O FGA não responde pelos danos causados em acidente de viação causado por bicicleta com motor eléctrico, conduzida por desconhecido.
Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:
Alegou que, quando seguia a pé, no passeio de via pública, foi embatido, pelas costas, por uma bicicleta a motor eléctrico, cujo condutor fugiu, razão pela qual desconhece a sua identidade.
Referiu, igualmente, que desse embate lhe advieram diversas lesões cujo tratamento demandou internamento hospitalar, carecendo, presentemente e no futuro, de acompanhamento médico regular.
Pretende ser reparado dos danos presentes e futuros – patrimoniais e não patrimoniais - daí decorrentes, pelo montante, à data da interposição da acção, de € 35.734,00.
Mais defende que cabe ao FGA reparar tais danos.
Contestou o R. FGA, rejeitando a sua responsabilização pela reparação dos danos invocados pelo A., na medida em que estará em causa acidente provocado por velocípede a motor, para cuja condução não é necessária habilitação legal, não estando, assim, tal veículo sujeito a seguro obrigatório. Nestes termos, defende que a situação em apreço não se engloba na previsão do art. 48º do DL 291/2007.
Mais impugnou, por desconhecimento, o acidente descrito na petição inicial, bem como as consequências que daí terão advindo ao A.
O A., notificado, reafirmou a posição vertida em sede de petição no sentido da responsabilização do FGA.
Após audiência prévia, por considerar que o estado do processo permitia, sem necessidade de outras provas, decidir do mérito da causa, foi proferida sentença, na qual foi afirmado que o FGA não responde pelos danos provocados por acidentes provocados pelo tipo de veículo em causa, porquanto o mesmo não está sujeito a seguro obrigatório. Com tal fundamento, a acção foi julgada improcedente e o réu FGA absolvido do pedido.
Interposto recurso de apelação pelo A., o Tribunal da Relação do Porto julgou a apelação improcedente e confirmou a sentença recorrida.
É deste acórdão que o A. interpõe recurso de revista excepcional, nos termos do art. 672º, nº 1, als. a) e b), do CPC, recurso que foi admitido pela Formação de Apreciação Preliminar.
Deste recurso extraem-se as seguintes conclusões:
“1 a 4 (…)
5. O veículo interveniente no acidente e causador dos danos, cujo ressarcimento ao aqui recorrente, se peticionam nos autos é uma bicicleta elétrica, a motor.
6. Conduzido e dirigido, à data dos factos descritos nos autos e em apreço nos mesmos, nas circunstâncias de tempo, lugar e modo melhor descritas em sede petitória, por desconhecido, sem qualquer obrigação do recorrente, em conhecer.
7. Como tudo, aliás, melhor resulta provado, nos autos, pela junção à P.I. da certidão do acidente em apreço nos autos, emitida pela...ª Secção do DIAP ... (doc. 12 com a P.I., que originou os mesmos). Ora,
8. Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 47º do Decreto-lei 291/2007, de 21/08, é da responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel, aqui recorrido, e R. nos autos principais, satisfazer as indemnizações decorrentes do acidente rodoviário, como o dos autos, em que o responsável é desconhecido. E,
9. A utilização, na construção morfológica da redação do artigo supra mencionado, com a utilização, na mesma, da conjunção alternativa “ou”, afasta a aplicação cumulativa e obrigatória das circunstâncias previstas nas diversas alíneas do nº 1 do artigo 48º do mesmo diploma legal, para que remete a parte final do artigo 47º, por reporte às situações alternativas previstas na sua segunda parte. Aliás,
10. Só assim se entende a referência nestas alíneas, e em todas, a previsão da existência, ou não, de seguro válido.
11. no que, no caso dos autos, se desconhece a priori, sem obrigação em conhecer do recorrente, pela identidade desconhecida do responsável pela direção do veículo, no caso dos autos, e à data do acidente objeto dos mesmos.
Acresce que, e sem conceder,
12. O veículo, objeto dos autos, está isento de seguro, por não carecer, o mesmo, atenta a sua natureza, de habilitação legal para ser conduzido, nos termos do artigo 4º/1 do supra referido Decreto-lei 291/2007, de 21/08 e artigo 150º do Código da Estrada.
13. Sendo sempre, por tal, de se aplicar a al. c) do nº 1 do artigo 48º do Decreto-lei 291/2007, aos autos.
14. Os condutores de tais veículos encontram-se sujeitos ao Código da Estrada e às mesmas obrigações e direitos que os condutores dos demais veículos.
15. Estando, por tal, sujeito às mesmas normas estradais e legislação que regem a condução de quaisquer veículos na via pública.
16. Devendo sempre, até por aplicação analógica ou extensiva da lei, aplicar-se ao caso em apreço nestes autos, as disposições supra referidas do referido Decreto-lei 291/2007, de 21/08.
17. Encontrando-se garantido pelo Fundo R., aqui recorrido, o ressarcimento ao A. e aqui recorrente, da indemnização devida pela reparação dos danos derivados da circulação do veículo objeto dos autos na via pública, encontrando-se verificados, nos presentes autos, todos os pressupostos para o efeito.
18 .Sob pena, aliás, da violação da proteção jurídica do A. devida por lei e pelo Estado, motivo, também, da excecionalidade do presente recurso
19. Termos em que devem ser julgadas procedentes, as presentes alegações e conclusões de recurso e, em consequência, ser revogado o Acórdão proferido, substituindo-o por douta decisão que ordene o prosseguimento dos autos principais, com todas as legais e devidas consequências até final.
20. O acórdão recorrido viola, entre outros, o disposto nos artigos 4º/1; 47º e 48º/1, al. c) do Decreto-lei nº 291/2007, de 21 de agosto e 150º do Código da Estrada.
21.Tudo com custas a cargo do Fundo recorrido.”
O FGA em contra-alegações, sustentou a improcedência do recurso.
A questão a decidir tem a ver com a responsabilidade ou não do FGA pela indemnização de danos causados por uma bicicleta com motor eléctrico conduzida por condutor desconhecido.
Cumpre decidir:
Nos autos, quer na sentença, quer no acórdão recorrido, teve-se em consideração a matéria factual alegada pelo autor na petição inicial, pois só essa releva.
A causa de pedir alegada pelo autor resulta, essencialmente, do seguinte:
“ No dia 25/3/2019, na Rua ..., ..., o autor deslocava-se a pé, no sentido sul-norte, com destino à Estação de ....
- Enquanto circulava no espaço destinado a passeio, pela berma direita da via, atento o seu sentido de marcha, o A. foi atropelado por uma bicicleta a motor (eléctrica), que circulava no mesmo sentido e o atingiu no seu corpo, pelas costas.
- Por força do embate, o autor caiu no chão, desamparado, sofrendo lesões físicas e diversos danos patrimoniais e não patrimoniais.
- O A. desconhece a identidade do responsável pela condução e circulação do veículo motorizado que o embateu, pois que, o mesmo se colocou em fuga.”
Pretende o autor, ora recorrente, que o acórdão recorrido, que confirmou a improcedência da acção, seja revogado e nele determinado o prosseguimento dos autos para apurar da responsabilidade do FGA pelo pagamento da indemnização a que o autor diz ter direito em consequência do embate que sofreu de uma bicicleta eléctrica com motor, cujo condutor é desconhecido.
Alega que o acórdão violou os arts. 4º, nº 1, 47º e 48º, nº 1, al. c), do Decreto-lei nº 291/2007, de 21.8 e o art. 150.º do Código da Estrada, pela seguintes razões:
“1 - Basta o condutor do veículo ser desconhecido, para que o FGA responda, não sendo exigível que o mesmo tivesse sujeito a obrigação de seguro ou a sua condução sujeita a habilitação legal;
2 - Em qualquer caso, a bicicleta eléctrica a motor é um veículo isento da obrigação de seguro, pelo que o FGA sempre responderá pelos danos causados por este tipo de veículo.
3 - Os condutores deste tipo de veículos estão sujeitos às mesmas obrigações e regras de circulação que os condutores de outros veículos, pelo que o FGA responderá pelos danos que aqueles causem, tal como responde pelos danos que estes causem, desde que verificados os restantes pressupostos da sua responsabilidade.”
Porém, não tem razão, como se explica, de seguida.
Recuperemos, por ora, o que se escreveu no acórdão recorrido:
“ (…) verifica-se que ao responsável pela utilização de um tal velocípede com motor não é imposta a obrigação de segurar, pois que o nº 1 do art. 4º do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto (Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel) reserva essa obrigação em relação aos veículos para cuja condução seja preciso um título habilitante, o que não acontece em relação ao condutor de um velocípede, com ou sem motor: (…).
Diferentemente (e assim se avança para a apreciação de um dos argumentos do apelante, de resto em concordância com a decisão recorrida), o responsável pela utilização de um velocípede (ainda que com motor) não está sujeito, por definição legal, a uma tal obrigação, por também não ser exigível qualquer título legal habilitante à sua condução. Por isso, não se pode dizer que se mostra isento dessa obrigação, pois que à mesma jamais esteve sujeito, para que dela pudesse ser isentado.
(…)
Perante este regime, o FGA não responde perante a mera circunstância de os danos terem sido causados por responsável desconhecido ou por um responsável incumpridor da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel. Com efeito, a remissão constante da parte final do nº 1 do art 47º exige que, cumulativamente com qualquer das hipóteses aí previstas, se preencha uma das hipóteses descritas nas alíneas do nº 1 do art. 48º.
No caso, e uma vez que a única hipótese elegível do art. 47º é a constituída pela intervenção de um responsável desconhecido, a viabilidade de responsabilização do FGA dependeria de o acidente causador dos danos sofridos pelo autor ter sido originado por veículo relativamente ao qual se identifique uma isenção da obrigação de seguro, nos termos da al. c) daquele nº 1 do art. 48º. Com efeito, está fora de questão a aplicação das als. a) e b), que pressupõe veículos sujeitos a seguro obrigatório.
Porém, como vimos antes, um velocípede com motor não se qualifica como um veículo isento da obrigação de seguro obrigatório.
Resulta, assim, do regime descrito, que o FGA não responde pelos danos determinados ao autor por responsável desconhecido, nas circunstâncias descritas, de resto como bem decidiu a decisão recorrida.
Resta, por fim, afirmar que nada acresce ao caso a alegação do autor de que os responsáveis pela utilização de velocípedes com motor estão sujeitos às mesmas regras gerais de circulação e de responsabilidade civil que os demais utentes das vias de circulação.
Essa é uma conclusão incontestável, mas dela apenas resulta a responsabilidade civil do utilizador do velocípede, porquanto o regime de seguro obrigatório lhe não é extensível.
(…) Nestes termos, por falta de fundamento para que responda pelos danos invocados pelo autor, só podia o FGA ser absolvido do pedido, como foi.”
Com efeito, estabelecem os arts. 47º, nº 1, e 48º, nº 1, al. c), do DL n.º 291/2007, de 21.8 (Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel):
“Artigo 47.º
Fundo de Garantia Automóvel
1 - A reparação dos danos causados por responsável desconhecido ou isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo, ou por responsável incumpridor da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel, é garantida pelo Fundo de Garantia Automóvel nos termos da secção seguinte. (…)
Artigo 48.º
Âmbito geográfico e veículos relevantes
1 - Sem prejuízo do previsto no n.º 3 do artigo 5.º, o Fundo de Garantia Automóvel satisfaz, nos termos da presente secção, as indemnizações decorrentes de acidentes rodoviários ocorridos em Portugal e originados:
a) Por veículo cujo responsável pela circulação está sujeito ao seguro obrigatório e, seja com estacionamento habitual em Portugal, seja matriculados em países que não tenham serviço nacional de seguros, ou cujo serviço não tenha aderido ao Acordo entre os serviços nacionais de seguros;
b) Por veículo cujo responsável pela circulação está sujeito ao seguro obrigatório sem chapa de matrícula ou com uma chapa de matrícula que não corresponde ou deixou de corresponder ao veículo, independentemente desta ser a portuguesa;
c) Por veículo cujo responsável pela circulação está isento da obrigação de seguro em razão do veículo em si mesmo, ainda que com estacionamento habitual no estrangeiro.”
Estabelece, ainda, o art. 4.º do SORCA que demarca os responsáveis da obrigação de segurar:
“1 - Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei.
2 - A obrigação referida no número anterior não se aplica aos responsáveis pela circulação dos veículos de caminhos de ferro, com excepção, seja dos carros eléctricos circulando sobre carris, seja da responsabilidade por acidentes ocorridos na intersecção dos carris com a via pública, e, bem assim, das máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula.
3 - Os veículos ao serviço dos sistemas de Metro são equiparados aos veículos de caminhos de ferro para os efeitos do número anterior.
4 - A obrigação referida no número um não se aplica às situações em que os veículos são utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais.”
Dispõe, por sua vez o art. 150º, nº 1, do Código da Estrada:
“ Os veículos a motor e seus reboques só podem transitar na via pública desde que seja efetuado, nos termos de legislação especial, seguro da responsabilidade civil que possa resultar da sua utilização.”
Por outro lado, o art. 112º, nºs 1 a 3, do Código da Estrada equipara a velocípede as bicicletas a motor eléctrico, uma vez que se trata de um veículo com duas ou mais rodas accionado pelo esforço do próprio condutor por meio de pedais ou dispositivos análogos, ainda que equipados com motor auxiliar (cfr. neste sentido, também, Marta Inês Soares de Almeida, Culpa Versus Risco: Reflexões concernentes à dualidade de fundamentos na responsabilidade civil por acidentes de viação o caso particular da concorrência da culpa do lesado com o risco do veículo, Dissertação de Mestrado em Ciências Jurídico-Civilísticas, com Menção em Direito Civil, sob orientação do Professor Doutor Albuquerque Matos, Coimbra, 2016, nota de rodapé, págs. 93 e 95. publicado em https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/42727/1/Marta%20Almeida.pdf.).
Nos termos do nº 6 do art. 121º do Código da Estrada “ A condução de velocípedes e de veículos a eles equiparados não carece de habilitação legal para conduzir”.
Ou seja; as bicicletas com motor eléctrico, por serem equiparadas a velocípedes, não carecem de licença de condução e, como tal, também não estão vinculadas à obrigação de segurar, não estando abrangidas pelo disposto no art. 4º do SORCA nem pelo art. 150º do Código da Estrada, sendo que as als. a) e b) do n.º 1 do art. 48.º do SORCA se reportam apenas aos veículos sujeitos a seguro obrigatório, o que não é o caso das bicicletas a motor eléctrico.
Por outro lado, a bicicleta a motor eléctrico não é um veículo isento da obrigação do seguro “em razão do veículo em si mesmo” (al. c) do n.º 1 do art. 48.º do SORCA)
Conforme se decidiu no Ac. STJ de 20.11.2019, Revista n.º 1829/16.3T8VRL.G1.S1 que se fundou também em parecer da Autoridade de Supervisão de Seguros e de Fundos de Pensões, a isenção prevista na al. c) do nº 1 do art. 48º do SORCA, refere-se tão somente a máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula, pelo que o FGA não está obrigado à regularização dos sinistros causados por velocípedes sem motor.
Também Arnaldo Costa Oliveira In “O Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel, Almedina, Setembro de 2008” a págs. 54 e 55, com apelo aos arts. 4º, nºs 1 a 3, 9º e 48º, n.º 1, al. c) do SORCA considera que a isenção prevista na al. c) do n.º 1 do art. 48º de tal diplomam é apenas reconduzível a máquinas agrícolas não sujeitas a matrícula. Não engloba as bicicletas com motor eléctrico.
Com efeito, a bicicleta com motor eléctrico integra a categoria de velocípedes, nos termos do art. 112.º do CE, sendo um veículo cuja condução não se mostra sujeita à obrigação de título de condução (cfr. art. 121º, nº 6, do CE).
Assim, ainda que que o condutor da bicicleta com motor eléctrico seja um desconhecido., o FGA não pode actuar como garante das indemnizações de danos resultantes de acidente viação causados por tal veículo.
Por relevante, impõe-se destacar o ainda recente Ac. do Tribunal de Justiça (Quinta Secção) de 12.10.2023, Processo C-286/22, disponível em https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/PT/TXT/?uri=CELEX%3A62022CJ0286&qid=1715608876838.), que, pronunciando-se sobre a interpretação do conceito de veículo ínsito na acepção da Directiva n.º 2009/103, em caso em que estava em causa um acidente de viação com uma bicicleta equipada com motor eléctrico, decidiu que “o artigo 1.º, ponto 1, da Diretiva 2009/103/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de setembro de 2009, relativa ao seguro de responsabilidade civil que resulta da circulação de veículos automóveis e à fiscalização do cumprimento da obrigação de segurar esta responsabilidade, deve ser interpretado no sentido de que: o conceito de «veículo», na aceção desta disposição, não abrange uma bicicleta cujo motor elétrico só fornece pedalagem assistida e que dispõe de uma função que lhe permite acelerar sem pedalar até à velocidade de 20 km/hora, embora esta função só possa ser ativada depois de a força muscular ter sido utilizada.”
Em síntese (e sumariando, para os efeitos do art. 663º, nº 7 do CPC):
“O FGA não responde pelos danos causados em acidente de viação causado por bicicleta com motor eléctrico, conduzida por desconhecido”.
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.
Custas pelo apelante/autor.
António Magalhães (Relator)
Jorge Arcanjo
Manuel Aguiar Pereira