MAIOR ACOMPANHADO
MEDIDA DE ACOMPANHAMENTO
PRINCÍPIO DA NECESSIDADE
PRINCÍPIO DA SUBSIDARIEDADE
Sumário


I - Um dos princípios orientadores do novo regime do acompanhamento é o principio de intervenção mínima, traduzido no princípio da necessidade: o âmbito de proteção a decretar deve ser limitado ao estritamente necessário para assegurar a proteção dos interesses do beneficiário, não atingindo situações em que este tem capacidade de atuação autónoma, com destaque para a específica salvaguarda do exercício de direitos pessoais e dos negócios da vida corrente.
II - O novo regime jurídico visou precisamente afastar o carácter necessário da ablação dos direitos pessoais em consequência do reconhecimento de uma capacidade diminuída.
III - A possibilidade de restringir a capacidade, através da excecional limitação do exercício de direitos pessoais, depende sempre da demonstração de uma concreta e fundamentada necessidade. Exige-se, sempre, uma ponderação autónoma relativamente a cada um dos direitos pessoais em causa.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

AA, casado, maior, residente na Rua ..., Freguesia ..., ..., veio requerer a aplicação de medida de acompanhamento a BB, viúva, NIF. ...10, portadora do Bilhete de Identidade n.º ...21, vitalício, emitido em ../../2002 pelos SIC de ..., filha de CC e pai incógnito, nascida a ../../1935, natural da Freguesia ..., Concelho ..., residente no Lugar ..., ..., Freguesia ..., ....
Com o acompanhamento cumulou o pedido de suprimento da autorização da beneficiária.

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A beneficiária foi citada tendo apresentado contestação na qual refere que se encontra no pleno uso das capacidades mentais e não necessitar de qualquer medida de acompanhamento. Contudo, admite que, por vezes, se esquece de algumas coisas, o que é normal atendendo aos seus 87 anos de idade e que necessita de apoio para as tarefas do seu dia a dia.
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O Ministério Público foi citado.
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Procedeu-se à audição da beneficiária conforme consta do respetivo auto, sendo que após esta audição a sua filha CC, com quem a beneficiária vive, prestou alguns esclarecimentos.
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Foi realizada perícia médico legal.
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O Ministério Público promoveu que fosse decretado o regime da representação especial, como medida de acompanhamento; que fosse indicado como Acompanhante CC, filha, porquanto é esta que lhe presta cuidados diários; requereu, ainda, que fossem aplicadas as seguintes medidas de acompanhamento:
 Requerer a abertura de conta bancária em nome da requerida e movimentar as mesmas;
 Administrar a pensão de reforma e outros complementos que a requerida receba ou venha a receber;
 Poderes de representação perante instituições públicas.
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A final, foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:
«Em face de tudo o exposto, decide-se:
i. Julgar procedente, por provado, o incidente de suprimento do consentimento da requerida, nos termos e para os efeitos do art. 141.º, n.º 2 e 3 do CC, e, consequentemente, autorizar o requerente a instaurar a presente acção de Acompanhamento de Maior;
ii. Decretar o acompanhamento de BB por motivo de saúde.
iii. Aplicar à beneficiária BB as medidas de acompanhamento de representação especial atribuindo-se ao acompanhante os seguintes poderes de representação da beneficiária:
(i) poderes de representação para receber e gerir a pensão/ subsídio que recebe mensalmente,
(ii) poderes de representação para abrir e gerir contas bancárias de que seja titular e/ ou possa vir ser titular,
(iii) poderes para encaminhá-la, caso se mostre necessário, para instituição adequada
(iv) poderes de representação junto de entidades públicas, nomeadamente Autoridade Tributária, Segurança Social, Junta de Freguesia, Câmara Municipal, Conservatória, Correios (levantando cartas e vale correio), Lares, Unidades de Cuidados Continuados, Santa Casa da Misericórdia, Hospitais e outras unidades de saúde;
iv. Nomear CC, residente na rua ..., ..., ..., Filha da beneficiária, para o exercício das funções de acompanhante – art.143.º, n.º 2 al. e) do CC;
v. Declarar que a necessidade de acompanhamento se tornou conveniente desde ../../2021 - art. 900.º, n.º 1 do CPC;
vi. Declarar que não existe notícia de testamento vital ou procuração para cuidados de saúde a favor do(a) beneficiário(a) – art. 900.º, n.º 3 do CPC;
vii. Dispensa-se a constituição de conselho de família -artigo 145.º, n.º 2 do CC;
viii. Fixar o prazo de cinco anos para efeitos de revisão da(s) medida(s) de acompanhamento ora aplicada(s), nos termos do disposto no art. 155.º do CC;
Sem custas, por isenção objectiva – art. 4.º, n.º 1 l) do Regulamento das Custas Processuais.
Valor da Causa: €30.000,01 (trinta mil euros e um cêntimo).
Registe e notifique.»
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Inconformado com esta decisão, dela recorreu o Requerente DD, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

1 – Dos autos não subsiste qualquer materialidade fáctica que sustente a não determinação  da aplicação da medida de representação geral à beneficiária/maior acompanhada, ficando-lhe vedado o exercício e direitos pessoais (mormente os estabelecidos o artigo 147 n.º 2 do código civil) e o de celebrar negócios mesmo os da vida corrente art.º 147º n.º 1 e 2 do código Civil.
2 - Na opinião do Apelante existiu uma errada apreciação da prova produzida, que, em sua opinião, deveria haver conduzido ao decretamento das medidas de representação geral da beneficiária/Maior acompanhada identificadas em 1.
3 – Pretende ainda o apelante, impugnar o ponto 21 última parte da Fundamentação de Facto da sentença ora recorrida.
4 – Erroneamente, o Tribunal a quo deu como não provado que a beneficiária/maior acompanhada possua bens em seu nome cfr. ora se transcreve: “ Não há notícia que a beneficiaria e/ou tenha bens em seu nome”.
5 - Tal facto mostra-se em total contradição com o ponto 19 da sentença ora recorrida.
6 – Resulta do ponto 19 (Fundamentação de facto) da sentença recorrida que o Tribunal a quo dá como provado (com base no IRS da beneficiária, para além da audição da Beneficiaria e da Filha EE), que a beneficiária/maior acompanhada aufere duas pensões de reforma, uma da Caixa Geral de Aposentações no valor anual de 2.312,52 € e outra pensão da ... no valor anual de 4091,64 €.
7 - Acresce que, aquando a Audição da beneficiária e da filha EE a 4- 01-2024 e que aqui se dão por integralmente reproduzidas as declarações, ambas referiram ao tribunal a quo, que a beneficiária/maior acompanhada tem uma casa na qual vivia até ter vindo residir com a filha EE para o ... em ../../2021. Vide-se Auto de audição de 4/1/2024 com a referência Citius 39072914 e gravação com a referência citius 39073865 que se dão por reproduzidas para os devidos e legais efeitos.
8 - Aliás esse facto, consta inclusive do relatório pericial junto aos autos a 2/2/2024 ref.ª Citius 3535826 no Item Estado Actual “(…)para a minha casa….”
9 - Bens são definidos como coisas ou objetos que possuem utilidade e servem para atender uma necessidade humana, eles podem ser trocados ou vendidos numa relação jurídica por causa de seu valor econômico ou pelo interesse que desperta.
10 – Nessa medida, as pensões de reforma da beneficiária constituem bens fungíveis.
11 – Por sua vez, no referente à casa da beneficiária estamos um bem imóvel daquela.
12 – Consequentemente, ficou demonstrado quer da prova documental junta aos autos IRS da beneficiária e relatório pericial, que a beneficiária tem bens em seu nome e como tal mal andou o tribunal a quo ao não dar como provado que a beneficiária tem bens em seu nome.
13 – Impõem-se pois, que esta matéria (ponto 21 última parte) seja dada como provada.
14- Insurge-se ainda o Apelante quanto à incorreta aplicação das medidas de acompanhamento decretadas pelo Tribunal a quo.
15- No âmbito dos direitos fundamentais da pessoa humana, que a todos é reconhecido o direito à capacidade civil (artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa).
16 - Direito este indissociável da personalidade e da dignidade da pessoa humana.
17 – Pelo que, toda e qualquer pessoa goza, desde o seu nascimento completo e com vida, de personalidade jurídica (artigo 66.º, n.º 1 do Código Civil).
18 - À personalidade jurídica é inerente a capacidade jurídica ou capacidade de gozo de direitos, que corresponde, no normal das situações, uma capacidade de exercício de direitos (artigo 67.º do C.C.)
19 - Assente sobre a capacidade jurídica está, assim, a capacidade para o exercício de direitos ou a capacidade de exercício de direitos (artigos 123.º, 130.º e 133.º, todos do C.C.).
20 - Extraindo-se das normas vindas de citar que tal capacidade compreende o poder   de praticar autonomamente, pessoalmente ou através de representantes voluntários, os atos jurídicos relativos aos seus interesses pessoais e patrimoniais.
21 - Nas palavras de MOTA PINTO, a capacidade de exercício de direitos tem vindo a assumir-se, como “a idoneidade para atuar juridicamente, exercendo direito ou cumprindo deveres, adquirindo direito ou assumindo obrigações, por ato próprio e exclusivo ou mediante um representante voluntário ou procurador, isto é, um representante escolhido pelo próprio representado.
22 - A pessoa, dotada da capacidade de exercício de direitos, age pessoalmente.
23 – Tal significa que não carece de ser substituída, na prática dos atos que movimentam a sua esfera jurídica, por um representante legal (designado na lei ou em conformidade com ela) e age autonomamente, isto é, não carece de consentimento, anterior ou posterior ao ato de outra (assistente)”.
24 - A plena capacidade de exercício de direitos só se adquire com o completar dos 18 anos de idade ou com a emancipação pelo casamento (artigos 130.º, 132.º e 133.º, todos do Código Civil); quem não tiver ainda completado dezoito anos é menor (artigo 122º do CC), partindo o legislador duma presunção que antes dos 18 anos a pessoa não está em condições de reger a sua pessoa e os seus bens.
25 - Sucede que, nem sempre opera a aludida presunção, a qual pode não ser corroborada, no plano dos factos, por uma plena capacidade da pessoa para reger a si própria e os seus bens.
26 - Com efeito, esta capacidade, que presume o entendimento e o livre exercício da vontade, pode faltar por causas acidentais ou por causas de carácter permanente ou tendencialmente permanente; não se admitindo situações genéricas de incapacidade a partir do momento que o sujeito atinja a maioridade.
27 - E em prol da dignidade da pessoa humana, há que tomar medidas para proteger a pessoa e os seus bens, direitos e deveres.
28 - Estipula o artigo 138º do Código civil, sob a epígrafe “Acompanhamento” que, “O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código”.
29 – De salientar que, as medidas de acompanhamento regem-se por uma ideia de subsidiariedade, ou seja, “A medida não tem lugar sempre que o seu objectivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam” (cfr. artigo 140.º, n.º 2 do Código Civil).
30 – Com a entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14/08, que instituiu o regime dos maiores acompanhados, veio a alterar-se o paradigma no que concerne ao regime das incapacidades, sendo que atualmente se poderá afirmar a existência de uma “presunção de capacidade”, devendo o acompanhamento limitar-se ao estritamente necessário - artigos 140.º, n.º 1, e 145.º, n.º 1, ambos do Código Civil.
31- As medidas previstas no art.º 145.º, n.º 2, do Código Civil destinam-se unicamente a suprir as dificuldades de exercício da personalidade jurídica do maior, devendo sobretudo propor-se a promover o seu bem-estar e a sua recuperação (quando possível).
32 - Por isso, devem limitar-se ao estritamente necessário, proporcional e adequado, sendo decretadas apenas se não for possível acautelar a situação do requerido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que se apliquem (artigos 140.º e 145.º, n.º 1, do Código Civil).
33 – O que se pretende é fixar judicialmente os atos nos quais a pessoa maior de idade deve ser acompanhada, por não estar em condições de exercer devidamente, ainda que temporariamente, por si só, alguns dos seus direitos ou deveres.
34 - Isto mesmo resulta claramente do disposto no art.º 147.º do Código Civil, que estabelece que os direitos pessoais e a celebração de negócios da vida corrente são livres para o beneficiário, com exceção de disposição legal ou decisão judicial em contrário.
35 - Também por isso, as medidas são sempre supletivas e só deverão ser determinadas quando, pelos deveres gerais de cooperação e assistência que no caso caibam (como os que decorrem das relações familiares, sobretudo), não se mostre possível acautelar os interesses essenciais do maior em situação vulnerável e limitado na sua determinação (cfr. art.º 140.º, n.º 2, do Código Civil).
36 - Tendo em mente os princípios descritos e as finalidades a alcançar com o processo de acompanhamento de maior, analisemos então a situação da requerida.
37 - Resulta da factualidade provada que BB:
“3. A beneficiária sofre de síndrome demencial (Alzheimer), em grau moderado, pelo menos desde ../../2021.
4. A beneficiária encontra-se desorientada no tempo.
5. Sabe dizer que reside com a filha mas não o local.
6. Tem capacidade de cálculo apenas para operações muito simples.
7. Identifica o dinheiro como tal, não identificando o seu valor facial e não tem noção do seu valor ou sabe operar com ele.
8. Apresenta alterações muita acentuadas sobretudo na memória recente.
9. Apresenta um discurso confabulador é utilizado para preencher as lacunas amnésicas.
10. Tem um nível de conhecimentos muito limitado, mostrando pouca atenção pelo que se passa fora da sua esfera visual.
11. A nível das funções executivas notam-se maiores dificuldades, nomeadamente na identificação de erros e sua correcção, pensamento abstracto, raciocínio.
12. A sua capacidade de planeamento, organização e decisão encontra-se fragilizada por mecanismos de simplismo e desvalorização.
13. Não tem noção real das suas dificuldades e da necessidade de ajuda.
14. Não se veste sozinha e realiza a sua higiene pessoal com o auxílio de terceiros.
15. A medicação é-lhe administrada por terceiros.
16. Não consegue confecionar as suas refeições, contudo, ajuda na cozinha.
17. Não sabe ler, nem escrever.
18. Não sai de casa sozinha.”
38 - Assente ficou que a requerida não exerce qualquer profissão e não se mostra capaz de prover à sua subsistência, e que é incapaz de zelar e cuidar da sua pessoa e bens.
39 - Mais resultou comprovado que a requerida não possuiu capacidades que lhe permitam ter o discernimento e as competências funcionais obrigatórias para se autodeterminar e exercer uma vida totalmente autónoma.
40 - Inviabilizando, desta forma a possibilidade de exercer, plena pessoal e conscientemente a maioria dos seus direitos pessoais ou de, nos mesmos termos cumprir os seus deveres.
41 -  Sendo que os meros deveres gerais de assistência e cooperação familiares não se afiguram suficientes à proteção do beneficiário, necessitando de ser acompanhada por terceiro/acompanhante.
42 – Atente-se que a beneficiária, padece de Alzheimer, pelo menos desde ../../2021 e tal patologia é crónica e definitiva e impossibilitam-na de governar sua pessoa e bens  - vide 5º parágrafo da pág. 5 da sentença do tribunal a quo.
43 - Prosseguindo o tribunal a quo: “Desde logo integra a previsão do artigo 138º já que a mesma se encontra totalmente impossibilitada, por razões de deficiência, de exercer plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos de cumprir os seus deveres.”.
44 – O Alzheimer é uma doença sem cura e que tende a evoluir muito rapidamente, não sendo uma doença passível de estabilidade.
45 – Pelo que, muito mal andou o tribunal a quo ao não determinar o seu acompanhamento com a aplicação das medidas de representação geral (Art.º 145 n.º 2 alínea b) e n.º 4 do código civil, com a limitação dos direitos pessoais e negócios da vida corrente (art.º 147 do C. Civil).
46 – Encontrando-se a Beneficiária com a doença de Alzheimer em grau moderado, mostrando-se a sua memoria bastante afectada, assim como, a sua capacidade de raciocínio e compreensão;
47 - Revelando não ter noção do valor do dinheiro, não sabendo ler nem escrever, como pode o Tribunal a quo entender não decretar a representação geral da beneficiária?
47 – Face ao quadro clinico da Beneficiária como pode considerar-se que aquela reúne condições para celebrar negócios e ou testamentos?
48 – Como se poderá ter por compreensível e aceitável que se a beneficiária não sai de casa sozinha (não por motivos de locomoção mas sim mentais), não consegue fazer refeições, não consegue ir a um supermercado fazer compras básicas, reúna capacidades para celebrar negócios compra e vendas, e testar?
49 - O Apelante não compreende e não pode aceitar, como pode o tribunal a quo entender que com as simples medidas de representação especial decretadas e constantes da sentença do tribunal a quo se encontrem salvaguardados os direitos e acautelado o bem-estar da beneficiária.
50 – Entende e defende o requerente que as limitações da beneficiária estendem-se pois, com a mesma veemência, por todo o seu intelecto nas dimensões da cognição, compreensão e raciocínio – conforme resulta do relatório pericial junto aos autos.
51 – Pelo que, ponderando a factualidade dada como provada, terá de concluir- se que a Requerida BB, se encontra impossibilitada, por razões de doença, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos e de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, o que justifica o decretamento de medidas de acompanhamento à Beneficiária BB.
52 - Afigurando-se uma situação de verdadeira e absoluta incapacidade de exercício, susceptível apenas de ser suprida através do instituto de representação geral (Art.º 145 n.º 2 alínea b) e n.º 4 do código civil, com a limitação no direito de celebrar negócios jurídicos da vida corrente e no exercício dos direitos pessoais de casar, constituir união de facto, procriar, perfilhar ou adotar, cuidar e educar filhos, escolher profissão, se deslocar no país o no estrangeiro, fixar domicílio e residência, de estabelecer relações com quem entender e de testar (Art.º 147º C. Civil).
53 - Devendo a acompanhante nomeada CC,representar a beneficiária/maior acompanhada BB, como se fosse sua tutora, exercendo as responsabilidades inerentes ao seu sustento e administração dos seus bens, gerindo o seu património no interesse daquela, praticando todos os actos para isso devidos, com excepção dos actos que dependem de autorização do tribunal, e que são os constantes do artigo 1938º do código civil, e assim substituí-la na realização dos procedimentos necessários à abertura de conta bancária em nome da requerida e movimentar a mesma unicamente para suprir as necessidades daquela; administrar a pensão reforma e outros complementos que a requerida venha a receber por forma a poder custear as despesas diárias da requerida e exclusivamente para este fim; e a possa substituir na elaboração e entrega de requerimentos em seu nome junto da segurança social, desde logo para a concessão de prestação mensal para apoio permanente de terceira pessoa, bem como, junto do Serviço Local de Finanças.
54 – A prova produzida e a sua correcta valoração impunha decisão diferente.
55 - O tribunal a quo violou assim, entre outras, as disposições constantes dos artigos 138º, 140º, 145º e 147º todos do código civil.

Pugna o Recorrente pela revogação da sentença que deve ser substituída por outra que decrete a medida de representação geral.
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O Ministério Público apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

1. O requerente interpõe recurso alegando que o facto dado como provado em 21. está em contradição com o facto dado como provado em 19. e, bem assim, com as declarações da Beneficiária e da Acompanhante que referiram, aquando da Audição de Beneficiária, que a Beneficiária residia na sua casa antes de ir viver para junto da filha.
2. A nosso ver não assiste razão ao Recorrente porquanto, pois que, os bens a que se faz referencia no ponto 21. são os bens sujeitos a registo, pelo que não está em contradição com o facto dado como provado em 19.
3. Por outro lado, não foi junta prova documental de que a beneficiária possuía bens sujeitos a registo, à data da decisão, sendo certo que, tal circunstancia será esclarecida quando a Acompanhante relacionar os bens da beneficiária, por apenso aos presentes autos, como impõe o artigo 902.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Pelo que, a nosso ver, inexiste errada apreciação da prova, devendo o recurso improceder nesse tocante.
4. No nosso Código Civil, o ponto de partida para a compreensão do novo regime é o art. 138º do Código Civil, segundo o qual o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código.
5. Com efeito, uma das pedras angulares desta reforma é uma ideia de intervenção mínima, traduzida no esforço do princípio da necessidade, devendo o âmbito de proteção a decretar ser limitado ao estritamente necessário para assegurar a proteção dos interesses do beneficiário, não atingindo situações em que este tem capacidade de atuação autónoma, com destaque para a específica salvaguarda, nos termos do art. 147º do Código Civil, do exercício de direitos pessoais e dos negócios da vida corrente.
6. O acompanhamento deve ser decidido tendo em vista assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, nos termos do art. 140.º, n.º 1, devendo, pois, esse pano de fundo orientar a escolha das medidas adequadas. Repare-se que a medida não deve ter lugar quando o seu objectivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência, conforme o n.º 2 do mesmo preceito.
7. Da factualidade elencada resulta que a requerida padece de Alzheimer, em grau moderado, e que lhe demanda a ajuda de terceiros. No entanto, a requerida possui ainda alguma autodeterminação que deve ser salvaguardada.
8. E o regime aplicado permite, por um lado, a protecção que a requerida necessita, não lhe sendo totalmente vedada a sua individualidade que deve ser preservada.
9. Por outro lado, as medidas de acompanhamento determinadas em sede de sentença permitem à sua Acompanhante supriras todas as necessidades da requerida sem que se mostre, por ora, necessário uma maior limitação.
10. Tendo em conta o principio da intervenção mínima, bem como os princípios fundamentais da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, à luz da qual deve o diploma ser interpretado, somos de parecer que a decisão não merece qualquer reparo quanto ao regime aplicado.
11. Conclui-se, em conformidade, pelo acerto absoluto da douta decisão censurada e, concomitantemente, pela não violação de qualquer dispositivo legal, designadamente, os artigos art. 138º, 140º, 145º e 147º todos do Código Civil.
 pugnando pela improcedência do recurso.
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Cumpre apreciar e decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do CPC).
A questão a decidir, única colocada no recurso, é a de saber se deve ser decretada como medida de acompanhamento a representação geral, com restrição do exercício de todos os direitos pessoais e negócios da vida corrente, ao invés da representação especial decretada.
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III - FUNDAMENTAÇÃO

3.1. OS FACTOS

Factos considerados provados em Primeira Instância:

1. A Beneficiário a BB, viúva, filha de CC e pai incógnito, nascida a ../../1935, natural da Freguesia ..., Concelho ..., actualmente a residir com a sua filha EE, na rua ..., ..., ... desde o inicio de ../../2021.
2. O Requerente AA é filho da beneficiária.
3. A beneficiária sofre de síndrome demencial (Alzheimer), em grau moderado, pelo menos desde ../../2021.
4. A beneficiária encontra-se desorientada no tempo.
5. Sabe dizer que reside com a filha, mas não o local.
6. Tem capacidade de cálculo apenas para operações muito simples.
7. Identifica o dinheiro como tal, não identificando o seu valor facial e não tem noção do seu valor ou sabe operar com ele.
8. Apresenta alterações muita acentuadas sobretudo na memória recente.
9. Apresenta um discurso confabulador é utilizado para preencher as lacunas mnésicas.
10. Tem um nível de conhecimentos muito limitado, mostrando pouca atenção pelo que se passa fora da sua esfera visual.
11. A nível das funções executivas notam-se maiores dificuldades, nomeadamente na identificação de erros e sua correcção, pensamento abstracto, raciocínio.
12. A sua capacidade de planeamento, organização e decisão encontra-se fragilizada por mecanismos de simplismo e desvalorização.
13. Não tem noção real das suas dificuldades e da necessidade de ajuda.
14. Não se veste sozinha e realiza a sua higiene pessoal com o auxílio de terceiros.
15. A medicação é-lhe administrada por terceiros.
16. Não consegue confecionar as suas refeições, contudo, ajuda na cozinha.
17. Não sabe ler, nem escrever.
18. Não sai de casa sozinha.
19. A beneficiário aufere uma pensão mensal da Caixa Geral de Aposentações no valor anual de € 2.312,52 e outra pensão de ... no valor anual de € 4.091,64.
20. A requerida tem o suporte da filha EE que zela pelos seus interesses e pela sua pessoa.
21. Não há notícia que a beneficiária tenha celebrado testamento vital ou outorgado mandato para a gestão dos seus interesses e/ou que tenha bens em seu nome.
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3.2. O DIREITO

Da alteração da matéria de facto
O recorrente começa por impugnar a decisão sobre a matéria de facto considerando que foi incorretamente dado como não provado que a beneficiária/maior acompanhada possua bens em seu nome. Considera que tal facto está em contradição com o facto dado como provado em 19. e, bem assim, com as declarações da beneficiária e da Acompanhante que referiram, aquando da audição de beneficiária, que a beneficiária residia na sua casa antes de ir viver para junto da filha.
Não assiste razão ao impugnante.
Primeiro, porque os bens a que se faz referencia no ponto 21. são os bens sujeitos a registo, pelo que não está em contradição com o facto dado como provado em 19. que se refe ao valor da pensão de reforma.
Depois, quanto à titularidade da propriedade do imóvel que alega constituir a casa de morada da beneficiária, nenhuma prova idónea foi feita quanto a tal factualidade, sendo certo, como bem adverte o Digno Magistrado do Ministério Público, tal circunstância será esclarecida quando a Acompanhante relacionar os bens da beneficiária, por apenso aos presentes autos, como impõe o artigo 902.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Nestes termos, improcede a impugnação à matéria de facto, a qual se mantém inalterada.

Da medida de acompanhamento
A questão sob litigio prende-se com a natureza e extensão da medida de acompanhamento, importando decidir se no caso será de aplicar a representação geral com restrição de direitos pessoais e do exercício de negócios da vida corrente, ou será suficiente a representação especial com a atribuição de poderes de representação devidamente especificados, sem limitação de direitos pessoais.

Vejamos.
A Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto veio instituir o Regime Jurídico do Maior Acompanhado, eliminando os institutos da interdição e da inabilitação, previstos no Código Civil.
A necessidade de alteração legislativa resultou de imperativos constitucionais e de obrigações internacionais do Estado Português após adesão à Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), adotada em Nova Iorque em 30 de março de 2007 e ao respetivo Protocolo Adicional[1].
No artigo 1º da CDPD define-se que o seu objeto é “promover, proteger e garantir o pleno e igual gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente”, comprometendo-se os Estados Partes nos termos do artigo 4º “a assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais para todas as pessoas com deficiência sem qualquer discriminação com base na deficiência”.
No seu artigo 12.º a CDPD veio instituir o reconhecimento igual perante a lei, reafirmando que as pessoas com deficiência têm o direito ao reconhecimento perante a lei da sua personalidade jurídica em qualquer lugar (nº1), que têm capacidade jurídica, em condições de igualdade com as outras, em todos os aspetos da vida (nº2). Este normativo estabelece ainda que os Estados Partes devem tomar as medidas apropriadas para providenciar acesso às pessoas com deficiência ao apoio que possam necessitar no exercício da sua capacidade jurídica (nº3) e que devem assegurar que todas as medidas que se relacionem com o exercício da capacidade jurídica fornecem as garantias apropriadas e efetivas para prevenir o abuso de acordo com o direito internacional dos direitos humanos. Tais garantias asseguram que as medidas relacionadas com o exercício da capacidade jurídica em relação aos direitos, vontade e preferências da pessoa estão isentas de conflitos de interesse e influências indevidas, são proporcionais e adaptadas às circunstâncias da pessoa, aplicam-se no período de tempo mais curto possível e estão sujeitas a um controlo periódico por uma autoridade ou órgão judicial competente, independente e imparcial. As garantias são proporcionais ao grau em que tais medidas afetam os direitos e interesses da pessoa.
O novo regime do Código Civil pretendeu dar concretização a estes princípios internacionais com vista a encontrar soluções individualizadas, garantindo à pessoa acompanhada a sua autodeterminação, e promovendo, na medida do possível, a sua vida autónoma e independente, de acordo com o princípio da máxima preservação da capacidade do sujeito[2].
Como se alcança da exposição de motivos da nova lei, o regime agora instituído afastou-se do sistema dualista até então consagrado da interdição/inabilitação, demasiado rígido, e veio introduzir um regime monista e flexível norteado pelos princípios da primazia da autonomia da pessoa, cuja vontade deve ser respeitada e aproveitada até ao limite do possível e da subsidiariedade de quaisquer limitações judiciais à sua capacidade, só admissíveis quando o problema não possa ser ultrapassado com recurso aos deveres de proteção e de acompanhamento comuns, e por um modelo de acompanhamento e não de substituição, em que a pessoa incapaz é simplesmente apoiada, e não substituída, na formação e exteriorização da sua vontade (doutrina da alternativa menos restritiva).
E é assim que no artigo 140.º do Código Civil se consagrou como objetivo que o acompanhamento do maior visa assegurar o seu bem-estar, a sua recuperação, o pleno exercício de todos os seus direitos e o cumprimento dos seus deveres, salvo as exceções legais ou determinadas por sentença (n.º 1) e se expressou a sua supletividade estabelecendo que a medida não tem lugar sempre que o seu objetivo se mostre garantido através dos deveres gerais de cooperação e de assistência que no caso caibam (n.º 2).
Existe, assim, uma condição positiva orientada pelo princípio da necessidade e ainda uma condição negativa orientada pelo princípio de subsidiariedade.
Quanto aos requisitos do acompanhamento, prescreve o artigo 138.º, do Código Civil que “O maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia de medidas de acompanhamento”.

Da exegese da norma resulta que são dois os requisitos para decretar uma medida de acompanhamento:

- um ligado à causa: saúde, deficiência ou comportamento;
- outro à consequência: impossibilidade de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres.

O substrato fundamentante das medidas de acompanhamento, ou melhor, a sua lógica, para usar as palavras de Maria dos Prazeres Beleza[3], consiste em definir judicialmente tipos de atos para cuja prática válida o maior, considerado capaz de gozo e de exercício, necessita da intervenção de um acompanhante, porque, por razões de saúde, de deficiência ou de comportamento, não está em condições de exercer devidamente, por si só, os seus direitos ou deveres.
A lei, ao contrário do regime anterior, não descreve de modo fechado os fundamentos para a adoção da medida. Compreende-se que assim seja, e por duas ordens de razões:

- primeiro porque agora parte-se de uma ideia de capacidade e não de incapacidade e esta mudança de paradigma leva a que em vez da pergunta “aquela pessoa possui capacidade mental para exercer a sua capacidade jurídica?”, se deva perguntar “quais os tipos de apoio necessários àquela pessoa para que exerça a sua capacidade jurídica?”;
- depois porque se acolhe a vontade do beneficiário pelo que não tem de se ficar limitado por um elenco rígido de fundamentos.

Fundamental é que o comportamento concreto se repercuta na impossibilidade de exercer direitos e cumprir deveres, tendo em atenção que o que se visa não é incapacitar a pessoa, mas auxiliá-la, dando-lhe o apoio necessário, para que exerça na plenitude a sua capacidade jurídica[4].

Assim, em função de cada caso e independentemente do que haja sido pedido, o tribunal pode cometer ao acompanhante algum ou alguns dos regimes seguintes:

a) Exercício das responsabilidades parentais ou dos meios de as suprir, conforme as circunstâncias;
b) Representação geral ou representação especial com indicação expressa, neste caso, das categorias de atos para que seja necessária;
c) Administração total ou parcial de bens;
d) Autorização prévia para a prática de determinados atos ou categorias de atos;
e) Intervenções de outro tipo, devidamente explicitadas.

As situações de acompanhamento podem ser muito díspares e ir de um mínimo, apoio, até um máximo, representação. No meio termo, encontramos situações de assistência (artigo 145.º, do Código Civil)[5].
Em função da doença de que padece, considerou-se na decisão recorrida que a beneficiária se encontrava impossibilitada de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos e de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, verificando-se os pressupostos para o decretamento de uma medida de acompanhamento. Tendo em consideração o grau e natureza da patologia que afeta a acompanhada, a medida decretada foi a da representação especial.
Justificou-se a medida ponderando-se que no caso concreto, tendo em consideração os factos dados como provados, e atendendo às necessidades concretas da beneficiária e que é preciso acautelar, entendeu-se que o estado de saúde da beneficiária a impedem de receber e gerir a pensão/subsidio que recebe mensalmente, de abrir e gerir contas bancárias, e ainda se deslocar a serviços públicos e privados– o que não é susceptivel de ser ultrapassado através dos deveres gerais de cooperação e assistência prestados pela sua filha.
Nessa medida, e tendo por base os princípios da proporcionalidade, necessidade e atualidade decidiu-se que a acompanhante devia ter poderes de representação para receber e gerir a pensão que a beneficiária recebe mensalmente, poderes para abrir e gerir contas bancárias, poderes de representação junto de entidades públicas e privadas, bem como encaminhá-la, caso se mostre necessário, para outra instituição adequada, nos termos do artigo 145º nº 2 al. b) e c) do Código Civil.

Decidiu-se bem.
Nenhum facto concreto e atual foi apurado que reclame a necessidade de limitar os direitos pessoais da beneficiária, ou os negócios da vida corrente, cujo exercício é, em princípio, livre (artigo 147.º, n.º 1, do Código Civil).
Um dos princípios orientadores do novo regime é o principio de intervenção mínima, traduzido no princípio da necessidade, ou, noutra denominação, do mínimo necessário. O âmbito de proteção a decretar deve ser limitado ao estritamente necessário para assegurar a proteção dos interesses do beneficiário, não atingindo situações em que este tem capacidade de atuação autónoma, com destaque para a específica salvaguarda do exercício de direitos pessoais e dos negócios da vida corrente.
Como assertivamente se afirma no acórdão desta Relação de 28/04/2022[6], a necessidade de uma concreta medida ou de restringir um direito pessoal constitui um pressuposto indispensável da sua aplicação. Não se verificando, ou havendo dúvida sobre a respetiva justificação, a solução é simples: não se aplica.
E a necessidade da medida é algo que tem de emergir dos factos; é um juízo valorativo do resultado factual do processo.
Pode-se afirmar que necessidade, adequação e proporcionalidade (em sentido estrito) são os conceitos-chave deste tipo de processos, sendo que na aplicação do regime do maior acompanhado vigora o princípio da intervenção mínima, norteado pelo objetivo da menor restrição possível do seu exercício de direitos. Por um lado, é dada primazia à autonomia da pessoa e, por outro, quaisquer limitações judiciais à sua capacidade têm carácter subsidiário, em consonância com o disposto nos parágrafos 2 e 4 da CDPD, no nº 1 do artigo 26º, que consagra o direito fundamental à capacidade civil, e no nº 2 do artigo 18º, ambos da CRP, segundo o qual as restrições aos direitos, liberdades e garantias se limitam ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Como afirmam Heinrich Ewald Horster e Eva Sónia Moreira, “A ênfase do regime coloca-se na proteção do beneficiário e no respeito pela capacidade que possa, ainda, ter (em maior ou menor grau)[7].
Sufragamos, pela sua sensatez e adequação, a argumentação do Ministério Público na consideração de que, não obstante padecer da doença de Alzheimer, em grau moderado, e que lhe demanda a ajuda de terceiros, a requerida possui ainda alguma autodeterminação que deve ser salvaguardada, e o regime aplicado permite, por um lado, a proteção que a requerida necessita, não lhe sendo totalmente vedada a sua individualidade que deve ser preservada, por outro, as medidas de acompanhamento determinadas permitem à sua Acompanhante suprir todas as necessidades da requerida sem que se mostre, por ora, necessário uma maior limitação.
Caso o quadro clinico se agrave é sempre possível a alteração das medidas de acompanhamento e até do regime aplicado.
É assim que deve ser. É imperiosa a delimitação concreta e especifica das necessidades atuais da beneficiária de forma a respeitar a menor intromissão no seu direito à liberdade e autodeterminação. Ademais, as limitações judiciais à sua capacidade, só são admissíveis quando o problema não possa ser ultrapassado com recurso aos deveres de proteção e de acompanhamento comuns, sendo que no caso muitas das limitações da beneficiária são naturalmente supridas pelo apoio prestado pela sua filha, sem necessidade de ingerência judicial.
A pretensão do recorrente consubstancia-se numa restrição total do exercício de direitos, incluindo aqueles que a lei enfatiza como (absoluta) exceção, como o direito de celebrar negócios da vida corrente e direitos pessoais de casar, constituir união de facto, procriar, perfilhar ou adoptar, cuidar e educar de filhos, escolher profissão, se deslocar no país ou no estrangeiro, fixar domicílio e residência, de estabelecer relações com quem entender e de testar.
Sucede que uma tal pretensão assume-se, no caso, como absolutamente contrária ao paradigma estabelecido pela CDPD e ao regime do maior acompanhado consagrado no Código Civil. Essa era a conceção do regime anterior, em que o adulto que se mostrasse incapaz de governar sua pessoa e bens era interditado do exercício dos seus direitos sendo equiparado a um menor, sendo-lhe nomeado um tutor que, em sua substituição, passava a exercer funções de representação.
O novo regime jurídico visou precisamente afastar o carácter necessário da ablação dos direitos pessoais em consequência do reconhecimento de uma capacidade diminuída.
A possibilidade de restringir a capacidade, através da excecional limitação do exercício de direitos pessoais, depende sempre da demonstração de uma concreta e fundamentada necessidade[8]. Exige-se, sempre, uma ponderação autónoma relativamente a cada um dos direitos pessoais em causa.
Como vem sendo jurisprudencialmente defendido, numa situação de impossibilidade natural de exercício de direitos pessoais, é absolutamente desnecessário estar a operar qualquer restrição àquele exercício. Mas o princípio da necessidade, enquanto pressuposto estruturante do poder de o juiz restringir direitos pessoais, continua a ter toda a pertinência em situações em que o maior carecido de acompanhamento até dispõe de alguma capacidade natural de exercer direitos pessoais[9]. São os casos dos direitos de adotar, de casar (ou estabelecer união de facto) ou de testar em pessoas que nunca manifestaram ou manifestam tal vontade. Concretamente quanto ao direito de testar, mais evidenciado pelo recorrente, nenhum facto foi dado como provado que permita afirmar que a requerida manifestou ou manifesta tal vontade, bem como que saiba o que isso significa, para além de nem sequer estar demonstrado que seja possuidora de bens ou possa vir a sê-lo.
O acompanhado continua a ser o principal decisor da sua vida e não um sujeito passivo[10]. Deve sempre ser dada prioridade à vontade e às preferências do acompanhado, com respeito absoluto pelos seus direitos. Independentemente do âmbito de atribuições fixado, o dever de cuidado materializa o padrão de comportamento do acompanhante e é a partir dele que se sindica a atuação deste em prol da defesa da autodeterminação, interesses e inclusão do beneficiário[11].
O acompanhante tem como dever assegurar o pleno exercício dos direitos pelo beneficiário e o cumprimento dos seus deveres, contribuindo ativamente para a promoção da sua autonomia e bem-estar. Exige-se-lhe uma conduta pro-ativa na definição de um projeto de vida que preveja os cuidados de saúde e atividades com vista à autonomização do beneficiário, mesmo perante um quadro médico irreversível[12].
Querendo com tal significar que a atuação do acompanhante deve estar centrada na pessoa do acompanhado o que passa por: (i) assegurar as medidas de apoio que foram determinadas pelo tribunal; (ii) prestar-lhe os cuidados devidos, atento o respetivo contexto pessoal, social e ambiental; (iii) participar juridicamente na representação legal determinada pelo tribunal; (iv) assegurar em todos os domínios a vontade e os desejos da pessoa acompanhada, tanto a nível pessoal, como patrimonial, que não foram judicialmente reservados ou restringidos[13].
Donde, identificadas as necessidades da beneficiária, e os poderes (melhor dizendo, deveres) atribuídos à acompanhante, não se vê em que medida a restrição de direitos pessoais e de negócios da vida recorrente a protegerão da vulnerabilidade de que padece e maximizarão o seu bem-estar e a sua recuperação.
Também o recorrente não indica fundamento factual para concluir pela necessidade de aplicar tais restrições no caso concreto.
Não faz sentido estar a limitar, só por limitar. É contrário às normas internacionais, à nossa constituição e regime legal em vigor, correspondendo à “morte civil” da pessoa maior.
Por todo o exposto, improcede a apelação.
*
SUMÁRIO (artigo 663.º, n.º 7 do Código do Processo Civil)

I - Um dos princípios orientadores do novo regime do acompanhamento é o principio de intervenção mínima, traduzido no princípio da necessidade: o âmbito de proteção a decretar deve ser limitado ao estritamente necessário para assegurar a proteção dos interesses do beneficiário, não atingindo situações em que este tem capacidade de atuação autónoma, com destaque para a específica salvaguarda do exercício de direitos pessoais e dos negócios da vida corrente.
II - O novo regime jurídico visou precisamente afastar o carácter necessário da ablação dos direitos pessoais em consequência do reconhecimento de uma capacidade diminuída.
III - A possibilidade de restringir a capacidade, através da excecional limitação do exercício de direitos pessoais, depende sempre da demonstração de uma concreta e fundamentada necessidade. Exige-se, sempre, uma ponderação autónoma relativamente a cada um dos direitos pessoais em causa.
*
IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrente (artigo 527.º, nº1, do CPC).
Guimarães, 12 de Junho de 2024

Assinado digitalmente por:                                                   
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. Paula Ribas
2º Adj. - Des. Elisabete Coelho de Moura Alves


[1] Cfr. Geraldo Rocha Ribeiro, In “Os deveres de cuidado e a responsabilidade do acompanhante perante o beneficiário – um primeiro ensaio”, Revista Julgar nº41, Maio-Agosto, 2020, pag. 99.
[2] Cf. Acórdão do STJ de 17/02/2020, disponível em wwwdgsi.pt.
[3] BELEZA, Maria dos Prazeres, Brevíssimas notas sobre a criação do regime do maior acompanhado, em substituição dos regimes da interdição e da inabilitação – Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, intervenção realizada no Centro de Estudos Judiciários, em 11 de dezembro de 2018, no âmbito da ação de formação “O novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado”.
[4] Sobre os requisitos do acompanhamento, Mafalda Miranda Barbosa, “Maiores acompanhados. Primeiras notas depois da aprovação da Lei n.º 49/2018, de 14 de Agosto", Gestlegal, 2018, pag. 52 e ss.
[5] Neste sentido, Mafalda Miranda Barbosa, ob. cit. pag. 60.
[6] Proferido no proc. nº 271/21.9T8PRG.G1, acessível em www.dgsi.pt.
[7] In A Parte Geral do Código Civil Português, 2ª edição, Almedina, pag. 371.
[8] Neste sentido, o Acórdão da Relação de Guimarães de 28/04/2022, disponível em www.dgsi.pt.
[9] Neste sentido, o Acórdão da Relação de Guimarães de 28/04/2022, disponível em www.dgsi.pt.
[10] Neste sentido, Margarida Paz, O Maior Acompanhado – Lei nº 49/2018, de 14 de Agosto, pag. 126, intervenção realizada no Centro de Estudos Judiciários, em 11 de dezembro de 2018, no âmbito da ação de formação “O novo Regime Jurídico do Maior Acompanhado”.
[11] Cfr. Geraldo Rocha Ribeiro, In “O conteúdo da relação de cuidado: os poderes-deveres do acompanhante, sua eficácia e validade”, Revista Julgar nº40, Janeiro-Abril, 2020, pag. 73.
[12] Geraldo Rocha Ribeiro, Ob. Cit. pag. 77.
[13] Critérios elencados para a designação de acompanhante, no acórdão da Relação do Porto de 26/09/2019, disponível em www.dgsi.pt.