COMPETÊNCIA MATERIAL
QUESTÃO EMERGENTE DO CONTRATO DE TRABALHO
TRIBUNAL DE TRABALHO
Sumário


I - A competência afere-se pelo pedido do autor, considerando a pretensão formulada e os fundamentos em que a mesma se baseia, ou seja, analisando o que foi alegado como causa de pedir no confronto com o pedido formulado.
II - Os tribunais judiciais têm competência residual, apenas lhes cabendo as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional e dentro dos tribunais judiciais, em que também se estabelece uma especialização em função da matéria, é aos juízos cíveis que é atribuída a competência residual.
III - Aos Tribunais de Trabalho compete conhecer, em matéria cível, os litígios enquadráveis nas diversas alíneas elencadas no n.º 1 do artigo 126º da Lei da Organização do Sistema Judiciário.
IV - Fundamentando a Autora o seu pedido de restituição de quantias indevidamente pagas ao Réu, quer no facto de ter com este celebrado um “Acordo de Dispensa do Dever de Assiduidade” pelo qual concedeu a dispensa do cumprimento do dever de assiduidade e se obrigou a continuar a pagar uma prestação mensal exatamente igual à que o Réu receberia se se mantivesse efetiva e assiduamente ao serviço, e a liquidar nas mesmas datas em que a Autora liquida os vencimentos dos trabalhadores no ativo, quer no facto de estarem em causa adiantamentos por conta da pensão de velhice, e decorrendo a obrigação desse adiantamento e a obrigação de restituição, do previsto no Acordo Coletivo de Trabalho das Instituições de Banco 1..., a determinação da obrigação do Réu proceder ao reembolso não deixa de constituir uma questão emergente do contrato de trabalho, e a competência para a sua apreciação caberá ao tribunal de trabalho.

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. RELATÓRIO

A Banco 1... C.R.L. intenta a presente ação de processo comum contra AA, pedindo a título principal a condenação do Réu a pagar à Autora a quantia de €28.314,36, nos termos do acordo firmado entre Autora e Réu, bem como do disposto na Cláusula 113ª do Acordo Coletivo de Trabalho, quantia essa acrescida dos juros legais desde ../../2022 até integral e efetivo pagamento e, subsidiariamente, a condenação do Réu a pagar à Autora a quantia de €28.314,36, por via do instituto do enriquecimento sem causa, acrescida de juros moratórios, à taxa legal máxima, desde ../../2022 até efetivo e integral pagamento.
Alega, para o efeito e em síntese, que a Autora é uma instituição de crédito do sector cooperativo e que o Réu foi trabalhador da Autora desde ../../1987 e que por acordo entre Autora e Réu, outorgado em ../../2021, aquela dispensou-o do dever de assiduidade condicionado à apresentação de pedido de reforma por velhice por parte do trabalhador, o que este formalizou junto da Segurança Social em 27/12/2021.
Que, em cumprimento do acordado, a Autora procedeu ao pagamento ao Réu, desde a data da apresentação do pedido de reforma, de adiantamentos por conta de pensões de reforma de que aquele iria ser beneficiário e até à data em que recebesse o pagamento das pensões por parte da Segurança Social, com efeitos retroativos à data de apresentação do pedido, que ascenderam à quantia total de €28.314,65.
Que o Réu recebeu da Segurança Social, relativamente ao mesmo período temporal, pelo menos a quantia de €31.455,60, tendo assumido perante a Autora a obrigação de proceder ao reembolso de tal quantia por meio de débito direto na sua conta bancária com o n.º ...33.
Mais alega que interpelou o Réu em ../../2022 para proceder ao reembolso das quantias recebidas em excesso, a título de adiantamento de pensões, desde ../../2022, no valor global de €28.314,65, o que o Réu recusou.
Alega ainda que o dever de restituição sempre decorreria, igualmente, da cláusula 113.º do Acordo Coletivo de Trabalho das Instituições de Banco 1..., publicado no BTE n.º 48 de 29 de Dezembro de 2006, com as subsequentes alterações.
Entende a Autora que o reembolso peticionado não possui natureza de crédito laboral, na medida em que não decorre diretamente da relação laboral entre as Partes, mas sim do acordo firmado entre Autora e Réu, bem como do Acordo Coletivo de Trabalho.
Uma vez citado, veio o Réu contestar invocando, na parte que agora releva, a excepção da incompetência material por entender ser competente o Juízo do Trabalho.
A Autora pronunciou-se no sentido da improcedência da exceção.
Foi proferida decisão que julgou verificada a exceção de incompetência absoluta do tribunal e, em consequência, absolveu o Réu da instância, determinando ainda, ao abrigo do disposto no artigo 99º n.º 2 do CPC, a notificação da Autora para querendo requerer a remessa dos autos para a Instância Central do Trabalho de ....

Não se conformando com a decisão proferida veio a Autora recorrer concluindo as suas alegações da seguinte forma:

“1) 1. A causa de pedir não emerge do contrato de trabalho celebrado entre Recorrente e Recorrido, filiando-se antes em acordo autónomo e com vigência independente daquele.
2. A determinação do tribunal materialmente competente - como o Tribunal de Conflitos e o Supremo Tribunal de Justiça têm afirmado inúmeras vezes -deve partir da análise da estrutura da relação jurídica material submetida à apreciação e julgamento do tribunal, segundo a versão apresentada em juízo pela Autora, isto é, tendo em conta a pretensão concretamente formulada e os respetivos fundamentos - pedido e causa de pedir.
3. Jamais o caso sub judice encontraria consagração na alínea n) do n.º 1 do art. 126.º da LOSJ, ou em qualquer outra das alíneas deste normativo, razão pela qual, ao abrigo do vertido no n.º 1 do art. 130.º da LOSJ, não sendo a causa atribuída ao Juízo do Trabalho, o Tribunal materialmente competente sempre será o Juízo Local Cível.
4. O pedido de restituição dos adiantamentos por conta das pensões de reforma efetuados pela Recorrente ao Recorrido, não possui natureza de crédito laboral na medida em que aqueles não decorrem diretamente da relação laboral entre as partes.
5. A causa de pedir dos presentes autos, tendo embora subjacente o contrato de trabalho que durante anos vigorou entre Recorrente e Recorrido –a primeira não se disporia a conceder tal benefício se o Recorrido não tivesse sido seu trabalhador, como parece óbvio – não emerge, contudo, daquele contrato, filiando-se antes em acordo autónomo e com vigência independente daquele.
6. Os montantes cuja restituição a Recorrente peticionou dizem única e exclusivamente respeito ao período que medeia entre o início da passagem à reforma do Recorrido, ../../2022, e a data do respetivo deferimento, i. e., Setembro de 2022 – aliás, como meridianamente se constata, a Recorrente não peticionou os montantes pagos ao  Recorrido e correspondentes ao período compreendido entre a celebração do acordo (o qual tem duas previsões distintas e autónomas) e a data do início da sua passagem à reforma.
7. O crédito da Recorrente sobre o Recorrido, ex-trabalhador e que agora reclama, tem natureza contratual, pois decorre do incumprimento de acordo celebrado entre ambos – reitera-se, respeitante ao período acima descrito., e que sempre decorreria, igualmente, da cláusula 113.º do Acordo Coletivo de Trabalho das Instituições de Banco 1..., publicado no BTE n.º 48 de 29 de Dezembro de 2006, com as subsequentes alterações.
8. Mesmo que se concebesse, no que não se concede, que o dito pedido de reembolso resulta apenas do vertido no Acordo Coletivo de Trabalho e não no incumprimento do acordo de dispensa do dever de assiduidade, (i) tal não implicaria      que o incumprimento se tornasse automaticamente e inequivocamente laboral (ii) nem tampouco seria o suficiente para dar cumprimento aos requisitos cumulativos constantes da alínea n) do n.º 1 do art. 126.º da LOSJ.
9. Tendo em conta a pretensão formulada pela Recorrente e os respetivos fundamentos, isto é, o pedido e a causa de pedir, o que está em causa é o incumprimento, posterior à cessação do contrato de trabalho, de um contrato que não aquele. Pois, não obstante ter existido um contrato de trabalho entre Recorrente e Recorrido, não se discutem questões essenciais, acessórias, complementares ou dependentes deste, nem o pedido se cumula “… com outro para o qual o juízo seja diretamente competente.”
10. É manifesto que o litígio, como configurado pela Recorrente, tem por objeto a interpretação, validade e execução de um contrato cível, na medida em que, o que importa aferir, é se houve ou não incumprimento do Recorrido e o direito daquela a ser reembolsada das quantias adiantadas a título de pensão de reforma, que o Recorrido também recebeu a este título pelo ISS.
11. Não se verifica a exceção de incompetência material do Tribunal a quo, sendo a instância cível a materialmente competente para dirimir o presente litígio.
12. A douta decisão recorrida viola, designadamente, o disposto nos artigos 130.º n.º 1 da e 126.º da LOSJ”.
Pugna a Recorrente pela procedência do recurso e pela revogação da decisão recorrida.
O Réu apresentou contra-alegações pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.

***
II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do Código de Processo Civil, de ora em diante designado apenas por CPC).
A única questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela Recorrente, é a de saber se o Juízo Local Cível de ... é materialmente competente para conhecer da presente ação.
***
III. FUNDAMENTAÇÃO

A Recorrente veio interpor o presente recurso por se não conformar com a decisão proferida pelo tribunal a quo que se julgou materialmente incompetente para conhecer da presente ação.

Relembra-se aqui o teor do despacho recorrido (na parte relevante):
“(…)
Ora, na ordem interna, um dos critérios para repartição da jurisdição pelos diferentes tribunais é a matéria [artigo 60º, n.º 2 do C.P.C.], sendo a lei de organização judiciária a determinar que causas, em razão deste critério, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada [artigo 65º do C.P.C.].
Assim, teremos de atentar no que se dispõe a tal respeito na Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto [LOSJ], designadamente nos seu artigo 40º, n.º 2, nos termos do qual a presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os tribunais judiciais de primeira instância, estabelecendo as causas que competem às secções de competência especializada dos tribunais de comarca ou aos tribunais de competência territorial alargada.
Ora, no que respeita às secções de competência especializada, que constituem instâncias centrais, podem ser criadas secções de trabalho [artigo 81º, n.º 3, al. h) da LOSJ].
 Nas questões emergentes da relação laboral é em regra competente o tribunal do trabalho, sendo concretamente competente em questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o juízo seja diretamente competente, cfr. artigo 126º, n.º 1, al. n) da Lei n.º 62/2013, de 26.08.
Ora, a Autora e o Réu estão mutuamente vinculados por uma relação laboral corporizada num contrato de trabalho celebrado em ../../1987, que vigorou, segundo a Autora até 09.06.2021, data em que Autora e Réu celebraram um acordo de dispensa do dever de assiduidade.
Ademais, a Autora fundamenta a sua causa de pedir neste acordo que celebrou com o Réu.
Do cotejo do objecto da acção tal como delineado pela Autora não podemos deixar de concluir que a questão sub iudice e em discussão é conexa com a relação laboral e, por conseguinte, da competência do juízo do trabalho.
O próprio petitório denuncia a pretensão da Autora porque remete para o Acordo Colectivo de Trabalho.
Por outro lado, da leitura do acordo em que se fundamenta a causa de pedir facilmente se conclui que o mesmo não consubstancia um acordo autónomo do contrato de trabalho nem a sua vigência é independente daquele.
Aliás basta complementar a petição inicial com a contestação deduzida pelo Réu para se perceber que as questões suscitadas são de cariz eminentemente laboral (natureza dos pagamentos feitos pela Autora ao Réu, prescrição do crédito laboral da Autora, execução do contrato de trabalho, efeitos da reforma na relação laboral e efeitos retroactivos da caducidade do contrato de trabalho).
Ademais, importa ter presente que, ao contrário dos acordos que estavam em causa nos processos que deram origem aos Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 08.11.2018 (proc. 2949/17.2T8FAR.E1) e do Supremo Tribunal de Justiça de 01.12.2015 (proc. 2141/13.5TVLSB.L1.S1), no vertente caso, o pedido de reembolso das quantias entregues pela Autora ao Réu não encontram a sua razão de ser no alegado acordo de dispensa do dever de assiduidade mas no Acordo Colectivo de Trabalho, aplicável por força do contrato de trabalho que vigorou entre as partes.
A leitura do acordo de dispensa do dever de assiduidade determina que se conclua que o pedido de reembolso se filia não nesse acordo celebrado entre a Autora e o Réu mas na legislação laboral em vigor (artigo 496º do Código do Trabalho), pois que nenhuma cláusula prevê esse dever de reembolso por parte do trabalhador. A cláusula que segundo a Autora determina essa obrigação de reembolso é a Cláusula 113º do Acordo Colectivo de Trabalho, o que implica a sua conexão directa com a relação laboral o os direitos e deveres nela fundadas.
Desta forma, em face da factualidade alegada pela Autora e que constitui a causa de pedir, afigura-se indubitável que esta secção cível da instância local carece de competência material para a presente causa, sendo a mesma da competência da secção do trabalho da instância central, questão essa que já foi debatida em sede de articulados, encontrando-se acautelado o contraditório.
A violação das regras de competência em razão da matéria gera incompetência absoluta do tribunal [artigo 96º, al. a) do C.P.C.], sendo oficiosamente conhecida pelo Tribunal [artigo 97º, n.º 1 do C.P.C.].
Assim, e sendo que nos termos dos artigos 96º, al. a) e 97º, n.º 1 do C.P.C., a infracção das regras de competência em razão da matéria implica a incompetência absoluta do tribunal, que esta é conhecida oficiosamente e que tal decisão é ainda oportuna, deve o Réu ser absolvido da instância, artigo 99º, n.º 1 e 278º, n.º 1, al. a) do CPC.
Isto sem prejuízo de se poderem aproveitar os articulados desde que a Autora requeira, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da decisão, a remessa do processo ao tribunal competente e não oferecendo o Réu uma justificada oposição [artigo 99º, n.º 2 do citado diploma].
III.       
Em face do exposto, julgo verificada a excepção de incompetência absoluta do tribunal e, em consequência, absolvo o Réu AA da instância.
Mais se determina, ao abrigo do disposto no artigo 99º n.º 2 do CPC, que seja notificada a Autora para querendo requerer a remessa dos autos para a Instância Central do Trabalho de ....
Custas pela Autora.
Registe e notifique.”
*
A única questão a decidir consiste em saber se a competência se mostra atribuída aos tribunais comuns ou aos tribunais do trabalho.
Apreciemos então, sendo que as incidências fáctico-processuais a considerar são as descritas no relatório e no despacho recorrido.
Como é sabido a competência é um dos pressupostos mais importantes relativo aos tribunais, resultando do facto de o poder jurisdicional ser repartido, segundo diversos critérios, por vários tribunais, tendo depois, cada um, competência para determinadas matérias do direito.
A competência em razão da matéria distribui-se assim por diferentes espécies de tribunais, situados no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia, subordinação ou dependência entre eles, estando na base desta repartição de competência o princípio da especialização, que se traduz na vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do direito (v. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2ª Edição, p. 194, 195 e 207).
Dispõe o n.º 1 do artigo 209º da Constituição da República Portuguesa, nas suas várias alíneas que, “além do Tribunal Constitucional, existem as seguintes categorias de tribunais: a) O Supremo Tribunal de Justiça e os tribunais judiciais de primeira e de segunda instância; b) O Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais administrativos e fiscais; c) O Tribunal de Contas”; e o artigo 211º que “[O]s tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais” (n.º 1) e que “[N]a primeira instância pode haver tribunais com competência específica e tribunais especializados para o julgamento de matérias determinadas” (n.º 2).
Em conformidade, decorre também do artigo 64º do CPC que os tribunais judiciais são competentes, em razão da matéria, para conhecer das causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (em sentido idêntico dispõe o artigo 40º da Lei n.º 62/2013, de 26/01, Lei da Organização do Sistema Judiciário), estabelecendo-se, assim, a competência residual dos tribunais judiciais no confronto com as restantes ordens de tribunais constitucionalmente consagradas.
Prevê ainda o artigo 65º que as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada.
Assim, no âmbito dos tribunais judiciais, em que se estabelece uma especialização em função da matéria, a competência residual é atribuída aos juízos cíveis de cada tribunal de comarca, nos termos estabelecidos pela referida Lei da Organização do Sistema Judiciário.
Decorre desta Lei que os tribunais judiciais de primeira instância são, em regra, os tribunais de comarca (artigo 79º) e que compete aos tribunais de comarca preparar e julgar os processos relativos a causas não abrangidas pela competência de outros tribunais (artigo 80º n.º 1), sendo os tribunais de comarca de competência genérica e de competência especializada (n.º 2) e desdobrando-se em juízos, a criar por decreto-lei, “que podem ser de competência especializada, de competência genérica e de proximidade, nos termos do presente artigo e do artigo 130º” (artigo 81º n.º 1).
Os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada (artigo 130º n.º 1).

Quanto à competência em matéria cível dos juízos do trabalho determina o n.º 1 do artigo 126º da Lei da Organização do Sistema Judiciário que compete aos juízos do trabalho conhecer, na parte que aqui releva:
“(…)
b) Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho;
(…)
n) Das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o juízo seja diretamente competente
(…)”.
Por outro lado, é entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência que a competência se afere pelo pedido do autor, considerando a pretensão formulada e os fundamentos em que a mesma se baseia, sendo irrelevante qualquer juízo de prognose que se possa fazer relativamente à sua viabilidade (v. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Volume I, p. 111, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, p. 91) e que não cabendo uma causa na competência de outro tribunal ela será do tribunal comum por uma questão de competência residual (cfr. entre muitos outros, os acórdãos da Relação de Guimarães de 18/01/2018, Processo n.º 2367/17.2T8VCT.G1, Relator Desembargador José Alberto Moreira Dias, da Relação do Porto de 07/04/2016, Processo n.º 340/14.1T8PVZ-A.P1, Relatora Desembargadora Anabela Dias da Silva e de 28/10/2021, Processo n.º 4272/20.2YIPRT.P1, Relatora Desembargadora Ana Paula Amorim, da Relação de Lisboa de 07/07/2022, Processo n.º 48982/20.8YIPRT.L1-7, Relator Desembargador Edgar Taborda Lopes e de 23/09/2021, Processo n.º 53038/20.0YIPRT.L1-6, Relator Desembargador António Santos, e do Supremo Tribunal de Justiça de 02/03/2017, Processo n.º 190/13.2T2STC.E1.S1, Relatora Conselheira Fernanda Isabel Pereira e de 26/04/2022 e Processo n.º 51012/18.6YIPRT-A.P1.S1-A, Relator Conselheiro Barateiro Martins, todos disponíveis para consulta, bem como os demais que se irão citar, em www.dgsi.pt).
No caso concreto, estão em causa critérios de repartição da competência entre os tribunais de trabalho e os tribunais comuns.
Considerou o Tribunal a quo que a competência cabia ao Tribunal do Trabalho.
Analisemos então a questão colocada à luz dos considerandos acabados de enunciar, começando por verificar o pedido formulado na presente ação pela Autora e os fundamentos em que a mesma se baseia, uma vez que a determinação da competência em razão da matéria assim deve ser aferida.
No caso em apreço, a Autora alega que que o Réu foi seu trabalhador desde ../../1987 e que por acordo entre Autora e Réu, outorgado em ../../2021, o dispensou do dever de assiduidade condicionado à apresentação de pedido de reforma por velhice por parte do trabalhador, o que este formalizou junto da Segurança Social em 27/12/2021.
Que, em cumprimento do acordado, a Autora procedeu ao pagamento ao Réu, desde a data da apresentação do pedido de reforma, de adiantamentos por conta de pensões de reforma de que aquele iria ser beneficiário e até à data em que recebesse o pagamento das pensões por parte da Segurança Social, com efeitos retroativos à data de apresentação do pedido, que ascenderam à quantia total de €28.314,65; que o Réu recebeu da Segurança Social, relativamente ao mesmo período temporal, pelo menos a quantia de €31.455,60, tendo assumido perante a Autora a obrigação de proceder ao reembolso de tal quantia mas, uma vez interpelado para proceder ao reembolso das quantias recebidas em excesso, a título de adiantamento de pensões, desde ../../2022, no referido valor global de €28.314,65, o Réu recusou.
Alega ainda que o dever de restituição sempre decorreria, igualmente, da cláusula 113.º do Acordo Coletivo de Trabalho das Instituições de Banco 1..., publicado no BTE n.º 48 de 29 de dezembro de 2006, com as subsequentes alterações.
Encontrando-se inequivocamente em causa um diferendo entre a Autora, entidade patronal, e o Réu, trabalhador tendo, por isso, subjacente um contrato de trabalho, o que importa apurar é se estamos perante uma questão emergente de relação de trabalho subordinado (nos termos referidos na alínea b) do n.º 1 do artigo 126º) ou de uma questão entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, caso em que a competência depende do pedido se cumular com um outro para qual o tribunal seja diretamente competente.
O que deve então entender-se por “questão emergente de relação de trabalho subordinado”?
Devem ser aqui consideradas todas as questões que são de conteúdo essencial dessa relação, que respeitam a direitos e deveres recíprocos, a ela inerentes, daqueles que aí são partes, nomeadamente a entidade patronal e o trabalhador, aplicando-se a alínea b) do referido artigo 126º sempre que a ação respeite aos direitos e obrigações resultantes da lei, de instrumentos coletivos de trabalho ou do teor dos contratos individuais de trabalho (v. acórdão da Relação de Lisboa de 01/02/2011, Processo n.º 1374/07.8THLSB.L1-7, Relatora Maria João Areias).
Estão em causa questões diretamente ligadas ao contrato de trabalho “abrangendo, sem razões a dúvidas, a sua existência e validade, e a sua cessação e, bem assim os seus elementos mais definidores, como a retribuição, a categoria funcional, o exercício da autoridade do empregador ou o exercício do poder disciplinar. Fora deste núcleo alargado, em princípio, não caberão na competência especializada laboral, prevista naquela alínea, as demais questões, ainda que envolvam um trabalhador ou ex-trabalhador e a seu atual ou antigo empregador” (acórdão da Relação do Porto de 13/07/2022, Processo n.º 15605/21.8T8PRT.P1, Relator José Eusébio Almeida).
Analisando a Petição Inicial e o pedido formulado pela Autora/Recorrente é inequívoco que fundamenta a sua pretensão de reembolso da quantia de €28.314,65 no acordo celebrado em ../../2021 e na cláusula 113.º do Acordo Coletivo de Trabalho, o que aliás decorre expressamente do pedido principal: condenação do Réu a pagar à Autora a quantia de €28.314,36, nos termos do acordo firmado entre Autora e Réu, bem como do disposto na Cláusula 113ª do Acordo Coletivo de Trabalho.
Vejamos então o que foi acordado entre a Autora e o Réu em ../../2021.
Conforme decorre da denominação constante do documento junto aos autos está em causa um “Acordo de Dispensa do Dever de Assiduidade”, no qual se encontra previsto que o acordo entraria em vigor no dia 10/06/2021 e vigoraria até à data em que o Réu perfizesse a idade normal de acesso à pensão de reforma por velhice em vigor no regime geral da Segurança Social, devendo antecipadamente apresentar o respetivo requerimento (cláusula quarta), pagando a Autora durante o período de duração do acordo uma prestação mensal exatamente igual à que o Réu receberia se se mantivesse efetiva e assiduamente ao serviço, e a liquidar nas mesmas datas em que a Autora liquida os vencimentos dos trabalhadores no ativo (cláusula terceira, ponto 1).
Face ao assim acordado entre as partes é inquestionável que o contrato de trabalho se manteve em vigor, não se prevendo no referido acordo a cessação do contrato de trabalho e nem sequer a sua suspensão; mantendo-se em vigor o contrato de trabalho, continuou a Autora obrigada a proceder ao pagamento de prestação mensal igual, conforme consta também do acordo, e o Réu obrigou-se também a não exercer atividade profissional remunerada em “regime de contrato de trabalho, subordinado ou autónomo” (cláusula sexta do acordo).
Veja-se ainda que o referido acordo não contém qualquer menção sobre a cessação do contrato de trabalho, e nem tão pouco se refere ao pagamento de adiantamentos por conta de pensões de reforma de que o Réu iria ser beneficiário; o acordo refere-se apenas expressamente à dispensa do cumprimento do dever de assiduidade (nos termos do disposto no artigo 128º, n.º 1 alínea b) é dever do trabalhador comparecer ao serviço com assiduidade e pontualidade) concedida pela Autora e aceite pelo Réu.
Assim, indicando a Autora como causa de pedir o referido acordo, que apenas concede a dispensa do cumprimento do dever de assiduidade, pressuposto da vigência do contrato de trabalho, com a consequente manutenção da Autora de pagamento da prestação mensal exatamente igual ao vencimento, é de concluir que o referido acordo, tem natureza laboral, insere-se no âmbito do contrato de trabalho, e as questões que do mesmo se suscitem serão emergentes de relações de trabalho subordinado.
Não podemos, por isso, acompanhar o entendimento da Recorrente quando alega estar em causa a interpretação, validade e execução de um contrato cível.
O pagamento de valores em conformidade com o previsto no acordo outorgado em junho de 2021 terá a natureza de retribuição e, a questão de saber se a partir de ../../2022 a mesma foi (total ou parcialmente) indevidamente paga ao Réu, por ter cessado o contrato de trabalho por caducidade em face da reforma por velhice (cfr. artigos 340º alínea a) e 343º alínea c) do Código de Trabalho) não deixará de constituir uma questão emergente do contrato de trabalho.
Acresce que a Autora fundamenta ainda o dever de o Réu proceder ao reembolso da quantia por si peticionada na Cláusula 113ª do Acordo Coletivo de Trabalho onde, aí sim, se fala na “Regularização de Adiantamentos por Conta de Pensões”, prevendo a Cláusula 109ª (ponto 2), sob a epigrafe Reformas e Pensões, que as Instituições adiantarão aos trabalhadores e pensionistas as mensalidades que tiverem direito.
Conforme resulta do alegado pela Autora, o Réu, em conformidade com o acordado, formalizou junto da Segurança Social em 27/12/2021 o pedido de pensão por velhice, tendo o Réu informado em 22/09/2022 o deferimento do pedido de pensão por velhice com inicio em 13/02/2022.
Alega a Autora que os valores por si peticionados nos presentes autos se reportam ao que entende ter sido recebido pelo Réu em excesso a titulo de adiantamentos relativamente ao período compreendido entre ../../2022 e setembro de 2022, altura em que o Réu deu conhecimento do deferimento da pensão de velhice, pressupondo a Autora estar em causa o incumprimento do Réu posterior à cessão do contrato de trabalho.
Porém, mesmo a considerar-se a alegação da Autora de que estão em causa adiantamentos por conta da pensão de velhice, e decorrendo a obrigação desse adiantamento, bem como a obrigação de restituição do previsto no Acordo Coletivo de Trabalho, ainda assim estaríamos perante uma questão diretamente ligada ao contrato de trabalho, a demandar a aplicação do previsto no referido Acordo Coletivo de Trabalho das Instituições de Banco 1....
Acresce ainda dizer, que a própria data da cessação do contrato de trabalho, por força da reforma por velhice, poderá estar em discussão nos presentes autos, designadamente a questão da situação de reforma por velhice originar ou não a caducidade automática do contrato de trabalho (veja-se a este propósito o recente acórdão da Relação de Coimbra de 23/02/2024, Processo n.º 01/23.7T8GRD.C1          , em cujo sumário se pode ler que “I - Conforme resulta do n.º 1 do artigo 348.º do CT, para que o contrato de trabalho celebrado entre as partes caduque por força da reforma por velhice do trabalhador, é necessário que o empregador lhe ponha termo no prazo de 30 dias a contar da data do conhecimento, por ambas as partes, daquela reforma; caso contrário, nada dizendo e permanecendo o trabalhador ao seu serviço, o contrato transforma-se automaticamente em contrato a termo resolutivo de seis meses, com as especificidades previstas no n.º 2 do mesmo normativo. II – Por força do disposto no artigo 348.º do CT, a situação de reforma por velhice não origina a caducidade automática do contrato de trabalho”).
Assim, analisando a causa de pedir e o pedido, entendemos que a competência para a presente causa se enquadra na alínea b) do n.º 1 do referido artigo 126º da Lei de Organização do Sistema Judiciário uma vez que a causa de pedir decorre do contrato de trabalho e estamos perante uma questão emergente de relação de trabalho subordinado, não sendo a competência para conhecer da presente ação dos tribunais comuns.
Nessa conformidade, improcede o presente recurso mantendo-se a decisão recorrida.
As custas são da responsabilidade da Recorrente (artigo 527º do Código de Processo Civil).
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IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente.
Guimarães, 6 de junho de 2024
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Raquel Baptista Tavares (Relatora)
Paulo Reis (1º Adjunto)
Ana Cristina Duarte (2ª Adjunta)