CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA A MENOR
DEVER DE CORREÇÃO
Sumário

I - Atualmente, o exercício de um «direito de correção» como fundamento de impunidade dos progenitores face ao uso do castigo físico e/ou psicológico sobre os seus filhos menores, só de modo muito restrito, e com sujeição a limites muito apertados, se poderá aceitar.
II - Não constitui um tal exercício a aplicação regular de castigos físicos sobre um menor, desligada de qualquer comportamento concreto e atual deste que possa justificar a sua respetiva «correção».
III - Também o não integra o uso reiterado, por parte do progenitor, de expressões injuriosas e humilhantes sobre, e dirigidas ao, seu filho menor.
IV - A utilização de objetos para punição de um menor, em regra, deve ter-se por ofensiva da sua dignidade, excluindo assim o exercício válido de qualquer «direito de correção» que ao respetivo progenitor do mesmo possa caber.

Texto Integral

Processo n.º: 289/22.4PIVNG.P1
Origem: Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia (Juiz 3)




Recorrente: AA
Referência do documento: 18051351




I
1. O aqui recorrente impugna, com o presente recurso, decisão proferida no Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia (Juiz 3) do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, que o condenou, (1) pela prática «como autor material, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de Violência Doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2 alínea a) e n.ºs 4 a 6, do Código Penal, na pessoa de [seu filho menor], pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, acompanhada de regime de prova, a elaborar pela DGRSP, que contemple nomeadamente a problemática da violência doméstica por forma a debelar os seus comportamentos, procurando atribuir-lhe mecanismos para que possa saber enfrentar as contrariedades e frustrações que possa vir a ter que enfrentar»; (2) «pela prática, como autor material, na forma consumada e em concurso efectivo de dois crimes de ofensa à integridade física simples [sob a pessoa da sua mulher], p. e p. pelo artigo 143.º n.º 1, do Código Penal, na pena de 80 dias de multa, por cada um dos apontados ilícitos criminais»; (3) «pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de injúria [sob a pessoa da sua mulher], previsto e punido, pelo artigo 181º, n.º 1 do Código penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa»; (4) em cúmulo das penas pecuniárias mencionadas, «na pena única de 180 dias de multa à taxa diária de 6,50€ (seis euros e cinquenta cêntimos)»; e, por último, (5) «ao pagamento de uma indemnização a pagar à vítima/ofendido (…), nos termos do disposto no artigo 82.º A, do CPP, na quantia de 1.500,00 euros (mil e quinhentos euros)».
2. Este é, na parte aqui relevante, o texto da decisão recorrida (a numeração dos parágrafos da fundamentação da convicção no tocante à matéria de facto foi acrescentada por nós):
«I – RELATÓRIO:
O Ministério Público, em processo comum e com a intervenção do tribunal singular, requereu o julgamento de:
[...]
Imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada e em concurso real, um crime de violência doméstica agravado, p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, alínea a), 4, a 6, do Código Penal (ofendida BB [...]) e, um crime de violência doméstica agravado, p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, alínea a), 4, a 6, do Código Penal (ofendido AA [...]).
[...]
O Ministério Publico veio peticionar a condenação do Arguido ao no pagamento de uma indemnização às vítimas – artigos 21.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro e 82.º A, do Código de Processo Penal.
[...]
Procedeu-se à alteração da qualificação jurídica dos factos, conforme melhor consta da respectiva acta.


II – DECISÃO QUANTO À MATÉRIA DE FACTO:

A) Factos provados:

Da prova produzida e com interesse para a boa decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
1 - O arguido [...] e a ofendida BB [...] contraíram casamento em ../../2004, passando a residir, até 2009, na Rua [...]; entre 2009 e 2020, na Rua [...]; e, depois de 2020, na Rua [...].
2 - Dessa união nasceram dois filhos: AA [...] (em ../../2007) e CC [...] (em 03/07/2015).
3 - Sobretudo desde o ano de 2015, o arguido passou a adotar uma atitude agressiva para com o ofendido menor AA [...], então com 8 anos de idade.
4 - De forma praticamente diária, no interior da residência comum, o arguido despoletava discussões com a ofendida, no decurso das quais lhe dirigia expressões como “BURRA. NÃO VALES NADA. ÉS UMA MÃE DE MERDA, SUA CARGA DE OSSOS. SÓ SINTO OSSOS. ÉS UMA MALUCA, UMA DOIDA. CABRA, ANIMAL, FILHA DA PUTA, BURRINHA HISTÉRICA”.
5 - Em data não concretamente apurada do mês de março de 2022, no interior da residência comum, no decurso de uma discussão, o arguido arremessou uma vela em direção ao corpo da ofendida, atingindo-a no braço.
6 - No dia 09/05/2022, de tarde, no interior da residência comum, o arguido, com recurso a um computador portátil utilizado pelo filho menor AA, desferiu uma pancada com o mesmo no antebraço esquerdo da ofendida, causando-lhe dores.
7 - Como consequência direta e necessária da referida agressão, a ofendida BB [...] sofreu dores nas zonas atingida e equimose no bordo cubital do antebraço esquerdo, de 6 centímetros por 2 centímetros de maiores dimensões, lesões de demandaram 7 dias para cura, sem afetação das capacidades de trabalho.
8 - Na verdade, a partir de então até maio de 2022, com frequência pelo menos semanal, na residência comum, o arguido apelidava o menor de “BURRO, MERDINHA, ATRASADO MENTAL, LORPA”, assim o envergonhando.
9 - Com frequência de pelo menos três vezes por semana, por questões insignificantes, o arguido exaltava-se com o menor, berrando com ele, ficando com a cara vermelha e cuspindo-se, o que amedrontava o ofendido.
10 - Nessas ocasiões, o arguido desferia estalos na cara do menor, causando-lhe dores e hematomas.
11 - Foi neste contexto que, em data não concretamente apurada do ano de 2020 ou 2021, na residência comum, no quarto, no decurso de uma discussão p[or] [o] quarto estar desarrumado, o arguido agarrou numa bota e desferiu com a mesma no corpo do menor, atingindo-o na zona da cabeça.
12 - No decurso dessas discussões com o menor, o arguido pegava num peluche do mesmo (uma girafa) de que o mesmo gostava e desfazia-o (tirava as patas, a cabeça) e atirava-o para o chão, assim o abalando.
13 - O arguido agiu sempre com o propósito, concretizado, de intimidar, amedrontar e importunar o ofendido, a quem sabia dever uma especial obrigação de respeito, bem como com o intuito de a atingir na sua integridade física, psíquica, honra e consideração, causando-lhe dores, lesões, humilhação, medo e inquietação, o que conseguiu.
14 - O arguido praticou grande parte dos factos acima descritos também na presença dos filhos menores de ambos.
15 - O arguido sabia que praticava parte dos factos acima descritos no interior da residência comum, em e na presença de menores.
16 - Agiu sempre de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Dos factos atinentes às condições socio económicas do Arguido.
17 - O arguido é Inspetor Tributário e Aduaneiro auferindo 1.600.00€ mensais, atividade laboral que mantém como Inspetor Tributário e Aduaneiro, na Autoridade Tributária e Aduaneira do Ministério das Finanças, onde exerce funções desde 2011.
18 - Apresenta uma situação económica que caracteriza como equilibrada, referindo como despesas fixas o crédito à habitação referente à morada de família, supra identificada, no valor de 810.00€, acrescido da pensão de alimentos, no valor de 300.00€, atribuída aos 2 filhos menores.
19 - [...] apresenta um percurso profissional estável, com hábitos regulares de trabalho, exercendo funções desde 2011 como Inspetor Tributário e Aduaneiro, na Autoridade Tributária e Aduaneira do Ministério das Finanças.

Dos antecedentes criminais do Arguido.
20- O Arguido não tem antecedentes criminais.

B) Factos não provados:
1 - Sobretudo a partir do nascimento do filho [...] no ano de 2007, o arguido passou a adotar comportamentos enciumados e possessivos relativamente à pessoa da ofendida BB.
2 - Na verdade, a partir de então, com frequência pelo menos semanal, o arguido impedia a ofendida de conviver com a sua família; controlava os gastos monetários da ofendida, exigindo-lhe saber onde e com que é que a mesma gastava o seu dinheiro; abria a correspondência física que lhe era dirigida para a residência comum, tomando conhecimento do seu conteúdo; acedia ao correio eletrónico da ofendida e às redes sociais da ofendida, pretendendo inteirar-se, permanentemente, da sua atividade naquelas plataformas.
3 - Foi neste contexto que, em data não concretamente apurada do ano de 2010, no interior da residência comum, quando se encontravam deitados na cama do casal, com o filho menor AA [...] no meio dos dois, no decurso de uma troca de palavras, o arguido desferiu uma bofetada na face da ofendida, atingindo-a também com o relógio que o mesmo tinha colocado no pulso.
4 - No âmbito das referidas discussões, no interior da residência comum, o arguido gritava com a ofendida, ficando com a cara vermelha e cuspindo- se, o que amedrontava a ofendida.
5 - Em data não concretamente apurada, no interior da residência comum, quando a ofendida mostrou ao arguido a roupa interior que tinha comprado, o mesmo disse-lhe “VÊ LÁ SE NÃO ENFIAS OS FIOS NO OLHO DO CU”, assim a rebaixando.
6 - Por várias vezes, no decurso de conversas com terceiros, o arguido mandava a ofendida calar-se, assim a humilhando.
7 - Ato contínuo, desferiu um empurrão no corpo daquela, fazendo com que a mesma caísse, desamparada, em cima de uma cadeira.
8 - Que em 9 dos factos provados o Arguido tenha agido sempre com o propósito, concretizado, de intimidar, amedrontar e importunar a ofendida, a quem sabia dever uma especial obrigação de respeito, bem como com o intuito de a atingir na sua integridade física, psíquica, honra e consideração, causando-lhe dores, lesões, humilhação, medo e inquietação, o que conseguiu.
9 - Que em 4) dos factos provados o Arguido desferia apertões nos braços e empurrões no corpo da ofendida

C) DA MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:
[1] A fixação dos factos provados teve por base a globalidade da prova produzida em audiência de discussão e julgamento e da livre convicção que o Tribunal formou sobre a mesma, sendo que foi uma tarefa norteada pelo princípio da livre apreciação da prova, ínsito no artigo 127.º do Código de Processo Penal, em conjugação com as regras de experiência.
[2] De todo o modo, diremos que a medida do valor da prova prestada por depoimento, como é o caso das declarações dos arguidos e das informações prestadas por testemunhas, mede-se em credibilidade, factor que será composto pelos seguintes subfactores: seriedade (boa motivação da testemunha para depor); isenção (falta de interesse na causa – pode estar ligada à anterior); razão de Ciência – fonte de conhecimento dos factos e coerência Lógica.
[3] Contudo, é no âmbito da coerência lógica que podem e devem ser ponderados aspectos como o rigor (total coerência interna) e a forma objectiva (ausência de divagações, ou depoimento sobre factos irrelevantes).
[4] Se a lógica pura e simples, não der a resposta completa (por exemplo, um facto pode ser possível, mas de difícil verificação), aí entra a livre apreciação do juiz, a sua livre convicção, segundo regras de experiência.
[5] Refira-se, ainda, que o depoimento prestado pelo arguido em processo penal deve ser também valorado à luz dos factores de credibilidade com que se julga a prova testemunhal, embora tendo em conta as especificidades decorrentes do seu estatuto.
[6] O arguido é, como se sabe, a “testemunha” principal do processo, pois que ele mais que outra pessoa está em posição para relatar – ou não – os factos de que vem acusado. Porém o arguido tem um estatuto processual especial no nosso direito, não sendo obrigado a prestar declarações nem sequer a falar verdade. E, é com base nestes pressupostos que iremos avaliar as versões em oposição nos autos.
[7] Vejamos então:
[8] O Arguido [...] prestou declarações, admitindo parcialmente os factos que lhe são imputados. Relativamente à sua ex-esposa, negou que alguma vez lhe tivesse batido ou insultado. Assim, relatou que em março de 2022 teve uma discussão com a ofendida e ela atirou-lhe com uma vela e uma embalagem de álcool gel. Relativamente ao episódio ocorrido no dia 09 de maio de 2022, relatou que a ofendida retirou da conta conjunta a quantia de 8.500€ e quando chegou a casa disse-lhe que ia vender os eletrodomésticos todos porque não tinham dinheiro para pagar as contas inclusivamente o empréstimo bancário. Explicou que foi buscar o computador do AA e que a ofendida não o deixou retirar o computador do quarto e nessa sequência ele agarrou o computador também e estiveram ali a puxar cada um para o seu lado. Esclareceu que a ofendida se desequilibrou e caiu em cima de uma cadeira. Explicou que no dia 09/05/2022 depois desta situação saiu de casa definitivamente. Adiantou que a ofendida o apelidava de “burro” e “cabrão”. Admitiu que por vezes punha o ofendido de castigo, tirava-lhe o telemóvel, o computador e o peluche quando aquele se portava mal. De igual modo, admitiu, que lhe deu um estalo e que o chamava de “burro”. Referiu que só tinha estas atitudes com o seu filho por causa das más notas que ele tirava e também por causa das más companhias do mesmo. Admitiu que quando o ofendido AA tirava más notas dizia-lhe “que ia ser burro para o resto da vida”. Adiantou ainda que o ofendido seu filho fugia às aulas e por isso e que tinha estas atitudes para o corrigir. Relativamente ao episódio das havaianas, explicou que lhe ia a dar com um chinelo (havaianas), no “rabo” porque se tinha portado mal. Nega que lhe tenha dado com uma bota e que tenha desfeito a girafa (peluche), referindo que aquela já estava toda desfeita.
[9] Referiu que a ofendida é que o controlava nas redes sociais. Admitiu que bateu no seu filho umas 4 ou 5 vezes em contexto corretivo.
[10] [...] assistente, num depoimento pouco espontâneo, contraditório entre si e efabulativo, atestou ao Tribunal que as agressões físicas do Arguido ocorreram em 3 situações. Relatou que numa das vezes o arguido deu-lhe um estalo com um relógio quando estava na cama com o bebé ao meio (filho AA). Numa outra situação, atingiu-a com uma vela no braço e uma outra situação quando o Arguido a atingiu também no braço, mas com um computador. Relativamente ao episodio ocorrido em 09/05/2022, explicou que foi levantar à conta conjunta do casal dinheiro e que o arguido quando chegou a casa ao jantar disse que ia vender tudo, levantando-se de imediato para ir ao quarto buscar o computador do AA. Explicou que foi atrás dele para o impedir de pegar no computador e que assim que o alcançou tentou tirar-lhe o computador, mas não conseguiu. Esclareceu que estavam ambos a puxar o computador e ele ficou com o computador na mão e o Arguido com o computador bateu-lhe no braço. Referiu que caiu em cima de uma cadeira com o empurrão e asseverou que “ele não teve noção que me empurrou. Explicou que em discussões o Arguido lhe apertava os braços e a insultava de “filha da puta”, “cabra” e laparota”, “carga de ossos”. Esclareceu que o Arguido lhe dizia “tu não vales nada”, “merdinhas” e “merda de mãe”. Relatou que o Arguido ainda hoje a persegue e assumiu que lhe chamava “cabrão” e “filho da puta”.
[11] Relativamente ao ofendido AA [...] explicou que o Arguido lhe dizia “és um otário”, “um burro”, “um atrasado mental” “és um merdinhas” e “não vales nada”. Explicou que numa das vezes o ofendido fugiu de casa porque o pai lhe bateu com uma bota na cabeça e porque tinha o quarto todo desarrumado. Referiu que o Arguido colocava o filho de castigo e que rasgava a girafa na orelha ou na pata. Explicou que em 2011 vestiu uma “lingerie mais sexy” e foi ter com ele sendo que aquele lhe disse “vê lá se limpas os fios ao olho do rego”. Explicou que depois desta situação foi para o quarto chorar e que se sentiu humilhada. Adiantou que o Arguido batia no filho com estalos porque ele tirava más notas e porque tinha o quarto desarrumado e que o seu filho começou a cortar-se nos braços e nas pernas e no pescoço porque sofre de uma doença e porque o pai lhe fazia constantemente pressão por causa das notas o que fazia com que o seu filho se cortasse.
[12] AA [...], ofendido, prestou um depoimento espontâneo, por vezes contraditório e efabulativo. Relatou que quando a mãe foi internada o pai era mais agressivo e castigava-o, fechando-o no quarto escuro. Referiu que costumava tirar más notas e costuma ter o quarto desarrumado. Relatou que o Arguido o metia no quarto, desligava a luz e fechava o quarto à chave. Confirmou que o Arguido lhe dava estalos e que também lhe retirava o Tablet. Adiantou que o pai lhe chamava de “burro”, e que lhe dizia “não vais ser ninguém, vais trabalhar para as obras”, “merdinhas”, “atrasado mental”. Relatou que o Arguido lhe rebentava com o peluche e que tal acontecia por faltar às aulas e tirar más notas. Explicou que o Arguido sabia que ele gostava muito do peluche (girafa). Confirmou o episódio da bota, dizendo-lhe que o Arguido lhe deu com a mesma na cabeça. Explicou que a bota era de camurça castanha e que o pai lhe bateu porque tinha o quarto desarrumado. Confirmou que depois fugiu para casa de uns colegas em ... e que a sua avó o foi lá buscar. Atestou que desde aí o pai nunca mais lhe bateu. Relatou que o pai e a mãe se insultavam mutuamente. Relativamente ao episódio do estalo com o relógio de pulso relatou que estavam os 3 na cama, quando ele tinha cerca de 3/ 4 anos e os pais estavam a discutir quando o pai deu um estalo na cara da mãe. Referiu também que já nesta casa onde vivem agora, o pai atirou com uma vela apagada à mãe acertando-lhe no braço, mas a mãe também lhe atirou com uma garrafa que foi em direção à parede. Esclareceu que foi a mãe quem atirou a garrafa primeiro ao pai e o pai depois atirou com a vela. Relatou que a assistente levantou o dinheiro todo da conta conjunta e o pai disse que ia vender tudo o que tinham em casa e o seu computador também. Referiu que a assistente insultava um pouco mais o pai e ouvia mais os gritos da mãe a apelidar o Arguido de “besta” “animal”, “ calhorda” e também lhe chamava “pai de merda”. Explicou que quando havia discussão era forte e feio com os dois porque se insultavam um ao outro.
[13] DD [...], ex-colega de trabalho da assistente, prestou um depoimento sincero, mas indirecto. Explicou que nunca ouviu do Arguido insultos para com a Assistente nem viu qualquer agressão. Explicou que tudo o que sabe foi porque a ofendida lhe disse. Referiu que a assistente lhe dizia que o [...] lhe batia a ela e ao filho, mas velho e que lhe chamava “cabra” e que era muito controlador. Referiu que a última vez foi em 2023 quando ela lhe disse que o marido lhe tinha dado com um computador no braço. Explicou que a assistente do que conhece é pessoa de responder, e, não se fica. Referiu ainda que assistiu a um episódio em que o Arguido telefonou à assistente por causa de 100€ que a mesma tinha levantado e que assim que a chamada terminou a assistente atirou o telemóvel para cima da mesa e disse “fogo nem 100€ posso levantar”. Referiu que a assistente lhe dizia que o Arguido a apertava e a chamava de cabra e que a mesma se fechava no quarto para se resguardar a ela e aos filhos.
[14] EE [...], mãe da ofendida, prestou um depoimento contraditório, pouco isento no sentido de favorecer a[s] teses da assistente, referindo que nunca viu a sua filha a ser agredida ou insultada pelo ofendido. Relatou que a filha aparecia magoada nos braços na parte de dentro. Adiantou que o Arguido fazia impor a sua presença em todos os momentos em que a filha ia a sua casa. Relatou que um dia foi com a filha a uma farmácia comprar uma chupeta para o neto e o Arguido telefonou-lhe a perguntar onde é que a filha tinha gasto o dinheiro. Explicou que o Arguido metia as mãos no pescoço da filha e apertava. Adiantou que uma vez viu a filha com o olho esquerdo negro, com uma marca de um relógio. Explicou que uma vez foi buscar o neto a ... porque ele tinha fugido de casa porque o pai lhe tinha batido com um sapato nas costas/costelas. Asseverou que viu a marca nas costas e que a mesma era bem visível.
[15] FF [...], médica pedopsiquiatra prestou um depoimento verdadeiro e credível referindo ao tribunal que o ofendido AA tem uma doença mental (espect[r]o [do] autismo). Explicou que nunca viu o AA com negras e que o mesmo gosta de estar com o pai. Relatou que o AA tem comportamentos auto lesivos que são sinónimo do seu sofrimento psicológico. Explicou que o AA não sente medo do pai.
[16] GG [...], quanto aos factos nada adiantou por desconhecimento dos mesmos. Relatou que conhece o Arguido há cerca de 5 anos, mas nunca conviveu com o ex-casal. Explicou que são vizinhos e que nunca viu o Arguido ser agressivo com a Assistente. Nada mais adiantou quantos aos factos em discussão nos autos motivo pelo qual, o seu depoimento não foi relevado.
[17] HH [...], mãe do Arguido. Num depoimento espontâneo relatou que nunca viu o filho bater ou insultar a Assistente. Explicou também que nunca viu a assistente marcada nos braços nem ouviu o seu filho insultar o neto. Nada mais adiantou quantos aos factos em discussão nos autos, motivo pelo qual, o seu depoimento não foi relevado.
[18] II [...]. Num depoimento espontâneo, relatou que nunca viu ou ouviu o Arguido chamar nomes à Assistente. Nada mais adiantou quantos aos factos em discussão nos autos, motivo pelo qual, o seu depoimento não foi relevado.
[19] JJ [...]. Num depoimento espontâneo, relatou que nunca viu ou ouviu o Arguido chamar nomes à Assistente, ou ao filho AA. Referiu que nunca viu a Assistente marcada nos braços. Nada mais adiantou quantos aos factos em discussão nos autos, motivo pelo qual, o seu depoimento não foi relevado.
[20] KK [...]. Num depoimento espontâneo, relatou que nunca viu ou ouviu o Arguido chamar nomes à Assistente, ou ao filho AA. Referiu que nunca viu a Assistente marcada nos braços. Nada mais adiantou quantos aos factos em discussão nos autos, motivo pelo qual, o seu depoimento não foi relevado.
[21] Ora, da prova produzida, designadamente das declarações do Arguido e no que concerne à prática dos factos relativamente à Assistente o mesmo negou em absoluto que algumas vez tivesse agredido ou insultado a mesma.
[22] Por sua vez, e em sentido diametralmente oposto, BB [...], descreveu um relacionamento conjugal marcado pela violência, sobretudo psicológica, que se agudizou após o nascimento do filho mais novo, com manifestações de ciúmes excessivos e controlo dos seus movimentos por parte do arguido, com constantes insultos e provocações.
[23] Aludiu a três episódios de agressões físicas. Um primeiro ocorrido ainda antes do nascimento do filho mais novo, designadamente quando o seu filho AA tinha cerca de 3 anos e estavam os três na cama e o Arguido lhe deu um estalo com a mão que lhe deixou o olho pisado com a marca do relógio que tinha no pulso. Um segundo mais recentemente, na sequência de uma discussão o arguido lhe terá atirado com uma vela apagada que a atingiu no braço. E, um terceiro ainda mais recente e que motivou a saída do Arguido de casa (Maio de 2022) quando o Arguido lhe bateu com o computador, no braço, motivado por uma discussão pelo facto de aquela ter procedido ao levantamento da quantia de 8.500€ da conta conjunta do casal.
[24] Tais relatos mostraram-se algo confusos e nalguns pontos mesmo contraditórios, ora afirmando que o arguido, a deixava constantemente com os braços marcados e pisados dos apertões que lhe dava como dizia que o Arguido a agrediu com o computador o que fez com que a mesma até tivesse caído em cima de uma cadeira. De igual forma, o seu discurso rematava com “ele não teve noção que me empurrou”. Admitiu a assistente que por vezes também insultava o Arguido de “cabrão” e “filho da puta” e que aquele a apelidava de “má mãe”, “carga de ossos” “filha da puta” “cabra” e “laparota”.
[25] Ora, do depoimento do ofendido AA [...], resultou que a assistente também apelidava o pai de “mau pai”, cabrão” e que a mesma numa das discussões ocorridas lhe atirou com uma garrafa de água a qual veio a bater numa parede, o que motivou que o Arguido, lhe atirasse com uma vela apagada tendo-a atingido num braço.
[26] Relativamente ao episódio do computador a mesma referiu que estavam os dois a puxar o computador, cada um para o seu lado e que o Arguido conseguiu retirar o computador, embatendo-lhe com o mesmo no braço, o que motivou que aquela posteriormente caísse numa cadeira.
[27] Com efeito, note-se que o ofendido AA [...], referiu que nunca viu o pai a agredir a mãe e que ambos se insultavam mutuamente e que nas discussões que aqueles tinham, a mãe gritava mais que o pai. Relativamente ao episódio do estalo que deixou a assistente com o olho pisado e com a marca do relógio, o ofendido referiu que se lembrava bem e que aconteceu num dia em que estavam os 3 na cama, teria ele 3 ou 4 anos e que o pai deu um estalo na mãe com o relógio.
[28] A este propósito diga-se que este detalhe da agressão suscita desde logo dúvidas quanto à ocorrência, porquanto o ofendido era ainda muito pequeno para ter tão presente tais memórias e se recordar com exatidão do que aconteceu. Aliás, quanto menor a idade, mais curta é a memória e a maioria das pessoas, lembra-se apenas de alguns “flashes” de acontecimentos marcantes e, às vezes, nem isso. Ora, nos primeiros anos de vida, ocorrem vários eventos nas nossas vidas, os quais normalmente são mais recordados pelos mais velhos, todavia, são quase totalmente esquecidos por nós, razão pela qual não nos parece credível que o ofendido AA [...]com tão tenra idade se lembre com precisão que o Arguido deu um estalo na sua mãe, deixando-lhe a marca de um relógio no seu olho esquerdo.
[29] Por sua vez, a testemunha EE [...], referiu que a sua filha aparecia muitas vezes com os braços pisados na parte interior dos mesmos.
[30] O depoimento da testemunha, centrou-se no facto de que a sua filha vivia em constante desassossego e inquietação pelas investidas do Arguido o qual a deixava com marcas nos braços, todavia, a mesma testemunha referiu que nunca viu o Arguido bater ou insultar a filha, referindo também nunca gostou do mesmo e que aquela casou contra a sua vontade. Questionada sobre a razão pela qual não gostava do Arguido referiu que aquele “não tinha modos à mesa”, “devorava a comida toda”.
[31] Note-se ainda que esta testemunha, referiu que o Arguido bateu no ofendido nas costas/costelas, com um sapato, deixando-o com uma marca bastante visível, porém, tal depoimento foi frontalmente contrariado pelo depoimento do ofendido que relatou que o pai lhe bateu com uma bota na cabeça, o que descredibiliza a sua versão dos factos.
[32] A testemunha DD [...], nada presenciou, depondo de forma indirecta quanto aos factos, referindo que tudo aquilo que sabe, foi do que a ofendida lhe transmitiu.
[33] Com efeito, o depoimento da testemunha, circunscreveu-se ao relato do que a própria Assistente lhe dizia, designadamente que o Arguido lhe batia e que a mesma tinha que refugiar no quarto com os filhos para não ter problemas com o mesmo, porém, o ofendido AA, em momento algum referiu que a mãe tivesse que se refugiar no quarto com os filhos, porque o Arguido lhe batia, o que contraria também as declarações da Assistente, pois a mesma refere que os episódios de agressão física que ocorreram foram três, para depois efabular e dizer que o arguido a apertava constantemente nos braços quando tinham discussões, deixando-a com nódoas negras.
[34] De igual foram as testemunhas GG [...], HH [...], II [...], JJ [...] e KK [...], arroladas pelo arguido, não revelaram qualquer conhecimento direto dos factos em julgamento, limitando-se a tecer considerandos quanto à relação do casal, que percecionavam como normal e adequada. Pronunciaram-se ainda quanto à personalidade do arguido, que descreveram como uma pessoa séria, honesta, pacífica e trabalhadora.
[35] Dos autos consta ainda o relatório de perícia de avaliação do dano corporal, a que a Assistente foi submetida a 11 de Maio de 2022, do qual resulta que à data a mesma apresentava uma equimose no membro superior direito, lesões estas compatíveis com a descrição da agressão que a mesma efetuou em sede de audiência de julgamento, no que diz respeito ao episódio do computador.
[36] Ora, desde logo, o Tribunal viu-se confrontado com duas versões contraditórias entre si, ou seja, a versão do Arguido que negou em absoluto que tenha alguma vez batido na ofendi[d]a e a versão da ofendida. Acresce que a própria ofendida relatou apenas três episódios em concreto, de violência física, sendo certo que relativamente ao episódio do computador e da vela face à prova produzida em audiência julgamos que as suas declarações neste sentido merecem credibilidade, uma vez que o episódio da vela foi confirmado pelo seu filho e as lesões provocadas pelo computador mostram-se documentadas pelo relatório pericial.
[37] De notar que a Assistente prestou um depoimento, no qual não demonstrou qualquer receio, para com o Arguido, fê-lo de forma naturalmente tranquila, sendo que, o modo como se comportou na sessão de audiência de discussão e julgamento, não realçando um qualquer sentimento de amedrontamento, para com o Arguido, percepções que apenas se alcançam em face do Princípio da Imediação, levam-nos a crer que não estamos perante um crime de violência doméstica, mas uma situação de intenso conflito entre ambos de constantes discussões e insultos.
[38] Dir-se-á ainda, que é convicção do Tribunal que eram frequentes as discussões e os insultos entre o ex-casal, tudo motivado pelas más notas do ofendido AA, bem como pelo facto de aquele ter o quarto sempre desarrumado, o que não deixava a ofendida indiferente.
[39] Por último, dir-se-á, quanto aos factos não demonstrados, que os mesmos, ante a negação pelo arguido, não se evidenciaram com a segurança exigível de qualquer um dos depoimentos prestados a respeito, nos termos analisados, designadamente pela própria ofendida. E, assaltando ao Tribunal a dúvida sobre se os mesmos efectivamente ocorreram, consideraram-se não provados nos termos descritos.
[40] Relativamente ao ofendido AA [...], cremos que as agressões ocorridas com o mesmo e relatadas por aquele nos merecem total credibilidade, até porque e desde logo, tais factos foram descritos e corroborados pela Assistente, sem esquecer que o Arguido também os admitiu pese embora na modalidade de “DEVER DE CORREÇÃO”.
[41] Com efeito, o AA [...] ofereceu detalhes das circunstâncias ambientais, onde as agressões ocorreram, tendo-as bem presentes na sua memória. Relatou o modo como o arguido, habitualmente cometia a agressões, explicando que as mesmas ocorriam num contexto em que o mesmo tirava más notas na escola ou andava com más companhias, ou ainda porque tinha o quarto desarrumado, o que de resto foi confirmado pela sua mãe. Adiantou ainda que o Arguido o apelidava de “burro”, “merdinhas”, “não vais ser ninguém na vida”, “otário” e que estas situações ocorriam sempre que tirava más notas, acrescentando que o pai lhe destruía a girafa que sabia que ele tanto gostava.
[42] Ademais, as suas hesitações ou pausas, no entender do Tribunal, não comprometeram o seu discurso, nem mesmo a doença de que padece fizeram diminuir a sua credibilidade não deixando dúvida de que tais factos realmente aconteceram. O seu depoimento foi elucidativo e revelador duma infância, pautada por discussões entre os progenitores e insultos entre o Arguido e a Assistente, bem como, por agressões físicas e verbais perpetradas pelo arguido na sua pessoa.
[43] Deste modo, para prova dos factos provados em 1)) a 16)) ancoramo-nos nos depoimentos do ofendido AA [...] e na Assistente [...]. Consideramos, ainda, provados os factos que foram confirmados quer pelo arguido, quer pelos ofendidos, bem como decorrentes de documentos com força probatória plena, como seja a certidão do assento de nascimento e de casamento que resultou para prova dos factos vertidos nos pontos 1)) a 16))) da factualidade provada.
[44] A comprovação dos factos vertidos nos pontos 17)) a 19)) relativos às condições pessoais do arguido, bem como ao seu caráter e personalidade, decorreu das suas próprias declarações, que a este respeito nos mereceram credibilidade, conjugadas com o teor do relatório social junto aos autos pela DGRSP, que valoramos positivamente.
[45] Valorou-se também o teor do certificado de registo criminal para dar como provada a ausência de antecedentes criminais por parte do arguido (ponto 20))).
[46] Quanto aos factos que integram o dolo, a sua prova resulta das regras da experiência comum devidamente conjugadas com a versão apresentada pelos ofendidos, atribuindo-se assim credibilidade às declarações da Assistente e do ofendido, pelo que, nos termos supra expostos, inexistem quaisquer dúvidas de que o arguido actuou da forma descrita nos factos provados em 1)) a 16)).
[47] Os factos não provados em 1) a 9)) assim resultaram por ter sido feita prova em sentido diverso.



III – DA FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:


1 - DO CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA.
O arguido vem acusado da prática em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 alínea a) do C.P. e ainda de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2 alínea a) do C.P a que correspondem as penas acessórias previstas nos n.ºs 4 a 6.
[...]
O crime de violência doméstica encontra-se inserido, na sistemática do Código Penal, no Capítulo III (Crimes contra a Integridade Física), do Título I (Crimes contra a pessoa), da Parte Especial do Código.
Com efeito, o referido crime é um crime específico impróprio, cuja ilicitude é agravada em virtude da relação familiar, parental ou de dependência entre o agente e a vítima. Com as alterações introduzidas pela Lei n.º 19/2013, de 21.02, o artigo n.º 152.º do Código Penal passou a prever também as situações de namoro e a estabelecer no seu n.º 1, alíneas a) e b) que quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais a cônjuge, ex-cônjuge ou a pessoa de outro ou do mesmo sexo, com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
O escopo do tipo de ilícito de violência doméstica é a prevenção das frequentes, e muitas vezes subtis, formas de violência no âmbito da família, designadamente nas relações entre os cônjuges, ou pessoas que vivem em condição análoga, que aqui nos ocupam.
Prevenção, essa que é motivada pela crescente consciencialização ético-social da banalização, generalização e gravidade de tais comportamentos.
O dever de respeito – o especial dever de respeito existente – é o mais importante dos deveres entre pessoas vinculadas entre si por uma relação análoga à dos cônjuges. Tal dever filia-se na eminente dignidade da pessoa humana, bem jurídico com assento constitucional, e tanto pode ser violado no seu aspecto físico como moral. Aquele traduz-se na obrigação imposta de não lesar fisicamente o outro; o dever de respeito moral traduz-se na obrigação de não lesar moralmente o outro. (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.05.2004, proc. 0346422, in www.dgsi.pt).
Segundo Taipa de Carvalho (in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 132), a ratio do artigo n.º 152 do Código Penal não está na protecção da comunidade familiar, conjugal, educacional ou laboral, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, indo muito mais além dos maus tratos físicos, compreendendo os maus tratos psíquicos, como as humilhações, as provocações, ameaças, curtas privações de liberdade de movimentos, etc..
O bem jurídico protegido pela incriminação é, em geral, o da dignidade humana, e, em particular, o da saúde, que abrange o bem-estar físico, psíquico e mental, podendo este bem jurídico ser lesado, no âmbito que agora importa considerar, por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade pessoal do “companheiro” e, nessa medida, seja susceptível de pôr em causa o supra referido bem-estar.
O bem jurídico protegido, pela incriminação é a saúde, bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, neste sentido, ainda sobre a redacção anterior do preceito, cfr. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, pp. 132.
Tal ilícito é um crime de dano quanto ao bem jurídico e de resultado quanto ao objecto da acção – cfr. ALBUQUERQUE, Paulo Pinto, in Comentário do Código Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Dezembro de 2008, pág. 404.
Considera-se ainda que a incriminação protege, em primeira linha, a integridade, a saúde, nas suas dimensões física e psíquica. A incriminação contribui desta forma e em uníssono, com outros tipos incriminadores do capítulo, para densificar o valor constitucional da integridade, que se analisa no n.º 1, do art. 25.º da Constituição, em integridade moral e física.
Assim, “a “mais valia” que o tipo incriminador trouxe foi o reconhecimento, ou até o aviso expresso de que o bem jurídico integridade pessoal é tutelado penalmente, mesmo quando as denegações desse bem ocorram intra muros de uma sociedade conjugal. Ou seja, a integridade pessoal mantém o seu valor, apesar da família” (nesse sentido, cfr. Maria Manuela Valadão e Silveira, Sobre o Crime de Maus Tratos Conjugais, Revista de Direito Penal, vol. I, n.º 2, 2002, ed. da UAL, pp. 32/33 e 42).
O bem jurídico protegido pela incriminação é, em geral, o da dignidade humana, e, em particular, o da saúde, que abrange o bem-estar físico, psíquico e mental, podendo este bem jurídico ser lesado, no âmbito que agora importa considerar, por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade pessoal do “companheiro” e, nessa medida, seja susceptível de pôr em causa o supra referido bem-estar.
No entanto, a redacção actual do artigo 152.º do Código Penal, veio permitir e clarificar que a reiteração não é exigida, desde que a conduta maltratante seja intensa, através da expressão “Quem, de modo reiterado ou não…”.
O tipo objectivo da incriminação inclui, além das condutas de “violência” física, a “violência” psicológica, verbal e sexual que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal.
Acresce que a Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, consagrou uma agravação do limite mínimo da moldura penal em 4 situações, a saber: a) que o facto seja praticado contra menor de 18 anos; b) que o facto seja praticado na presença de menor de 18 anos; c) que o facto seja praticado no domicílio comum, isto é, no local da coabitação; d) ou ainda no domicílio da vítima.
As circunstâncias agravantes introduzidas no n.º 2, do artigo 152.º do Código Penal, consolidaram a necessidade de uma tutela acrescida, por imperativo ético e em congruência com a ordem jurídica axiológica constitucional, num contexto pautado, geralmente, pela ausência de testemunhas como é o do domicílio comum.

*

Deste modo, atenta a matéria factual dada como provada, relativamente à Assistente [...] resulta que não se encontram preenchidos os elementos objectivos do crime em análise, uma vez que não foi feita prova, de que o arguido tenha agredido física ou psicologicamente a ofendida. No caso dos autos, os factos que foram dados como provados, efectivamente não enquadram o crime de violência doméstica, de que vimos falando. Efectivamente, como se referiu anteriormente para que possamos apreciar determinada conduta à luz do crime de violência doméstica, tanto releva a reiteração (ainda que a mesma não seja exigível para a respectiva subsunção) como a intensidade e, neste último caso, para o preenchimento do tipo objectivo em apreço exige-se apenas que a conduta daquele que maltrata deva ser especialmente grave, devendo, ainda, incluir-se num determinado contexto social de subordinação existencial, coabitação conjugal ou análoga, ou estreita relação de vida.
Ora, não obstante a atuação do arguido que resultou provada ter ocorrido no quadro de uma relação conjugal, afigura-se-nos que a factualidade provada, apreciada à luz da intimidade do lar e da repercussão que possa ter para a vida comum, não é suscetível de colocar a assistente na situação de, mais ou menos permanentemente, sofrer um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade no seio da sociedade conjugal.
Os factos dados como provados consubstanciam uma situação de injúrias e de duas situações de ofensa à integridade física dirigidas pelo arguido à assistente, mas para além disso falta o elemento da especial censurabilidade, não se podendo concluir pela subjugação de um cônjuge a outro, pelo exercício de um domínio emocional de facto de um sobre o outro, neste caso do arguido sobre a assistente, consubstanciando assim um “infligir de maus tratos físicos ou psíquicos" à mesma.
Ora, é precisamente neste segmento que o Tribunal crê que os factos dados como provados não se inserem na referida intensidade da ofensa, susceptível de colocar em crise os bens jurídicos protegidos, não existindo por meio daqueles factos qualquer contexto de subjugação ou superioridade existencial.
Assim, o Tribunal entende que, não há sequer o preenchimento do tipo objectivo de crime pelo qual o mesmo vem acusado relativamente à assistente. Inexistem de todo factos consubstanciadores do aludido crime.
Ademais, dos factos em apreço, inexiste uma situação domínio, uma superioridade sobre a pessoa da vítima, a aqui ofendida, mormente e para o que releva no presente caso sobre a sua saúde e honra, domínio esse consubstanciado numa efectiva vivência de medo, de tensão, de subjugação do arguido em relação à pessoa da ofendida.
Pelo exposto, tal como expendido no despacho datado 18/01/2024, no qual se comunicou uma alteração não substancial dos factos, fazendo-se operar uma alteração da qualificação jurídica, entendemos que, em face dos factos que resultaram provados e não provados, deve o Arguido ser Absolvido da prática de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º1, alínea a) e n.º2 alínea a) do C.P. a que correspondem as penas acessórias previstas nos n.ºs 4 e 5 da mesma norma legal, de que vinha acusado.
Contudo, face à factualidade dada como provada, concretamente nos pontos 4)), 5)) 6)) e 7)), há que ponderar do preenchimento do tipo de ilícito criminal previsto nos artigos 143.º n.º 1 e 181.º, ambos do C.Penal.
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Relativamente ao ofendido AA [...], considerando a elevada gravidade (e violência) das agressões perpetradas pelo arguido, na pessoa do seu filho com quem vivia, dúvidas não subsistem de que cometeu o crime de violência doméstica – subsumível à alínea d), do n.º 1, e ainda n.º 2 al. a), do art. 152.º do CP, uma vez que tais agressões ocorreram no domicilio comum.
Na hipótese prevista na al. d), o agente passivo típico tem de reunir, antes de mais, dois pressupostos, que são coabitar com o agente activo e ser pessoa particularmente indefesa, este último em razão de alguma das seguintes causas típicas: idade (tanto avançada como tenra), doença, deficiência, gravidez ou dependência económica.
O ajuizamento sobre se o agente passivo é ou não pessoa particularmente indefesa terá de ser efectuado no quadro da sua relação com o agente activo, tomando-se em consideração, se for caso disso, as qualidades deste, que possam reforçar a sua capacidade de se impor ao agente passivo.
São vítimas do crime as pessoas particularmente indefesas, isto é, aquelas que se encontram numa situação de especial fragilidade devido à sua idade precoce ou avançada, deficiência, doença física ou psíquica, gravidez ou dependência económica do agente (por exemplo, a empregada doméstica que resida no mesmo domicílio do agressor). Estas pessoas têm de coabitar com o agente.
Resultando à evidência que o arguido exerceu sobre o seu filho violência, a qual assumiu a forma de palavras e de ofensas à integridade física, bem como de injúrias dirigindo palavras formulando juízos ofensivos da sua honra e consideração, demonstrando elevado grau de descontrolo - o arguido teve tais propósitos e quis o seu resultado, agindo livre e conscientemente, sabendo que as condutas empreendidas são proibidas por lei - mostram-se preenchidos os elementos, objectivo e subjectivo, do crime de violência doméstica.
Com efeito, da factualidade provada, constata-se que o arguido, de forma consciente e reiterada, colocou seguramente em risco, de modo relevante, a saúde física e psíquica do ofendido – seu filho – tornando-o vítima de um tratamento incompatível com a sua dignidade enquanto ser humano, conduzindo necessariamente os “maus-tratos” infligidos à sua “degradação” enquanto pessoa.
Com efeito, diga-se ainda que, o contexto em que os factos ocorreram e a forma como foram praticados, não tendo sido de todo uma situação ocasional, mas sim reiterada no tempo (desde o nascimento do filho mais novo é possível reconhecer um padrão de comportamento, com o uso repetido do mesmo tipo de expressões e actos – ofensivos da honra e consideração, ameaçadores, intimidatórios e de flagrante menosprezo (factos provados em 1)), a 16)) –, comportamentos que inculcam indubitavelmente uma ideia de indiferença, desconsideração pessoal e vexame constantes, cuja gravidade resulta naturalmente da frequência com que foram proferidas e o lapso temporal em causa.
Pelo que mercê dos comportamentos do arguido, o ofendido, seu filho AA, viveu num clima de medo, angustia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade e humilhação, receando que o Arguida profira expressões que atentam conta a honra e consideração como ser humano, daquele.
Perante o conjunto fáctico apurado, não restam dúvidas que o arguido com a sua conduta preencheu, praticou os factos de que vinha acusado.
Tendo resultado provado que as agressões físicas, ocorreram no domicílio comum, mostra-se verificado a condição agravante do disposto no n.º 2, da al, a) do artigo 152.º do C. Penal (cfr. factos provados em 1)) a 16)).
De salientar que todos os factos integrantes do ilícito foram perpetrados pelo arguido com dolo directo, tendo este agido sempre com a intenção de atingir a saúde e a integridade física do ofendido e actuado de forma livre voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida por lei - vd. artigo 14º n.º 1, do Código Penal, (cfr. factos provados em 13)), 14)), 15)), 16)).
O arguido conhecia todas as circunstâncias fácticas objectivas que integravam a sua conduta, representou a realização do facto criminoso (cuja produção era certa) e quis, de uma forma directa e imediata, praticar aquela acção e atingir o resultado dela decorrente. Na verdade, o arguido tinha conhecimento de que estava a lesar a saúde física do ofendido seu filho, lesando a sua dignidade, e, ainda assim, quis e agiu, tendo deste modo actuado com dolo directo – artigo 14.º n.º 1, do Código Penal.
O arguido agiu com culpa, na medida em que tinha plena consciência da ilicitude da sua conduta, conhecia o seu dever de observância do bem jurídico protegido, e, não obstante, agiu contra esse dever quando podia, no pleno da sua liberdade de decisão, actuar de acordo com o mesmo.
Não se verificam circunstâncias que excluam a ilicitude.
O arguido, tendo capacidade de se motivar à observância da ordem jurídica vigente, de aderir ao respeito dos bens jurídicos tutelados, não o fez, sendo a sua conduta censurável.
Pelo que, e em conclusão, não se verificando quaisquer elementos susceptíveis de integrarem uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, em face da matéria que resultou provada, resta referir que o arguido, com a sua conduta, preencheu todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime sub judice, cometendo, assim, um crime de violência doméstica do artigo n.º 152.º n.º 1, al. d)) e n.º 2 al. a), Código Penal, na pessoa de AA [...].
Acresce ainda referir que, o Arguido escudou-se no dever de correção para justificar as agressões físicas e verbais ao ofendido seu filho.
Sob o ponto de vista do propósito correctivo, entendemos que chamar “burro”, “não vais ser nada na vida”, “atrasado mental” e “otário” e bater com uma bota na cabeça, vai muito para além do que hoje se considera razoável. Veja-se a jurisprudência dos nossos tribunais. Tendência afirmada no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 02.04.14 (disponível em www.dgsi.pt), que, tratando caso semelhante, decidiu que “Excede o poder/dever de educação-correcção dos progenitores a conduta dos pais que, com o uso de um cinto, batem no filho de 11 anos, porque encobria dos pais os maus resultados escolares e estaria a fumar.”
Observou-se nesse Aresto, a propósito, que “Estamos numa área em que é imprescindível delimitar a fronteira entre o que constitui a esfera interior da família, bem como o exercício do dever de correcção e educação, e as condutas que requerem a intervenção do Direito Penal (cujo princípio da subsidariedade reveste aqui especial acuidade, tendo em conta a gravidade das consequências no relacionamento futuro dos membros dessa família).
Ora, somos do entendimento que o Arguido excedeu esse poder-dever de correcção/educação, uma vez que agiu de forma inaceitável à luz da consciencialização ético- social dos tempos actuais, não se justificando a agressão com uma bota na cabeça do seu filho, ainda para mais quando o mesmo sofre de uma doença mental.
Note-se que a pedopsiquiatra inquirida em audiência de julgamento referiu que o AA “tem comportamentos auto lesivos que são sinónimo de sofrimento psicológico”. De igual modo, o Tribunal da Relação de Coimbra, no Acórdão de 28.01.09 (disponível em www.dgsi.pt), assumiu como discutível a natureza do direito ao castigo dos pais e educadores quando se traduza, em concreto, em lesões da integridade física do educando, como é o caso.
Escreveu-se, a propósito que, “Tratando-se de direito de correcção, assumem-se como controvertidos não só a sua admissibilidade como os seus limites. Tem-se entendido que a ofensa da integridade física será justificada quando se mostre adequada a atingir um determinado fim educativo e seja aplicada pelo encarregado de educação com essa intenção.
Colocam-se a este nível dúvidas sobre a proporcionalidade pedagógica dos castigos físicos e da sua compatibilidade com a dignidade humana do ser humano em desenvolvimento. Faz-se normalmente uma distinção dentro do direito de castigo consoante este seja exercido sobre crianças próprias ou de outrem. Os pais estarão em princípio legitimados ao castigo por força do poder paternal”.
A par, somo[s] igualmente do entendimento, conforme plasmado em muitos documentos produzido pela Unicef, que, ante as práticas ainda massivas de castigos corporais no âmbito dos deveres de educação e para mudar este estado de coisas, urge criar uma cultura de não violência para com as crianças, e de construção de uma barreira de consciencialização social e individual que afirme ser totalmente inaceitável em qualquer circunstância os adultos expressarem a sua vontade ou as suas frustrações através da violência. O que se nos afigura sensato, já que entendemos que os castigos corporais não são aceitáveis, e, simultaneamente, é mais eficaz criar formas alternativas de educar.
Ao nível da psicologia comportamental, tem-se verificado uma tendência generalizada no sentido de defender que a palmada não funciona como método educativo e, que, pelo contrário, causa ressentimento, dor, causando um efeito contrário à educação. O acto de bater reforça o autoritarismo e a prepotência do mais forte sobre o mais fraco, neste caso, a criança, que ficando ressentida e com raiva, tornar-se-á num adulto, com mágoas ao nível da sua alma, difíceis de curar, e muitas vezes motivos de infligir igualmente a sua raiva e frustração nos outros, tal como a recebeu em criança.
Com efeito, é manifesto que a pretensa finalidade educativa que possa ter estado na base da actuação do arguido não exclui nem justifica de modo algum a sua actuação, principalmente no seu filho que se auto-lesiona para esquecer o sofrimento psicológico.
Perante os factos que resultaram provados da discussão da causa, não se pode ter por justificado o comportamento do arguido, mesmo para quem defenda a possibilidade de castigos físicos leves no âmbito do poder educativo, e que o arguido agiu na sequência de conduta desobediente e de rebeldia do menor (perfeitamente natural nas suas idades), pois que se trata de uma criança actualmente com 16 anos de idade que à data dos factos, pouco mais tinha que 10 anos de idade, não se evidenciando a necessidade ou justificação da agressão física como elemento de correcção e, muito menos, uma agressão levada a cabo com uma bota e fechar num quarto escuro provocando o medo na criança.
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Porém, considerando os factos que resultaram provados, e relativamente à Assistente [...] tal como supra referimos cremos estar na presença de dois crimes de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º/1 do Código Penal.
Comete o crime de ofensa à integridade física simples quem ofender o corpo e a saúde de outra pessoa (artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal), podendo tal ofensa ser qualificada quando o facto for praticado com especial censurabilidade ou perversidade, designadamente pelo facto de ter ocorrido contra progenitor de descendente comum em 1.º grau (artigos 145.º, n.º 1, al. a). e n.º 2, e 132.º/1 e 2, b), ambos do Código Penal).
O presente ilícito penal caracteriza-se também por ser um crime de execução não vinculada, já que pode ser perpetrado por qualquer meio, não estando a sua execução descrita no tipo, e traduz-se num crime de resultado, cuja consumação depende da produção de um evento espácio-temporalmente distinto da acção.
A ofensa à integridade física consubstancia-se ainda num crime de produção instantânea, consumando-se imediatamente com a acção produtiva do dano corporal.
Por fim, estamos perante um crime doloso, já que a sua efectivação pressupõe uma conduta intencionalmente dirigida à lesão do corpo ou da saúde do ofendido. São elementos constitutivos do crime de ofensa à integridade física: a) uma acção do agente dirigida a outra pessoa b) a ofensa no corpo ou na saúde da outra pessoa.
No caso concreto, a verificação destes elementos constitutivos não suscita qualquer dúvida, uma vez que o arguido atirou com uma vela apagada contra a Assistente que lhe veio a bater no braço. De igual modo lhe bateu com um com computador no braço. Quis concretizá-la, como efectivamente concretizou nos moldes descritos, sabendo que a sua conduta é punida por lei.
Estando preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do tipo de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art.º 143.º/1 do CP, e não se verificando qualquer causa de justificação ou de exclusão da culpa, conclui-se que o arguido cometeu o indicado crime.
Entendemos, pois, ainda que a descrita conduta do Arguido configura a prática de um crime de injúria.
Assim, no que respeita ao crime de injúria, dispõe o artigo 181º, n.º 1 do Código Penal que, “Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra e consideração, é punido com pena de prisão até três meses ou com pena de multa até 120 dias.”
O bem jurídico protegido pela incriminação prevista pela norma constante do artigo 181º do Código Penal é a honra, considerada como um bem jurídico complexo que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicando na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior, conceção dualista, normativa e fáctica, única compatível com o ordenamento jurídico nacional.
Elementos constitutivos do tipo objetivo do ilícito criminal em causa são a imputação de um facto, mesmo sob a forma de suspeita, ofensivo da honra de outrem, ou a expressão de palavras, igualmente ofensivos da honra e consideração de outrem, perpetrados de maneira direta, isto é, perante a vítima, bem como a ocorrência da lesão na honra ou consideração da vítima, elementos acrescidos do necessário nexo de causalidade adequada, nos termos previstos no artigo 10º, n.º 1 do Código Penal, entre o resultado e o comportamento do agente. No que concretamente diz respeito ao tipo subjetivo de ilícito ou, mais corretamente,
aos elementos subjetivos do tipo de ilícito, diremos que se trata de um crime essencialmente doloso, a que basta, para uma plena imputação subjetiva, o dolo na sua modalidade de dolo eventual.
Ora, face à factualidade que demos como provada, não existem dúvidas de que a conduta desenvolvida pelo arguido preenche a factualidade típica da injúria, quer quanto aos elementos objetivos, quer subjetivos.
Com efeito, resultou provado que, fe forma praticamente diária, no interior da residência comum, o arguido despoletava discussões com a ofendida, no decurso das quais lhe dirigia expressões como “burra. Não vales nada. És uma mãe de merda, sua carga de ossos. Só sinto ossos. És uma maluca, uma doida. Cabra, animal, filha da puta, burrinha histérica”, entende-se tratar de um único crime uma vez que tal facto se apresenta como genérico.
Mais se provou que, com tal conduta, o arguido agiu livremente e de forma consciente, com intenção de atingir, como atingiu a honra e consideração da assistente, bem sabendo que a sua conduta era adequada a causar-lhe tal ofensa, e sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, pelo que atuou com dolo direto e com culpa.
Não se verificam quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa.
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No caso dos autos, apesar de a assistente não ter deduzido acusação particular, entendemos que o Ministério Público, continua a ter legitimidade para a prossecução da ação penal, uma vez que, tendo sido deduzida acusação pública pela prática de um crime de violência doméstica, na qual já estavam compreendidos os factos que resultaram provados e que agora subsumimos à prática de um crime de injúria, a falta de cumprimento do formalismo da acusação prévia da assistente pelo crime particular não obsta ao conhecimento do crime “residual”. Com este entendimento não resultam violadas nem minimamente afetadas as expetativas atendíveis da defesa.
Na verdade, o crime de violência doméstica é suscetível, dada a complexidade e abrangência de bens protegidos que o seu desenho típico permite albergar, por consunção, constitui um “plus” relativamente a todas as ofensas singulares à saúde da vítima (integridade física, mental, ataques à autoestima) que – desfeitas, pelo parcial soçobro probatório, as eventuais ‘sinergias’ entre as diversas violações de bens jurídicos que permitiam o preenchimento do conceito de maus tratos – são ainda singularmente puníveis como crimes autónomos, necessariamente menos graves.
Se assim não fosse, era a assistente que viria cerceado o seu direito a deduzir acusação particular, pelo crime de injúria de que foi vítima, sendo que não deduziu acusação particular pela prática desse crime porque os factos respetivos foram considerados, pelo Ministério Público, integradores de um crime (público) de violência doméstica, ou seja, nunca lhe foi dada essa possibilidade.
Acompanhamos a este respeito a jurisprudência mais recente dos nossos tribunais superiores, da qual é exemplo o recente Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 27 de Abril de 2016, pesquisado em www.dgsi.pt, e assim sumariado:
“II – Ocorrendo a absolvição pelo crime (público) de Violência doméstica, mas persistindo provados factos consubstanciadores de um crime de Injúria – também constantes da acusação pública acompanhada pelo assistente –, a falta de cumprimento do formalismo da acusação prévia da assistente por este crime particular [acusação particular - art. 285.º, CPP] não obsta ao conhecimento do crime “residual”.”
Refira-se ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 de Junho de 2015, também pesquisado em www.dgsi.pt, e assim sumariado:
“1- O âmbito punitivo do tipo de violência doméstica, p. e p. pelo artº 152º/CP, abarca todos os comportamentos que, de forma reiterada ou não, lesam a dignidade humana, quer no âmbito dos maus-tratos físicos, quer no dos maus-tratos psíquicos, abrangendo comportamentos tipificados como crimes, se individualmente considerados, que se encontram numa relação de consumpção aparente com o referido crime de violência doméstica.
2- No caso, a acusação foi deduzida por uma série de atos delituosos, subsumíveis ao tipo de violência doméstica, mas apenas se provam factos que, ainda que parcialmente coincidentes com os acusados, foram entendidos como suscetíveis de integrar, apenas, o tipo de crime de injúrias.
3- Estando, necessariamente, em causa, um menos relativamente ao mais constante da acusação, entendemos que a situação não se subsume à previsão das normas dos artºs 358º ou 359º, do CPP.
4- A autonomização dos factos relativamente ao crime maior, no âmbito do qual foram acusados, não tem a virtualidade de desprovir de legitimidade para o exercício da ação penal o Ministério Público, órgão que, quando do exercício dessa mesma ação, a tinha e a usou de acordo com a lei.
5- A exigência de dedução de queixa-crime e de constituição de assistente, nos crimes particulares, reconduz-se à colocação na disponibilidade da vontade do ofendido da efetivação da punição pelos crimes de que foi vitima.
6- Ora, a manifestação da vontade, por parte da ofendida, da vontade de persecução da tutela penal dos direitos violados expressa pela dedução de queixa, constituição de assistente, acompanhamento da acusação e prestação de declarações em sede de audiência é suficiente e adequada a prover à tutela dos interesses inerentes ao instituto da acusação particular.
7- Exigir que, a par de todas essas inequívocas manifestações de vontade de ver condenado o autor dos factos delituosos, a vítima tivesse praticado um ato puramente formal de acusação, que depende de notificação para o efeito, quando tal notificação não foi feita nem tinha campo de aplicação, seria impor uma perversidade ao sistema, sem vantagem para qualquer dos direitos ou interesses em colisão.
8- Manifestando-se a vontade de persecução penal, inequivocamente, por outra via - a única compatível com a indiciação processual à data da acusação - não há fundamento que permita ignorá-la, em benefício de uma pura formalidade – processualmente descabida, em face dessa indiciação processual e das normas processuais vigentes à referida data, que excluíam a possibilidade de dedução de uma acusação particular.”
Constituiu-se, pois, o arguido, autor material da prática, e na forma consumada de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181º, n.º 1 do Código Penal.
Desta alteração da qualificação jurídica foi dado conhecimento ao arguido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 358º, n.º 3 do Código de Processo Penal, que nada requereu em conformidade.


IV – DA ESCOLHA E DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA:

Da pena abstracta:
Qualificados juridicamente os factos e operada a subsunção ao preceito incriminador, resta determinar a natureza e medida da pena a aplicar.
O facto, ilícito, típico e praticado pelo arguido na pessoa do ofendido AA (Violência Doméstica) é punível, com pena de prisão de dois a cinco anos (art. 152.º nºs 1 al. d) e 2 al. a), do C.Penal).
O facto, ilícito, típico e praticado pelo arguido na pessoa da Assistente [...] (Ofensa à integridade física) é punível, com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa - neste caso tendo como limite mínimo de 10 dias e o máximo de 360 dias (art. 143.º n.º 1, e 47.º n.º 1, ambos do CP).
O facto, ilícito, típico e praticado pelo arguido na pessoa da Assistente BB [...] (injúria) é punível, com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 - neste caso tendo como limite mínimo de 10 dias e o máximo de 120 dias (art. 143.º n.º 1, e 47.º n.º 1, ambos do CP).

Da pena concreta:
Na determinação da medida concreta da pena, tem de se ter em conta três operações: em primeiro lugar, atenta-se na moldura penal abstracta que ao caso é aplicável; depois, determina-se concretamente a pena, o quantum da pena dentro daquela moldura; por fim, escolhe-se a pena (cfr. FIGUEIREDO DIAS, As consequências Jurídicas do Crime, pág. 198).
Em conformidade com o art. 70.º do C. Penal, que determina os critérios conformadores de escolha da pena, “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Estas finalidades encontram-se previstas no art. 40.º do C. Penal e consistem na protecção de bens jurídicos e na reintegração do agente na sociedade.
A aplicação de penas visa, por um lado, repor a confiança dos cidadãos na validade e vigência das normas violadas, sempre que a mesma tenha sido abalada pela prática de um crime (prevenção geral positiva ou de reintegração, enquanto estabilização contrafáctica das expectativas da comunidade na vigência da norma violada) e, por outro lado, a reintegração do agente na sociedade através da “prevenção da reincidência” (prevenção especial positiva).
O presente tipo de crime não prevê, dada a sua gravidade, já considerada pelo legislador, a pena de multa alternativa à pena de prisão. Assim, ao arguido terá sempre de ser aplicada uma pena privativa da liberdade.
Sendo de aplicar uma pena de prisão, importa, agora, determinar a medida concreta dessa pena, que há-de ser fixada, dentro da moldura penal abstracta de dois a cinco anos.
Deste modo, a pena deve mostrar-se adequada ao comportamento do arguido, atendendo-se, nos termos do art. 71.º nº 1, do C. Penal, à sua culpa e às exigências de prevenção, não olvidando, que a medida da pena, jamais pode ultrapassar a medida da culpa, sendo que a verdadeira função desta é a proibição do excesso, em nome do respeito pela pessoa humana, (art. 40.º nº 2, do C. Penal).
No que concerne à prevenção geral positiva, ou de integração, está incumbida de fornecer o limite mínimo, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena, no entanto, sem colocar em causa a sua função tutelar.
A culpa, entendida em sentido material e referente à personalidade do agente, expressa no facto, surge como limite, inultrapassável de toda e qualquer consideração preventiva, cabendo por conseguinte à prevenção especial a determinação da medida concreta da pena.
Devendo, no entanto, atender-se às circunstâncias favoráveis e desfavoráveis ao agente, na medida em que se mostrem relevantes, como preceitua o art. 71.º nº 2, do C. Penal, encontrando-se, assim, a pena adequada e justa.
Em desfavor do arguido reside o grau de ilicitude da sua conduta, que é bastante elevado, em particular pelo modo como cometeu as agressões, a sua intensidade e as consequências físicas que as mesmas tiveram para a assistente e para o ofendido, agressões repetidas e de concreta violência física e psicológica que certamente conduziram a que aqueles ficassem intranquilos, vivessem num clima de medo, insegurança e fragilização e tivessem de receber assistência médica.
A isto se alia a intensidade do dolo, na modalidade de dolo directo com que o arguido actuou, elevando-se, assim, a sua culpa.
Em termos de prevenção geral, as necessidades são bastante elevadas, atenta à grande frequência com que factos idênticos aos que aqui estão em causa são praticados -dados revelados constantemente pelas estatísticas, que vêm a público – impondo face a tais estatísticas, uma atitude firme por parte das instâncias judiciais, na reafirmação da validade da norma, que pune tal conduta e protege aqueles bens jurídicos fundamentais.
Na verdade, a violência doméstica é um crime frequente, perturbando fortemente as relações familiares e a paz social, pelo que, cumpre evitar o efeito imitação, a sua banalização, e que se instaure entre os membros da comunidade, o sentimento de não actuação pela ordem jurídica.
Em termos de prevenção especial, as necessidades de punição revelam-se bastante acentuadas, tendo em conta que a conduta do arguido é reiterada no tempo, tendo praticado a maioria dos actos pelos quais vem acusado, no interior do domicílio comum, não demonstrando, desse modo, qualquer respeito pelas normas de vivência parental.
Ademais, pelo facto de as condutas serem reiteradas no tempo exige-se uma pena que o faça interiorizar o mal por si cometido e o incentive a pautar a sua vida de acordo com o direito vigente e as regras de conduta sociais, evitando a prática de futuros ilícitos.
De igual modo, a favor do arguido milita o facto de não ter antecedentes criminais e de estar inserido em sociedade, quer familiarmente quer profissionalmente.
*

Considerando todos os factores supra elencados para a determinação concreta do quantum da pena, entende-se adequado condenar o mesmo na pena de 2 (dois) anos de prisão, pela prática do crime de Violência Doméstica na pessoa do ofendido AA [...] e 60 dias de multa pela prática do crime de injúria, e, 80 dias de multa, pela prática de cada um dos apontados crimes de ofensa à integridade física simples.

V- Cúmulo Jurídico:
No presente caso, resulta que ao arguido é imputada a prática de três crimes em concurso efectivo. Importa, agora, proceder ao cúmulo jurídico das penas parcelares apontadas, nos termos do artigo 77º nº 1 e 3 do Código Penal, de forma a aplicar uma pena única.
A pena aplicável tem como limite máximo a pena das somas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se em pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (n.º 2 do artigo 77º do Código Penal).
Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (n.º 1 do mesmo artigo).
Quanto à personalidade do arguido haverá de se considerar que, embora se tratem de crimes com gravidade (ofensa à integridade física simples, violência doméstica e injúria), atentos nomeadamente os bens jurídicos protegidos pela incriminação, a verdade é que inexiste qualquer factualidade que inculque a ideia de que o arguido não se encontre bem inserido familiarmente.
Estatui o artigo 77º nº 3, do Código Penal que “se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores”.
In casu, o arguido vem condenado em penas de multa e de prisão.
A moldura penal para os crimes oscila, agora, entre 60 dias de multa e os 220 dias de multa e os dois anos de prisão.
Tudo ponderado, julgam-se justa, adequada e proporcional à culpa do arguido e às exigências de prevenção, supra aludidas e que aqui se dão por integralmente reproduzidas, a pena única 180 dias de multa.
No caso ao Arguido foi aplicada uma pena de 2 anos de prisão e uma pena de 180 dias de multa. Neste caso quer a doutrina quer a jurisprudência são unânimes no sentido de que “Caso as penas em concurso sejam de diferente espécie, o direito vigente abandona entre elas o sistema da pena única - e, portanto, da pena conjunta e do cúmulo jurídico - para seguir na essência um sistema de acumulação material”
Nestes termos, quando o tribunal aplique, pela prática de um dos crimes em concurso, a pena de multa e, pela prática do outro crime, a pena de prisão, as duas penas devem ser acumuladas materialmente pois têm diferente natureza, pelo que vai o Arguido condenado numa pena única de multa e uma pena de prisão.
Relativamente ao quantitativo diário a aplicar, importa considerar o disposto no n.º 2 do artigo 47º do Código Penal, o qual dispõe que “cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 5€ e 500€, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais”. Tendo em conta o que resultou provado quanto às condições socioeconómicas do arguido, o tribunal entende adequado fixar o quantitativo diário no montante de 6,50€, assim perfazendo um total de 1,170€ (mil cento e setenta euros).


VI – DA APLICAÇÃO DE UMA PENA DE SUBSTITUIÇÃO:
Aplicada ao arguido, uma pena única de 2 (dois) anos de prisão, impõe-se, neste momento, a apreciação da verificação dos pressupostos de aplicação de uma pena de substituição.
Estas penas radicam historicamente no movimento político-criminal de reacção à aplicação de penas privativas da liberdade, nomeadamente as penas curtas de prisão.
Face à ausência de qualquer critério estabelecido na lei, o critério de preferência da escolha da pena de substituição, passa por saber qual a que melhor realiza as finalidades da punição, considerando, ainda, que uma pena privativa da liberdade surge como última ratio da política criminal, neste sentido, ver FIGUEIREDO DIAS, in “Direito Penal Português, Parte geral II, As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Noticias, 1993 pág. 365.
Porém, de acordo com o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 20.04.2009, disponível em, www.dgsi.pt, tendo em conta a natureza e pressupostos de cada uma delas, bem como as finalidades da punição, considerou que as penas de substituição, podem ser apreciadas pela ordem seguinte: multa, suspensão da execução da pena, prestação de trabalho a favor da comunidade, regime de permanência na habitação, prisão por dias livres e regime de semi-detenção, dando-se, deste modo, preferência às penas de substituição não privativas da liberdade.
Desde já fica afastada a substituição da pena de prisão por uma pena de multa, e pela permanência na habitação, por inobservância dos pressupostos formais, uma vez que a pena ora aplicada é superior a um ano (artigos 43.º n.º 1 e 45.º todos do C. Penal, respectivamente).
Cumpre, portanto, aferir se a suspensão da execução da pena de prisão, prevista no artigo 50.º do C. Penal, cumpre as finalidades da prevenção.
Este último normativo preceitua no seu nº 1, que “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Ora, a suspensão da execução da pena de prisão, constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, de forte exigência no plano individual, particularmente adequada para, em certas circunstâncias e satisfazendo as exigências de prevenção geral, responder eficazmente a imposições de prevenção especial de socialização, ao permitir responder simultaneamente à satisfação das expectativas da comunidade na validade jurídica das normas violadas, e à socialização e integração do agente no respeito pelos valores do direito, através da advertência da condenação e da injunção que esta impõe para que o agente conduza a sua vida de acordo com os valores inscritos nas normas.
“A suspensão da execução, acompanhada das medidas e das condições admitidas na lei que forem consideradas adequadas a cada situação, permite, além disso, manter as condições de sociabilidade próprias às condições da vida no respeito pelos valores do direito como factores de inclusão, evitando os riscos de fractura familiar, social, laboral e comportamental como factores de exclusão.
Não são, por outro lado, condições de culpa que devem ser tomadas em conta, mas juízos prognósticos sobre o desempenho da personalidade do agente perante as condições da sua vida, o seu comportamento e as circunstâncias do facto, que permitam fazer supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas” (cfr. Ac. do STJ, de 23.02.2005, proc. nº05P130 (in www.dgsi.pt). Neste sentido, ver também FIGUEIREDO DIAS, “Direito Penal Português, Parte geral II, As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Noticias, 1993 pág. 344.
A suspensão de execução da pena, enquanto medida com espaço autónomo no sistema de penas da lei penal, traduz-se numa forte imposição dirigida ao agente do facto para pautar a sua vida de modo a responder positivamente às exigências de respeito pelos valores comunitários, procurando uma desejável realização pessoal de inclusão, e por isso também socialmente valiosa.
Como ensina FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal Português- As Consequências jurídicas do Crime – pág. 342/343), “pressuposto material de aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente (...). Para a formulação de um tal juízo – ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade, ou só das circunstâncias do facto -, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e á sua conduta anterior e posterior ao facto”.
Esse prognóstico, consiste na esperança de que o agente ficará devidamente avisado com a sentença e não cometerá nenhum outro crime.
Nas palavras de Figueiredo Dias, o prognóstico, é reportado ao momento da decisão e não ao momento da prática do facto, razão pela qual devem ser tidos em consideração, influenciando-o negativa ou positivamente, designadamente, crimes cometidos posteriormente ao crime objecto do processo e circunstâncias posteriores ao facto, "ainda mesmo quando elas tenham já sido tomadas em consideração (...) em sede de medida da pena.
A este propósito, o prognóstico requer uma valoração global de todas as circunstâncias que possibilitam uma conclusão acerca do comportamento futuro do agente, nas quais se incluem, entre outras, a sua personalidade (inteligência e carácter), a sua vida anterior (as condenações anteriores por crime de igual ou diferente espécie), as circunstâncias do delito (motivações e fins), a conduta depois dos factos (a reparação e o arrependimento), as circunstâncias de vida (profissão, estado civil, família) e os presumíveis efeitos da suspensão, conforme posição perfilhada, pelo Ac. Tribunal da Relação de Guimarães, de 12.04.2010.
Remetendo-nos ao caso concreto, cabe averiguar se estão preenchidos os requisitos que permitam a suspensão da pena de prisão.
Encontra-se preenchido, desde logo, o pressuposto material de aplicação da suspensão da execução da prisão (a aplicação da pena de prisão inferior a 5 anos).
É sabido que o ilícito em causa é um crime considerado pela comunidade como bastante repulsivo, por o mesmo coloca em causa vários bens jurídicos da vítima, acarretando um grande sofrimento para a mesma dadas as situações de intensa violência física e psicológica a que é sujeita e que, na maioria das vezes leva a que sofra, além de lesões físicas, traumas psicológicos de acentuada gravidade que a acompanhará no seu percurso de vida, justificando, por isso, em abstracto, a punição do agente com uma pena de prisão.
É também sabido, por um lado, que o arguido, não obstante não ter antecedentes criminais, encontra-se inserido socialmente e profissionalmente.
Acresce que, desde os últimos factos em apreço nestes autos, inexiste qualquer notícia de factos consubstanciadores da prática do crime aqui em análise ou de ilícito criminal com o mesmo relacionado.
Assim, apesar da inegável gravidade dos factos, inexistem factores de risco fortes que inquinem a possibilidade de o Tribunal proceder à elaboração de um juízo favorável quanto ao comportamento futuro do arguido.
Com efeito, considera-se que a pena de prisão efectiva a impor-se, poderá apresentar- se excessiva, com consequências penalizadoras para as prementes exigências de prevenção especial e com revezes imprevisíveis no futuro do arguido.
Pelo que se entende dever ser dada uma última oportunidade ao arguido para se corrigir, afigurando-se que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, aguardando-se que, em liberdade, adira, sem reservas, a um processo de socialização, conforme entendimento que seguimos de perto pelo Ac. RC de 12.05.99, disponível em www.dgsi.pt/jtrc.
Contudo, não basta uma suspensão simples, pois o crime praticado pelo arguido, centrou-se numa vítima concreta e no sofrimento daquela, pelo que a reacção jurídico-penal, deve salientar a importância da mesma, de molde a que aquele tenha plena noção de que a sua punição se deve aos maus tratos infligidos no ofendido seu filho.
Assim, face ao exposto o Tribunal sujeita o arguido a um regime de prova, a elaborar pela DGRSP, que contemple nomeadamente a problemática da violência doméstica por forma a debelar os seus comportamentos, procurando atribuir-lhe mecanismos para que possa saber enfrentar as contrariedades e frustrações que possa vir a ter que enfrentar.
Concluímos, assim, que a suspensão da execução da pena de prisão deverá ser condicionada a um regime de prova a indicar pela DGRSP, em conformidade com o disposto no artigo 53.º do C.P. e artigo 34º-B, nº 1, da Lei nº 112/2009, de 16/09.
Atento o exposto, opta-se por suspender na sua execução a pena de prisão aplicada de 2 anos, por igual período, nos termos do disposto no artigo 50.º n.º 5, do Código Penal.


VII – DO ARBITRAMENTO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL:
Resulta do artigo 82.º A do CPP “Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos do artigo 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham”
O arbitramento oficioso de indemnização é um meio subsidiário de reparação das perdas e danos causados pelo crime, não tendo havido dedução de pedido de indemnização nem no processo penal nem no processo civil.
No caso dos autos, do depoimento do ofendido AA [...], resultou que sofreu danos físicos e psicológicos durante vários anos.
Ora, o arbitramento oficioso de reparação por perdas e danos em processo penal não viola a CRP (acórdãos do TC n.º 452/2000, que manteve a jurisprudência dos acórdãos 187/90 e 413/93, sobre a constitucionalidade do artigo 12.º do Decreto-lei n.º 605/75, de 3.11),vide, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, página 234 e 235, 2.ª Edição Actualizada, Universidade Católica Editora.
Não sendo directamente mensurável, o montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculada, em qualquer caso, segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e às do lesado e do titular da indemnização (art. 496.º nº 3, do Código Civil), aos padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, às flutuações do valor da moeda, etc. “A indemnização reveste, neste caso dos danos não patrimoniais, uma natureza essencialmente mista: por um lado visa compensar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente” – Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral, 1980, Vol. I, pag. 502.
No caso vertente, os requisitos formais mostram-se preenchidos – não foi deduzido pedido de indemnização civil pelo ofendido, verifica-se a condenação do arguido e o ofendido não se opôs expressamente à indemnização (do processo não consta declaração, escrita ou oral, do ofendido opondo-se ao arbitramento de indemnização decorrente da prática do crime), embora não a tenha peticionado – sobre a necessidade da oposição do ofendido e as formas de tal manifestação, leia-se o Acórdão de Coimbra, de 28.05.2014, processo n.º 232/12.9GEACB.C1, disponível em www.dgsi.pt.
Quanto aos demais requisitos, mostram-se também verificados, uma vez que o ofendido sofreu agressões físicas com intensidade elevada, presumindo a lei pela existência de particulares exigências da sua protecção – neste sentido, Acórdão da Relação de Coimbra, de 02.07.2014, processo n.º 245/13.3PBFIG.C1, disponível em www.dgsi.pt.
Por outro lado, resultou também provado que o ofendido se sentiu humilhado e triste pela conduta perpetrada pelo arguido.
Cabe, desde já, referir que a prática de uma infracção penal implica, com frequência, a lesão de direitos não patrimoniais de terceiros.
O ressarcimento de tais lesões deve ser, em consequência do princípio da adesão consagrado no artigo 71.º do Código Processo Penal, deduzido no processo penal.
Nos termos do artigo 129.º do Código Penal a indemnização por perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil, de acordo com os artigos 483.º, 496.º, 562.º e 566.º, todos do C. Civil.
Preceitua o art. 483.º nº 1, do C.Civil que “aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
São assim pressupostos deste tipo de responsabilidade: o facto que viola o direito de outrem, a ilicitude, a imputação subjectiva (a culpa) do facto ao agente; o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
No caso sob apreço encontram-se preenchidos todos estes pressupostos. Provado está que, com as condutas do arguido, o ofendido sentiu medo, factos provados em 8)), 9)), 10)), 11)), 12)) e 13)). Ou seja, em face dos factos apurados, conclui-se que, o arguido, com a sua conduta, violou vários direitos pessoais do ofendido, como a sua saúde psíquica, causando- lhe, além dos sofrimentos e medo tendo este, em consequência, direito a uma indemnização por aqueles danos não patrimoniais.
Pelo exposto, decide-se arbitrar, a título de indemnização pelos prejuízos sofridos, a quantia de €1.500,00 (mil e quinhentos) euros a favor do ofendido AA, quantia que será tida em conta em eventual acção que venha a conhecer de pedido de indemnização civil, nos termos do art. 82.º-A do C.P.P. e 21.º, n.º 1 e n.º 2, do Regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas, aprovado pela Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro.
Não se condenado o Arguido ao pagamento de qualquer quantia à ofendida uma vez que o mesmo relativamente ao crime que lhe vinha imputado, foi absolvido.


VIII- DA RESPONSABILIDADE POR CUSTAS:
No que tange à responsabilidade por custas, lê-se no artigo 513.º do Código de Processo Penal que: “É devida taxa de justiça pelo Arguido quando for condenado em 1.ª Instância, decair, total ou parcialmente, em qualquer recurso ou ficar vencido em incidente que requerer ou a que fizer oposição”. Dispõe ainda o artigo 8.º do RCP que: “(…) a taxa de justiça é paga a final, sendo fixada pelo juiz tendo em vista a complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela tabela III”. Do cotejo da já referida Tabela III, verifica-se que a taxa de justiça, para os processos comuns, oscila entre 2 e 6 UC’s, pelo que, atenta a mediana complexidade dos presentes autos, fixa-se a mesma em 3 UC.


IX – DISPOSITIVO:
Por todo o exposto, o Tribunal julga a acusação do Ministério Público, parcialmente procedente e, em consequência, decide:
1 - Absolver, o Arguido [...], da prática como autor material na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de Violência Doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 alínea a) e n.ºs 4 a 6, do Código Penal, na pessoa de BB [...].
2 - Condenar, o Arguido [...], da prática como autor material, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de Violência Doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2 alínea a) e n.ºs 4 a 6, do Código Penal, na pessoa de AA [...], pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, acompanhada de regime de prova, a elaborar pela DGRSP, que contemple nomeadamente a problemática da violência doméstica por forma a debelar os seus comportamentos, procurando atribuir-lhe mecanismos para que possa saber enfrentar as contrariedades e frustrações que possa vir a ter que enfrentar.
3 - Condenar, o Arguido [...] pela prática, como autor material, na forma consumada e em concurso efectivo de dois crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º n.º 1, do Código Penal, na pena de 80 dias de multa, por cada um dos apontados ilícitos criminais.
4 - Condenar o arguido [...] pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de injúria, previsto e punido, pelo artigo 181º, n.º 1 do Código penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa.
5 - Condenar o Arguido [...], nos termos do disposto no artigo 77.º do Código Penal, na pena única de 180 dias de multa à taxa diária de 6,50€ (seis euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz o montante de 1.170€ (mil cento e setenta euros).
6 - Condenar o arguido [...] ao pagamento de uma indemnização a pagar à vítima/ofendido, AA [...], nos termos do disposto no artigo 82.º A, do CPP, na quantia de 1.500,00 euros (mil e quinhentos euros).
7 - Condenar o arguido [...]nas custas do processo, na parte crime, fixando-se a taxa de justiça devida em 3 (três) Ucs., cfr. artigos 513.º n.º 1, 2 e 3; 514.º do CPP e artigos 1.º, 2.º, 3.º n.º 1º, 5.º, 8.º n.º 9 e 16 e Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.
* * * * *».


3. O recorrente verbera a esta decisão (reproduzem-se as «conclusões» com que termina o seu arrazoado):
Isto posto, entende-se que o arguido agiu ao abrigo de uma causa de exclusão de ilicitude, o exercício controlado e criterioso do seu poder corretivo enquanto pai, nos termos do art. 31.º, n.º 2, al. b), do Código Penal.

CONCLUSÕES:


1. O Tribunal a quo decidiu ;
[...]
2. O Tribunal a quo, entendeu que resultou provada factualidade relativa a atos dirigidos à pessoa do ofendido AA e que é manifesta a procedência da acusação pública e, portanto, que se impõe a condenação do arguido do crime de violência doméstica, por que vinha acusado.
3. Já quanto ao crime de violência doméstica imputado ao arguido e que tem como ofendida a Assistente, o Tribunal a quo decidiu [...] não configurar aquela factualidade maus-tratos para os efeitos do tipo de crime de violência doméstica, por falta de preenchimento daquele tipo de crime. [o texto engloba as «conclusões» 4.ª e 5.ª, que se limitam a reproduzir a factualidade dada por assente]
6. Motivos pelos quais decidiu o Tribunal a quo, absolver o arguido da prática do crime de violência doméstica que lhe vinha imputado.
7. Considera o Tribunal a quo que, aquela factualidade, integra o tipo do crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art.º 143.º, n.º 1, e u[m] crime de injurias previsto e punido pelo artigo 181º nº 1 do Código Penal.
8. O Recorrente entende que, pela indicação, acompanhada da enunciação das provas que impõem decisão diversa da proferida, dos pontos da matéria de facto incorretamente julgados como provados, pelo Tribunal a quo, existe um manifesto erro na apreciação da matéria de facto, nos termos e para os efeitos do artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal.
9. Na perspetiva do Recorrente, uma análise global, crítica e correlacionada de todos os meios de prova produzidos nestes autos impunha, necessariamente, que o Tribunal recorrido tivesse dado como não provados os factos constantes dos 3,4,5,6,7,8,9,10,11,12,13,14,15 e 16.
10. Da prova produzida, em sede de audiência de julgamento, não foi suficiente, e não existiu uma correta apreciação da mesma, o que forçosamente reconduzia, de forma clara e incontestável, a se darem por não provados os factos plasmados na Acusação do Ministério Público.
11. O recurso interposto da douta Sentença, já que o Recorrente não pode aquiescer com o sentido de tal Decisão uma vez que esta, salvo o devido respeito, não realiza devidamente o silogismo judiciário, a partir da prova produzida perante o Tribunal, e viola, fazendo um errado julgamento dos factos e aplicação do direito ao caso sub judice.
12. O Recorrente concretizou e especificou, no conspecto da prova testemunhal, para a comprovação dos factos elencados, na Motivação que antecede no presente recurso, o que se fez em obediência ao disposto no art.º 412º, nºs. 3, alínea b), e 4, do Código de Processo Penal, indicando as passagens dos depoimentos em apreço nos quais se funda a presente impugnação da matéria de facto.
13. Para tal procedeu à análise crítica e rigorosa da seguinte prova: Declarações de arguido, declarações produzidas em audiência de discussão e julgamento no dia 28-11-2023 com início às 15:42:00 e fim às 16:19:00, que se encontram gravadas no sistema integrado de gravação digital; Declarações da assistente [...], declarações produzidas em audiência de julgamento no dia 14-12-2023 com início às 15:16:00 e fim às 16:14:00, que se encontram gravadas no sistema integrado de gravação digital; Depoimento do ofendido AA [...], produzido em audiência no dia 20-12-2023, com início às 19:00 e fim às 10:48 e gravadas no sistema integrado de gravação digital; Depoimento da testemunha FF [...], produzido em audiência de julgamento no dia 10-12-2023, com início às 15:18:00 horas e o seu termo pelas 15:34:00 e gravadas no sistema integrado de gravação digital;
14. Na impugnação da prova testemunhal e declaratória e em função do que determina o preceito legal atrás referido, reiteramos e damos aqui por integralmente reproduzidas para os devidos efeitos as especificações das necessárias passagens dos respetivos depoimentos das testemunhas em causa, as quais se encontram formuladas e identificadas quanto a cada um dos factos aí tratados e que consideramos deverem ser dados como não provados nestes autos.
15. Por força de toda a argumentação exposta do presente recurso, entendemos que a douta Sentença recorrida deverá ser revogada, por errado julgamento da matéria de facto, e substituída por outra no âmbito da qual deverá então ser definitiva e globalmente dada como não provada nestes autos a seguinte factualidade constante da Acusação Pública:
16. De revelar do seu depoimento que admitiu, em sede de audiência de discussão de julgamento, que no que toca ao ofendido AA [...], que face ao comportamento do filho e, sempre em contexto corretivo, viu-se obrigado a castigar o mesmo, face aos ao mau comportamento escolar e no contexto familiar. Também admitiu que esporadicamente e fruto desse mau comportamento utilizou algumas das expressões “Merdinha, Atrasado Mental, Lorpa – declarações produzidas em audiência de discussão e julgamento, no dia 28-11-2023 com início às 15:42:00 e fim às 16:19:00, que se encontram gravadas no sistema integrado de gravação digital.
17. Que tais expressões, foram sempre por causa das más notas do filho, das más companhias, das faltas disciplinares, faltas à escola e sempre e após aplicar castigos como retirar o telemóvel e o computador, já em ato de desespero perante ao comportamento do seu filho AA- declarações produzidas em audiência de discussão e julgamento, no dia 28-11-2023 com início às 15:42:00 e fim às 16:19:00, que se encontram gravadas no sistema integrado de gravação digital;
18. O arguido não negou ter já recorrido a punições corporais para repreender o ofendido AA, explicando as situações pontuais em que o fez, que por 4 ou 5 vezes, deu um estalo no seu filho;
19. O arguido apresentou-se seguro e convicto do relato que realizou, o qual foi, ademais, congruente com as regras da experiência, e corroborado em termos de circunstancialismo temporal e espacial, não se vislumbrando razões para o descartar, razões pelas quais se acolheu a realidade do que narrou.
20. Aliás, no que tange a um bofetada em 4 ou 5 vezes em momentos distintos, desferidas na cara do ofendido, concatenadas com as declarações da assistente e do próprio ofendido AA, nesse particular, confessórias do arguido que o sustentam.
21. No que tange à factualidade atinente ao espírito/motivação/ consciência com que o arguido desferiu aquela bofetada, diga-se que o relato circunstanciado que realizou dos episódios, a forma como o fez, abordando outras situações em que se viu obrigado, na sua ótica, a recorrer ao uso da força para disciplinar o filho, bem como o sentimento social dominante da comunidade, e as regras da experimentação comum, permitiram inferir aquela matéria do estado subjetivo interno do arguido.
22. A douta sentença não apenas incorre em erro, ao dar como provados que de forma praticamente diária, no interior da residência comum, o arguido despoletava discussões com a ofendida, no decurso das quais lhe dirigia expressões como “BURRA. NÃO VALES NADA. ÉS UMA MÃE DE MERDA, SUA CARGA DE OSSOS, SÓ SINTO OSSOS. ÉS UMA MALUCA, UMA DOIDA, CABRA, ANIMAL FILHO DA PUTA, BURRINUHA HISTÉRICA”, que em data não concretamente apurada do mês de Março de 2022, no interior da residência comum, no decurso de uma discussão, o arguido arremessou uma vela em direção do corpo da ofendida, atingindo-a no braço, que no dia 09/05/2022, de tarde, no interior da residência comum, o arguido, com recurso a um computador portátil utilizado pelo filho menor AA, desferiu uma pancada com o mesmo no antebraço esquerdo da ofendida, causando- lhe dores, relatados em audiência de discussão e julgamento, no dia 14-12-2023 com início às 15:16:00 e fim às 16:14:00, que se encontram gravadas no sistema integrado de gravação digital.
23. Conforme consta a douta sentença, as declarações da assistente em sede audiência de discussão e julgamento foram pouco espontâneos, confusas, contraditórios entre si e até efabulativas.
24. A própria linguagem corporal da assistente e os maneirismos por si adotados foram manifestamente reveladores de uma vontade de exagerada de trespassar a ideia da vivência de um grande sofrimento interno.
25. Não que fosse necessário ou expectável que se emocionasse, o que importa explanar, manifestando-se o trauma e a dor de uma multiplicidade de formas, mas antes que não é natural que demonstrasse, como demonstrou, empenho significativo em transparecer angústia e dor.
26. Pelo que é inconcebível que a sentença valore, ou dê credibilidade ao depoimento da Assistente.
27. O mesmo se pode afirmar quanto ao depoimento do ofendido AA [...], que foi muitas vezes contraditório e efabulativo, depoimento produzido em audiência no dia 20-12-2023, com início às 19:00 e fim às 10:48 e gravadas no sistema integrado de gravação digital;
28. Tal depoimento, atendendo até à instrumentalização a que aparentemente será sujeito pela mãe, a assistente;
29. Foram estes os depoimentos que foram relevados pela M. Juiz, como não deviam, na medida em que os relatos que fizeram não são fiéis e compatíveis, nomeadamente, com o relatório elaborado pelo IML e junto aos autos em requerimento datado 14-11-2023 , que implicavam, pela banda da M. Juiz, uma escuta ativa e critica, o que não aconteceu.
30. Do depoimento prestada pela testemunha FF [...]depoimento produzido em audiência de julgamento no dia 10-01- 2024, com início às 15:18:00 horas e o seu termo pelas 15:34:00, que nunca viu o AA [...] com nódoas negras e que o AA gosta de estar com o pai e não sente medo do pai.
31. Olhando para os factos que consideramos globalmente não provados e ilustrados concentradamente na exposição da presente Motivação, é claro que os mesmos não integram em concreto a prática, em concurso real e em autoria material, na forma consumada, e em concurso efetivo, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas a) e c), n.º 2, alínea a), e nºs 4, 5 e 6 do Código Penal, na pessoa do Ofendido AA e dois crimes de ofensa à integridade física contra a assistente, previsto e punido pelo artigo 143 nº 1 do Código Pena e de um crime de injurias previsto e punido pelo artigo 181º nº 1 do Código Penal.
32. Mostrando-se, destarte, indiscutivelmente não preenchidos os elementos objetivos e subjetivos dos tipos legais em questão, de onde deve decorrer a respetiva a absolvição do arguido.
33. Das regras da experiência comum, sempre se dirá, que em casos de castigos físicos e ou verbais, se o ofendido sentisse humilhação, medo ou inquietação, não teria a relação de proximidade que tem com o Recorrente.
34. a M. Juiz não[] pediu o seguimento eletrónico do Processo de Regulação das Responsabilidades Parentais, que corre termos no Tribunal da Comarca do Porto Processo: 6948/22.4T8VNG-A, Juízo de Família e Menores de Vila Nova de Gaia - Juiz 3, em que ambas as atas de conferencia realizadas nunca foi colocado por parte da mãe qualquer objeção ao pai visitar e pernoitar com os filhos.
35. O Tribunal a quo valorizou depoimentos que a própria Sra. Juíza considerou confusos, contraditórios e efabulativos, e desvalorizou a prova documental, junta pelo arguido quer na instrução, quer em requerimento apresentado em 13/11/2023.
36. Não retirou qualquer ilação que possa influir nos factos constantes da acusação, suportados por prova indiciária insuficiente e uma vez que não foram impugnados nem pelo Ministério Público nem pela assistente;
37. Existe evidência de que o vínculo entre mãe e filho AA é marcado por dependência emocional desajustada da mãe para com o filho, e por imaturidade emocional da parte da assistente, o que fortalece a tese da defesa e dá sentido a tudo o que demais foi percecionado diretamente em sede de audiência.
38. E este é um juízo técnico-pericial que resulta de relatório produzido pelo INML, entidade cuja isenção é, na opinião do Recorrente, por ausência de qualquer indício que o infirme, irrepreensível, o que, de resto, a assistente não colocou em crise.
39. A M. juiz no uso do seu poder de livre apreciação da prova, não esteve em pleno na imediação da mesma e por via disso cometeu erros de julgamento , como este, que só podem impor uma coisa a absolvição do arguido dos crimes pelos quais foi condenado.
40. O Recorrente não se bastou a contrapor a convicção da M. Juiz a quo, uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto.
41. O Recorrente desenvolveu um quadro argumentativo que demonstra, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pela M. Juiz a quo, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível e desprovida de razoabilidade.
42. E sendo isto que se lhe impõe, deve este Venerando Tribunal, modificar a decisão, nos termos em que é pedida, mormente dar como não provados os factos 3,4,5,6,7,8,9,10,11,12,13,14,15 e 16, constantes da matéria dada como provada na Sentença em crise pelo Tribunal a quo.
43. Não resulta qualquer factualidade provada relativa a atos dirigidos à pessoa da assistente, porquanto os seu depoimento em sede de audiência de discussão e julgamento foi contraditório, confuso e até efabulativo é manifesta a improcedência da acusação neste particular, sem necessidade de extensas considerações teóricas, pelo que se impõe a absolvição do arguido do primeiro de ofensas corporais e de injúria.
44. E caso assim, não se entenda, o princípio geral o «in dubio pro reo no processo penal, não deve ser violado.
45. Pelo contrário dever ser considerado como princípio de prova: mesmo que assente na lógica e na experiência (e por isso mesmo), conforma ele um daqueles princípios que (…) devem ter a sua revisibilidade assegurada, mesmo perante o entendimento mais estrito e ultrapassado do que seja uma «questão-de-direito» para efeito do recurso de revista».
46. Este princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa; como tal, é um princípio que tem a ver com a questão de facto, não tendo aplicação no caso de alguma dúvida assaltar o espírito do juiz acerca da matéria de direito.
47. Este princípio tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto, quer seja nos pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer seja nos factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
48. Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.
49. Da análise da matéria de facto, mormente, de dois depoimentos, claramente confusos, contraditórios e até efabulativos, deveria o Tribunal aquo concluir pelo princípio in dúbio pro reo, pois a prova produzida contra o arguido, não foi suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.
50. No tocante ao princípio da livre apreciação da prova, o mesmo não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação motivável e incontrolável – e, portanto, arbitrária – da prova produzida.
51. Se a apreciação da prova é, na verdade, discricionária, tem evidentemente essa discricionariedade os seus limites, que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» –, de sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, reconduzível a critérios objetivos e, portanto, em geral suscetível de motivação e controlo.
52. Quanto ao crime de violência doméstica imputado ao arguido e que tem como ofendido AA, dir-se-á: Estatui o art. 152.º, n.º 1, als. c) e d), do Código Penal: «Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:
[…]
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;».
53. O crime de violência doméstica, procurando abarcar várias realidades sociais distintas, encontra como referentes constitucionais uma série de valores jurídicos como a integridade pessoal (física e moral), o livre desenvolvimento da personalidade, a liberdade geral de ação e determinação, a liberdade e autodeterminação sexual, e a proteção da família, na vertente de realização pessoal dos seus membros.
54. O crime de violência doméstica como um crime específico impróprio, pressupondo um nexo relacional entre o agente e a vítima, e um nexo particularmente íntimo que se reconduz às relações de casamento, união de facto, de namoro – mesmo depois de estas findarem – entre progenitores, entre coabitantes quando um deles seja pessoa particularmente indefesa, ou ainda quando a vítima seja um menor de idade descendente do agente ou de qualquer pessoa que com ele tenha estabelecido uma relação de namoro, união de facto ou casamento, ou com ele tenha gerado um descendente.
55. Entende-se, que tem de perspetivar-se o crime de violência doméstica, sob pena de se esvaziar o desiderato político-criminal da sua autonomização, e do que lhe subjazeu: o reconhecimento de que a família pode ser um espaço relacional de opressão, sujeito a manifestações de violência que cada vez com mais frequência são postas a descoberto e que acarretam consequências sociais nefastas e, nessa medida, clamam a tutela penal.
56. O tipo objetivo compreende a inflição de maus-tratos físicos ou psíquicos, conceito que apesar de indeterminado é descrito como incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou privação do acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns.
57. A orientação jurisprudencial dominante tende, perante condutas não reiteradas, a erigir à qualidade de critérios distintivos entre violência doméstica e outros ilícitos típicos que por ele possam ser absorvidos, a existência de uma relação de domínio ou de subjugação entre agente e vítima e/ou um juízo valorativo sobre o grau de intensidade da ofensa.
58. O que é necessário é que, olhando o pedaço de vida na sua globalidade, exista um sentido de ilicitude particularmente qualificado, distinto de uma mera ofensa qualificada.
59. O tribunal tinha que fazer a destrinça entre o que, de acordo com o sentido social dominante, tem a danosidade suficiente para ser já entendido como «maus-tratos» e, consequentemente, ser incorporado no tipo legal da violência doméstica, e o que é perfeitamente integrável numa ofensa qualificada dos arts. 145.º e 132.º, n.º 2, al. b), do CP- «nem toda a ofensa representa maus-tratos, pois estes pressupõem que o agente ofenda a integridade física ou psíquica de um modo especialmente desvalioso e, por isso, particularmente censurável.
60. A ocorrência deste crime pressupõe uma agressão capaz de afetar a dignidade pessoal do cônjuge enquanto tal e que revista de uma certa gravidade, traduzida em crueldade ou insensibilidade, ou até vingança, desnecessária, da parte do agente».
61. Resultando provado que o arguido desferiu algumas vezes uma bófeta na cara do ofendido AA e lhe ter atirado com a bota única vez , e em situações também pontuais utilizou as expressões que o mesmo confessou, considerando os contextos que motivou aquele atos e no qual aquele mesmo se insere, julga-se não configurar aquela factualidade maus-tratos para os efeitos do tipo de crime de violência doméstica, por falta de preenchimento daquele ilícito.
62. Motivos pelos quais deve ser o arguido absolvido da prática do crime de violência doméstica que lhe vinha imputado ao seu filho AA.
63. Nem tão pouco o crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art. 143.º, n.º 1, segundo o qual «Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa».
64. Os moldes em que foi perpetrada a ofensa e o seu grau de intensidade não permitem, igualmente, concluir pela especial censurabilidade ou perversidade do arguido, ainda que exista um vínculo familiar entre arguido e ofendido (este descendente do primeiro).
65. trata-se este de um ilícito típico de resultado, porquanto pressupõe a produção de uma lesão no bem-estar físico do ofendido, que não seja insignificante.
66. O tipo fundamental, no seu elemento objetivo, distingue ainda as lesões sofridas no corpo ou na saúde, sendo que esta última constituirá «toda a intervenção que ponha em causa o normal funcionamento das funções corporais da vítima, prejudicando-a», seja criando um estado de doença, seja agravando-o.
67. Ora, não se colocam dúvidas quanto ao caráter lesivo da integridade física do ato de desferir umas bofetadas no corpo do ofendido, nomeadamente, na zona na cara, de modo que inclusive não lhe provocou, qualquer marca.
68. O particular contexto em que tais a factualidades foram praticadas, conjugadamente com a especial relação que intercede entre arguido e ofendido, denuncia que a conduta do arguido não é ilícita por se inserir no âmbito do exercício das responsabilidades parentais.
69. Existem inúmeros instrumentos legislativos de proveniência quer internacional, quer nacional, que afirmam os direitos da criança, entre outros, à proteção contra todas as formas de violência.
70. As responsabilidades parentais são o conjunto de poderes e deveres destinados a assegurar o bem-estar moral e material do filho, designadamente tomando conta da pessoa do filho, mantendo relações pessoais com ele, assegurando a sua educação, o seu sustento, a sua representação legal e a administração dos seus bens.
71. Diz o art. 1878.º, n.º 1, do Código Civil que «Compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens».
72. Preceituando o art. 69.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa como as crianças têm direito à proteção do Estado contra o exercício abusivo da autoridade na família.
73. Em contextos muito específicos e determinados, o uso da força, quando destinado a finalidades exclusivamente educativas, e na justa proporção do que é necessário e adequado para atingir aquele fim, seja ilícito.
74. É ampla a jurisprudência que entende que o poder de correção dos pais sobre os filhos continua a integrar o conteúdo das responsabilidades parentais, podendo constituir causa de exclusão de ilicitude de crimes como a violência doméstica, ofensas à integridade física, coação, ameaças, entre outros, ou até fundar a atipicidade da conduta ao abrigo da cláusula de adequação social.
75. Sendo também esse o pensamento seguido por vasta doutrina.
76. Entendimento que se perfilho, por ser aquele o que melhor conjuga, com apelo a critérios de razoabilidade e sensatez, a intervenção mínima do direito penal e a esfera privada da vida familiar.
77. «O processo de educação de uma criança […] envolve muitos constrangimentos: dizer não, quando é necessário para evitar que os filhos cometam erros que lhes trarão certamente prejuízos ou a terceiros, ensinar e impor regras, introduzir certas restrições e até aplicar castigos (v.g., a privação temporária de uma determinada atividade lúdica) que tenham a virtualidade de lhes fazer compreender certos princípios e valores de atuação e de lhes permitir, no futuro, adequarem o seu comportamento, com essas regras de conduta, quer em relação a si próprios, quer na sua interação com os outros e com o ambiente exterior em que se inserem, é um processo longo, com diferentes níveis de aprendizagem, que envolve uma certa economia de esforço, com diferentes graus de assertividade ou obediência coerciva, ajustados à idade, ao grau de maturidade e às características de personalidade da criança»-
78. A conceção social dominante não deixa de ser relevante para a declaração do crime, desde logo porque a existência deste pressupõe a possibilidade de dirigir um juízo de censura a alguém (o agente), pela personalidade avessa ao Direito (Penal) que desvelou no facto.
79. «Apesar da evolução positiva que vem sendo registada, paulatinamente, no modo como é encarado o exercício das responsabilidades parentais, ainda não se pode dizer “que o cidadão médio tem a consciência de que é sempre ilícito o uso de punição física como método educativo”».
80. «Os métodos educativos com recurso à punição física são ainda muito aceites na comunidade, mais ainda nas camadas de menor nível socioeconómico, e porque certamente, terá sido objeto desses métodos educativos, sendo as pessoas têm tendência a reproduzir os métodos educativos que lhes foram aplicados), como porque a intenção de molestar fisicamente o filho não é a única causa provável para a sua ação, sendo admissível que tenha agido com a intenção de corrigir a atitude reprovável deste, convencida que essa Acão era legítima».
81. Uma das premissas em que se sustenta esta argumentação é precisamente esta, conforme bem abordou o acórdão supracitado: «embora desejável, a abolição completa da punição física, não corresponde ao estado atual da consciência jurídica da generalidade da população, não só por desconhecimento ou crença (para que se atinja um tal estado é necessário, como diz vária doutrina, que se faça uma campanha publica de esclarecimento e capacitação), como, muitas vezes, por falta de recursos educativos alternativo
82. Logo, afastaria, igualmente, no plano do tipo de culpa, a consciência da (eventual) ilicitude da sua conduta.
83. Não se pode exigir ao cidadão comum o conhecimento da interpretação da lei efetuada pelos juristas e que nem sequer é unânime-.
84. Proteger as crianças de todas as formas de violência não equivale a criminalizar todo e qualquer uso da força, incluindo aquele proporcionado, adequado, criterioso e aplicado com finalidades exclusivamente educativas.
85. Situações como a dos autos prendem-se com questões de elevada sensibilidade humana e jurídica que impõem uma equilibrada e distanciada apreciação, sendo primordial que o julgador se afaste de juízos levianos, mas sem ceder a empolamentos ou distorções do caso concreto.
86. É nesta senda que se defende, a par do que se propugnou no acórdão do TRL, de 12/01/2023 supracitado, que a «sensibilização da opinião pública, a desejável modificação das atitudes das pessoas em relação ao uso de castigos corporais no cumprimento da tarefa educativa e o “entendimento algo que enraizado na sociedade portuguesa de que castigar moderadamente os filhos é admissível sempre que necessário” […] não pode passar pela utilização dos meios do direito penal, “a mudança de mentalidades […] não é tarefa da norma penal”».
87. A regra é, e será sempre, reitera-se, a de que a lei penal não consente a aplicação de castigos físicos a crianças, sempre que estes detenham, evidentemente, dignidade penal, o que sempre acontecerá no caso da ofensa não irrelevante, por qualquer modo, do corpo ou saúde da criança.
88. Contudo, são de admitir exceções contadas à regra, de acordo com apertados e precisos pressupostos, concretamente orientados de acordo com os critérios de necessidade, adequação e proporcionalidade, as quais integrarão a cláusula de exclusão de ilicitude prevista no art. 31.º, n.º 2, al. b), do Código Penal.
89-Tal ponderação só poderá ser feita casuisticamente, tendo em consideração elementos como a gravidade da conduta, o concreto contexto em que a mesma se insere, os meios empregues pelo agente, a intensidade das suas repercussões (lesões físicas ou psíquicas), as finalidades visadas, a idade e outras debilidades psíquicas/motoras da criança, etc.
90. Deve, pois, seguir-se de perto os critérios avançados por Figueiredo Dias-
91. Primeiro, um de ordem subjetiva: o de que o agente atue com finalidade educativa «e não para dar vazão à sua irritação, para descarregar a tensão nervosa ou, ainda menos, pelo prazer de infligir sofrimento ao dependente ou para lograr aquilo que apeteceria chamar um efeito de “prevenção, geral ou especial, de intimidação”».
92. E dois outros de cariz objetivo: que o castigo seja criterioso e proporcional, no sentido de ser o mais leve possível; e, em todos os casos, moderado, «nunca atingindo o limite de uma qualquer ofensa qualificada ou, de todo o modo, atentatória da dignidade do menor».
93. Acrescem ainda os critérios da necessidade e atualidade preconizados por Leandra Correia.
94. Descendo à situação vertida nos autos, e, bem assim, à factualidade dada por provada, entende-se que estão reunidos todos aqueles pressupostos.
95. Assim, existiu, sim, ofensas do corpo do ofendido, e algumas expressões desadequadas.
96. Sucede que pelo contexto em que as mesmas foram desferidas, a região do corpo onde o foi, a idade do ofendido, e a reduzida intensidade das suas repercussões no corpo e saúde do ofendido, é de se considerar as mesmas como necessária, adequadas proporcionadas. 97.Necessária, pois que o arguido, progenitor do ofendido recorreu, previamente ao recurso àquelas bofetadas e expressões, a advertências à criança, nas circunstâncias em que relatou e sempre no sentido que parasse e reajustasse o seu comportamento.
98. E o mesmo apesar de várias vezes ter sido advertido, o ofendido continuou com os maus comportamentos escolares, maus comportamentos em contexto social, aliás conforme o próprio ofendido confessou.
99. Caso o arguido ignorasse a situação e não procurasse repreender o filho, detendo-a de continuar com aquele comportamento, não estaria a cumprir devidamente o seu dever de velar pela segurança da sua filho e de assegurar o seu saudável desenvolvimento.
100. O arguido agiu com uma finalidade estritamente educativa, com o propósito considerado de deter o seu filho f de um comportamento que perigava o seu bem-estar, saúde e integridade física, e de a fazer entender a seriedade das eventuais consequências daquele mesmo comportamento.
101. A intensidade das bofetadas e expressões proferidas, diga-se sempre, em momentos diferentes foi, ainda, proporcionada em face do comportamento do ofendido e da gravidade das suas iminentes consequências, pelo que foi desferida uma única bofetada na cara do ofendido, 4 ou 5 vezes ao longo dos anos todos de vivência com o filho, e, não causou qualquer lesão permanente para o mesmo.
102. A resistência demonstrada pelo ofendido em perceber que o seu comportamento era errado e que não o deveria continuar para o seu próprio bem, não é expectável que uma bofetada de vez enquanto e insignificante e ou, as expressões utilizadas, sempre contextualizadas, isto é, que nem lhe causasse qualquer lesão emocional ou física, e tanto assim é que atualmente o seu convivo com o pai é de muito bom. 103.Daí que foi também adequado às necessidades educativas que se faziam sentir nos momentos e moderado, não atingindo de forma grave quer a integridade física ou moral da ofendido.
104. Também não assumiu contornos que pudesse atentar contra aquele núcleo irredutível da sua dignidade, ou que a afetassem desproporcionadamente.
105. Constituiu também uma reação atual para um comportamento potencialmente danoso para a próprio, de modo que ao mesmo fosse possível associar as reprimendas aos atos.
106. O arguido agiu, ainda, confiando de que agia no âmbito dos seus poderes-deveres enquanto pai, preenchendo igualmente o tipo subjetivo do tipo justificador.
107. O arguido agiu ao abrigo de uma causa de exclusão de ilicitude, o exercício controlado e criterioso do seu poder corretivo enquanto pai, nos termos do art. 31.º, n.º 2, al. b), do Código Penal.
108.Assim sendo, afigura-se-nos que, dado que dos autos constam todos os elementos necessários ao proferimento de uma ajustada decisão sobre a matéria de facto, pode este Venerando Tribunal da Relação, 109.Revogar integralmente a referida sentença proferida pelo Tribunal recorrido sobre a matéria de facto e de direito, substituindo-a por outra em sede da qual dê como não provados os factos supra expostos.
110. E consequentemente, absolvendo o Recorrente dos crimes de que foi condenado.
[. .]
Normas violadas: Artigo 32º do CRP; artigo 412, nº 3 e 4 do C.P.P; artigo 127 do CPP, art. 31.º, n.º 2, al. b), do Código Penal, artigo 152ª do Código Penal, artigo 143 n º 1 do Código Penal e artigo 181º do Código Penal.»


4. Em resposta, concluiu o Ministério Público junto da 1.ª instância:
«1 - [...], pela prática, como autor material, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de Violência Doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2 alínea a) e n.ºs 4 a 6, do Código Penal, na pessoa de AA [...], pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, acompanhada de regime de prova, a elaborar pela DGRSP, que contemple nomeadamente a problemática da violência doméstica por forma a debelar os seus comportamentos, procurando atribuir-lhe mecanismos para que possa saber enfrentar as contrariedades e frustrações que possa vir a ter que enfrentar.
2 – Foi ainda [...] pela prática, como autor material, na forma consumada e em concurso efectivo de dois crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º n.º 1, do Código Penal, condenado na pena de 80 dias de multa, por cada um dos apontados ilícitos criminais, e pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de injúria, previsto e punido, pelo artigo 181º, n.º 1 do Código penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, sendo que nos termos do disposto no artigo 77.º do Código Penal, foi condenado na pena única de 180 dias de multa à taxa diária de 6,50€ (seis euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz o montante de 1.170€ (mil cento e setenta euros).
3 – Ora visto o texto da sentença ora impugnada, manifesto é que da mesma não constam quaisquer defeitos ostensivos, por si, ou conjugados com as conclusões impostas pelas regras da experiência comum, mormente defeitos congénitos quanto à factualidade provada, por esta não permitir, por exiguidade, a decisão de direito, ou que a mesma tenha sido apurada o mediante erro que, por ser grosseiro, ostensivo, evidente, não passaria despercebido ao cidadão comum.
4 – O tribunal de recurso apenas pode controlar e sindicar a razoabilidade da sua opção, o bom uso ou o abuso do princípio da livre convicção, com base na motivação da sua escolha.
5 – As regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica (art. 127 do CPP) constituem limite à discricionariedade do julgador.
6 – Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova
7 – Para se impugnar essa credibilidade, não basta procurar substituir a visão do Tribunal recorrido pela visão subjectiva de quem recorre, tornando-se necessário se demonstrar que foram, então e aí, violadas as regras de experiência e a lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica, desiderato que o recorrente não logrou alcançar
8 – Sendo assim o factor decisivo para a verificação do crime de violência doméstica a configuração global de desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima, que resulta do comportamento do agente, assente numa posição de domínio e controlo, a conduta do arguido dada como provada (e que não deixa de configurar também a prática de crimes de injúria, e ofensa à integridade física), atento o seu carácter desadequado e reiterado, assenta numa posição de dominico e representa um claro aviltamento da dignidade humana da vítimaseu filho-, com a “coisificação” deste, que é própria/típica do crime de violência doméstica, pelo estaremos perante um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, a), do Código Penal.
[9] – O poder correctivo dos progenitores, sempre conhecerá os seus limites, pois sendo um poder funcionalizado, exige-se que o exercício do mesmo seja necessário, adequado e proporcional, com se julga que uma doutrina mais atenta ao sentir social e, consequentemente, mais alijada de activismos de vanguarda, tradicionalmente, vem defendendo.
[10] – Ora vistos, a propósito, os factos dados como provados, manifestamente, os mesmos são totalmente desadequados para qualquer finalidade educativa, imoderados e atentatórios da dignidade da vítima; não há “sensibilidade social” que considere tais comportamentos, nos dia[s] de hoje, como admissíveis, pelo que o defendido pelo recorrente não poderá proceder.
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso e confirmada a decisão recorrida [...]».


5. Também a assistente (bem como o ofendido) nos autos pedem a improcedência do presente recurso, alinhando, em conclusão:
«1 – Os elementos probatórios existentes nos autos, não permitiam ao tribunal “a quo” tomar decisão diferente no que diz respeito condenação do arguido dos quatro (4) crimes que lhe vêm imputados e, muito menos, permitem a alteração [] por este pretendida.
2 – Nenhum verdadeiro e bom fundamento, quer de facto, quer de direito, existe para a interposição do Recurso pelo arguido e, muito menos, para a inconformidade deste contra a decisão que foi tomada pelo Tribunal “a quo”, seja quanto à matéria de facto, seja quanto à matéria de direito.
3 – Em face da prova documental e testemunhal produzida pela acusação no que diretamente concerne à prova dos factos imputados ao arguido, entendemos que essa parte da decisão que condenou o arguido seja pela prática dos crimes de ofensas corporais, seja pelos crimes de violência doméstica e de injúrias, seja no respetivo pedido de indemnização cível, está devidamente justificada.
Por outro lado,
4 – O arguido/recorrente não especificou de forma adequada “quais os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; quais as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida…”
5 – O arguido/recorrente parece fazer tábua rasa do princípio da imediação, substituindo-se na posição do julgador para sustentar que a prova produzida resulta em todo o seu expecto da sua perceção dos sujeitos processuais e não da prova produzida em sede de audiência de julgamento, esquecendo os motivos sérios e razoáveis que teria de apontar para abalar a douta sentença proferida pelo tribunal “a quo”.
6 – Não cumpre as obrigações de indicar com rigor e precisão, mas também com a amplitude imprescindível, quais os concretos meios probatórios, dos que constam nestes autos, que obrigam à pretendida alteração das respostas dadas à respetiva matéria de facto constante da parte da Sentença recorrida pelo arguido– Ac. RC de 24/10/00: JTRC 01137/itij/net.
7 – O recurso da matéria de facto impõe que o recorrente cumpra o ónus da impugnação especificada contido no n.º 3 do artigo 412.º do Código de Processo Penal e quando as provas hajam sido gravadas proceder à indicação das concretas passagens em que ancora a impugnação.
8 – O cumprimento das exigências estabelecidas nos nºs 3 e 4 do artigo 412.º não se prefigura como um ónus de natureza puramente secundário ou formal mas antes como requisito essencial para a delimitação da inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
9 – Por tudo isso, deve ser rejeitada a parte do recurso interposto pelo arguido/Recorrente e no qual diz pretender impugnar a decisão sobre a matéria de facto.
ACRESCE DIZER,
10 – É o juiz de julgamento que tem em virtude da oralidade e da imediação, uma percepção própria do material probatório que no Tribunal “ad quem” não existirá (pelo menos tal qual existe na 1.ª Instância).
11 – Pelo que, não existe, o alegado vício de erro de julgamento e o erro na apreciação da prova feita pela acusação.
12 – Lendo os factos provados e não provados e a sua fundamentação, facilmente se conclui que não houve erro na apreciação da prova e, muito menos, foi julgada incorretamente a matéria de facto.
13- O que afinal o recorrente faz é impugnar a convicção adquirida pelo tribunal “a quo” sobre determinados factos em contraposição com a que sobre os mesmos ele adquiriu em julgamento, esquecendo a regra da livre apreciação da prova inserta no art 127º do C.P.P.
14 – O tribunal “a quo” apreciou livremente, de acordo com a sua convicção, respeitando as regras da lógica e da experiência comum, toda a prova produzida em audiência de julgamento, cumprindo, desse modo, o art. 127º do Código de Processo Penal.
15 – Se a decisão factual do Tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.
16 – Como é jurisprudencialmente pacífico, o erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
17 – Porém, o vício terá de constar do teor da própria decisão de facto, não da motivação dessa decisão, ou da fundamentação de direito (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02.02.2011, disponível em www.dgsi.pt).
18- Vertendo ao caso em apreço, sobressalta, com meridiana clareza, que o Tribunal “a quo” enumerou exaustivamente todos os factos suficientes para a decisão de condenação do arguido.
19 – De igual modo, a decisão do Tribunal não se afigura contrária às regras da lógica e experiência comum, considerando o tribunal estribou a sua convicção na globalidade da prova produzida, apreciando a prova segundo as regras de experiência comum e sua livre convicção, pelo que não existem quaisquer outros vícios.
20 – A prova produzida nos presentes autos demonstra à saciedade que o arguido/recorrente deve ser condenado pelos crimes que lhe são imputados, pois, existem meios de prova válidos que permitem ao tribunal fundamentar a responsabilização criminal quanto aos crimes de ofensa à integridade física, injúria e violência doméstica pelos quais o arguido/recorrente foi condenado.
21 – Da prova produzida criou-se a inabalável convicção de que o arguido praticou os factos pelos quais foi condenado, pelo que inexiste violação do princípio “in dubio pro reo”.
22 – Assim, bem andou o Tribunal ao dar como provada tal factualidade e ao condenar o recorrente na pena tal como o fez.
23 – Por todo o exposto, não merece qualquer censura a douta Sentença recorrida, devendo manter-se na íntegra a decisão condenatória.
NESTES TERMOS E COM O DOUTO SUPRIMENTO DE V. EXAS. VENERANDOS DESEMBARGADORES, DEVEM SER JULGADAS IMPROCEDENTES TODAS AS CONCLUSÕES ADUZIDAS PELO RECORRENTE E O PRESENTE RECURSO REJEITADO POR MANIFESTAMENTE IMPROCEDENTE, MANTENDO-SE “IN TOTUM” A DOUTA SENTENÇA RECORRIDA, COM TODAS AS DEVIDAS E LEGAIS CONSEQUÊNCIAS [...]».


6. O Ministério Público junto deste Tribunal, aderindo às alegações do Magistrado do Ministério Público junto da 1ª Instância e acompanhando as considerações expendidas na sentença recorrida, pugna, também, pela improcedência do presente recurso.

7. Cumpridos os legais trâmites importa decidir.


II
8. O presente recurso não merece provimento.
9.1. Contrariamente ao propugnado pelo recorrente, a matéria de facto dada por assente na decisão recorrida mostra-se corretamente fixada.
10. a) Conforme decorre do preceituado no artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, «[q]uando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (…)» (sublinhado nosso).
11. Constitui jurisprudência constante dos Tribunais superiores que «impor decisão diversa da recorrida» não é o mesmo que «admitir decisão diversa da recorrida». Sendo assim, não basta contrapor à convicção do julgador uma qualquer outra, e diversa, convicção, para determinar inexoravelmente uma modificação da decisão relativa à fixação da matéria de facto; é ainda, e sobretudo, necessário que o recorrente demonstre que, através da análise das provas por si especificadas, a convicção que o julgador formou (e apresenta na sua decisão) quanto aos concretos pontos de facto impugnados, é irrazoável (por violar as leis da lógica ou da experiência comum) ou pura e simplesmente errada (por não coincidir o sentido da prova produzida em audiência de discussão de julgamento ou se mostrar formada sem arrimo nessa prova).
12. Tal sucederá, designadamente, se um facto for dado como provado com base em prova que o julgador estava legalmente impedido de considerar, ou desrespeitando o valor que legalmente é atribuído ao meio probatório em causa; se um facto for dado como provado e nenhuma prova tiver sido produzida sobre ele, ou for dado como não provado por ausência de prova, e afinal tiver sido produzida prova que o comprove; se o julgador der como provado (ou não provado) um facto com base no depoimento de uma testemunha que declarou exatamente o contrário do que lhe é atribuído, ou que não demonstre uma razão de ciência que sustente o conhecimento que diz ter desse mesmo facto (ou com base em qualquer outro meio probatório que não permita a ilação que dele foi retirada, ou imponha ilação diversa); e, em geral, em todas as situações em que do texto da decisão e da prova concretamente elencada na mesma e questionada especificadamente no recurso, for de concluir, fora do contexto legalmente deixado à livre convicção do julgador, que o tribunal errou, de forma flagrante, no seu juízo sobre a matéria de facto em função das provas produzidas (veja-se, a propósito, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, tirado no processo n.º 23/14.2PCOER.L1, disponível online na base de dados de jurisprudência deste Tribunal consultável no endereço www.dgsi.pt).
13. b) Ora, no caso concreto, e pese embora o modo como configura o seu recurso, o recorrente, ignorando o ónus que sobre si impende ex vi do preceituado no citado artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, limita-se, na prática, a verberar à decisão recorrida o não ter acolhido a sua versão dos factos (suportada no teor das suas declarações e nos depoimentos de testemunhas a que o Tribunal a quo, justificadamente, não concedeu relevância), tendo-a antes atribuído à versão trazida a julgamento pelos queixosos nos autos, o que é manifestamente insuficiente para obrigar à alteração da factualidade dada por assente, sobretudo quando a decisão recorrida explica, de forma clara, lógica e cogente, o percurso que o julgador seguiu para formar a sua convicção, em especial as razões pelas quais optou pela versão dos factos trazido a julgamento pela acusação, que ainda assim não aceitou de forma acrítica, de modo a respeitar os limites que lhe impunha a judiciosa apreciação de toda a prova que lhe cabia valorar e a que procedeu.
14. Não se percebe, pois, designadamente, que o recorrente insista não ser possível compreender a razão pela qual as declarações da assistente, «que no entender da SR Juíza a quo, foram pouco espontâneos, confusas, contraditórias entre si e até efabulativas», acabaram por servir para dar como provados vários factos considerados assentes na decisão recorrida.
15. Precisamente por o Tribunal a quo ter considerado que as declarações da assistente apresentavam tais características, teve o cuidado de excluir, da factualidade que deu como assente, todos os factos para os quais não encontrou respaldo em outros elementos probatórios suficientemente ponderosos, procedimento que se nos afigura correto e não nos merece, assim, reparo (cf., em especial, o parágrafo [36] da fundamentação da convicção do Tribunal – à qual pertencerão todos os parágrafos a seguir citados sem qualquer outra menção –, que constitui a síntese conclusiva permitidas pelas considerações tecidas anteriormente).
16. Como não pode aceitar-se, por outro lado, a contenção do recorrente de que o comportamento da assistente no decurso da prestação das suas declarações não foi suficientemente valorado, bastando ler o que o Tribunal recorrido escreve para perceber que foi também com base em tal valoração que foram elas largamente – porventura, diríamos nós, excessivamente, ao ponto de, aqui e ali, se confundir o plano dos factos com o da sua respetiva subsunção jurídica e não respeitar o conhecimento que a literatura especializada oferece quanto à natureza e à dinâmica das relações envolvendo violência no seio de relações íntimas (vd., em especial, o parágrafo [37]) – desvalorizadas (cf. parágrafos [22] e segs.).
17. Por outro lado ainda, são também incompreensíveis as dúvidas que o recorrente levanta à credibilidade do depoimento prestado pelo seu filho menor, quando ele próprio admite – embora, claro está, limitadamente e procurando atribuir-lhes um significado socialmente útil (positivo) –, a prática de boa parte deles, em especial quando resulta da prova produzida que o aludido queixoso apresenta(va) um quadro de sofrimento psíquico compatível com o tratamento que imputa ao seu progenitor (cf. parágrafos [15] e [40] e segs.), o que, como é natural, confere consistência ao seu depoimento.
18. Em suma, as objeções que o recorrente dirige à decisão tomada pelo Tribunal recorrido no tocante à matéria de facto que considerou assente e não assente – e de que se respigaram as mais relevantes – não impõem, ao contrário do que pretende ele, uma decisão diversa; constituem, apenas, razões que, em seu modo (interessado) de ver as coisas, poderiam justificar um resultado distinto daquele a que chegou a 1.ª instância, embora, analisadas de forma racional e conjugadamente com todos os elementos probatórios disponíveis, não possa deixar de concluir-se serem irrelevantes para colocar em crise a convicção formada pelo julgador nos autos.
19. c) Não obstante o exposto, e de forma a melhor organizar a matéria de facto dada por assente na decisão recorrida, justifica-se alterar a ordem dos factos provados, de forma a refletir mais fielmente a sucessão cronológica dos mesmos e, assim, evitar equívocos no tocante à localização no tempo das condutas protagonizadas pelo arguido.
20. Com efeito, tal como se encontra redigida a matéria de facto assente, o facto provado n.º 8 surge atualmente na sequência dos factos provados n.ºs 4 a 7 (sendo que os factos provados n.ºs 6 a 7 aludem a situações ocorridas em março e maio de 2022), mas o seu ponto de referência é, no entanto, o facto provado n.º 3 (que situa os comportamentos do recorrente contra o seu filho menor a partir do ano de 2015), como facilmente se pode constatar até lendo a acusação pública formulada nos autos, que a decisão recorrida acompanha nesta parte.
21. Assim, afigura-se-nos de corrigir, oficiosamente, a sequência dos aludidos factos, de modo a evitar quaisquer equívocos na compreensão da sua sucessão cronológica. Destarte, o facto provado n.º 3 passará a constituir o facto provado n.º 7, passando os factos provados n.ºs 4 a 7 a constituir os factos provados n.ºs 3 a 6, respetivamente.
22. 2. O Tribunal a quo também não violou, ao fixar a matéria de facto que considerou assente e não assente, o princípio in dubio pro reo, que obviamente não se confunde (como parece supor o recorrente) com a ausência de prova bastante para dar como provado qualquer facto.
23. De dúvida em sentido jusprocessual penal – e, portanto, da necessidade de tomar uma decisão pro reo – só pode falar-se se, da valoração dos elementos probatórios disponíveis, resultar, para o julgador, uma situação de dúvida insanável quanto à ocorrência ou não ocorrência de factos «cuja presença ou ausência é condição para que o estatuto do arguido seja alterado negativamente», designadamente por via da sua condenação pela prática de qualquer crime (Jan Zopfs, Der Grundsatz “in dubio pro reo”, pág. 269).
24. No caso dos autos, no entanto, não se vê que uma tal dúvida tenha perpassado pelo espírito do julgador, ou se mostre refletida na motivação com que explicita ele a convicção que formou quanto à factualidade que deu como provada e não provada, tal como também não decorre dos argumentos que o recorrente avança em justificação da sua pretensão.
25. Que no decurso da audiência de julgamento tenham sido apresentadas versões diferentes para os factos relevantes para a decisão a proferir é normal e constitui mesmo o resultado expectável do confronto de posições que nesse contexto é de supor que ocorra. Isto não determina, sem mais, uma qualquer situação de dúvida, sempre e quando seja possível, mediante a valoração da prova produzida, decidir, com segurança, quais os factos que ocorreram (ou não ocorreram) com relevo para a decisão do pleito.
26. Foi isto, precisamente, o que sucedeu no caso dos autos no tocante à matéria de facto dada por assente: confrontado com versões contraditórias dos factos relevantes para a sua decisão, o Tribunal a quo valorou-as e – como reiteradamente se sublinhou já –, de forma perfeitamente racional e clara, beneficiando dos elementos que só a imediação com a prova fornece (e que a este Tribunal falta), logrou formar convicção segura relativamente àqueles de que necessitava para a prolação da sua sentença. Nenhuma dúvida insanável foi, assim, ao contrário do que sustenta o recorrente, resolvida contra reum.
27. 3. O comportamento do recorrente relativamente ao seu filho menor configura a prática de um crime de violência doméstica, do artigo 152.º, n.ºs 1, alínea e), e 2, alínea a), do Código Penal.
28. a) Pese embora os esforços que o recorrente desenvolve, nas suas alegações, para desvalorizar o seu comportamento relativamente ao aqui queixoso, seu filho menor, certo é que todo ele ultrapassa claramente, em muito, aquilo que, nos nossos dias, se tem por socialmente (e, portanto, também juridicamente) aceitável quanto ao comportamento admissível no decurso do relacionamento entre pais e filhos.
29. Por isso, e independentemente do exato bem jurídico cuja tutela se atribua à incriminação da violência doméstica (um recenseamento sintético das várias posições nesta matéria pode ver-se em Susana Figueiredo, O bem jurídico, em Centro de Estudos Judiciários, Violência Doméstica - implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno – Manual pluridisciplinar, 2.ª edição, págs. 99 e segs.), o certo é que o tratamento dispensado pelo recorrente ao seu filho menor seguramente que atenta contra a dignidade deste enquanto pessoa humana (implicando, como implicou, um tratamento humilhante, atentatório do respeito que enquanto pessoa lhe era, e é, devido), implicou a prática de atos ofensivos da sua integridade física (mediante agressões contra o corpo) e saúde psíquica (pelo sofrimento que da conduta do recorrente resulta), bem como da sua honra (e, por aí, da sua autoestima), limitando-lhe as possibilidades de livre desenvolvimento da sua personalidade e destruindo a confiança e privando-a do espaço de segurança e conforto com que legitimamente devia poder ele contar no âmbito das relações familiares entre ambos intercedentes.
30. E sendo assim as coisas, não pode senão concluir-se que todo o comportamento do recorrente, tanto tomado na sua globalidade como na individualidade da generalidade dos episódios que ele protagonizou, é inequivocamente de subsumir no conceito de «maus tratos» (físicos e psíquicos), que constitui o cerne do tipo objetivo do crime em referência.
31. Por outro lado, mostram-se inequivocamente preenchidos os requisitos previstos nas alíneas d) do n.º 1, e a) do n.º 2, do artigo 152.º do Código Penal.
32. Com efeito, as condutas que o recorrente adotou visando o seu filho menor – todas ocorridas dentro da habitação onde residiam – começaram a assumir particular relevo a partir do ano de 2015, altura em que este tinha 8 anos, coabitava com o recorrente e, portanto, se encontrava sujeito à sua autoridade parental e dele completamente dependente – também do ponto de vista emocional e afetivo – e, assim, especialmente vulnerável face às agressões e insultos que o seu progenitor lhe dirigia com a virulência e frequência supra indicadas.
33. No entanto, e a partir da pertinente alteração legislativa, sendo o aqui queixoso, como se notou já, descendente do recorrente, mostra-se igualmente preenchida a circunstância prevista na alínea e) do n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal, que a partir do momento em que passou a ser aplicável há de prevalecer sobre a circunstância prevista na alínea d) do n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal (cujos efeitos se poderão fazer sentir ao nível da determinação da medida da pena, sendo caso disso). Por outro lado, tendo o Tribunal recorrido optado por não aplicar quaisquer das penas acessórias aí previstas, também nenhum sentido faz manter na qualificação da conduta do recorrente aos n.ºs 4 a 6 do Código Penal, que por isso deverá ser eliminada.
34. Há, assim, que corrigir a qualificação jurídica que aos factos dados como assentes, e relativos ao menor aqui queixoso, foi dada na decisão recorrida, o que a final se determinará.
35. Em suma, a conduta do recorrente – como melhor se concluirá após o tratamento da questão constante do ponto seguinte – é, assim, típica (também por ausência de qualquer causa de atipicidade), ilícita (por ausência de qualquer causa justificadora) e culposa, nenhuma razão existindo, consequentemente, para afastar a sua punição no âmbito da incriminação por que se mostra ele condenado.
36. 4. A conduta do recorrente em relação ao seu filho menor, tal como se conclui na decisão recorrida, não se mostra justificada pelo eventual exercício, por sua parte, de qualquer «direito de correção» que lhe pudesse assistir no quadro das responsabilidades parentais que lhe cabe exercer.
37. Independentemente da controvérsia que caracteriza, hoje, a discussão em torno da existência, e da precisa caracterização dogmática, de um «direito de correção» dos pais em relação aos seus filhos menores (vd., a propósito da discussão nas doutrinas alemã e espanhola, as considerações de Claus Roxin, La calificación jurídico-penal de la corrección paterna, Revista de Derecho Penal y Criminología, 2.ª Época, n.º 16 (2005), págs. 233 e segs., especialmente págs. 245 e segs.; Id., Strafrecht – Allgemeiner Teil, vol. I, 5.ª ed., § 17, n. m. 32 e segs.; Johannes Wessels/Werner Beulke/Helmut Satzger, Strafrecht – Allgemeiner Teil, 53.ª ed., n. m. 607 e segs.; Miguel Ángel Boldova Pasamar, ¿Queda algo del derecho de corrección de los padres a los hijos en el ámbito penal?, na mesma revista, págs. 55 e segs.; Diego-Manuel Luzón Peña, Derecho de corrección a menores, em Nuevo Foro Penal, n.º 99 (2022), págs. 11 e segs.; entre nós, vd., em especial, Maria Paula Leite Ribeiro de Faria, O castigo físico dos menores no Direito Penal, em Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de Faria, pág. 607 e segs., Id. anotação ao artigo 143.º do Código Penal no Comentário Conimbricense do Código Penal, t. I, 2.ª ed., § 35 e segs., págs. 319 e segs.; Maria Elisabete Ferreira, Violência parental e intervenção do Estado, págs. 195 e segs., especialmente 213 e segs.), o certo é que atualmente só de modo muito limitado se pode aceitar o seu «exercício» como fundamento de impunidade (como quer que ela se chegue) dos progenitores face ao uso do castigo físico e/ou psicológico relativamente aos seus filhos menores, e sempre com sujeição a limites apertados (quanto a tais pressupostos e limites, vd. ademais, para além das obras já citadas, Kristian Kühl, Strafrecht – Allgemeiner Teil, 8.ª ed., § 9, n. m. 60 e segs.).
38. No caso concreto, e desde logo, não se vislumbra – exceto porventura numa das situações atrás descritas (em que reagiu ao facto de o quarto do menor estar desarrumado), em que, como adiante se verá, o comportamento do recorrente se mostra igualmente inadmissível – qualquer razão (i. é, um qualquer comportamento concreto do menor) que possa minimamente legitimar o recurso regular, pelo recorrente, ao castigo físico e ao uso de linguagem humilhante em relação ao seu descendente, nos moldes em que o fez ele, o que afasta, consequentemente, a possibilidade de reconduzir tais condutas ao âmbito de um qualquer «direito de correção» que ao mesmo recorrente pudesse assistir em relação ao seu filho menor (assim, Kühl, cit., n. m. 60; Paula Faria, cit., pág. 627).
39. Como sublinha Detlev Sternberg-Lieben, aliás, o «direito de correção» não abrange «maus-tratos físicos ou as lesões psicológicas [que] forem infligidos como represália por um comportamento incorreto cometido» ou que se destinem apenas «a servir de dissuasão para o futuro e (…) esse "castigo" repressivo carecer de uma finalidade específica de proteção» (Schönke/Schröeder/Eser, Strafgesetzbuch Kommentar, 30.ª ed., anotação ao § 223, n. m. 22, que Kühl, ib., acompanha).
40. Por outro lado, nenhum «direito de correção» pode legitimar o tipo de expressões com que o recorrente se dirigia, regularmente, ao seu filho – «burro», «merdinha», «atrasado mental», lorpa» –, considerando precisamente o caráter humilhante e degradante das mesmas (vd., v. g., Wessels/ Beulke/ Satzger, cit., n. m. 611; Kühl, cit., n. m. 66). Trata-se, aqui, de expressões que nenhum conteúdo pedagógico ou educativo útil têm, revestindo-se apenas, por regra (uma regra que se não mostra afastada no caso concreto), de um caráter injurioso e ofensivo da honra e consideração do visado, e que são usualmente utilizadas para esse efeito, como, dado o respetivo contexto, ocorreu com o referido comportamento do recorrente.
41. Por outro lado, ainda, também não se vê que sentido pode fazer, do ponto de vista educativo, a destruição de um brinquedo que um jovem afetado por uma condição do espectro do autismo especialmente prefere, ainda quando tenha a idade que o filho menor do recorrente tinha, tanto mais que tal objeto em nada se relaciona com o suposto motivo que levou o recorrente a agir dessa forma. Falta, aqui, objetivamente, uma qualquer relação de proporcionalidade entre a conduta do recorrente e as possíveis razões que tenha tido para atuar do modo como atuou, o que também sempre afastaria a possibilidade de ver aqui um exercício legítimo de um qualquer «direito de correção».
42. Por último, também a conduta do recorrente descrita no facto provado 11 não pode ser legitimada pelo exercício de um seu «direito de correção» em relação ao seu filho, pois que se trata aí de castigo – rectius, mau trato – ofensivo da dignidade do menor. Com efeito, como observa Paula Faria (cit., pág. 628), «em geral, o uso de objectos faz com que o castigo perca a natureza de medida educativa, para se converter num mau trato ofensivo da dignidade da criança», o que claramente ocorreu quando o recorrente mostrou tão pouco respeito pela pessoa do seu filho que o agrediu com uma bota, atingindo-o na cabeça.
43. Contrariamente ao que o recorrente alega, pois, não ocorrem sequer, no caso, os pressupostos do «direito de correção» que se arroga, quanto mais circunstâncias que permitam ver nas «medidas corretivas» que diz ter adotado um exercício legítimo do mesmo, dada a manifesta desproporção entre qualquer finalidade educativa que pudesse ter perseguido (que não se vislumbra poder ser retirada da factualidade dada por assente) e a reiteração e gravidade objetiva dos supostos «castigos» que infligiu sobre o seu filho.
44. Falece, também nesta parte, o presente recurso.
45. 4. Face à decisão que irá ser proferida, terá o recorrente que suportar custas adequadas à atividade que desencadeou.
46. Conforme decorre do preceituado no n.º 1 do artigo 513.º do Código de Processo Penal, o arguido suporta o pagamento de taxa de justiça «quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso».
47. Sendo este o caso, terá, assim, o recorrente, de suportar as custas devidas nesta instância.
48. Considerando, nos termos previstos no artigo 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, a tramitação processual ocorrida, afigura-se adequado fixar em 4 Unidades de Conta a taxa de justiça devida.


III

49. Pelo exposto, acordam os da 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto:

a) Alterar, de ofício, a ordem dos factos dados por provados na decisão recorrida, de tal sorte que o atual facto provado n.º 3 passará a constituir o facto provado n.º 7, e os atuais factos provados n.ºs 4 a 7 passarão a constituir os factos provados n.ºs 3 a 6, respetivamente;

b) Alterar, de ofício, a qualificação constante do ponto 2 do dispositivo da sentença recorrida, de tal sorte que o arguido fica condenado pela prática, relativamente à pessoa do seu filho, de «um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alíneas d) e e), e 2 alínea a), do Código Penal»;

c) No mais, negar provimento ao presente recurso, confirmando a decisão recorrida.


50. Custas pelo recorrente (artigo 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) Unidades de Conta.






Porto, 22 de maio de 2024.
Pedro M. Menezes
Donas Botto
Maria do Rosário Martins
(acórdão assinado eletronicamente).