ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REQUERIMENTO
ADMISSIBILIDADE
Sumário

A pretensão do requerente da instrução é a de que o Juiz de Instrução Criminal, no decurso dessa fase processual facultativa, avalie a correção da análise de prova subjacente à acusação do Ministério Público, designadamente em face dos meios de prova indicados no RAI.
Tendo o arguido alegado factos e, através deles, uma versão alternativa à que consta da acusação e indicado prova cuja produção requereu, não é correto dizer-se que o RAI não tem a idoneidade de questionar os fundamentos fácticos da acusação, os meios de prova em que a mesma se fundou e/ou a qualificação jurídica dos factos, não ocorrendo, pois, situação de inadmissibilidade legal da instrução, não podendo ser indeferido o requerimento destinado à abertura dessa fase processual.

Texto Integral

Acordam em conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
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I – RELATÓRIO

Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

1. No processo de inquérito que, com o nº 11/23.8GIBJA, correu termos pelos Serviços da Procuradoria junto do Juízo de Competência Genérica de …(Secção de Inquéritos), foi deduzida acusação contra AA e outros (BB, CC e DD) na qual lhes foi imputada a prática, em coautoria material e na forma consumada, um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência à tabela I-C, do mesmo diploma legal.

2. O arguido AA requereu a abertura da instrução.

3. Remetido o processo à distribuição, o Senhor Juiz de Instrução Criminal rejeitou o requerimento de abertura de instrução, proferindo despacho com o seguinte teor:

“Do Requerimento de Abertura de Instrução:

Analisado o teor da 2.ª parte do requerimento apresentado pelo arguido AA sob a Ref.ª Citius … de 23.01.2024 (“Da Instrução”) profere-se o despacho infra.

As finalidades legais da instrução estão previstas no artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

Resumem-se, em síntese, em averiguar se uma decisão de acusar surgiu de modo fáctico e regular como consequência da atividade precedente, o inquérito.

Quando assim suceda, nas mais das vezes, o arguido (o acusado) será submetido a julgamento. Quando tal não ocorra o processo será arquivado.

A instrução configura um puro momento de controlo de uma atividade pretérita.

Esta atividade de averiguação (comprovação) está incumbida a uma entidade distinta da acusadora, o Juiz, e não tem carácter oficioso. Depende de um impulso de terceiros. Este impulso, que se concretiza mediante a apresentação do requerimento de abertura de instrução, pode provir do assistente ou do arguido.

Ora, quando o requerimento é apresentado pelo arguido – e por força das referidas finalidades legais da instrução – mister será que ele não se limite a contestar a acusação, mas, ao invés, que ataque os fundamentos fácticos colhidos no inquérito em que aquela se fundou (i), ou nos meios de prova em que tais factos estão arrimados (ii), ou mesmo o procedimento (latu sensu) concretamente adotado pelo Ministério Público ou pelo Assistente que culminou na prolação do despacho de acusação ou na dedução de acusação particular (iii), ou aponte qualquer patologia processual suscetível de impedir a prossecução dos autos para a fase de julgamento (iv), ou seja e em suma, do requerimento apresentado pelo sujeito processual devem constar as razões de discordância como expressamente exige o n.º 2 do artigo 287.º, do Código de Processo Penal .

De facto, de acordo com o previsto no art.º 287.º, n.º 1, al. a), do C.P. Penal, a instrução pode ser requerida pelo arguido relativamente a factos pelos quais o MINISTÉRIO PÚBLICO tiver deduzido acusação.

Dispondo o n.º 2 da citada norma legal que o requerimento para abertura de instrução deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente desejaria que o juiz levasse a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que através de uns e outros se espera provar.

Revertendo ao caso concreto, e tendo por referência os dispositivos e a jurisprudência supracitados, verifica-se que o teor da 2.ª parte do sobredito requerimento Ref.ª Citius … de 23.01.2024 (com o subtítulo “Da Instrução”) não configura um (verdadeiro) requerimento de abertura da instrução por parte do arguido AA pois que o mesmo – não obstante ali negar/contestar a prática dos factos que lhe são imputados na acusação e manifestar a sua discordância quanto à imputação criminal que lhe é feita em sua consequência [a prática, em coautoria, de 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21.º do DL 15/93 de 22/01] – limita-se a tecer considerações vagas e genéricas sobre o contexto em que “contactou”, “conheceu” e “conviveu” com os restantes coarguidos (cujas identidades nem sequer menciona no seu requerimento) e a afirmar desconhecer “que iria ser feito um transporte de estupefaciente nem ninguém o tendo disso informado” (sic).

Ou seja, o arguido não ataca os fundamentos fácticos colhidos no inquérito nos quais se fundou a acusação (nem sequer no que concerne às concretizações espaciotemporais dos factos imputados), não põe em causa a validade dos meios de prova ali indicados pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, não aponta qualquer questão processual eventualmente impeditiva da prossecução dos autos para a fase de julgamento e nem apresenta quaisquer argumentos jurídicos (não aludindo sequer a qualquer norma jurídica!) suscetíveis de serem apreciados em sede de instrução.

Na verdade, não se vislumbram no referido requerimento quaisquer questões de facto e de direito que sejam suscetíveis de apreciação por parte do juiz de instrução no âmbito das suas competências.

Destarte, salvo o devido respeito por opinião discordante, cremos que o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo arguido AA não visa a apreciação do mérito da acusação pelo Juiz de instrução pois não comporta um objeto que cumpre apreciar e decidir na fase instrutória, i.e., não tem a idoneidade de questionar os fundamentos fácticos da acusação, os meios de prova em que a mesma se fundou e/ou a qualificação jurídica dos factos, sendo, nessa medida, a abertura da instrução (fase processual em que apenas se exigem indícios suficientes para a prolação de uma decisão de pronúncia) totalmente inútil.

Assim, e em face do exposto, rejeito o requerimento de abertura de instrução do arguido AA, apresentado na sequência do despacho de acusação do MINISTÉRIO PÚBLICO, com fundamento na sua inadmissibilidade legal, de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 286.º, n.º 1, 287.º, n.ºs 2, a contrario sensu, e 3 do Código de Processo Penal.

Sem custas.

Notifique (o arguido/requerente e o MINISTÉRIO PÚBLICO).

Dê baixa estatística.

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Oportunamente, após trânsito do presente despacho, remetam-se os autos à distribuição para julgamento em processo comum perante tribunal coletivo.”.

4. Inconformado com esta decisão, o arguido AA dela interpôs recurso, peticionando a revogação do despacho recorrido e sua substituição por despacho que declare aberta a instrução.

Extraiu o arguido as seguintes conclusões [transcrição]:

1. O arguido não se limita a discordar do libelo acusatório, apresentando uma versão para a sua permanência no local, justificando que a sua deslocação para o sul do país se deveu a motivos diversos da dos restantes arguidos, invocando que inicialmente nem se deslocou para o sul do país, mas sim para o sul de …, e disso apresentando prova documental.

2. Invocando que foi apenas uma avaria no seu automóvel que o levou ao sul do país e ao encontro com os demais arguidos, e que estes apenas o transportariam para a zona de … uma vez que se encontrava no sul do pais sem meio de transporte, sem qualquer dinheiro, sem cartões bancários, e sem meios de se deslocar.

3. Invocando ainda que desconhecia por completo qualquer transporte de estupefaciente, não havendo inicialmente nem dolo nem qualquer negligência.

4. Mais invocando que apenas se terá apercebido de tal realidade quando estava já em viagem pela A…, altura em que não tinha qualquer outra opção senão prosseguir viagem (a não ser que saltasse da viatura em andamento na A…).

5. Não tendo prestado qualquer auxílio nem qualquer comparticipação em tal atividade.

6. Indicando meios de prova documental e testemunhal sobre os fatos que invocou.

7. Sendo certo que parece o douto despacho tudo “aproveitar” para justificar uma não admissão da instrução, como a alegação de que o arguido “limita-se a tecer considerações vagas e genéricas sobre o contexto em que “contactou”, “conheceu” e “conviveu” com os restantes coarguidos (cujas identidades nem menciona no seu requerimento)” quando os coarguidos se encontram perfeitamente identificados nos autos, e não individualizando o arguido qualquer um será porque a todos se referia.

8. Invocando as razões de facto e de direito da discórdia da acusação, indicando meios de prova testemunhal e documental a serem apreciados em sede de instrução como atos de instrução

9. “O que se pede ao Juiz da Instrução, no decurso dessa fase processual, é que avalie a correção da análise de prova subjacente à acusação do Ministério Público. A sua opinião sobre tal matéria, emitida em momento anterior ao da decisão instrutória, não é apta a rejeitar a abertura dessa fase processual, por não ter sido essa a opção do legislador.” Ac. 129/11.0GBLGS-A.E1, TRE

10. Ou seja, tendo o arguido procurado demonstrar que a “tese” da acusação se encontra incorreta e apresentando uma realidade diversa, caberia ao Mmo JIC apreciar os meios de prova constantes nos autos com vista a apurar se os mesmos configuravam a “tese” da acusação ou, se ao invés, poderiam até infirmar a acusação e credibilizar aquilo que o arguido diz.

11. E isto porque em todo o processo o arguido apenas é visto a acompanhar os demais arguidos durante 2 dias, sendo que pelo menos uma outra pessoa é também vista em determinadas alturas a acompanhar os demais coarguidos e não sendo arguido nos presentes autos.

12. Sem olvidar que o Mmo JIC não admitiu a instrução com base na sua inadmissibilidade legal violando os art.º 286º n.º 1 e art.º 287º n.º 2, ambos do Cód. Processo Penal, uma vez que não apenas a instrução como é suscitada não é inadmissível assim como não se demonstra um ato juridicamente inútil.

13. Com todo o respeito, e como bem é dito no Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 05/02/2013, no Proc. 129/11.0GBLGS-A.E1 “a sua opinião sobre tal matéria, emitida em momento anterior ao da decisão instrutória, não é apta a rejeitar a abertura dessa fase processual, por não ter sido essa a opção do legislador.”

14. Pelo que deve o douto despacho ora em crise ser revogado e em sua substituição proferido despacho que declare aberta a instrução!

5. O recurso do arguido foi admitido, por legal e tempestivo.

6. O Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da decisão proferida. Não formulou conclusões.

7. O Mmo. Juiz de Instrução consignou, para efeitos do disposto no artigo 414.º, n.º 4, do CPP, “que continua a ser do entendimento da decisão colocada em causa”, assim mantendo o despacho recorrido e ordenou a subia dos autos a este Tribunal de recurso.

8. Foram colhidos os vistos legais e realizada a conferência.

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II – QUESTÕES A DECIDIR.

Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de 05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»).

Atentas as conclusões apresentadas, a questão a examinar e decidir é, apenas, a de saber se ocorre caso de inadmissibilidade legal do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido.

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III –FUNDAMENTAÇÃO.

O requerimento para a abertura da instrução apresentado pelo arguido AA tem o seguinte teor [transcrição]:

“AA, arguido melhor identificado nos autos acima referenciados, tendo sido notificado da acusação que contra si e outros foi deduzida, vem nos termos do art.º 286º e ss. do Código de Processo Penal requerer a abertura de instrução, nos termos e pelos fundamentos seguintes:

De acordo com os elementos vertidos na acusação determinante do presente requerimento de abertura de instrução, ao ora requerente é imputada a prática em co-autoria de um crime de tráfico de estupefacientes p.p. art.º 21º do DL 15/93 de 22/01, o que em termos estritamente normativos, implica que sobre o mesmo penda uma acusação (que, desde já se adianta, completamente infundada)

O arguida não cometeu os factos ora em apreço nem nada tem a ver com os mesmos.

O arguido encontrava-se apenas numa situação em que estava a “apanhar” boleia por parte dos arguidos para ….

Com efeito, a viatura do arguido havia avariado em …, onde o mesmo se havia deslocado para estar junto com familiares seus (cfr. doc. 1 e 2 que se junta e se dá como integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos).

Tendo requisitado o serviço de assistência em viagem e tendo viajado de táxi pela seguradora para … (cfr. doc. 2), tendo optado por ficar no … para se encontrar com algumas amigas com quem esperava mais do que a amizade.

Porém, chegado a …, no …, o arguido acabou por se desencontrar com as suas “amigas”, uma vez que as mesmas nesse mesmo dia haviam regressado a ….

O arguido havia esquecido os seus cartões multibanco e uma carteira com dinheiro na sua viatura que veio a ser rebocada, o que apenas verificou após passar a fronteira.

Vendo-se assim sozinho no … e sem dinheiro (tanto é que nenhum dinheiro nem nenhum bem foi apreendido aos arguidos).

Tendo inclusive passado vários dias com a mesma roupa (veja-se a roupa que consta no doc. 1 e aquela que se vê nas imagens de CCTV que é a mesma), chegando a pernoitar na rua e começando a ligar para vários amigos para ver se algum estaria pela zona do … ou se conhecia alguém pelo … que lhe pudesse dar “boleia” para a zona de ….

10º

Acabando por haver um amigo que lhe deu o contacto de um dos arguidos com quem o arguido contactou.

11º

Tendo ora requerente contactado com o co-arguido e passando a acompanhar os mesmos, alimentando-se inclusive à custa dos mesmos.

12º

Sendo que a sua expectativa era que o mesmo fosse deixado na zona de … quando os co-arguidos regressassem ao norte do país.

13º

Não conhecendo previamente o ora requerente nenhum dos seus co-arguidos nem tendo qualquer outro contacto com os mesmos.

14º

Desconhecendo o arguido que iria ser feito um transporte de estupefaciente nem ninguém o tendo disso informado.

15º

Sendo que quando o ora requerente se apercebeu encontrava-se já na A… em plena autoestrada a caminho de ….

16º

Não resultando dos autos que o arguido tivesse tido qualquer outro contacto com os co-arguidos diferente daquele que aqui se retrata.

17º

Pelo que se impõe a não pronuncia do arguido.

Termos em que deve ser a arguida despronunciada do crime que lhe vem imputado e em consequência ser determinado quanto a esta o arquivamento dos presentes autos, tudo com as legais consequências.

Junta: 2 documentos

Testemunhas:

1 – EE, residente na Rua …, n.º …, …”.

Cumpre apreciar.

Para esse efeito, seguiremos bem de perto o que se escreveu no douto aresto citado no recurso do arguido – o Acórdão desta Relação de Évora de 5 de fevereiro de 2013 (1) – onde se escreveu:

“A instrução (…), que tem carácter facultativo, visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

A abertura da instrução pode ser requerida pelo arguido relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação.

O objeto da instrução são os factos descritos na acusação – formulada pelo Ministério Público ou pelo assistente ou apresentados no requerimento deste último para abertura da instrução.

A fase processual da instrução é formada pelo conjunto dos atos de instrução – diligências de investigação e de recolha de provas que o juiz entenda levar a cabo – e por um debate instrutório, oral e contraditório, o qual visa permitir uma discussão, perante o juiz sobre se no decurso do inquérito e da instrução resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento.

Pode haver instrução sem atos de instrução – no sentido de diligências de investigação. Quem a requer não está obrigado a pretender a prática de tais atos e, ainda que assim não seja, o Juiz só realiza os que entende necessários. Nestas situações, a instrução reconduz-se ao debate instrutório e à decisão instrutória.

A instrução concretiza o princípio do contraditório, uma vez que nela tem o requerente (…) a possibilidade de contrariar os fundamentos, de facto ou de direito, que suportam a peça processual [no caso, a acusação do Ministério Público] que encerra fase do processo [a do inquérito] dominada por quem acusa.

E como se diz no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10 de fevereiro de 2005 (Proferido no processo n.º 4740/2004, pelo Senhor Conselheiro Simas Santos – acessível em www.verbojurídico.com/jurisp_stj), «o princípio do contraditório, em processo penal, por imposição constitucional e por via da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, significa que o arguido tem o direito de intervir no processo e de se pronunciar e contraditar todos os elementos de prova ou argumentos jurídicos trazidos ao processo, abrangendo todos os actos susceptíveis de afectar a sua posição».

A instrução surge como uma fase intermédia, entre o inquérito e julgamento, dirigida por um juiz e pensada no interesse do arguido e do assistente.

Configurando direito disponível – dado o seu carácter facultativo –, nem por isso deixa de representar a garantia constitucional da judicialização da fase preparatória do julgamento, de controlo judicial da atuação do Ministério Público.

Nas palavras de Souto de Moura (In “Jornadas de Direito Processual Penal”, pág. 119), «O n.º 2 do art. 287.º, parece revelar a intenção do legislador de restringir o mais possível os casos de rejeição do requerimento da instrução. O que aliás resulta directamente da finalidade assinalada à instrução pelo n.º 1 do art. 286.º: obter o controlo judicial da opção do MP. Ora, se a instrução surge na economia do Código com o carácter de direito, e disponível, nem por isso deixa de representar a garantia constitucional da judicialização da fase preparatória. A garantia constitucional esvaziar-se-ia se o exercício do direito à instrução se revestisse de condições difíceis de preencher ou valesse só para casos contados».

O requerimento para abertura da instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução.

Interessa-nos apenas a inadmissibilidade legal da instrução.

Trata-se de conceito que abarca realidades distintas – sobre as quais se debruçou, de forma exaustiva, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, de 12 de maio de 2005, de fixação de jurisprudência (Publicado no Diário da República, I Série-A, n.º 212, de 4 de novembro de 2005) – e de que deriva a inutilidade da instrução.

Nele se incluem as situações em que da própria lei resulta, inequivocamente, como não admissível a instrução:

i) quando requerida no âmbito de processo especial – sumário ou abreviado [artigo 286.º, n.º 3, do Código de Processo Penal];

ii) quando requerida por quem não tem legitimidade para o efeito – pessoas diversas do arguido ou o assistente,

iii) quando requerida pelo arguido ou pelo assistente, mas fora dos casos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 287.º do Código de Processo Penal;

iv) quando o requerimento do assistente não configure uma verdadeira acusação;

v) quando, requerida pelo arguido, se reporte a factos que não alterem substancialmente a acusação do Ministério Público, isto é, nos casos em que o assistente deduz acusação (artigo 284.º do CPP)e,

vi) quando, requerida pelo assistente, em caso de acusação pelo Ministério Público, se reporte a factos circunstanciais que não impliquem alteração substancial da acusação pública (artigo 284.º do CPP).

E não pode o intérprete ou o julgador, distanciado de uma interpretação sistemática, criar novas causas de inadmissibilidade, para além daquelas que resultam diretamente da lei.”

Fazendo nossas as considerações que supra reproduzimos, cuja clareza não permite aprimoramento, vejamos se no caso dos autos ocorre inadmissibilidade legal da instrução.

Foi o arguido que, acusado pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência à tabela I-C, do mesmo diploma legal, requereu a abertura da instrução argumentando que do inquérito não resultam indícios de ter agido em coautoria com os demais arguidos.

Alegando que, depois de ter visto a sua viatura avariada em … e de ter sido transportado ao … e pelos serviços de assistência em viagem, acabou por se desencontrar das suas amigas e viu-se ali sozinho e sem dinheiro. Acrescentou que passou vários dias com a mesma roupa, chegando a pernoitar na rua e começando a ligar para vários amigos para ver se algum estaria pela zona do … ou se conhecia alguém pelo … que lhe pudesse dar “boleia” para a zona de …. Alegou que acabou por haver um amigo que lhe deu o contacto de um dos arguidos, tendo contatado com o coarguido e passando a acompanhar os mesmos, alimentando-se inclusive à custa dos mesmos, com a expetativa de que viesse a ser deixado na zona de … quando os coarguidos regressassem ao norte do país.

Mais alegou o recorrente que desconhecia o plano dos coarguidos, não sabendo que iria ser feito um transporte de estupefaciente, sendo que apenas no decurso da viagem se apercebeu, já na A…, em plena autoestrada a caminho de ….

Com a alegação destes factos, pretende o arguido AA apresentar uma versão alternativa dos factos vertidos na acusação, versão essa que quer fazer valer em sede de instrução – o fito do arguido, ao requerer a abertura de instrução, é o de ver arredada a indiciação suficiente de que atuou da forma descrita na acusação, “com conhecimento das características, natureza e efeitos negativos para a saúde dos produtos estupefacientes que adquiriram, detiveram, cederam e venderam a terceiros” de comum acordo e em conjugação de esforços com BB, CCa e DD, de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de proceder à aquisição, detenção, cedência e venda a terceiros de tais produtos, bem sabendo que as suas condutas eram ilícitas, reprováveis e proibidas e punidas por lei.

Pretende que, com a realização da instrução, venha a prevalecer a sua versão – de que nada sabia acerca do tráfico de estupefacientes e, na ocasião em que ocorreu a detenção, apenas aproveitava uma boleia para regressar a ….

Dos factos alegados no RAI resulta que o arguido AA nega ter cometido o crime que lhe é imputado. Pretende afastar totalmente a acusação que o Ministério Público lhe dirige, com base na consideração dos factos que alega, na análise da prova existente nos autos (designadamente a que respeita aos documentos referentes a apreensões, a imagens de CCTV) e através da produção de prova em sede de instrução, tendo para o efeito procedido à junção de documentos e ao arrolamento de uma testemunha, cuja inquirição requereu.

É isto o que, bem vistas as coisas, resulta do requerimento de abertura da instrução. E a proceder a pretensão do requerente dessa fase facultativa, o arguido evitaria o julgamento.

Na decisão recorrida considerou-se que o arguido apenas teceu «considerações vagas e genéricas sobre o contexto em que “contactou”, “conheceu” e “conviveu” com os restantes coarguidos (cujas identidades nem sequer menciona no seu requerimento) e a afirmar desconhecer “que iria ser feito um transporte de estupefaciente nem ninguém o tendo disso informado”».

Não podemos acompanhar esta análise do RAI. O arguido AA alegou factos concretos quanto à sua chegada ao … e ao contacto com os coarguidos. Todos estes, como bem assinala a defesa, estão devidamente identificados nos autos, tendo a alusão do arguido a “coarguidos” o alcance de todos os coarguidos, sem exceção (que não invocou). A negação dos factos vertidos na acusação é perentória, concretizada e dirige-se contra todos os factos alegados pelo Ministério Público para sustentar a coautoria.

Ao contrário do que se escreveu na decisão recorrida, o arguido AA ataca os fundamentos fácticos colhidos no inquérito nos quais se fundou a acusação, apresentando uma versão factual alternativa com base na qual pretende ver excluída a indiciação suficiente da coautoria. Essa pretensão corporiza argumentação jurídica suficiente para suscitar a apreciação em sede de instrução (não se compreendendo o alcance da menção vertida na decisão recorrida “não aludindo sequer a qualquer norma jurídica!” (o arguido requerente da instrução é expresso na afirmação do carácter infundado da acusação que lhe imputou a coautoria de um crime de tráfico de estupefacientes, “p.p. art.º 21º do DL 15/93 de 22/01” – sendo esse o tipo legal cuja indiciação suficiente visa ver afastada).

Não é correta a afirmação de que “não se vislumbram no referido requerimento quaisquer questões de facto e de direito que sejam suscetíveis de apreciação por parte do juiz de instrução no âmbito das suas competências” – cumprirá ao Juiz de Instrução apreciar os concretos factos que são alegados no RAI e, em face deles, aqueloutros que foram vertidos na acusação, emitindo o competente juízo de indiciação.

Como se afirmou no Acórdão desta Relação de Évora de 5 de fevereiro de 2013 que citámos, em situação com evidente paralelismo, a «decisão recorrida, para concluir que a Arguida não apresentou razões de discordância em relação à decisão do Ministério Público de a acusar, acabou por avaliar, de forma truncada, a bondade delas.

Pôs-se, como se costuma dizer, o “carro à frente dos bois”».

O arguido alegou factos e, através deles, uma versão alternativa à que consta da acusação. Indicou prova cuja produção requereu. Não é correto dizer-se que o RAI “não tem a idoneidade de questionar os fundamentos fácticos da acusação, os meios de prova em que a mesma se fundou e/ou a qualificação jurídica dos factos, sendo, nessa medida, a abertura da instrução (fase processual em que apenas se exigem indícios suficientes para a prolação de uma decisão de pronúncia) totalmente inútil”.

A pretensão do requerente da instrução é a de que o Juiz de Instrução Criminal, no decurso dessa fase processual facultativa, avalie a “correção da análise de prova subjacente à acusação do Ministério Público”, designadamente em face dos meios de prova indicados no RAI. “A sua opinião sobre tal matéria, emitida em momento anterior ao da decisão instrutória, não é apta a rejeitar a abertura dessa fase processual, por não ter sido essa a opção do legislador”, escreveu-se no citado Acórdão desta Relação de Évora, em termos que parecem pensados para o nosso caso concreto.

Não pode, assim, deixar de dar-se provimento ao recurso, posto que não ocorre situação de inadmissibilidade legal da instrução, não podendo ser indeferido o requerimento destinado à abertura dessa fase processual.

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IV. DECISÃO

Pelo exposto acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, em revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que admita a instrução.

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Sem custas.

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D.N. (comunicando-se de imediato aos autos de Processo nº 11/23.8GIBJA, em face da já ordenada remessa dos mesmos para julgamento, e a fim de se permitir que sejam evitados atos inúteis).

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O presente acórdão foi elaborado pelo Relator e por si integralmente revisto (art. 94º, n.º 2 do C.P.P.).

Évora, 4 de junho de 2024

Jorge Antunes (Relator)

Anabela Cardoso (1ª Adjunta)

Margarida Bacelar (2ª Adjunta

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1 Cfr. Ac. Relação de Évora de 05.02.2013 –

Relatora: Ana Bacelar Cruz acessível em: https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/-/EE58B4B2B7CFF28D80257DE10056FAA5