ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRIVAÇÃO DE USO DE VEÍCULO
INDEMNIZAÇÃO
PEDIDO REFERENTE A PERÍODO TEMPORAL
CONDENAÇÃO POR PERÍODO TEMPORAL SUPERIOR
NULIDADE DE SENTENÇA
Sumário

I. O período temporal da privação do uso do veículo é um elemento intrínseco e constitutivo do próprio dano. Tanto assim que quanto maior for o período de privação de uso, maior será o dano.
II.  Se o autor confinou o dano da privação do uso de veículo a 42 dias, limitando-o a tal período, e o Tribunal condena a Ré no pagamento de indemnização por privação do uso durante 949 dias, o Tribunal condenou na reparação de um dano diverso daquele cujo ressarcimento foi em concreto peticionado pelo autor, considerando um dano muito mais amplo do que o invocado, e nessa medida, violou os limites do pedido.
III. A questão nada tem a ver com o quantum indemnizatório, mas antes com a conformação do dano que o autor quer ver ressarcido: o autor pede o ressarcimento de um determinado dano (privação do uso durante 42 dias) e o Tribunal condenou a Ré a ressarcir dano com contornos diversos (privação do uso durante 949 dias).

Texto Integral

Acordam neste Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
O Autor A, intentou a presente ação declarativa de condenação contra a Ré B [ …SEGUROS, S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL ] ., peticionando a condenação da Ré no pagamento:
a) da quantia de €11.804,46 referente ao valor orçamentado para a reparação do seu veículo;
b) da quantia de €1.000,00 que o A. despendeu a arranjar uma viatura avariada que possuía para poder fazer face às suas necessidades de deslocação;
c) da quantia de €1.050,00 a título de prejuízo pela privação do uso do veículo do A. desde a data do acidente até 31/10/2020, data em que pode utilizar um veículo alternativo, ou caso assim se não entenda, e pela relevância do dano, em quantia a arbitrar pelo douto tribunal a esse título;
d) da quantia de €2.000,00 a título de danos morais sofridos pelo A.;
e) dos juros de mora, à taxa legal, que se vençam desde a citação até efetivo e integral pagamento;
f) das custas e no mais que legal for.
Para tanto alega que é proprietário do veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca JEEP, modelo COMPASS de cor preta, com a matrícula ..-DR-.., o qual sofreu um acidente de viação do qual resultaram danos, cuja responsabilidade imputa ao veículo ligeiro de passageiros de marca MITSUBISHI, com a matrícula ..-SP-.., segurado na Ré.
Citada, a Ré contestou, admitiu a ocorrência do acidente, mas impugnou a respetiva dinâmica imputando a totalidade da responsabilidade pela ocorrência do mesmo ao Autor.
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Realizou-se audiência de julgamento conforme resulta da respetiva ata.
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Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Nestes termos e pelos fundamentos expostos, julgo a ação parcialmente procedente, e condeno a Ré B a pagar ao Autor A:
a) A quantia de 5.390,00€ (cinco mil trezentos e noventa euros) a título de indemnização pelos danos materiais ocorridos no veículo do Autor, com a matrícula ..-SP-.., acrescida de juros de mora, contabilizados à taxa dos juros civis, emergente da Portaria n.º 291/03, de 8 de abril, atualmente de 4% (e outras taxas que, entretanto, forem aplicáveis), desde a data de 07-06-2021 até efetivo e integral cumprimento.
b) A quantia de 9.490,00€ (nove mil quatrocentos e noventa euros) a título de indemnização pela privação do uso do veículo do Autor, com a matrícula ..-SP-.., calculados desde 19-09-2020 até à presente data (01-06-2023), acrescida de juros de mora, contabilizados à taxa dos juros civis, emergente da Portaria n.º 291/03, de 8 de abril, atualmente de 4% (e outras taxas que, entretanto, forem aplicáveis), desde a data de 23-09-2021 até efetivo e integral cumprimento.
Absolvo a Ré do demais peticionado a título indemnizatório.
Custas a cargo da Autora e da Ré na proporção de 10%-90%, respetivamente.
Notifique e registe.”
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Inconformada com a sentença, veio a Ré interpor recurso de apelação, apresentando alegações cujas conclusões se passam a transcrever:
“1. O presente recurso vem interposto da douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo que condenou a Recorrente no pagamento ao Recorrido da quantia de 9.490,00 € a título de indemnização pela privação do uso do veículo do Recorrido calculada desde 19-09-2020 até 01-06-2023;
2. O Tribunal a quo deu como provado, na Douta Sentença recorrida, que o Recorrido “carece do seu veículo para o seu normal dia a dia, designadamente, para fazer as compras, fazer passeios ou visitar amigos e familiares”, conforme facto provado 37 da douta sentença;
3. Sucede que, em momento algum, o Autor (aqui Recorrido) nas declarações de parte que prestou, referiu que carecia do seu veículo para fazer compras, passeios ou para visitar amigos e familiares;
4. Sendo que, tal facto foi alegado na douta p.i. (artigo 56.º), mas nenhuma prova foi feita a esse propósito;
5. Por isso, deve a douta Sentença ser substituída por outra que dê este facto como não provado;
6. A douta Sentença deu ainda como provado que o R. esteve privado do uso do veículo desde 19 de setembro de 2020 até 1 de junho de 2023 (facto provado 37);
7. Mas, se ficou provado (facto 26 e 32) que o Recorrido tinha um veículo para além do sinistrado que reparou em 31 de outubro de 2020, precisamente por precisar de um veículo para se deslocar ao trabalho, então não se pode considerar que o Recorrido tenha ficado privado do seu “único” veículo desde a data do acidente até 1 de junho de 2023;
8. Pois, logo no dia 31 de outubro de 2020, o Recorrido passou a utilizar o seu outro veículo, como se provou;
9. De facto, o Recorrido só teve privado do uso de uma das suas viaturas;
10. Existindo uma evidente contradição entre os factos dados como provados constantes dos pontos 26 e 32, com o facto dado como provado no ponto 31;
11. Pelo que, deve a douta Sentença, ser substituída por outra que dê este facto como não provado, ou que altere o facto dado como provado para a seguinte redação: “Em consequência do embate, o A. ficou privado de utilizar uma das suas viaturas nas suas deslocações para o trabalho desde a data do acidente em 19 de setembro de 2020 até ao presente”;
12. De todo o modo, a douta Sentença não aplicou corretamente o Direito aos factos que deu como provados, pois, o Recorrido só esteve privado do uso da sua viatura por 42 dias, como decorre da própria p.i., isto é, do pedido e da causa de pedir.
13. Assim, não existe qualquer razão para se fixar um valor de 10,00 € por um total de 949 dias;
14. De todo o modo, o montante a fixar pela privação do uso, sempre que não exista um efetivo prejuízo com a paralisação do veículo, é sempre fixada por um juízo de equidade nos termos do artigo 566º, n. 3, do Código Civil.
15. Assim, andou mal o Tribunal a quo quando condenou a aqui Recorrente no pagamento de uma indemnização pela privação de uso sem que se tenha provado qualquer dano derivado da paralisação do veículo do Recorrido, para além dos 42 dias que peticiona.
16. E, por identidade de razão, andou mal também o Tribunal a quo quando fixou um valor de 10,00 €diários, por 949 dias, num total de 9.490,00 €, de privação de um veículo com um valor de 7.500,00 € (facto provado 39).
17. Sendo manifestamente desproporcional o valor indemnizatório fixado, uma vez que o Recorrido só teve efetivamente privado do uso por 42 dias, sendo este valor, tudo menos equitativo.
18. Pelo que, deve a douta Sentença ser substituída por outra que corretamente aplique o direito aos factos dados como provados e que assim, reduza o valor indemnizatório fixado aos dias em que o Recorrido esteve efetivamente privado do uso do seu veículo, ou que, de todo o modo, reduza o valor fixado num juízo de verdadeira equidade, considerando os danos decorrentes da privação do uso, efetivamente provados.
19. Por fim, o Autor e aqui Recorrido peticionou o total de 42 dias de indemnização por privação do uso à razão de 25,00 € por dia, num total de 1.050,00 €.
20. Acontece que, a douta Sentença entendeu condenar a Recorrente no montante de 9.490,00 €, por concluir que o Recorrido teve privado do uso do seu veículo por 949 dias.
21. O Autor apenas peticionou a privação do uso por 42 dias.
22. E não peticionou uma indemnização por todos os dias que tivesse privado da sua viatura até o transito em julgado da presente ação.
23. Uma coisa é se ter provado que os danos resultantes da privação do uso foram muito superiores aos peticionados e, assim, poder-se aproveitar o quantum das outras parcelas do pedido.
24. Outra coisa, totalmente diferente, é ir para além do pedido e o objeto do pedido, condenando-se em número de dias superior ao peticionado, extravasando o quantitativo peticionado tal como configurado na douta p.i., isto é, na causa de pedir e no pedido.
25. Em violação do princípio do dispositivo e do princípio do pedido (artigo 3.º n.º 1 e 609.º do CPC), e, ainda, em excesso de pronuncia.
26. Bem como, o princípio do contraditório, porquanto todos os dias além dos 42 peticionados pela privação de uso, não foram objeto da discussão nos presentes autos.
27. Pelo que, a Sentença é nula, nos termos do artigo 615.º n.º 1 alínea e) do CPC.
28. Também por violar o princípio do dispositivo e do contraditório, nos termos do artigo 3.º n.º 1 e 3 do CPC.
29. Devendo ser substituída por outra que respeite os limites da condenação.
Termos em que deverá o presente recurso ser julgado procedente por provado revogando- se a decisão proferida, por assim ser de Justiça!”
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Não foram apresentadas contra-alegações de recurso.
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O recurso foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Já neste Tribunal da Relação foi por despacho de 09.01.2024 determinado, ao abrigo do disposto no art. 617º, nº 5 do CPC, que os autos baixassem à primeira instância, a fim de a Mmª Juiz a quo se pronunciar fundamentadamente acerca da nulidade da sentença invocada na presente apelação, conforme disposto no arts. 617º, nº 1 e 641º, nº 1 do mesmo Código.
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Nessa sequência, foi pelo Tribunal a quo proferido o seguinte despacho:
“Dando-se cumprimento ao preceituado no artigo 617.º, n.º 1, do CPC, compulsada a sentença recorrida, afigura-se-nos que a mesma não enferma de qualquer vício, desta forma se indefere a arguição de nulidade suscitada pela Ré.
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Subam os autos ao Tribunal da Relação de Lisboa. “
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Em 09.05.2024 foi proferido o seguinte despacho:
“Preconfigurando a possibilidade de eventual procedência da nulidade invocada nas alegações de recurso, ouçam-se as partes sobre a substituição do Tribunal de recurso ao tribunal recorrido/conhecimento do objeto da apelação, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 665 nº1 e 3 do CPC.
Prazo de pronúncia: dez dias.
Notifique.
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Após, imediatamente aos vistos, com inscrição em Tabela.”
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A recorrente, por req. de 14.05.2024, respondeu nada ter a opôr à pretendida substituição do Tribunal de recurso ao Tribunal recorrido, para conhecimento do objeto da apelação, e o recorrido nada disse.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. OBJETO DO RECURSO:
Considerando o teor das alegações de recurso apresentadas pela recorrente, as questões a apreciar e decidir no recurso são as seguintes:
- Nulidade da Sentença;
- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
- Erro de Julgamento.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
O Tribunal de 1ª instância considerou provados os seguintes factos:
1. No dia 19 de setembro de 2020, pelas 15H45, na Estrada Transversal, na freguesia e concelho de São Roque do Pico, ocorreu um embate entre o veículo ligeiro de passageiros, de marca JEEP modelo COMPASS de cor preta, com a matrícula ..-DR-.. (adiante DR) e o veículo ligeiro de passageiros de marca MITSUBISHI, com a matrícula ..-SP-.. (adiante SP).
2. O veículo DR, propriedade do Autor, era conduzido pelo próprio Autor, que se deslocava para o seu local de trabalho situado em São Roque do Pico.
3. O veículo SP era conduzido por R….       .
4. À data e hora em que ocorreu o embate entre os mencionados veículos não chovia, nem havia nevoeiro, a visibilidade era boa em ambos os sentidos e via encontrava-se seca.
5. O local onde ocorreu o embate caracteriza-se por uma pequena reta com cerca de 250 metros e com uma ligeira inclinação descendente, com duas vias de trânsito de sentido contrário entre si e perfeitamente delimitadas entre si através de uma linha longitudinal descontínua, bem visível.
6. No dia e hora do embate, o veículo DR seguia a sua marcha na Estrada Transversal, no sentido descendente para São Roque do Pico, dentro da via de trânsito destinada à sua circulação (lado direito) de cerca de 70 km/h.
7. A velocidade máxima para o local é de 80 km/h.
8. O veículo SP seguia em sentido contrário, ou seja, no sentido ascendente da via, São Roque do Pico – Lajes do Pico.
9. O A. seguia atento à circulação de pessoas e bens, concentrado na condução.
10. O condutor do SP, antes de se cruzar com o veículo DR, começou a deixar a sua viatura aproximar-se do eixo da via, acabando por invadir a via de trânsito contrária ao sentido da sua marcha, por sinal onde seguia o veículo DR.
11. O condutor do DR apercebendo-se da situação sinalizou-a com as luzes do veículo e acionou a buzina sonora.
12. O condutor do SP não se apercebeu dos avisos e acabou por embater na parte frontal direita do veículo DR, partindo a jante dianteira do lado direito deste veículo.
13. O condutor do DR ainda tentou fazer uma manobra evasiva relativamente ao outro veículo, arredando-se com a viatura o máximo possível para a berma direita da sua faixa de rodagem, acabando por embater nuns troncos de árvores cortadas que aí se encontravam, mas essa manobra não evitou o embate com o SP.
14. No local do embate entre as viaturas, após a quebra da jante do veículo DR, esta começou a marcar o pavimento, deixando um rasto dentro da via de trânsito, onde seguia o veículo do A. (Lajes do Pico – São Roque do Pico), em concreto, um rasto no meio dessa via.
15. O embate entre os veículos ocorreu dentro da faixa de rodagem onde seguia o DR.
16. Como consequência do embate e da quebra da jante dianteira esquerda do veículo do A., este ficou imobilizado e sem qualquer possibilidade de circular, tendo sido retirado do local através de reboque.
17. Do embate resultaram no veículo do A. os seguintes danos:
- porta da frente esquerda;
- guarda lama da frente esquerdo;
- pisca do guarda lama esquerdo;
- jante;
- para brisas da frente;
- airbag do volante;
- airbag do passageiro;
- espelho retrovisor;
- cava da roda da frente esquerda;
- braço da suspensão da frente esquerdo;
- semi eixo da frente esquerdo;
- manga do eixo da frente esquerdo;
- friso do vidro da porta da frente esquerda;
- vidro da porta da frente esquerdo;
- dobradiças da porta da frente esquerda;
- amortecedor da frente esquerda;
- cinto de segurança esquerdo;
- pára-choques da frente;
- protecção da embaladeira;
- pintura.
18. A reparação do veículo do A. foi orçamentada em €11.804,46, onde se incluíam, para além das peças a substituir os necessários serviços de pintura, mecânica e bate chapa.
19. O A. efetuou a participação do acidente à ora R., que por sinal era a seguradora de ambos os veículos intervenientes no sinistro.
20. Em virtude de não receber quaisquer notícias da seguradora, para além de que o processo ainda estava em averiguação e que a responsabilidade ainda não tinha sido definida, o A., não tendo outra viatura em condições para se deslocar para o trabalho, em 09 de outubro solicitou informações à Ré.
21. Em 20 de Outubro de 2020 a R. comunicou ao A. que assumia apenas 50% da responsabilidade pela reparação dos danos que resultaram do acidente.
22. Nessa ocasião a R. propôs pagar apenas o valor de 1.640,00€.
23. O A. não aceitou tal decisão e reclamou da mesma por escrito, através de carta datada de 29 de outubro de 2020.
24. A R. não alterou a sua posição.
25. A R. tinha na sua posse todas as fotografias do acidente, fornecidas pelo Autor.
26. Em virtude de ter grande necessidade do veículo acidentado já que era o único que tinha condições de circular e que utilizava para fazer face às suas necessidades de deslocação para o trabalho, na falta de assunção da responsabilidade por parte da R., o A. procedeu à reparação de um veículo antigo que possuía e que estava avariado na altura e com a qual despendeu a quantia de €1.000,00 (mil euros).
27. O veículo do A. que foi acidentado encontra-se sem reparação desde a data do acidente, e esteve nas instalações da empresa de mecânica automóvel …..AUTO sitas na vila da Madalena.
28. Apesar de reclamado o pagamento dos prejuízos, nunca a R. assumiu a sua responsabilidade pelo ressarcimento integral dos mesmos.
29. À data do embate, a responsabilidade civil por danos causados a terceiros pelo veículo SP encontrava-se transferida para a B, mediante contrato de seguro titulado pela Apólice n.º … .
30. À data do acidente, o veículo do A. apresentava bom estado de conservação, sendo assistido periodicamente nas revisões de rotina, acrescendo que nunca tivera qualquer acidente.
31. Em consequência do embate, o A. ficou privado de utilizar o seu único veículo que utilizava nas suas deslocações para o trabalho desde a data do acidente em 19 de setembro de 2020 até ao presente.
32. Para se poder deslocar para o trabalho o A. viu-se forçado a reparar um outro veículo de que é proprietário e que se encontrava avariado, o que apenas sucedeu em 31/10/2020.
33. Entretanto, teve de socorrer-se de familiares e amigos para fazer face às suas necessidades de deslocação, relativamente aos quais fica a dever favores de empréstimos de viaturas e de o transportarem em muitas ocasiões.
34. O A. é funcionário da ……, SA, trabalhando no concelho de São Roque do Pico.
35. Assim, o A. faz deslocações diárias desde o concelho das Lajes do Pico até ao concelho de São Roque do Pico.
36. Não existem transportes públicos que lhe permitam efetuar as deslocações para o seu trabalho, já que o A. trabalha por turnos.
37. Ademais, o carece do seu veículo para o seu normal dia a dia, designadamente, para fazer as compras, fazer passeios ou visitar amigos e familiares.
38. O valor diário de aluguer de uma viatura com características idênticas às do A. é superior a 25,00€.
39. À data do embate o veículo SP possuía um valor venal de 7.500,00€.
40. O valor do salvado do veículo SP após o embate é de 2.110,00€.
41. O embate causou angústia, mau estar e desgosto no autor, já que era a viatura acidentada era muito estimada.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:
 Da invocada nulidade da Sentença
A apelante invoca a nulidade da sentença ao abrigo do art 615 nº1 al e) do CPC, considerando que a mesma  incorreu em violação do princípio do dispositivo e do princípio do pedido (artigo 3.º n.º 1 e 609.º do CPC), e, ainda, em excesso de pronuncia, porquanto o Autor apenas peticionou a privação do uso por 42 dias, e não uma indemnização por todos os dias em que estivesse privado da sua viatura até ao transito em julgado da presente ação, sendo que o Tribunal, ao condenar a Recorrente no montante de 9.490,00 €, por concluir que o Recorrido esteve privado do uso do seu veículo por 949 dias, condenou em número de dias superior ao peticionado, extravasando o quantitativo peticionado tal como configurado na douta p.i., isto é, na causa de pedir e no pedido.
Mais invoca a violação do princípio do contraditório, porquanto todos os dias além dos 42 peticionados pela privação de uso, não foram objeto da discussão nos presentes autos.
Dispõe o art. 615 nº 1 al e) do CPC que é nula a sentença quando o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
Esta norma está conexa com o disposto no art 609 nº1 do CPC, que prescreve que a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.
Está em causa o princípio do dispositivo que tem consagração legal expressa no art 3º nº1 do CPC, onde se prevê que o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
Do art. 581 nº 3 do CPC resulta que o pedido é o efeito jurídico que se pretende obter.
No caso dos autos, e na parte que aqui importa analisar, o autor requereu a condenação da ré no pagamento da quantia de €1.050,00 a título de prejuízo pela privação do uso do veículo do A. desde a data do acidente até 31/10/2020, data em que pode utilizar um veículo alternativo, ou caso assim se não entenda, e pela relevância do dano, em quantia a arbitrar pelo douto tribunal a esse título (cf. al c) do petitório).
Fê-lo, alegando que em consequência do mesmo embate, o A. ficou privado de utilizar o seu único veículo que utilizava nas suas deslocações para o trabalho desde a data do acidente em 19 de Setembro de 2020 até hoje; que para se poder deslocar para o trabalho o A. viu-se forçado a reparar um outro veículo de que é proprietário e que se encontrava avariado, o que apenas sucedeu em 31/10/2020; que entretanto, teve de socorrer-se de familiares e amigos para fazer face às suas necessidades de deslocação, relativamente aos quais fica a dever favores de empréstimos de viaturas e de o transportarem em muitas ocasiões; que, portanto, o A. esteve privado de veículo durante 42 dias; pelo exposto, entende o A. que lhe é devida uma indemnização pela privação do uso, que computa em €25,00 (vinte e cinco euros) por dia, valor aliás, inferior, ao valor diário de aluguer de uma viatura com idênticas características; pelo que o valor da indemnização durante o período de tempo em que esteve sem qualquer veículo totaliza €1.050,00 (mil e cinquenta euros) - cf. arts 49 a 52, 65 e 66 da p.i..
Ora, na sentença condenou-se a Ré no pagamento ao Autor “a quantia de 9.490,00€ (nove mil quatrocentos e noventa euros) a título de indemnização pela privação do uso do veículo do Autor, com a matrícula ..-SP-.., calculados desde 19-09-2020 até à presente data (01-06-2023), acrescida de juros de mora (…) – cf al. b) da parte decisória da sentença.
Considerou o Tribunal a quo para o efeito que:
“O Autor logrou fazer prova da utilização efetiva e diária do veículo para fins profissionais e pessoais.
Por outro lado, competia ao A. alegar e provar o dano concreto que sofreu. Nesta sede, além da privação do veículo, o Autor alegou e provou que teve necessidade de proceder à reparação de uma viatura avariada, à data insuscetível de circulação por esse motivo, para poder voltar a fazer-se transportar de automóvel no seu dia a dia.
É certo que o Autor não alugou uma viatura de aluguer, mas a despesa realizada com a viatura avariada foi concretizada precisamente para colmatar a privação do uso do veículo sinistrado.
A viatura avariada e a respetiva reparação foram necessárias em virtude do sinistro cuja responsabilidade é imputável à Ré (mediante contrato de seguro celebrado). Tal viatura não foi cedida pela Ré e as respetivas despesas não foram por ela suportadas. Neste sentido, entendemos não existir justificação para beneficiar a Ré, em sede de indemnização pelo dano da privação do uso do veículo, excluindo este período temporal em que o Autor continuou privado da viatura imobilizada na sequência do acidente.
Logrou-se demonstrar que o custo médio de aluguer de uma viatura semelhante à do Autor não é inferior a 25,00€.
O veículo do Autor está imobilizado desde 19-09-2020 o que perfaz na presente data um total de 949 dias. Realça-se que a circunstância de o Autor ter logrado reparar outra viatura ou adquirir outro veículo não afasta a circunstância de continuar, no presente, impedido de usar a viatura que havia adquirido inicialmente a qual se encontra imobilizada por ter sido interveniente em acidente de viação cuja responsabilidade pela ocorrência do mesmo é imputada à Ré.
O Autor peticionou a privação do uso de veículo por 42 dias acrescida do valor necessário à reparação do veículo avariado que se predispôs a concertar atenta a necessidade de aceder a um transporte. Ambos os pedidos encontram fundamento no sinistro ocorrido e na consequente privação do uso do veículo do Autor. Donde, na verdade a causa de pedir das quantias de 1.050,00€ acrescida da quantia de 1.000,00€, necessária para o Autor voltar a adquirir alguma autonomia na circulação, reside precisamente na privação do veículo sinistrado.
Urge então realizar o seguinte raciocínio: se o autor tivesse procedido ao aluguer de uma viatura deste o período da imobilização até ao presente, nesta data (01-06-2023), teria despendido uma quantia não inferior a 23,725,00€ (despesa que poderia apresentar à Ré, responsável civil pelos danos emergentes do acidente de viação em apreço).
Ora, o Autor peticiona a quantia de 1.050,00 €, calculada por referência a um custo de aluguer de uma viatura semelhante por 42 dias à razão diária de 25,00€, acrescida da quantia de 1.000,00€ referente ao custo que suportou com a reparação de uma outra viatura avariada e por isso igualmente impedida de circular.
Recorrendo ao princípio da equidade e por referência às decisões jurisprudenciais acima referidas, importa considerar o valor económico das utilidades e comodidades que um veículo com aquele conferia ao A., atenta a utilização e a finalidade que aquele lhe destinaria não fosse o acidente e a consequente imobilização da viatura. Neste sentido, considerando que o Autor utilizava a viatura diariamente, para fins profissionais e pessoais, logrou obter o apoio de amigos e familiares e um veículo alternativo, diminuindo o impacto negativo da lesão efetiva, reputa-se equitativa a quantia de 10,00€/dia por cada dia de privação do uso da viatura sinistrada, o que perfaz, na presente data (01-06-2023), a quantia total de 9.490,00€ (artigo 566.º, n.º 3 do CC).
Atento o princípio do pedido, a indemnização desta concreta parcela peticionada encontra-se limitada não à quantia peticionada a este título, mas sim à quantia global resultante do somatório dos vários pedidos deduzidos, no caso: 15.854,46€ (11.804,46€+1.000,00€+1,050,00€+2.000,00€), nos termos do artigo 609.º, n.º 1 do CPC. Assim, não obstante o montante peticionado a este título no valor de 2.050,00€, o Tribunal poderá arbitrar quantia superior contando que o valor global da indemnização arbitrada não exceda o total dos pedidos deduzidos pelo Autor (neste sentido, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-03-2010, p. 1052/05.2TTMTS.S1, Relator VASQUES DINIS; Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17-11-2016, p. 472/13.3TBFAR.E1, Relator FLORBELA MOREIRA LANÇA).
Assim, considerando a já arbitrada indemnização no valor de 5.390,00€ (7.500,00€-2.110,00€) e a improcedência do pedido de condenação em danos não patrimoniais, fixa-se a indemnização pela privação do uso do veículo do Autor no valor de 9.490,00€.”
Mas será que a condenação no pagamento de indemnização por privação do uso durante 949 dias, ainda que o respetivo quantitativo somado ao das demais indemnizações fixadas não ultrapasse o valor global indemnizatório pedido pelo autor, não viola o pedido de indemnização por privação do uso desde a data do acidente até 31/10/2020 (data em que pode utilizar um veículo alternativo), ou seja, durante 42 dias?
É nosso entendimento que tal condenação viola o pedido formulado.
Isto porque o autor confinou o dano da privação do uso de veículo a 42 dias, ou seja, a parte que invocou o dano limitou-o a tal período. E o período temporal da privação do uso do veículo é um elemento intrínseco e constitutivo do próprio dano. Tanto assim que quanto maior for o período de privação de uso, maior será o dano.
Não se trata de uma questão do quantum indemnizatório fixado para ressarcimento do dano ser superior ao especifico quantum indemnizatório pedido para esse dano, pois, nesse  caso, é pacifico que em ações de responsabilidade civil perante pedidos parcelares de indemnização se considere que o limite de cada parcela se reporta ao valor global peticionado – vide neste sentido António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, e Luís Filipe sousa, Código Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 3ª edição, pag. 784, na anot. 5 ao art. 609º do CPC. 
A questão é diferente, nada tendo a ver com o quantum indemnizatório, mas antes com a conformação do dano que o autor quer ver ressarcido: o autor pede o ressarcimento de um determinado dano (privação do uso durante 42 dias) e o Tribunal condenou a Ré a ressarcir dano com contornos diversos (privação do uso durante 949 dias).
Tanto assim que se o Tribunal a quo tivesse fixado o mesmo valor indemnizatório (€9490,00) mas para ressarcir o dano de privação do uso por 42 dias (e não para ressarcir o dano de privação do uso por 949 dias) não se colocaria a questão de violação dos limites do pedido.
O tribunal condenou na reparação de um dano diverso daquele cujo ressarcimento foi em concreto peticionado pelo autor, considerando um dano muito mais amplo do que o invocado, e nessa medida, violou os limites do pedido.
É irrelevante que também tenha sido alegado na p.i, e provado, que desde a data do acidente até ao presente o autor tenha ficado privado do veículo sinistrado (art 49), pois logo dos arts. seguintes da p.i. (arts 50 a 52) resulta claramente delimitado que a pretensão do autor é a reparação da privação do uso durante o período em que não teve qualquer veículo, ou seja, até 31.10.2020, quando foi reparado outro veículo que possuía. E é esse dano que integra a causa de pedir e que depois é refletido, de forma evidente, na própria formulação do pedido.
É também irrelevante saber se o autor tem ou não direito a ser ressarcido durante os 949 dias em que não dispôs do veículo sinistrado, pois não pretendeu exerceu o direito nesses termos, optando por confinar o dano ao período de 42 dias.
Do exposto decorre que a sentença proferida pelo tribunal de 1ª instância enferma, na parte em que condenou a Ré a pagar ao autor a quantia de 9.490,00€ (nove mil quatrocentos e noventa euros) a título de indemnização pela privação do uso do veículo do Autor, com a matrícula ..-SP-.., calculados desde 19-09-2020 até à 01-06-2023 (e respetivos juros de mora), de nulidade por violação do principio do dispositivo, ficando, pois, prejudicada a apreciação dos demais fundamentos de nulidade da mesma parte da sentença que foram invocados em sede de recurso.
Ainda que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer o objeto da apelação – art. 665º nº1 do CPC.
É a regra da substituição ao Tribunal recorrido.
Tal substituição será apreciada após análise da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, uma vez que tal impugnação se reporta a factos com relevância para a apreciação a efetuar.
Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto
    Dispõe o artigo 640.º do CPC, com a epigrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, o seguinte:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”
No caso dos autos a recorrente pretende que a factualidade vertida no ponto 37 da matéria dada como provada passe a ser dada como não provada.
O ponto 37 tem a seguinte redação: ” Ademais, o carece do seu veículo para o seu normal dia a dia, designadamente, para fazer as compras, fazer passeios ou visitar amigos e familiares.
Considera a recorrente que o Autor (aqui Recorrido) nas declarações de parte que prestou, em momento algum, referiu que carecia do seu veículo para fazer compras, passeios ou para visitar amigos e familiares, como resulta da simples audição da gravação da audiência de julgamento, nomeadamente do depoimento do Autor com as referências 20230517093636_12227616_2870255 e 20230517105704_12227616_2870255, nenhuma prova havendo do facto, nem por qualquer outro meio de prova.
Na sentença fundamenta-se a prova de tal facto - em conjunto com os factos 27, 30, 31, 34, 35, e 36 - nas declarações do Autor e no depoimento da testemunha José Pereira.
Ora, ouvidas as declarações prestadas pelo autor, constata-se que, a instâncias do Tribunal, o autor confirmou inequivocamente que a viatura sinistrada era a sua viatura pessoal, que utilizava para se deslocar para o trabalho, esclarecendo até que, por virtude da respetiva imobilização, teve que mandar vir peças para reparar uma outra viatura que tinha e que estava imobilizada, socorrendo-se entretanto de um outro veículo emprestado por um amigo (declarações que condizem  também com os factos dados como provados nos pontos 31 a 33).
Sendo a viatura sinistrada a sua viatura pessoal e que utilizava para ir para o trabalho, conforme referiu o autor, daí se infere ser a viatura que o autor utiliza no dia a dia, para todas as necessidades, designadamente as exemplificadas no ponto 37 (cf. Arts. 349 a 351º do CC).
Improcede, pois, a pretensão do recorrente, mantendo-se como provada a factualidade vertida no ponto 37.
Pretende ainda a recorrente que se dê como não provada a factualidade vertida no ponto 31 ou, se assim não for entendido, que se altere  a respetiva redação para a seguinte: “Em consequência do embate, o A. ficou privado de utilizar uma das suas viaturas nas suas deslocações para o trabalho desde a data do acidente em 19 de setembro de 2020 até ao presente”.
Isto porque considera  que o ponto 31, no qual se dá como provado que o R. esteve privado do uso do veículo desde 19 de setembro de 2020 até 1 de junho de 2023  está em contradição com os factos  26 e 32, de onde consta que o Recorrido tinha um veículo para além do sinistrado que reparou em 31 de outubro de 2020, precisamente por precisar de um veículo para se deslocar ao trabalho; assim,  não se pode considerar que o Recorrido tenha ficado privado do seu “único” veículo desde a data do acidente até 1 de junho de 2023, pois, logo no dia 31 de outubro de 2020, o Recorrido passou a utilizar o seu outro veículo, como se provou, pelo que de facto, o Recorrido só esteve privado do uso de uma das suas viaturas.
O facto 31 tem a seguinte redação: Em consequência do embate, o A. ficou privado de utilizar o seu único veículo que utilizava nas suas deslocações para o trabalho desde a data do acidente em 19 de setembro de 2020 até ao presente.
O facto 26 tem a seguinte redação: Em virtude de ter grande necessidade do veículo acidentado já que era o único que tinha condições de circular e que utilizava para fazer face às suas necessidades de deslocação para o trabalho, na falta de assunção da responsabilidade por parte da R., o A. procedeu à reparação de um veículo antigo que possuía e que estava avariado na altura e com a qual despendeu a quantia de €1.000,00 (mil euros).
O facto 32 tem a seguinte redação: Para se poder deslocar para o trabalho o A. viu-se forçado a reparar um outro veículo de que é proprietário e que se encontrava avariado, o que apenas sucedeu em 31/10/2020.
Não existe efetiva contradição, pois cotejando todos os factos em causa, verifica-se que o que resulta do facto 31 é que na sequência do acidente o autor ficou privado de utilizar o (seu) único veículo que então utilizava nas deslocações para o trabalho. Os factos 26 e 32 até confirmam que o veículo em causa era o único que o autor utilizava para as deslocações do trabalho, por ser o único que tinha condições de circular, pois o outro veículo de que era proprietário estava avariado.
Ou seja, o ponto 31 refere- se ao veículo sinistrado, que era o único que o autor utilizava nas suas deslocações para o trabalho, e do qual (veiculo sinistrado) ficou privado; o que não colide com o facto de a partir de determinado momento, o autor, exatamente para  assegurar as suas deslocações para o trabalho, ter mandado reparar outro veiculo que possuía, continuando contudo privado do veiculo sinistrado.
Razão pela qual improcede a pretensão da recorrente, mantendo-se como provada a factualidade vertida no facto 31 nos seus precisos termos.
Do erro de direito:
A recorrente alega que a Sentença não aplicou corretamente o Direito aos factos que deu como provados, pois, o Recorrido só esteve privado do uso da sua viatura por 42 dias, como decorre da própria p.i., isto é, do pedido e da causa de pedir, inexistindo qualquer razão para se fixar um valor de 10,00 € por um total de 949 dias, sem que se tenha provado qualquer dano derivado da paralisação do veículo do Recorrido, para além dos 42 dias que peticiona; acresce que fixou um valor de 10,00 €diários, por 949 dias, num total de 9.490,00 €, de privação de um veículo com um valor de 7.500,00 €.
Ora, por virtude da procedência da nulidade da sentença na parte em que condena a Ré a pagar ao autor a quantia de 9.490,00€ (nove mil quatrocentos e noventa euros) a título de indemnização pela privação do uso do veículo do Autor, com a matrícula ..-SP-.., desde 19-09-2020 até à data  de 01-06-2023, acrescida de juros de mora (cf al b) da parte decisória da sentença), encontra-se prejudicada a apreciação do erro de direito invocado pela recorrente, o qual se prendia exatamente com a parte da sentença que foi considerada nula.
Substituição ao tribunal recorrido:
A declaração de nulidade da sentença implica a correção do vicio a efetuar por este Tribunal de recurso em substituição do tribunal recorrido - art 665º do CPC.
Importa, pois, apreciar, face à matéria de facto dada como provada pelo Tribunal recorrido e que ora se manteve, o pedido formulado relativamente ao dano de privação de uso, ou seja o pedido de condenação da Ré no pagamento ao autor “da quantia de €1.050,00 a título de prejuízo pela privação do uso do veículo do A. desde a data do acidente até 31/10/2020, data em que pode utilizar um veículo alternativo, ou caso assim se não entenda, e pela relevância do dano, em quantia a arbitrar pelo douto tribunal a esse título” – cf al. c) do petitório.
“O dano de privação de uso de bem constitui dano autónomo indemnizável, bastando-se com a prova genérica que o lesado utilizava a viatura para os fins de lazer/trabalho e, consequentemente, por via daquela privação deixou de poder fazê-lo; não podendo ser averiguado o valor exato do dano, e dentro dos limites do que for provado, será ele determinado pela equidade (art. 566º, n.º 3, do CC).”– cf Ac do STJ de 27-11-2018 proferido no Proc. 78/13.7PVPRT.P2.S1.
O Autor logrou provar que utilizava a viatura sinistrada para as deslocações para o trabalho, carecendo de veículo para o seu normal dia a dia, designadamente, para fazer as compras, fazer passeios ou visitar amigos e familiares.
Mais provou que ficou privado de a usar desde a data do acidente em 19 de setembro de 2020 até ao presente.
E que para se poder deslocar para o trabalho, viu-se forçado a reparar um outro veículo de que é proprietário e que se encontrava avariado, o que apenas sucedeu em 31/10/2020; entretanto, teve de socorrer-se de familiares e amigos para fazer face às suas necessidades de deslocação, relativamente aos quais fica a dever favores de empréstimos de viaturas e de o transportarem em muitas ocasiões.
Esteve, portanto, o Autor sem veículo entre a data do acidente e 31.10.2020, num total de 42 dias.
Tem, portanto, direito a indemnização pelo dano de privação do uso de veículo correspondente ao período de 42 dias em causa.
Impondo-se recorrer à equidade para fixar a indemnização, por não se poder apurar o valor exato do dano.
Para o efeito, cumpre relembrar que, conforme provado no ponto 38, o valor diário de aluguer de uma viatura com características idênticas às do A. é superior a 25,00€.
Razão pela qual entendemos que o valor diário de indemnização pela privação do uso não pode ser inferior àquele que seria devido caso o autor tivesse alugado uma viatura para substituir a viatura sinistrada.
Parece-nos, assim, perfeitamente justificado o valor diário -€25,00 - que o autor atribuiu a tal dano, o qual, multiplicado por 42 dias, implica uma indemnização no valor de €1.050,00, tal como vem requerido pelo autor na al. c) do petitório constante da p.i..
Fixa-se, pois, pelo dano de privação do uso invocado pelo autor e demonstrado nos autos, a indemnização de €1.050,00, a cargo da Ré.
À qual acrescem juros de mora, contabilizados à taxa dos juros civis, emergente da Portaria n.º 291/03, de 8 de abril, atualmente de 4% (e outras taxas que, entretanto, forem aplicáveis), desde a data de citação até efetivo e integral cumprimento.
As custas da instância de recurso serão suportadas por recorrente e recorrido, na proporção do decaimento– art. 527º do CPC.
*
V. DECISÃO:
Pelo exposto acordam os Juízes desta 8ª seção do Tribunal da Relação de Lisboa em:
– Declarar nulo o segmento condenatório correspondente à al b) da parte decisória da sentença recorrida;
- E, em substituição do mesmo segmento, condenar a Ré/ recorrente a pagar ao autor/recorrido a quantia de €1050, 00 (mil e cinquenta euros) a título de indemnização pela privação do uso do veículo do Autor, com a matrícula ..-SP-.. correspondente ao período de 19-09-2020 a 31-10-2020, acrescida de juros de mora, contabilizados à taxa dos juros civis, emergente da Portaria n.º 291/03, de 8 de abril, atualmente de 4% (e outras taxas que, entretanto, forem aplicáveis), desde a data da citação até efetivo e integral cumprimento.
Custas por recorrente e recorrido, na proporção do decaimento– art. 527 do CPC.
Notifique.
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Carla Cristina Figueira Matos
Amélia Puna Loupo
Cristina Lourenço