Costa / Meneses Cordeiro (Cláusulas Contratuais Gerais. Anotação ao Decreto-Lei n.º 446/85, de 25.10, Coimbra: Almedina, 1993, p. 25), que escrevem: “não se trata de fazer com que o aderente conheça efetivamente as cláusulas, mas apenas de desenvolver, para tanto, uma atividade razoável. Nessa linha, o n.º 2 esclarece que o dever de comunicação varia, no modo da sua realização e na sua antecedência, consoante a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas. Como bitola, refere-se a lei à possibilidade do conhecimento completo e efetivo das cláusulas por quem use de comum diligência. Encontra-se aqui uma afloração do critério geral de apreciação das condutas em abstrato e não em concreto.”
Por outro lado, acrescenta o art. 6.º/1 da LCG, a propósito do dever de informação, que “[o] contraente determinado que recorra a cláusulas contratuais gerais deve informar, de acordo com as circunstâncias, a outra parte dos aspetos nelas compreendidos cuja aclaração se justifique.” O n.º 2 do preceito acrescenta que “[d]evem ainda ser prestados todos os esclarecimentos razoáveis solicitados.”
Como salienta Ana Prata (Contrato de Adesão cit., p. 278), “[a] separação entre a obrigação de comunicação e a de informação é relativamente forçada ou artificial. No modo como o artigo anterior concebe a primeira vão contidas as informações necessárias à compreensão do conteúdo do contrato”, de modo que o preceito tem importância sobretudo pelo seu n.º 2. De modo semelhante, em STJ 4.05.2017 (1566/15.6T8OAZ.P1.S1), relatado por António Piçarra, afirma-se que os dois deveres são complementares, uma vez que “o objetivo do consentimento esclarecido por parte do aderente só se alcança se as cláusulas lhe tiverem sido adequadamente comunicadas (quanto ao modo e ao tempo da comunicação, por confronto com a complexidade da concreta cláusula, como resulta do disposto no nº 2 do artigo 5º do Decreto-Lei nº 466/85) e acompanhados das informações exigidas pelas circunstâncias (artigos 6º e 8º, b)), solicitadas ou não pelo aderente.”
Parte-se aqui do princípio de que a mera comunicação das cláusulas é, por vezes, insuficiente para assegurar que a aceitação do aderente foi livre e esclarecida. É o que sucede, de acordo com a lição de Ana Prata (Contratos de Adesão cit., p. 279), quando o teor literal das cláusulas “não permite apreender o seu sentido por uma pessoa de diligência razoável.” Há, na verdade, cláusulas que, pela sua complexidade e pelo seu significado jurídico, não estão ao alcance da generalidade das pessoas, mesmo daquelas que têm preparação jurídica. Outras existem que, pela complexidade tecnológica do bem ou da atividade objeto do contrato, demandam conhecimentos específicos que não estão ao alcance da pessoa média. E existem ainda aquelas cuja interpretação pressupõe a articulação com outras, por vezes colocadas noutras secções do texto do clausulado, sendo ininteligíveis ou ambíguas sem essa tarefa. Existem, finalmente, aquelas que, pela sua especial importância, justificam uma informação especialmente cuidada e completa.
No fundo, do que se trata é do dever, imposto ao predisponente, de fornecer informações mais detalhadas ao aderente, o qual encontra, também, arrimo no princípio da boa fé na fase negociatória previsto no já citado art. 227 do Código Civil. Neste sentido, exige-se, por exemplo, que o predisponente repita “as suas explicações até que sinta que a informação foi bem compreendida. Do mesmo modo, se o devedor da obrigação de informação é um profissional cuja linguagem é isotérica para o cliente, pode ter de simplificar os termos empregados, mesmo deformando um pouco a informação, na condição, bem entendido, de o fazer de forma leal, e prosseguindo apenas o objetivo de fazer com que o cliente tome consciência do alcance da informação.”
Como resulta do que antecede, a imposição do dever de comunicação visa evitar as cláusulas ocultas ou dissimuladas e, bem assim, aquelas que passam facilmente despercebidas. Estão em causa aquelas situações em que os riscos de desconhecimento da totalidade do clausulado por parte do aderente são elevados, seja por este ser extenso ou disperso, seja por ter uma fórmula gráfica que desincentiva a sua leitura, seja por remeter para anexos que não integram o texto contratual, não havendo, portanto, garantias de contratualidade efetiva, mas meramente formal. A sua complementação com o dever de informação visa aquelas cláusulas que são de difícil apreensão em si mesmas e no contexto funcional do negócio, seja por a sua interpretação exigir conhecimentos jurídicos ou técnicos específicos, seja por pressuporem o conhecimento e a conjugação com outras ou remeterem mesmo para escritos que não fazem parte do texto contratual. A título de exemplo, destacamos a situação de STJ 30.10.2007 (07A3048), relatado por Fonseca Ramos, onde se pode ler que “[n]ão é exigível a pessoa analfabeta que domine conceitos jurídicos como mora, cláusula penal, rescisão do contratoe reserva de propriedade, sobretudo se tais conceitos constaram das Condições Gerais, sendo, por isso, mais exigente o dever de informação.”
O campo de atuação destes deveres não pode ser definido em abstrato; antes pressupõe uma análise casuística que tenha em atenção as particularidades da situação concreta – o contexto negocial, o aspeto gráfico do contrato e das próprias cláusulas, o modo como elas foram inseridas no texto, a sua própria redação – o que é indicado pelo segmento “de acordo com as circunstâncias” incluído na redação do n.º 1 do art. 6.º. Não se imporá sempre uma explicação pormenorizada do conteúdo das cláusulas, mas apenas quando a complexidade do conteúdo contratual, a sofisticação do respetivo objeto ou outros fatores façam razoavelmente supor a sua necessidade para garantir que subsistem espaços de dissenso oculto. Entre estes fatores afigura-se que também devem ser incluídos os conhecimentos e a formação do aderente nos casos em que este atua no exercício da sua atividade profissional ou empresarial em negócio para o qual é suposto estar apetrechado.
Do que antecede resulta que não faz sentido a invocação de uma infração aos deveres de comunicação e de informação quando estejam em causa enunciados contratuais de pouca dimensão, cujas cláusulas estão devidamente separadas, numeradas, tituladas, redigidas com letras de dimensão adequada e em termos que são compreensíveis para o aderente médio. Isto ganha ainda mais sentido quando o aderente é um empresário ou um profissional liberal, inserindo-se o contrato na prossecução da sua atividade. Se assim não suceder, o regime das CCG corre o risco de ser transformado numa espécie de panaceia para que o aderente obtenha, mediante a simples alegação de infração dos deveres, a exclusão das cláusulas que, num dado momento da execução do contrato, ou mesmo depois da cessação deste, não são convenientes para o seu interesse.
A esta luz impõe-se a afirmação de que não basta alegar, em termos genéricos, o não cumprimento das obrigações de comunicação e informação subjacentes aos apontados deveres, jogando com o funcionamento das regras de distribuição do ónus da prova, das quais resulta que o non liquet aproveita ao aderente. Aquele ónus de alegação tem de ser complementado com a descrição das concretas circunstâncias de onde deriva que as cláusulas não foram devidamente comunicadas (v.g., passavam despercebidas num texto denso, com aspeto gráfico que desmotivava a sua leitura) e, bem assim, das que impunham, numa perspetiva razoável, um especial cuidado na explicação do seu sentido e alcance. Neste sentido, RG 14.09.2023 (281/22.9T8CHV-A.G1), relatado por José Carlos Pereira Duarte, tendo como Adjuntas as Juízas Desembargadoras Maria Gorete Morais e Maria João Pinto de Matos, onde se escreve que se “as embargantes não alegaram quais os aspectos compreendidos nas cláusulas impugnadas cuja aclaração se justificava” pode, “portanto, presumir-se, que já depois de as terem lido, as mesmas não lhes suscitam dúvidas de compreensão.”
É por esta razão que a tese da Recorrente soçobra logo à partida. Com efeito, por um lado, as cláusulas em questão estão perfeitamente destacadas, através de numeração e título, nos contratos em que foram inseridas; os enunciados de tais contratos não se apresentam como extensos; têm uma apresentação gráfica adequada, com letra de tamanho normal e espaçada. Por outro lado, estamos perante uma situação em que a aderente é uma empresária do ramo de atividade a que respeita o negócio (mediação de seguros), tendo, por isso, conhecimentos suficientes para perceber o sentido das cláusulas – o qual, diga-se, é de fácil apreensão.
Como se constata, entendemos que o Tribunal  a quo apreciou devidamente esta questão quando escreveu, na sentença recorrida, que “estamos perante dois profissionais a contratar, tratando-se de contrato realizado precisamente no âmbito das respetivas atividades, sendo evidente, que a A., não pode ser aqui vista como um mero consumidor, como a parte “mais fraca”, pela mera circunstância de ser a R. a impor as condições[.] [V]eja-se que a A., enquanto profissional na área dos seguros, aceitou o contrato livremente, e mais, não se trata de um contrato único[.] [C]omo sabemos a A. tinha contratos semelhantes com outras seguradoras de que era também agente (…).” E também quando acrescentou que “a pessoa que em nome da A. negociou (…) há muitos anos que está nesta área dos seguros (…)[.] [N]ão estava propriamente um novato a negociar em nome da A., sendo mais do que evidente que o conteúdo das referidas cláusulas é claramente percetível quanto ao seu alcance e efeitos, e mais atendendo à pessoa que com a R contratou em nome da A., com vasta experiência nesta área.”
Não existe, portanto, fundamento para que as cláusulas em questão sejam excluídas do texto dos contratos em que foram inseridas e aos quais a Recorrente aderiu.
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2).2.6.2. Vejamos agora a questão da justiça contratual das cláusulas.
O sistema legal das cláusulas proibidas consiste num princípio geral de controlo (arts. 15 e 16 da LCG) e num extenso catálogo de cláusulas proibidas concretas (arts. 17 a 22).
Aquele princípio geral de controlo repousa na boa fé, conceito aqui usado no seu sentido objetivo, acrescentando-lhe, como diretiva concretizadora, a ponderação dos valores fundamentais do direito em face da situação considerada, designadamente a confiança suscitada nas partes e os objetivos negociais pretendidos (art. 16 da LCG). Ciente de que o controlo ou a sindicância efetiva das cláusulas contratuais gerais seria impraticável caso assentasse exclusivamente num “mandamento jusprivatístico de caráter genérico” (José Engrácia Antunes, Dos Contratos Comerciais cit., pp. 193-194) ou numa “profissão de fé” (Ana Prata, Contratos de Adesão cit., p. 352), o legislador consagrou um catálogo de cláusulas proibidas, que reputou de proibidas e vedadas. O sistema de controlo do conteúdo dos contratos de adesão está, portanto, construído “na base de uma articulação entre o princípio geral da boa fé e uma enunciação de proibições específicas, que funcionam como projeções concretas dessa intencionalidade normativa geral” (José Engrácia Antunes, idem). Daqui decorre que o catálogo legal é meramente exemplificativo, e não taxativo, podendo cláusulas nele não previstas ser consideradas nulas nos termos gerais do art. 15.
A primeira categoria de cláusulas proibidas relevantes – a que aqui nos interessa – diz respeito aos contratos de adesão celebrados entre empresários (ou entidades equiparadas), também eles destinatários da proteção conferida pelo legislador. Parte-se aqui do pressuposto de que em determinados setores ou fases do circuito económico, de que é exemplo a distribuição comercial (José Engrácia Antunes, Dos Contratos Comerciais cit., p. 196), os contratos de adesão são frequentemente utilizados pelas grandes empresas nas suas relações com pequenos e médios empresários, que se encontram em situação de desigualdade do ponto de vista do seu poder económico. No dizer de Almeida Costa / Menezes Cordeiro (Cláusulas Contratuais Gerais cit., p. 38), “[t]rata-se, todavia, de uma proteção que deve ter em conta duas coordenadas: por um lado, tanto os empresários como os que se dedicam a profissões liberais situam-se e movimentam-se numa esfera especializada que, segundo regras de normalidade, conhecem melhor do que os consumidores finais; por outro lado, as atividades empresariais ou similares requerem, no seu desenvolvimento, o dinamismo do tráfico jurídico. Compreende-se, assim, que se haja determinado, para as relações entre empresários ou profissionais liberais, ou entre uns e outros, no plano da sua atividade específica, um regime diferenciado e adaptado.”
As cláusulas desta categoria estão agrupadas em duas classes ou tipos: as cláusulas absolutamente proibidas (art. 18 da LCG) e as cláusulas relativamente proibidas (art. 19 da LCG). A diferença entre elas reside no seguinte: enquanto as primeiras são sempre vedadas em contratos de adesão, sendo a sua inserção sancionada com a nulidade (art. 12 da LCG), as segundas podem ser ou não vedadas, consoante o juízo de valor que sobre elas for realizado à luz do quadro negocial no seu conjunto.
Estão em causa, na primeira classe: (i) cláusulas relativas à exclusão ou limitação de responsabilidade – mais concretamente, cláusulas que excluam ou limitem, de modo direto ou indireto, a responsabilidade “por danos causados à vida, à integridade moral ou física ou à saúde das pessoas” (alínea a)), “por danos patrimoniais extracontratuais causados na esfera da contraparte ou de terceiros” (alínea b)), “por não cumprimento definitivo, mora ou cumprimento defeituoso, em caso de dolo ou de culpa grave” (alínea c)) ou “por atos de representantes ou auxiliares, em casos de dolo ou de culpa grave” (alínea d)); (ii) cláusulas relativas à exclusão ou limitação de mecanismos relativos ao cumprimento das obrigações contratuais – mais concretamente, cláusulas que “excluam a exceção de não cumprimento do contrato ou a resolução por incumprimento” (alínea f)), “excluam ou limitem o direito de retenção” (alínea g)), “excluam a faculdade de compensação, quando admitida na lei” (alínea h)), ou “limitem, a qualquer título, a faculdade de consignação em depósito, nos casos e condições legalmente previstos” (alínea i)); (iii) cláusulas que “confiram, de modo direto ou indireto, a quem as predisponha, a faculdade exclusiva de interpretar qualquer cláusula do contrato (alínea e)), (iv) cláusulas que “estabeleçam vinculações duradouras perpétuas ou cujo tempo de vigência dependa apenas da vontade de quem as predisponha” (alínea j)) e (v) cláusulas que “consagrem, a favor de quem as predisponha, a possibilidade de cessão da posição contratual, de transmissão de dívidas ou de subcontratar, sem o acordo da contraparte, salvo de a identidade do terceiro constar do contrato inicial” (alínea i)).
Na segunda classe, estão em causa: (i) cláusulas relativas a prazo, que estabeleçam, a favor de quem as predisponha, “prazos excessivos para a aceitação ou rejeição de propostas” (alínea a)) ou “prazos excessivos para o cumprimento, sem mora, das obrigações assumidas” (alínea b)); (ii) cláusulas relativas à formação e efeitos do contrato que “imponham ficções de receção, de aceitação ou de outras manifestações de vontade com base em factos para tal insuficientes” (alínea d)) e “consagrem cláusulas penais desproporcionadas aos danos a ressarcir” (alínea c)); (iii) cláusulas relativas à atribuição de poderes jurídicos que “façam depender a garantia das qualidades da coisa cedida ou dos serviços prestados, injustificadamente, do não recurso a terceiros” (alínea e)), “coloquem na disponibilidade de uma das partes a possibilidade de denúncia, imediata ou com pré-aviso insuficiente, sem compensação adequada, do contrato, quando este tenha exigido à contraparte investimentos ou outros dispêndios consideráveis” (alínea f)), “estabeleçam um foro competente que envolva graves inconvenientes para uma das partes, sem que os interesses da outra o justifiquem” (alínea g)), “consagrem, a favor de quem as predisponha, a faculdade de modificar as prestações, sem compensação correspondente às alterações de valor verificadas” (alínea g)) ou “limitem, sem justificação, a faculdade de interpelar” (alínea i)).
Como vimos, a Recorrente entende que as cláusulas identificadas são enquadráveis na previsão da alínea j) do art. 18 (cláusulas que “estabeleçam vinculações duradouras perpétuas ou cujo tempo de vigência dependa apenas da vontade de quem as predisponha).
Na primeira parte da norma estão em causa cláusulas que estabeleçam obrigações duradouras perpétuas, as quais são contrárias ao princípio, generalizadamente aceite, ainda que não consagrado de forma expressa na lei, de que ninguém pode ficar vinculado indefinidamente (Ana Prata, Contratos de Adesão cit., p. 438), pelo que parece nada acrescentar ao que já resultaria do regime comum das obrigações. Para Luís Menezes Leitão (Direito das Obrigações, I, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2008, pp. 40-41), a previsão “vem impedir a celebração a celebração, através de cláusulas contratuais gerais, de contratos de renda perpétua (art. 1231), o que não se justifica, atenta a possibilidade nele existente de remição da renda pelo devedor, instituída injuntivamente (art. 1236).” O autor acrescenta, “por isso, que o que esta norma visa proibir é a exclusão, através de cláusulas contratuais gerais, das formas de extinção das obrigações duradouras, como a remição, a denúncia do contrato ou a oposição à renovação, designadamente a colocação dessa extinção nas mãos de uma das partes.”
Na segunda parte da norma estão em causa as cláusulas que deixam a duração do contrato ao arbítrio de uma das partes. Será o caso de uma cláusula que permita uma revogação unilateral ad nutum ou ad libitum por parte do predisponente.
Analisando as cláusulas em questão, concluímos facilmente que das mesmas não resultava uma vinculação perpétua das partes ao contrato, o que exclui, sem necessidade de outras considerações, a possibilidade de as enquadrar na 1.ª parte da norma.
Mais complexa se apresenta a análise no que tange à 2.ª parte.
É inequívoco que a cláusula 5.2. permitia que a Recorrida pusesse termo, a qualquer momento e sem necessidade de fundamento, à vigência da cláusula pela qual atribuiu poderes de cobrança à Recorrente. Do exercício desse direito não resultava, porém, a cessação do contrato de mediação de seguros, o que afasta, desde logo, a possibilidade de enquadramento da cláusula na parte final alínea j) do art. 18.
Acresce que, conforme escrevemos, a cláusula que atribuía poderes de cobrança à Recorrente conformava uma obrigação típica do mandato com representação. Por ela, a Recorrente estava obrigada a praticar atos jurídicos, consubstanciados na cobrança créditos – prémios de seguro – titulados pela Recorrida, em nome e por conta desta. Sem ela, os pagamentos que os devedores da Recorrida fizessem à Recorrente (mandatária) não seriam considerados como feitos à própria credora.
Ora, o mandato é livremente revogável por qualquer das partes, não obstante convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação (art. 1170/1). Só assim não sucede, exigindo-se então o acordo do mandatário à revogação por iniciativa do mandante, quando tenha sido conferido, também, no interesse daquele ou de terceiro[4], hipótese que, no caso, não se verifica.
Explicando a afirmação acabada de fazer, lembramos que, por definição, o mandato constitui um instrumento ao dispor do dominus para a realização de interesses próprios. O mandatário, atua como interposto ou substituto do mandante, na prossecução de tais interesses. O plano gestório a seguir é definido pelo mandante. É isto, de resto, o que justifica a livre revogabilidade do mandato pelo mandante. A propósito, Manuel Januário Gomes (Em Tema de Revogação do Mandato Civil, Coimbra: Almedina, 1989, p. 145).
Nem sempre assim sucede. Casos existem em que, por razões que têm a ver com a função económico-social do mandato, este não é conferido no interesse do mandante, mas no do mandatário ou de terceiro.
O interesse de que fala a norma é o denominado interesse primário, que “deve ser próprio, específico, objetivo e direto na execução do mandato ou de contrato a este subjacente, de tal modo que o mandatário tenha uma posição própria, autónoma da posição do mandante. Uma posição que obrigue (ou permita) ao mandatário exercer a sua própria vontade negocial (…) diferente e autonomamente da vontade negocial do mandante, dentro do regime desse mandato. Uma posição que atribua ao mandatário (…) um direito próprio no que respeita à prática dos atos a cuja prática o mandatário se obrigou” (Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, “Art. 1170.º”, AAVV, Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Contratos em Especial, Lisboa: UCE, 2023, p. 692).
Não basta um interesse secundário, que não preenche as apontadas características. Não é relevante, designadamente, “o estrito interesse na manutenção do status quo de mandatário, em virtude dos benefícios económicos ou outros que tal posição carreie” (Manuel Januário Gomes, Em Tema cit., p. 148).
Ora, no caso, a atribuição dos poderes de cobrança pela seguradora ao mediador visava a prossecução do interesse daquela em dispor de uma estrutura – a do mediador – que lhe permitisse prestar serviços aos seus clientes sem necessidade da criação de uma rede de agências próprias que abrangesse todas as áreas geográficas onde pretendia atuar. O único interesse do mediador que se vislumbra consistia na retenção dos prémios cobrados para deles retirar a sua comissão. Este era, porém, por um lado, um interesse situado a jusante do ato gestório, não conexionado nem determinado por ele, e, por outro, baseado numa cedência da seguradora. Não preenchia, portanto, as características necessárias para ser considerado relevante.
Pelo exposto, carece de fundamento a tese da Recorrente no sentido da nulidade da cláusula 5.2. do “Contrato Agente de Seguros EMP02....
Vejamos agora a cláusula 9.ª do “Acordo de Utilização de Acessos Informáticos.”
É indiscutível que esta permitia uma desvinculação unilateral da Recorrida. Simplesmente, como resulta da qualificação feita pelas partes da figura jurídica em causa – resolução –, o exercício do correspondente direito, de natureza potestativa, estava vinculado à existência de um ato que justificasse a cessação do vínculo contratual de que eram dados exemplos enquadráveis em dois tipos de situações: (i) a “diminuição significativa” das carteiras de seguros da Recorrente “de modo que torne injustificável a manutenção dos acessos informáticos”; (ii) atos de incumprimento dos deveres contratuais assumidos pela Recorrente.
Não se tratava, portanto, de uma cláusula quer permitisse uma desvinculação ad libitum, mas de uma verdadeira causa resolutória, o que é suficiente para refutar a tese da sua natureza abusiva. Isto aplica-se também à cláusula 10.ª que se limita a prever as obrigações resultantes da cessação do contrato para a Recorrente.
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2).2.7. Do que antecede, podemos concluir que a revogação dos poderes de cobrança não enforma um ato ilícito.
Já a resolução do “Acordo de Utilização de Acessos Informáticos” impõe que se apure se o facto invocado como fundamento estava verificado e era suficiente para esse efeito.
A resposta a ambas as questões é afirmativa: nas reuniões mantidas com os representantes da Recorrida, o representante da Recorrente afirmou que esta não tinha interesse em continuar como mediadora da EMP02..., apelidando-a de “laranja podre”. Este comportamento, violador dos deveres de lealdade e de correção do mediador para com a seguradora, assim como do agente para com o principal, deveres que são meros desdobramentos do geral de boa fé (cf. António Pinto Monteiro, Contrato de Agência cit., p. 57), era apto a destruir a relação de confiança em que se baseava o contrato. Surgiu num contexto preciso, marcado pela acentuada quebra da carteira de clientes da Recorrente. Não sendo a Recorrente agente exclusivo da Recorrida, justificava-se, como medida profilática, a resolução do contrato que permitia que aquela acedesse e utilizasse os sistemas informáticos e todas as informações relacionadas com os contratos de seguro (ainda) vigentes, conforme resulta do facto que foi considerado como provado sob o ponto 26 da fundamentação de facto da sentença, o qual não foi objeto de impugnação neste recurso.
Neste conspecto, sendo certo que a aplicação das novas percentagens das comissões não importou um prejuízo para o interesse da Recorrente, o que era uma premissa necessária para se afirmar a lesão do seu direito de crédito e o incumprimento do contrato por parte da Recorrida, podemos afirmar que na génese da quebra da relação de confiança esteve a postura de desafio e afronta da Recorrente, corporizada por quem a representava de facto.
Foi este o contexto que espoletou os atos que a Recorrente entende serem ilícitos – a revogação dos poderes de cobrança e a resolução do acordo de acesso e utilização dos sistemas informáticos. O primeiro, como vimos, era um ato que a Recorrida podia praticar livremente; o segundo foi praticado com base numa cláusula contratual que lhe permitia a resolução do contrato em determinadas situações – que se verificaram – e não arbitrariamente. Um e outro não podem, portanto, ser qualificados como atos ilícitos.
Entendemos, por esta razão, que o Tribunal a quo analisou corretamente a questão quando escreveu, na sentença, que “o decréscimo da carteira da A. vinha-se evidenciando ao longo dos últimos anos, chegando a cerca de 70%, sendo de destacar que nos meses que antecederam a revogação em causa por banda da R., a A. reduziu a carteira de forma substancial, sendo mais do evidente para a R. que estava a A. a transferir a carteira[.] [E]m Junho de 2021 a carteira de clientes da A. tinha decrescido 52,1% em relação a 2020, sendo de destacar o grande número de anulações havidas e elevada taxa de não retenção que os colaboradores referiram nos meses de abril e maio. Nestes termos, e perante esta postura da A. está mais do que justificada a conduta encetada pela R., que se socorreu das prerrogativas que o contrato lhe conferia para efetivamente tentar minorar a situação, evitar o completo esvaziamento da carteira, a par, de colocar a A. na posição que lhe cabia, face ao desempenho.”
O ato subsequente da Recorrida – a atribuição de poderes de cobrança a outro mediador e a comunicação desse facto aos tomadores – surge neste encadeado, como uma resposta à postura da Recorrente, que na prática já deixara de promover a celebração de novos contratos por conta da Recorrida. Não se apresenta como um ato em si mesmo ilícito: a um tempo, a Recorrida não estava obrigada a qualquer exclusividade para com a Recorrente; a outro, tinha liberdade para mandatar terceiro para a prática dos atos jurídicos em questão. Ainda que se possa admitir que conforma uma deslealdada para com a Recorrente, atentando contra a boa fé objetiva (isto é, a boa fé enquanto regra de conduta), sempre se tem de contrapor que quem atua ilicitamente, em desconformidade com o direito, não pode prevalecer-se das consequências jurídicas (sancionatórias) de uma atuação ilícita da contraparte, sobretudo quando esta é ulterior. Estamos, conforme foi entendido na sentença recorrida, perante o tu quoque, manifestação do instituto do abuso do direito, genericamente consagrado no art. 334 do Código Civil, que se verifica quando existe uma contradição não ao nível dos comportamentos do agente, como sucede no venire contra factum proprium, “mas nas bitolas valorativas por ele utilizadas para julgar e julgar-se” (Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V, reimpressão da 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2016, p. 371),  consubstanciando uma violação da estrutura axiológica do direito. Na verdade, com o incumprimento dos deveres de lealdade e correção por parte da Recorrente, apesar de a relação contratual ter permanecido formalmente idêntica, certo é que as posições jurídicas das partes sofreram alterações concretizadas na quebra da confiança recíproca. Foram estas que motivaram a redução do objeto do contrato ao seu mínimo por parte da Recorrida. A materialidade subjacente, que é aquilo que se tutela (Menezes Cordeiro, idem), passou a ser outra. E isto vale também para o incumprimento imputado à Recorrida por não ter apresentado os recibos das cobranças por si feitas para efeitos da prestação de contas.
Ora, não é aceitável que aquele que provocou a situação descrita se prevaleça de um comportamento subsequente da contraparte, por si espoletado, para resolver o contrato e obter uma indemnização como se nada tivesse passado. O seu potencial direito indemnizatório deve ser paralisado.
Concluímos, pelo exposto, que a Recorrente resolveu o contrato sem que houvesse justa causa, não merecendo censura a decisão que não lhe reconheceu o direito à indemnização de clientela.
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2).8. Entende ainda a Recorrente que a revogação dos poderes de cobrança e a resolução do “Acordo de Utilização de Acessos Informáticos” por parte da Recorrida configuram atos ilícitos à luz do disposto nos arts. 11 e 12 do Novo Regime da Concorrência, aprovado pela Lei n.º 19/2012, de 8.05.
É patente a petição de princípio de que parte: por um lado, a posição dominante da Recorrida no confronto com a Recorrente circunscreve-se ao âmbito do contrato que entre ambas foi celebrado e é de acordo com as normas que o regem, supra enunciadas, que deve ser tratada; por outro, não está demonstrado que a Recorrida tivesse uma posição dominante no mercado de seguros dos ramos previstos no contrato celebrado com a Recorrente; como também não está demonstrado que a Recorrente se encontrasse numa posição de dependência económica da Recorrida, “por não dispor de alternativa equivalente.”
Improcedem, portanto, sem necessidade de outras considerações, as conclusões do recurso.
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3) Vencida, a Recorrente deve suportar as custas do recurso: art. 527/1 e 2 do CPC.
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IV.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em:

Julgar o presente recurso improcedente;
Confirmar a sentença recorrida;
Condenar a Recorrente no pagamento das custas.
Notifique.
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Guimarães, 12 de junho de 2024

Os Juízes Desembargadores,
Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães
1.ª Adjunta: Maria João Marques Pinto de Matos
2.ª Adjunta: Maria Gorete Morais



[1] Inter alia, RG 10.07.2023 (4607/21.4T8VNF-A.G1), relatado pela Desembargadora Maria João Matos. No dizer de António Abrantes Geraldes, “A sentença cível”, disponível em Publicações - Supremo Tribunal de Justiça (stj.pt), pp. 10-11, “na enunciação dos factos apurados o juiz deve observar uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da ação. Por isso, é inadmissível (…) que se opte pela enunciação desordenada de factos, uns extraídos da petição, outros da contestação ou da réplica, sem qualquer coerência interna.”
[2] De acordo com Pedro Pais de Vasconcelos (Contratos Atípicos, Coimbra: Almedina, 2002, pp. 168-171), os tipos contratuais que habitualmente constam da lei através de definições construídas per genus et differentiam, “são úteis para ajudar a clarificar a questão do valor jurídico das definições legais, maxime das definições legais dos tipos contratuais.” No mesmo sentido, Rui Pinto Duarte (Tipicidade e Atipicidade dos Contratos, Coimbra: Almedina, 2000, pp. 70-71) salienta que as definições legais têm “[o] propósito de evitar dúvidas, nomeadamente as inerentes à fluidez dos conceitos e das designações socialmente existentes, e a utilização de designações e de conceitos socialmente inexistentes ou em sentido diverso do que socialmente lhe é atribuído.
[3] Não há, no nosso direito positivo, qualquer norma a propósito da declaração de não cumprimento e dos efeitos dela. Os contributos doutrinais debruçam-se, sobretudo, sobre a desnecessidade de interpelação do devedor que declarou não querer cumprir para operar a constituição em mora. Vaz Serra (“Mora do Devedor”, BMJ, n.º 48, pp. 60 e ss.), abordou o tema, aquando dos trabalhos preparatórios do Código Civil, referindo em especial o art. 1219.°/2 do Código Civil italiano, que dispensa a intimação quando o devedor declare por escrito não querer cumprir a obrigação, e a prática jurisprudencial francesa, no sentido de tornar dispensá­vel a interpelação quando o devedor tome a iniciativa de “fazer conhecer ao credor a sua recusa de cumprir”. O mesmo Autor (“Impossibilidade Superveniente / Cumprimento Imperfeito Imputável ao Devedor”, BMJ, n.º 47, p. 97), propôs uma solu­ção de tipo italiano, exigindo que, por escrito, o devedor manifeste “clara e definitivamente que não fará a prestação devida.” Na literatura subsequente ao Código Civil vigente, Pessoa Jorge (Lições de Direito das Obrigações, I, 1967, pp. 296 – 298) toma uma posição cla­ramente contrária. A solução do vencimento imediato da obriga­ção, perante uma declaração do devedor de não querer cumprir, teria um espe­cial interesse nas obrigações sujeitas a prazo: porém, ela não seria, de modo algum, aceitável quanto a estas: “Na verdade, numa obrigação sujeita a prazo, o credor tem o seu interesse satisfeito se o devedor cumprir no prazo; se, antes deste, o devedor declara não cum­prir mas depois se arrepende e se apresenta a cumprir no momento inicialmente fixado, o credor não terá de se queixar, porquanto tem a prestação devida na altura prevista.” Além disso, segundo este Autor, as causas de exigibilidade antecipada estão fixadas na lei (805.°) e têm natureza excecional, pelo que a eficácia da declaração antecipada de incumprimento apenas é admissível se ocorrer uma reação, confluente, do credor. Almeida Costa (Direito das Obrigações, 9.ª ed., Coimbra: Almedina, 2005, p. 980) e Ribeiro de Faria (Direito das Obrigações 2 (1988), p. 447) associam à declaração séria e ine­quívoca de não cumprir, feita pelo devedor, o vencimento antecipado ou a des­necessidade de interpelação. 
No direito alemão, como dá conta Menezes Cordeiro (“A Declaração de não-cumprimento da obrigação”, O Direito, ano 138 (2006), t. 1, pp. 28 e ss.), o tema tem sido aprofundado e mereceu mesmo um expresso tratamento legislativo, aquando reforma do BGB de 2001/2002. A consagração legal é fruto de uma evolução doutrinal e jurisprudencial que sempre sublinhou a necessidade de uma declaração de não-cumprimento “séria, honesta, precisa e definitiva”, de tal modo que não haveria recusa “eficaz” nos seguintes casos: um pedido de moratória por falta de dinheiro; uma (mera) declaração de não poder cumprir a tempo; uma manifestação de dúvidas jurídicas; divergência de opiniões sobre o conteúdo da prestação; recusa de cumprimento e simultânea disponibilidade para querer cumprir; oferta de prestação parcial; declaração de já ter cumprido. Segundo o § 281(1), nova versão, quando o devedor não efetue uma prestação vencida, pode o credor exigir uma indemnização, caso o cumpri­mento não ocorra num prazo razoável por ele fixado. Posto isto, diz § 281(2) que a fixação do prazo é dispensável quando o devedor recuse séria e definitiva­mente a prestação ou quando existam circunstâncias especiais que, sob a pon­deração dos interesses de ambas as partes, justifiquem a imediata invocação da prestação indemnizatória. Por seu turno, dispõe o § 323 do BGB, nova versão, que: “(1.) Quando o devedor, num contrato bilateral, não concretize uma prestação ven­cida ou não o faça em conformidade com o contrato, pode o credor rescindir o contrato quando, sem resultado, ele tenha fixado um prazo razoável, ao deve­dor, para a prestação ou cumprimento. (2.) A fixação do prazo é dispensável quando: 1. O devedor recuse séria e definitivamente a prestação; (...)”. A doutrina alemã, refere Menezes Cordeiro (A Declaração…, p. 34), é muito clara ao explicar que se mantêm as estritas exigên­cias jurisprudenciais e doutrinárias, fixadas pelo Direito anterior. Deve estar em causa uma pura e simples declaração de não-cumprimento, sem qualquer justificação e que traduza a última palavra do devedor.
[4] Como explica Pedro Leitão Pais de Vasconcelos (“art. 1170.º”, AAVV, Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Contratos em Especial, Lisboa: UCE, 2023, p. 692), “a livre revogabilidade do mandato (pelo mandante) está intimamente ligada à estrutura de interesses subjacente à celebração e execução do mandato, como, aliás, ocorre na procuração. Dependendo de o mandato ser no interesse exclusivo do mandante, ou não, ocorre, ou não, a livre revogabilidade. Em resultado, e tal como ocorre na procuração, é a estrutura de interesses na celebração e execução do mandato que opera como critério determinante da sua livre revogabilidade ou não. Em razão deste regime, a natureza contratual do mandato é ultrapassada como critério da revogabilidade, pela estrutura de interesses, sendo desta que depende o seu regime de revogabilidade no plano da eficácia, e sendo a natureza contratual relegada para uma questão de revogabilidade no plano meramente obrigacional, mas sem impacto no plano da eficácia da revogação. Assim, no mandato típico, que é no interesse do mandante, o mandato é eficazmente revogável, no sentido de a revogação provocar a extinção do mandato, mesmo no caso de ter sido consensualizada a irrevogabilidade.” Tendo sido consensualizada a irrevogabilidade, “qualquer das partes pode revogar eficazmente o mandato, mas ocorre o incumprimento de uma obrigação de não revogação, pelo que há lugar às consequências do incumprimento dessa obrigação de não renovação.” Já no mandato naturalmente irrevogável, “a eventual revogação do mandato é ineficaz, pelo que o contrato se mantém em vigor (…).”