I - Vemos consignado no art.º 237.º, n.º 1 “do CEPMPL (“Âmbito do recurso”) que, “Salvo o disposto no número seguinte ou quando a lei dispuser diferentemente, o recurso abrange toda a decisão”, e o nº seguinte faculta ao recorrente a possibilidade de limitar o recurso que interponha à questão de facto ou à questão de direito.
II - A terminologia utilizada no art. 237.º, n.º 1 do CEPMPL refere-se a DECISÃO, assumindo essa qualificação tanto um despacho judicial como uma sentença.
III - O art.º 171.º, n.º 1 do CEPMPL “Cabe recurso da decisão que determine, recuse, mantenha ou prorrogue o internamento e da que decrete a respectiva cessação”.
IV -Para atacar esta decisão o CEPMPL admite expressamente a impugnação da matéria de facto, sob pena de ofende o conteúdo essencial do direito de defesa do arguido.
V- Dado que a perigosidade do internado mantém-se mas de forma atenuada, a sua libertação para prova é atualmente compatível com as necessidades de prevenção geral, com a paz e segurança da comunidade.
VI - O quadro clínico atual de doença do recorrente permite alguma garantia que com o seu seguimento em ambulatório e com suficiente apoio, se mantenha atenuada a perigosidade social a um ponto tal que em que é possível e razoável esperar que a finalidade da medida de segurança imposta pode ser alcançada em meio aberto, devendo o risco inerente à libertação ser comunitariamente assumido e suportado.
I. Relatório
Por decisão proferida no TEP no Juízo de Execução das Penas- J3, foi apreciada e decidida a não concessão de liberdade para prova ao requerente internado AA que cumpre medida de segurança de internamento com duração mínima de três anos e máxima de cinco anos.
Inconformado, internado interpôs recurso, considerando não ter sido efetuada correta aplicação dos critérios tendo sido violado o disposto no art. 94º, n º 1 do CPenal, pugnando, por isso, pela revogação da decisão proferida, com a consequente concessão de liberdade.
Apresenta em abono da sua posição as seguintes conclusões (transcrição):
“- CONCLUSÕES –
1. O objecto do recuso da decisão relativa à liberdade para prova está legalmente limitado, nos termos do disposto no art. 171º do CEP, que prevê que “Cabe recurso da decisão que determine, recuse, mantenha ou prorrogue o internamento e da que decrete a respectiva cessação”.
2. Assim, e salvo melhor e douta opinião de V.ªs Ex.ªs, deverá o recurso ser improcedente nesta parte, não se conhecendo da matéria de facto, de harmonia com o disposto no art. 171º, nº 1 do CEP.
3. Mesmo que assim se não entenda, e sem prescindir, sempre se dirá que da análise de todos os elementos constantes dos autos, não se vislumbra que haja contradição de relevo entre os mesmos e os factos dados como assentes, designadamente os constantes dos pontos 9, 12, 18 e 23, uma vez que a perícia psiquiátrica tem de ser analisada no seu todo, designadamente na parte em que se conclui que o internado tem antecedentes de alterações mentais e do comportamento, decorrentes do abuso de múltiplas substâncias psicotrópicas e álcool, enxertados numa personalidade que apontava para a existência de traços disfuncionais de personalidade, com impulsividade e dificuldade de controlo de impulsos, imaturidade emocional, ausência de planeamento, com pouca
consideração por consequências de atos levados a cabo.
4. A isto acresce a conclusão do relatório de Avaliação Clínica e Comportamental onde se refere que “muito embora o quadro clínico se encontre estabilizado, o internado revela pouca critica para o que motivou o actual processo, as consequências nefastas dos consumos de álcool ou o impacto das suas características de personalidade, nomeadamente a impulsividade marcada e a fraca tolerância à frustração”, bem como com os restantes elementos dos autos, motivo pelo qual a atenuação da sua perigosidade social, referida nas
alegações, resulta do ambiente contentor em que se encontra.
5. Da conjugação destes elementos, com a demais prova, cremos não haver reparos de relevo aos factos dados como assentes na douta decisão recorrida, tal como pretende o recorrente.
6. No que concerne ao apoio no exterior, atenta a desculpabilização e minimização da problemática do internado por parte da mãe e irmã do internado, bem como a ausência do gozo de licenças de saída jurisdicionais, nada resulta dos autos que garanta que a família conduzirá o comportamento do internado de modo rigoroso e assertivo, como necessário, em liberdade.
7. Na verdade, o arguido gozou do mesmo amparo familiar no préinternamento, designadamente aquando da suspensão da execução da medida de segurança, que não foi suficiente para que cumprisse a obrigação de tratamento imposta e que resultou na sua revogação.
8. O internado somente se mostra compensado em virtude do controlo psiquiátrico/psicológico a que está sujeito.
9. A manutenção de um espírito de autocrítica, traduzido no reconhecimento do carácter patológico e crónico da problemática de que padece e da necessidade de adesão ao tratamento/abstinência, só é possível se sujeito a acompanhamento psicológico adequado.
10. O arguido ainda revela pouca crítica para o que motivou o actual processo e as nefastas consequências dos consumos na sua personalidade, nomeadamente ao nível da impulsividade e fraca tolerância à frustração.
11. Mostra-se necessária uma maior maturação da consciência crítica sobre os factos praticados, sobre o seu diagnóstico clínico e à necessidade de tratamento.
12. Pese embora o internamento dure há mais de dois anos, ainda não reuniu as condições para que fossem concedidas medidas de flexibilização da pena de modo a que o seu comportamento, designadamente ao nível de manutenção da abstinência, pudesse ser testado em meio livre.
13. A perigosidade do arguido não se alterou, permanecendo a sua ambígua postura face à problemática de que padece e a não oferecer condições que permitam concluir que as finalidades preventivas da medida de segurança poderão ser alcançadas em liberdade.
14. Existe fundado receio de que venha a cometer factos da mesma espécie daqueles que originaram o seu internamento.
15. A medida de segurança cuja manutenção se determinou é, portanto, necessária e proporcional face ao narrado circunstancialismo clínico.
16. Assim, a manutenção de anomalia e perigosidade, o período curto de execução da medida de segurança, a ambivalência crítica face à doença e aos factos praticados, associados à sua gravidade e ao fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie não poderiam determinar outra decisão que não a da manutenção do internamento.
17. Por todos estes motivos se obteve parecer desfavorável por unanimidade em Conselho Técnico, posição seguida pelo Ministério Público no parecer oportunamente emitido.
18. Em face do exposto, a decisão recorrida não merece censura, porquanto suficientemente fundada e fundamentada, no respeito e conformidade legal.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V.as Ex.as doutamente suprirão, deve ser negado provimento ao recurso apresentado, mantendo-se a decisão recorrida.”
Questões a decidir no recurso
As questões a decidir consistem em:
Possibilidade de se impugnar a matéria de facto.
Erro notório.
In dúbio pro reo e
saber se se verificam no caso concreto os pressupostos de concessão à recorrente da liberdade de prova no âmbito da apreciação realizada em sede de medida de segurança.
Na decisão objeto do recurso foi dada como provada a seguinte factualidade (transcrição):
“I. RELATÓRIO
Para revisão do internamento de AA, melhor identificado nos autos, atualmente colocado na Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental – Estabelecimento Prisional ..., foi o processo instruído com os relatórios requeridos pelo artigo 158.º, do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade.
* *
O tribunal é competente.
Não existem nulidades, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
**
A. Factos Provados
1. O internado AA, nascido em ../../1965, no âmbito do processo n.º 787/16.9PCSTB, foi considerado inimputável e viu ser-lhe aplicada medida de segurança de internamento com a duração mínima de 3 anos e máxima de 5 anos, pela prática de factos integradores dos crimes de injúria agravada e dano qualificado.
2. Esta medida foi inicialmente suspensa na sua execução e mais tarde revogada em virtude do não cumprimento das obrigações impostas, designadamente a de submeter-se a tratamento à patologia de que padece.
3. Iniciou o cumprimento da medida em 18/11/2021.
4. Tem como limite mínimo de execução de MSI: 18/11/2024.
5. Tem como limite máximo de execução de MSI: 18/11/2026.
6. O internado padece de problemática do foro mental – alcoolismo e perturbação da personalidade.
7. O internado tem os antecedentes criminais constantes do CRC junto aos autos – cujo teor aqui se dá por reproduzido -, designadamente pela prática de um extenso número de crimes de furto, datando a sua primeira condenação de 30/03/1984.
8. Cumpre a 12.ª reclusão.
9. O internado mantém-se inimputável.
10. Consta do relatório médico-legal que: «o examinando compareceu ao exame pericial com marcha autónoma, vestido de forma limpa, adequada ao clima. Usava óculos. A idade aparente era coincidente com a real. A postura era colaborante, mas tentando dar de si uma imagem favorável. Encontrava-se orientado em todas as dimensões. O discurso era coerente, fluente. Não foram evidentes alterações do curso, forma ou conteúdo pensamento ou de outros sintomas psicóticos. Não foram percetíveis défices cognitivos, nomeadamente ao nível mnésico. O humor era eutímico. Juízo crítico conservado.»
11. Conclui o Perito Médico que «da análise de todos os elementos disponíveis, verificou-se que o examinando não evidenciava alterações psicopatológicas significativas. O examinando apresentava, no entanto, antecedentes de Alterações mentais e do comportamento decorrentes do abuso de múltiplas substancias psicotrópicas, em fase mais precoce da sua vida e relativamente às quais teria realizado tratamento; apresentava ainda antecedentes alterações mentais e do comportamento decorrentes do abuso do álcool, no contexto das quais teria cometido o ilícito em apreço e relativamente ao qual foi considerado inimputável perigoso. Estes quadros ter-se-iam enxertado numa personalidade, que avaliada a sua história existencial, apontavam para a existência de traços disfuncionais de personalidade, com impulsividade e dificuldades no controlo de impulsos, imaturidade emocional, ausência de planeamento, com pouca consideração por consequências de atos levados a cabo. O examinando reunia condições para prestar declarações perante o Tribunal, com ampla compreensão do seu contexto e respetivas implicações.»
12. Actualmente o internado encontra-se calmo e não faz qualquer medicação; todavia não revela insight para as consequências do seu comportamento anti-normativo e perigosidade das adições.
13. É impulsivo e demonstra baixa tolerância à frustração.
14. Em liberdade, AA pretende reintegrar o agregado da mãe, 84 anos. Prevê-se também até ao final do ano em curso a reintegração neste agregado de um outro irmão do internado, BB, que actualmente cumpre pena de prisão no EP 2....
15. A progenitora reside numa habitação arrendada, integrada num aglomerado de carácter social, que reúne condições de organização e salubridade. O imóvel situa-se numa zona de Setúbal limítrofe ao Bairro ..., caracterizado por problemas de ordem social e criminal. Porém, é mencionada uma rede de suporte e bom convívio vicinal, que foi desenvolvida e mantida pela mãe ao longo dos anos, especificamente no edifício onde esta reside.
16. CC, irmã do internado, presta suporte afectivo, organizacional e económico à progenitora. À semelhança desta, a irmã reitera a imagem de relação harmónica de AA com os restantes elementos da família, muito embora a progenitora assuma a existência de conflitos entre o internado e o irmão BB no passado. De salientar a minimização e/ou negação, por parte da mãe e da irmã, de qualquer dimensão relacionada com a saúde mental de AA, circunscrevendo as suas problemáticas de adaptação e interacção social ao consumo de álcool.
17. Em termos profissionais, AA verbaliza que pretende retomar funções como jardineiro e que para o efeito dispõe de ferramentas próprias. A família exibiu ao técnico da DGRSP a carta de rescisão de contrato, da empresa de jardinagem A..., cujo sócio-gerente relata o consumo abusivo de álcool e/ou outras substâncias de poder aditivo com implicações no desenvolvimento das funções do internado e na interacção com os funcionários.
18. Face aos diversos confrontos com a Justiça, o internado tende a os justificar com problemas resultantes de uma infância e adolescência conturbada e de ordem social, procurando atenuar responsabilidades ou mesmo minimizar a gravidade de determinadas práticas. Os problemas de natureza mental são ignorados e ainda que refira a problemática alcoólica, a mesma não é valorizada.
19. Em meio institucional, adopta postura reivindicativa e de vitimização face, por exemplo, à não concessão de medidas de flexibilização da MSI.
20. Ainda não beneficiou de medidas de flexibilização da MSI.
21. O internado já foi submetido a vários processos de desintoxicação, segundo informação da Equipa de Tratamento de Setúbal, no entanto, a sua adesão/colaboração foi diminuta, oferecendo resistência em aceder ao internamento em comunidade terapêutica.
22. Apesar do internado dispor do apoio da família, que lhe poderá proporcionar condições habitacionais e garantir a satisfação das necessidades básicas, mãe e irmã posicionam-se de forma desculpabilizante face ao percurso instável do internado e das suas consequências.
23. Mantém-se o quadro clínico que justificou a declaração de inimputabilidade, porquanto o mesmo é, pela sua natureza, crónico, bem como a sua perigosidade latente.
24. Necessita de uma tutela efectiva e constante no controlo dos seus comportamentos e no cumprimento das prescrições clínicas.
25. Face à personalidade que apresenta potencia a retoma dos comportamentos dissociais tão logo obtenha liberdade, o que decorre das limitações pessoais de que padece.
26. Tem mantido acompanhamento psiquiátrico e tentativa de estabilização clínica, pelo que o seu comportamento no relacionamento interpessoal tem sido adequado, com linear cumprimento das normas instituídas.
27. O internado registou experiência profissional como jardineiro.
28. Encontra-se em regime comum.
29. Está ocupado na realização de atividades promovidas pela clínica.
A convicção do tribunal no que respeita à matéria provada (sendo que inexistem factos não provados, com relevância para a decisão a proferir) resultou da decisão condenatória, da ficha biográfica e do CRC, o teor do Relatório Social, do Relatório Clínico-Psiquiátrico do relatório pericial, do parecer do conselho técnico, do parecer do Ministério Público e das declarações do internado.
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O facto típico e ilícito só configura a prática de um crime caso o comportamento do agente seja passível de uma censura ético-jurídica, ou seja, de culpa. A culpa, aqui, é aferida como capacidade pessoal do agente de se autodeterminar e pautar a sua conduta de acordo com a ordem jurídica. A
culpa revela-se pela autonomia ou liberdade e o discernimento ou inteligência que possibilitam ao agente ter consciência da ilicitude do facto. Nesta medida, não são passíveis de culpa e, portanto, inimputáveis, os menores de 16 anos de idade e as pessoas que padeçam de uma anomalia psíquica dado serem incapazes de, no momento da prática do facto, avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação. Por seu turno o art. 40.º, n.º 3, do cód. penal, prescreve que a medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente, assim se postulando o comando constitucional contido nos artigos 18.º, 27.º; 30.º, da CRP.
Ora, não havendo pena sem culpa, os inimputáveis, por agirem sem culpa, não podem ser punidos. Como tal, mesmo que imperativos de prevenção o exigissem, ao inimputável apenas pode ser aplicada medida de segurança, v.g. o internamento, e mesmo esta reação tão só vigora quando perigosidade do inimputável e as exigências de defesa social o imponham, não constituindo, aquela, mecanismo de resposta direta a um facto típico e ilícito mas tão só a uma perigosidade de que esse fato poderá constituir um indício. Prevalece, assim a noção de que o internamento de inimputáveis impõe uma interligação entre as medidas de segurança e o fato, sempre em termos de a gravidade do mesmo ser considerada na ponderação da perigosidade, excluindo-se a aplicabilidade do internamento de inimputáveis à prática, ainda que iterada, de nadas penais. Dai que a medida de segurança – assentando exclusivamente na perigosidade – é aplicada a quem, tendo cometido um fato ilícito, for considerado inimputável, sempre que, por virtude da anomalia e da gravidade do facto praticado, haja fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie – cfr. art. 91.º, do cód. penal.
Decretado o internamento e sem prejuízo do disposto 91.º, n.º 2, do cód. penal, este finda quando o tribunal verificar que cessou o estado de perigosidade criminal que lhe deu origem. Ainda assim, o internamento não pode exceder o limite máximo da pena correspondente ao tipo de crime cometido pelo inimputável, sendo a revisão da sua situação obrigatória decorrido um ano sobre o início do internamento (ou da decisão que o tiver mantido), podendo a situação, em casos justificados, ser apreciada fora daquela revisão obrigatória, para a cessação ou liberdade para prova, mas sempre respeitando o período mínimo de internamento definido no art. 91.º, n.º 1, do cód. penal.
Neste pressuposto – fazendo apelo ao quanto se diz no Ac. STJ 28out1998 (in BMJ480.º/99) -“O internamento de inimputável perigoso tem em vista, por um lado, livrar a comunidade da presença de um cidadão que a põe em perigo por não se comportar de acordo com os valores éticos, morais e sociais da mesma, mas, por outro, e o mais relevante, fazer cessar no internando o estado de perigosidade criminal que deu origem ao internamento, fazendo regressar ao convívio da comunidade um cidadão apto a respeitar os direitos dela.” -, cientes que a execução da medida de segurança se orienta para o tratamento e reinserção do internado, prevenindo a prática de outros factos criminosos e servindo a defesa da sociedade e da vítima em especial, há que aquilatar se, no presente e concreto momento, opera necessidade de manutenção (prorrogação) do internamento ou, pelo contrário, se impõe a sua cessação.
Concluindo: da revisão resultará um de três quadros:
a) se da revisão não resultar que há razões para esperar que a finalidade da medida possa ser alcançada em meio aberto, a sua execução mantém-se fixando-se procedimento de revisão obrigatória para dessa data a 1 ano (cfr. art. 93.º, n.º 2, do cód. penal) com o limite máximo do termo da MSI, correspondente ao tempo de pena que corresponderia ao crime mais grave;
b) se da revisão referida resultar que há razões para esperar que a finalidade da medida possa ser alcançada em meio aberto, o tribunal coloca o internado em liberdade para prova (cfr. art. 94.º, do cód. penal); ou seja, perante o quadro do doente, ainda que com seguimento em ambulatório, quando se mostre atenuada a perigosidade social, e seja razoável esperar que a finalidade da medida de segurança imposta possa, no futuro, ser alcançada em meio aberto, é concedida liberdade para prova, devendo o risco inerente à libertação ser comunitariamente assumido e suportado;
c) se da revisão resultar um quadro de cessação do estado de inimputabilidade perigosa, o internamento, pura e simplesmente, finda.
Ou seja:
Na hipótese a), a inimputabilidade com perigosidade mantém-se e é necessária a manutenção de internamento em regime prisional ou de unidade médica;
Na hipótese b) a inimputabilidade com perigosidade, ainda que com atenuação, mantém-se, mas não é necessária a manutenção de internamento em regime prisional ou de unidade médica, opera liberdade para prova;
Na hipótese c) a inimputabilidade com perigosidade cessou (porque apenas existe inimputabilidade, mas sem perigosidade, ou porque passamos a imputabilidade), pelo que o internamento finda.
No caso sub judicio estamos perante a problemática do foro mental – alcoolismo e perturbação da personalidade.
É patente que a personalidade imprevisível e perigosa do internado só se mostra amortecida por ação da terapia médica, sendo que em si o internado mantém o padecimento de personalidade anómala, com aspeto imprevisível.
Mais, só sob vigilância médica, com manutenção de efetivo controlo familiar, psiquiátrico e assistido socialmente, a sua inimputabilidade com perigosidade de repetição de atos, fica atenuada pela compensação clínica, porquanto o internado não revela capacidade plena e duradoura para discernir sobre a sua doença e aceitar de forma reiterada o necessário tratamento psiquiátrico.
Em regime institucional e cumprindo (até agora) a terapêutica psicofarmacologica regular tem sido capaz de estruturar razoavelmente o seu comportamento. Todavia, em liberdade, nada garante que, tal como no passado, o seu comportamento volte a destruturar-se e se revele incapaz de reger adequadamente a sua pessoa e governar os seus bens. Prognose realística fundada na ausência de um apoio familiar capaz de exercer controle férreo sobre o internado – é eloquente a atitude desculpabilizante que a mãe e a irmã apresentam quando confrontadas com a perigosidade do internado.
O internado também nunca beneficiou de LSJ – por não se mostrarem preenchidos os pressupostos legalmente estabelecidos no art. 78.º, do CEP -, pelo que permanece por validar o seu comportamento na reaproximação ao meio livre, bem como a recetividade da comunidade à sua presença. Importa, neste conspecto, consignar o nosso entendimento de que as licenças de saída e o cumprimento da MS em regimes abertos constituem etapas indispensáveis para que o internado possa ser testado através de contactos e solicitações vindas do exterior, pelo que necessita de iniciar o gozo de medidas de flexibilização, o que no caso assume particular relevância, considerando a personalidade evidenciada pelo internado. Só assim se saberá se o mesmo adquiriu a mínima preparação para o reingresso na sociedade.
Ora, sendo o instituto da liberdade para prova idóneo a salvaguardar, por um lado, a situação de liberdade do inimputável constitucionalmente protegida, mas também a defesa da sociedade face à perigosidade criminal, não se vislumbra possível concluir – atento o quadro supra descrito -, que, mesmo com seguimento em ambulatório e com suficiente apoio, pela atenuação da perigosidade social do internado a um ponto tal que seja este o momento em que se afirme que é razoável esperar que a finalidade da medida de segurança imposta possa, no futuro, ser alcançada em meio aberto, devendo o risco inerente à libertação ser comunitariamente assumido e suportado.
Ademais ainda não foi atingido o cumprimento do limite mínimo da medida e, considerando a gravidade dos crimes em causa, não cremos que a sua libertação, ainda que em liberdade para prova, se revele compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social – cfr. art. 91.º, n.º 2, do cód. penal.
Concluindo, toda esta manutenção dum especificado quadro de saúde mental com diagnóstico, sendo que não cessou o estado de inimputabilidade e de perigosidade criminal que deu origem ao internamento, força a reiteração do status quo processual do internando.
De facto, seria requisito essencial para que se mostrasse já legalmente possível a concessão do regime de liberdade para prova, a manutenção duma inimputabilidade com perigosidade, ainda que com atenuação, em que não seria necessária a permanência em regime de internamento, prisional ou de unidade médica, para que se alcançassem os fins da medida, caso em que seria expectável que tais fins se alcançassem em meio aberto, altura em que o risco inerente à libertação seria comunitariamente assumido e suportado.
Só que tal quadro se não verifica.
No caso sub judicio inexiste tal condição subjetiva, o que força a conclusão de que é exigível a manutenção (prorrogação) da medida de segurança, em regime de internamento, do inimputável.
* *
Em consonância com o exposto, decide-se manter o internamento de AA.
Relatório de perícia em psiquiatria
Relatório de Perícia Médico-Legal em Psiquiatria
Processo nº1796/21.1 TXLSB - A
A. Entidade Requisitante: Tribunal de Execução de Penas - Juízo de Execução de Penas do Porto - Juiz 3
B. Identificação do examinando: AA, nascido a ../../1965, 57 anos, solteiro.
C. Objeto da perícia: Avaliação para "… perícia psiquiátrica e sobre a personalidade do arguido, …"; devendo o relatório conter juízo sobre a capacidade para prestar declarações ao tribunal.
D. Metodologia: Entrevista forense, exame do estado mental e consulta de dados processuais.
A perita nomeada presta compromisso de cumprimento consciencioso da função que lhe foi atribuída.
E. História da doença atual, antecedentes pessoais e familiares: o examinando referiu ter nascido em angola, tendo regressado a Portugal aos nove anos de vida.
Terá sido saudável nos primeiros anos de vida.
Terá frequentado inicialmente a escola até concluir o 6º ano de escolaridade, aos 14 anos; mais tarde, já adulto, terá concluído o 9º ano de escolaridade.
Relatou ter começado a trabalhar aos 14 anos, como bate-chapas. Aos 16 anos, terá começado a trabalhar na reparação naval; terá trabalhado bastante tempo nesta área, mesmo em plataformas petrolíferas, no estrageiro, até aos 32 anos. Contou ter, depois, ido trabalhar nos fornos da siderurgia, atividade que terá mantido até aos 52 anos, altura em que terá constituído uma empresa na área da jardinagem.
O examinando também relatou iniciado os consumos de canabinóides aos 14 anos, tendo alargado o reportório dos consumos à cocaína e à heroína por volta dos 20 anos. Neste âmbito, terá tido acompanhamento em consultas de Psiquiatria a partir dos 27 anos, no CAT de Setúbal, tendo estado internado no Hospital 1... e no Hospital 2..., para realizar tratamentos de desintoxicação. Referiu não manter consumos daquelas substancias de abuso a partir dos 32 anos.
Afirmou ter mantido, no entanto, o consumo de álcool, com padrão abusivo de forma esporádica, tendo justificado assim: "… é um processo complicado, o álcool torna-se uma substituição das drogas, …".
Interrogado relativamente aos motivos subjacentes ao seu encarceramento, o examinando relatou o seguinte: "… estou em ... desde março deste ano, … por causa de ofensas verbais à autoridade, … houve três indivíduos que me abordaram, pediram a minha identificação, mas não se identificaram, … uma pessoa tinha bebido um copito, não estava completamente só, houve confusões, …".
O examinando referiu estar inscrito no centro de saúde de ..., mas desconhecer o nome do seu médico assistente. Negou realizar qualquer medicação psicotrópica.
Não foi possível obter outros dados relativos aos antecedentes do examinando.
F. Antecedentes Familiares: o examinando relatou que o pai, DD, teria falecido aos 63 anos e teria sido camionista; a mãe, EE, de 89 anos, seria ainda empresária de pastelaria.
Relatou pertencer a uma fratria de oito: a irmã mais velha, FF, de 70 anos, viúva, teria sido operária fabril; GG, de 67 anos, viúva, seria empresária em produtos dietéticos;
DD, de 65 anos, solteiro, residente na França; BB, de 63 anos, solteiro, pescador; HH, de 54 anos, solteiro, aposentado após acidente de viação; CC, de 52 anos, divorciada e protésica e II, de 50 anos, solteira, residente em ....
Relatou manter apenas contactos, esporádicos, com a irmã CC.
O examinando também contou ter vivido maritalmente com JJ, entre os 22 e os 27 anos. Terá tido um filho deste relacionamento, KK, de 33 anos, motorista na B..., com quem não mantém relação próxima. "Dei a mãe errada ao meu filho, ela marcou-me negativamente e não tinha um bom comportamento, nem como mulher, nem como mãe, … o meu filho nem foi desejado, nem planeado, …".
Relatou ainda ter mantido dois outros relacionamentos amorosos, de sensivelmente três anos cada, mas "…não surtiu efeito, … eram pessoas amigas, em termos de relação não funcionava, … ".
Ultimamente o examinado teria voltado a viver com a mãe.
Não foi possível obter outros dados relativos aos antecedentes familiares do examinando.
G: Dados Documentais: foram valorizados pericialmente os seguintes documentos, cujo conteúdo se considera aqui integralmente reproduzido: relatório pericial psiquiátrico, elaborado pela Dra. LL, a 09/05/2018; relatório da avaliação obrigatória, realizado pela Dra. MM, na Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental do Estabelecimento Prisional ..., a 29/05/2023.
H. Exame do estado mental: o examinando compareceu ao exame pericial com marcha autónoma, vestido de forma limpa, adequada ao clima.
Usava óculos.
A idade aparente era coincidente com a real.
A postura era colaborante, mas tentando dar de si uma imagem favorável.
Encontrava-se orientado em todas as dimensões.
O discurso era coerente, fluente.
Não foram evidentes alterações do curso, forma ou conteúdo pensamento ou de outros sintomas psicóticos.
Não foram percetíveis défices cognitivos, nomeadamente ao nível mnésico.
O humor era eutímico.
Juízo crítico conservado.
I. Discussão e conclusões: da análise de todos os elementos disponíveis, verificou-se que o examinando não evidenciava alterações psicopatológicas significativas.
O examinando apresentava, no entanto, antecedentes de Alterações mentais e do comportamento decorrentes do abuso de múltiplas substancias psicotrópicas, em fase mais precoce da sua vida e relativamente às quais teria realizado tratamento; apresentava ainda antecedentes Alterações mentais e do comportamento decorrentes do abuso do álcool, no contexto das quais teria cometido o ilícito em apreço e relativamente ao qual foi considerado inimputável perigoso.
Estes quadros ter-se-iam enxertado numa personalidade, que avaliada a sua história existencial, apontavam para a existência de traços disfuncionais de personalidade, com impulsividade e dificuldades no controlo de impulsos, imaturidade emocional, ausência de planeamento, com pouca consideração por consequências de atos levados a cabo.
O examinando reunia condições para prestar declarações perante o Tribunal, com ampla compreensão do seu contexto e respetivas implicações.
PORTO, 25 de outubro de 2023
Relatório social.
“RELATÓRIO SOCIAL
[x] no âmbito do art.º 158.º, nº3 alínea a) do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade [ ] no âmbito do art.º 166.º, nº1 alínea b) do do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade
Tribunal de Execução das Penas do Porto
Juízo de Execução das Penas do Porto - Juiz 3
Processo nº 1796/21.1TXLSB
Nome: AA
Filiação: DD e EE
Data de nascimento: ../../1965
Morada: actualmente na Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental do Estabelecimento Prisional ...
Data: 25.08.2023
Técnico da DGRSP: NN
Delegação Regional de Reinserção do Norte Equipa de Porto Penal 6
Telefone: ...30
E-mail: correio.porto.p6@dgrsp.mj.pt
DGRS ...20
Documento criado por Coordenador Porto Penal …
EP ... - Rua ..., ... ..., Tel. ...30/1 - Fax. ...78
O presente relatório foi elaborado com base nas seguintes metodologias e fontes:
- entrevista ao internado nas instalações da Clínica Psiquiátrica e de Saúde Mental do Estabelecimento Prisional ... (Estabelecimento Prisional ...);
- Estudo de Caracterização Familiar e Social elaborado pela Equipa de Reinserção Social Setúbal 1, em 21.08.2023, e que teve por base entrevista presencial à mãe, contacto telefónico com a irmã, CC, e deslocação ao meio comunitário;
- articulação com a técnica gestora de casos dos Serviços de Acompanhamento da Execução da Pena;
- consulta do dossiê do internado constituído nos Serviços de Reinserção Social.
1. ENQUADRAMENTO SÓCIO-FAMILIAR E PROFISSIONAL
Em liberdade, AA pretende reintegrar o agregado da mãe, 84 anos. Prevê-se também até ao final do ano em curso a reintegração neste agregado de um outro irmão do internado, BB, que actualmente cumpre pena de prisão no EP 2....
A progenitora reside numa habitação arrendada, integrada num aglomerado de carácter social, que reúne condições de organização e salubridade. O imóvel situa-se numa zona de Setúbal limítrofe ao Bairro ..., caracterizado por problemas de ordem social e criminal. Porém, é mencionada uma rede de suporte e bom convívio vicinal, que foi desenvolvida e mantida pela mãe ao longo dos anos, especificamente no edifício onde esta reside.
CC, irmã do internado, presta suporte afectivo, organizacional e económico à progenitora. À semelhança desta, a irmã reitera a imagem de relação harmónica de AA com os restantes elementos da família, muito embora a progenitora assuma a existência de conflitos entre o internado e o irmão BB no passado.. De salientar a minimização e/ou negação, por parte da mãe e da irmã, de qualquer dimensão relacionada com a saúde mental de AA, circunscrevendo as suas problemáticas de adaptação e interacção social ao consumo de álcool.
Apesar da idade, a progenitora afirma não beneficiar de qualquer pensão e/ou subvenção social por impedimentos relacionados com erros documentais na sua certidão de nascimento angolana, embora seja avançada a expectativa da situação poder vir a estar regularizada até ao final do presente ano civil.
As despesas com a habitação - renda de casa, fornecimento de água, energia eléctrica e gás -, bem como as restantes despesas de manutenção são asseguradas com o apoio de CC, irmã do internado.
Não foram avançadas preocupações no campo da sustentabilidade futura com a integração de mais dois elementos no agregado, nomeadamente AA e BB.
Em termos profissionais, AA verbaliza que pretende retomar funções como jardineiro e que para o efeito dispõe de ferramentas próprias. A família exibiu a carta de rescisão de contrato, da empresa de jardinagem A..., cujo sócio-gerente relata o consumo abusivo de álcool e/ou outras substâncias de poder adictivo com implicações no desenvolvimento das funções do internado e na interacção com os funcionários.
2. AVALIAÇÃO DAS PERSPETIVAS E NECESSIDADES DE REINSERÇÃO SOCIAL
AA regista confrontos com o sistema da Justiça desde os 16 anos de idade, inclusive cumprimento de pena de prisão, os quais não surtiram efeito dissuasor da prática de novos crimes.
Declarado inimputável, cumpre a medida de segurança de internamento pelo período mínimo de 3 anos e máximo de 5 anos por factos susceptíveis de integrar os crimes de injúria e dano, que resulta da revogação da suspensão do internamento. Recluído em 18.11.2021, encontra-se afecto à Clínica de Psiquiatria e Saúde Mental do Estabelecimento Prisional ... desde 04.03.2023.
Face aos diversos confrontos com a Justiça, AA tende a os justificar com problemas resultantes de uma infância e adolescência conturbada e de ordem social, procurando atenuar responsabilidades ou mesmo minimizar a gravidade de determinadas práticas. Os problemas de natureza mental são ignorados e ainda que refira a problemática alcoólica, a mesma não é valorizada. Em meio institucional, adopta postura reivindicativa e de vitimização face, por exemplo, à não concessão de medidas de flexibilização da pena.
Portador de problemas do foro psiquiátrico e de adicções, já foi submetido a vários processos de desintoxicação, segundo informação da Equipa de Tratamento de Setúbal, no entanto, a sua adesão/colaboração foi diminuta, oferecendo resistência em aceder ao internamento em comunidade terapêutica.
Relativamente às dimensões relacionadas com as necessidades específicas ao nível da problemática aditiva do inimputável, a mãe e a irmã reconhecem a Equipa de Tratamento de Setúbal como o único serviço envolvido no tratamento no âmbito da problemática do alcoolismo, afirmando a sua convicção de que o internado será capaz de dar cumprimento às suas obrigações terapêuticas em ambulatório, apesar de não reconhecerem que ocorreu no passado. Embora não identificando outras necessidades no âmbito da saúde mental, é mencionada a manutenção de médico de família no centro de saúde local.
Apesar de não serem percepcionados factores de rejeição ou animosidade, AA ainda não regressou ao meio, nomeadamente através da concessão de uma saída jurisdicional, por não ter reunido ainda condições para o efeito, pelo que não nos foi possível avaliar o seu comportamento no meio sócio-familiar.
3. CONCLUSÃO
Apesar de AA dispor do apoio da família, que lhe poderá proporcionar condições habitacionais e garantir a satisfação das necessidades básicas, mãe e irmã posicionam-se de forma desculpabilizante face ao percurso instável do internado e das suas consequências.
AA é portador de problemas do foro da saúde mental, os quais nega, e também no plano das adicções, sobretudo álcool, que nunca superou por os desvalorizar, resistindo à intervenção psicoterapêutica, postura que poderá constituir um entrave ao processo de reinserção social, caso se mantenha.
O internado regista diversos contactos com o sistema da Justiça penal que não resultaram enquanto factor dissuasor do comportamento delitivo.
Apesar das condições favoráveis, necessita de integração progressiva e contacto com o meio livre de modo a acautelar os propósitos de ressocialização que ainda não foram testados, pelo que são ainda relevantes os factores de risco existentes.
Em liberdade para prova AA irá residir na Alameda ... -
... Setúbal.
Competência para o acompanhamento:
Equipa da DGRSP Setúbal 1
Rua ..., ...
... Setúbal
Tel. ...20 Fax: ...01
correio.setubal1@dgrsp.mj.pt
Visto: 25.08.2023
O Técnico Superior de Reinserção Social O Coordenador
NN”
Relatório de avaliação clínica e comportamental:
Factos dados como provados em sentença que determinou o seu internamento:
“Factos Provados
Da audiência de julgamento e com relevo para a boa decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:
Da acusação e do pedido cível em especial
1. No dia 03 de Agosto de 2016, pelas 22h25, OO e PP, agentes da PSP, em pleno exercício das suas funções de autoridade pública, estando devidamente uniformizados e fazendo-se transportar em viatura policial caracterizada e com a matrícula ..-JQ-.., deslocaram-se até à residência do arguido, então sita na Av.ª ..., ..., em Setúbal, por ali haver notícia de desacatos e agressões entre dois indivíduos.
2. Nestas circunstâncias de tempo e lugar e após ali chegarem, o ofendido OO, ao ver o arguido em estado de grande exaltação, dirigiu-se ao mesmo para encetar diálogo.
3. Momento em que o arguido, de imediato e sem que nada o fizesse prever, dirigiu-lhe as expressões “que é que vocês querem, atrás dos criminosos não vão vocês, eu desconto para o vosso ordenado, vêm para aqui com luvas para quê? Não tenho medo de ninguém” e “quero a tua identificação, amanhã vou-te apanhar na rua e vou-te foder, vai para o caralho”.
4. Pelo que, no seguimento, lhe foi dada voz de detenção por tal agente da PSP, tendo sido algemado e depois conduzido ao veículo policial, tendo sido introduzido para o banco traseiro desta viatura.
5. Já no seu interior e, em acto contínuo, o arguido desferiu um número não concretamente determinado de pontapés na porta traseira do lado esquerdo da mesma.
6. Como consequência directa e necessária de tal conduta, o vidro da janela e vidro ventilador traseiros do lado esquerdo, a respectiva porta e caixilhos onde se encontravam acoplados ficaram destruídos.
7. Importando a sua substituição na quantia de €293,61.
8. Como consequência directa e necessária da actuação do ali arguido, o vidro da janela e vidro ventilador traseiros do lado esquerdo, a respectiva porta e caixilhos onde se encontravam acoplados da viatura policial ali melhor descrita, ficaram destruídos.
9. A reparação de tais danos importou para o Estado Português a quantia de 293,61€; (duzentos e noventa e três euros e sessenta e um cêntimos).
10. O ali arguido não pagou ao Estado/PSP, até ao momento, qualquer quantia.
Mais se provou que:
11. O arguido tem diagnóstico Transtorno por Uso de Álcool Grave.
12. O arguido tem antecedentes de consumo de drogas ilícitas entre os 15 e os 32 anos de idade.
13. O arguido encontrava-se em estado de embriaguez à data dos factos. O seu estado terá interferido com a capacidade de avaliação do real e no processamento cognitivo da informação.
14. O arguido não reunia capacidade para entender o carácter ilícito dos factos praticados à data dos mesmos, nem para se ter determinado de acordo com esse eventual entendimento.
15. Os aspectos da personalidade ainda que devendo ser tidos em conta para avaliar da probabilidade de repetição de factos semelhantes, não relevam para a questão Médico-Legal da imputabilidade, nem diminuição desta.
16. O arguido apresenta Insight para a sua doença.
17. Actualmente, o arguido não beneficia de acompanhamento, sendo que fez várias desintoxicações das quais terão resultado períodos curtos de abstinência, recaindo ao final de 30-40 dias.
18. Em termos Médico-Legais, pode afirmar-se que quando e para os actos de que se encontra acusado, o arguido não estaria capaz de “avaliar a ilicitude dos seus actos” e “de se determinar de acordo com essa avaliação”, integrando, ergo, os pressupostos médico-legais de inimputabilidade.
19. Será da maior importância o seu internamento para tratamento especializado. A sua evolução será determinada em função do cumprimento ou abandono da medicação prescrita, bem como do acompanhamento especializado que deve manter de forma regular.
Das condições sócio-económicas, familiares e profissionais do arguido e seus antecedentes criminais em especial
20. O arguido nasceu em ../../1965, e está solteiro.
21. O arguido vive com a sua mãe.
22. O arguido tem a profissão de carpinteiro, mas está desempregado, beneficiando, para a sua substância, de um subsídio no valor de € 25,00 do Reino Unido e de ajuda que lhe é prestada por familiares e amigos.
23. O arguido tem um filho maior de idade.
24. Como habilitações literárias, o arguido tem o 9.º Ano de Escolaridade.
25. O arguido está a ser acompanhado em consultas de psiquiátrica no CAT de Setúbal, estando em vias de ser internado para desabituação do vício do álcool.
26. O arguido regista antecedentes criminais averbados no seu certificado de registo criminal, nos termos seguintes: entre 1984 e 2000, cometeu e foi condenado pelos crimes seguintes: 7 crimes de furto qualificado; 6 crimes de furto; 2 crimes de condução de veículo sem habilitação legal; 3 crimes de condução de veículo em estado de embriaguez; 1 crime de omissão de auxílio; 4 crimes de desobediência; 1 crime de resistência e coacção sobre funcionário; 1 crime de evasão; 1 crime de emissão de cheque sem provisão.
Com relevância para a boa decisão da causa, não resultaram provados os factos que não se compaginam com os supra indicados, designadamente:
a) Que o arguido nas apontadas circunstâncias estivesse ciente de que as palavras que proferia eram aptas a causar ofensa do nome e consideração pessoal e profissional do agente policial.
b) Que o arguido nas apontadas circunstâncias ao actuar da forma descrita, nomeadamente ao desferir pontapés na porta traseira da viatura policial, tivesse agido com o propósito consciente e concretizado de danificar ou destruir a mesma e respectivos vidros nela acoplados, e que bem soubesse que se tratava de um bem móvel destinado à utilidade pública e ao serviço e uso público e que actuava contra a vontade do seu legítimo proprietário, o que quis e fez.
c) Que o arguido tivesse agido sempre livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que tais condutas como as descritas eram punidas pela lei penal.”
Vejamos.
Primeira questão a conhecer é a da admissibilidade da impugnação de facto deste tipo de decisões.
Não desconhecendo divergências jurisprudenciais a respeito. Elas incidem sobretudo sobre a natureza da decisão, ou seja, se se consubstancia num despacho judicial ou numa sentença.
Sem perder muito tempo, parece-nos liquido que aquela decisão revisão de medida de internamento é um despacho judicial e não uma sentença.
A partir daqui, coloca-se a questão de saber se a mesma pode ser impugnada factualmente.
Alicerçados na ideia de que o art. 400º do CPP se aplica apenas às sentenças, alguns vêm decidindo que tratando-se de despachos judiciais, como é o caso dos autos, não pode haver impugnação de facto.
Dizemos o seguinte.
Preceitua o art.º 399º do CPP – inserido no Título I “Dos recursos ordinários” – que “É permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei”.
Por sua vez, vem consignado no art.º 400.º, n.º 1 do CPP (cuja epígrafe é “Decisões que não admitem recurso), “Não é admissível recurso”:
a) De despachos de mero expediente;
b) De decisões que ordenam actos dependentes da livre resolução do tribunal;
c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que não conheçam, a final, do objecto do processo;
d) De acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, exceto no caso de decisão condenatória em 1.ª instância em pena de prisão superior a 5 anos;
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos;
f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;
g) Nos demais casos previstos na lei.”
E o art.º 171.º, n.º 1 do CEPMPL prescreve que “Cabe recurso da decisão que determine, recuse, mantenha ou prorrogue o internamento e da que decrete a respetiva cessação”.
Ora, o recorrente interpôs recurso da decisão do Tribunal de Primeira Instância que manteve o seu internamento.
Circunscrevendo-se, por conseguinte, o recurso interposto entre os recursos permitidos pelo art.º 171.º, n.º 1 do CEPMPL.
E não se inserindo, naturalmente, entre quaisquer das diversas alíneas do art.º 400.º, 1 do C.P.P. – incluindo a sua alínea g) – que excluem possibilidades de recurso.
A consagração do direito ao recurso na nossa Lei Fundamental, e com a primordial densificação que lhe é conferida pela inserção na parte concernente aos Direitos, Liberdades e Garantias.
Com efeito, vemos consignado no n.º1 do art.º 32.º da CRP (“Garantias do Processo Criminal”): “O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”.
A parte final do referido preceito – “incluindo o recurso” – foi introduzida na Revisão de 1997, discutindo-se anteriormente à Revisão se o recurso, sobretudo o recurso em matéria de facto, era ou não um dos direitos que a Constituição garantia ao arguido, tendo ido nesse sentido os Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 8/87, 31/87, 295/88, 353/91, 610/96 e 30/2001 – conforme anotação de Germano Marques da Silva e Henrique Salinas in Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I, 2ª Edição, Jorge Miranda e Rui Medeiros, pág. 713.
Conjugadamente, o acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva, consagrado no art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa, numa sua vertente dimensional de plenitude do acesso à jurisdição e aos princípios da juridicidade e da igualdade, inclui um direito ao recurso.
E refere Rui Medeiros, em anotação ao art.º 20.º da Lei Fundamental – na obra supramencionada, página 450 –, que “O Tribunal Constitucional reconhece, no entanto, que – por força dos art. 27.º, 28.º e 32.º, n.º 1 – a exigência de um duplo grau de jurisdição – e não necessariamente de um triplo grau de jurisdição – está constitucionalmente consagrada no âmbito do processo penal, não relativamente a todas as decisões proferidas, mas em relação às decisões condenatórias do arguido (Acs. nºs 353/91, 373/99, 387/99, 459/00 e 417/03), bem como em relação às decisões respeitantes à situação do arguido em face da privação ou restrição da liberdade ou de quaisquer outros direitos fundamentais (Acs. nºs 1124/96 e 390/04), incluindo na fase de execução de penas (cfr., por exemplo, em relação à decisão denegatória da liberdade condicional, Ac. nº 638/06).
Com especial pertinência para o que aqui versamos, ou seja, a admissibilidade do recurso na parte da matéria de facto, Germano Marques da Silva e Henrique Salinas, na mesma página 713 da anotação suprarreferida, asseveram que “Face ao texto vigente, o direito a pelo menos um grau de recurso, em termos amplos, abrangendo questões de direito e de facto, é agora constitucionalmente garantido”.
E esta possibilidade de recorrer da matéria de direito e da matéria de facto é concretizada na lei ordinária, nomeadamente no art.º 410.º, n.º 1 do CPP, o qual prescreve que “Sempre que a lei não restrinja a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida”.
Paulo Pinto de Albuquerque, na sua obra Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, em comentário ao art.º 410.º, na pág. 1077, refere: “Os poderes de cognição da matéria de facto pelo tribunal superior constituem o cerne da garantia constitucional do duplo grau de jurisdição”.
E no comentário ao art.º 399.º do CPP, na anotação 5 (páginas 1036 e 1037), Paulo Pinto Albuquerque, depois de mencionar “É certo que o legislador constituinte deu uma particular importância a esta questão no âmbito do processo penal, consagrando um direito constitucional do arguido ao recurso no art.º 32º, n.º1, da Constituição, na revisão constitucional de 1997, na linha do direito estabelecido pelo artigo 2.º do protocolo adicional n.º 7 à Convenção Europeia dos Direitos do Homem e pelo artigo 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.”
Assinala, com especial pertinência para o assunto versado (a admissibilidade do recurso na parte da matéria de facto), logo em seguida, que “Este direito consubstancia-se num direito a recorrer de decisões condenatórias e de “decisões de privação ou restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais do arguido” (acórdãos do TC nº 31/87, nº 178/88, nº 265/94 e nº 720/97 e acórdãos do TEDH Delcourt v. Bélgica, de 17.1.1970, Krombach v França, de 13.2.2001, Mariani v. França, de 31.3.2005, Gurepka v Ucrânia, de 6.9.2005, e Grecu v. Roménia, de 30.11.2006)”.
E, na sequência, acrescenta também Paulo Pinto Albuquerque, na pág. 1036, após referir “A sentença condenatória deve também ser controlada quanto à matéria de facto”, que “Também os recursos das decisões de privação ou restrição de direitos fundamentais devem controlar os pressupostos de facto das mesmas (acórdão do TEDH Nikolova v Bulgaria (GC), de 25.31999)”.
Atente-se e sublinhe-se, desde já, a douta opinião de Paulo Pinto de Albuquerque, quando na última asserção se refere a recursos de decisões (de privação ou restrição de direitos fundamentais) e não a recursos de sentenças.
Distinguindo terminologicamente (decisões e sentenças) e incluindo o recurso de outras decisões – que não sentenças – entre aqueles recursos em que é permitido recorrer da matéria de facto, não subsistindo, deste modo, dúvida na asserção do insigne penalista que se pode recorrer da matéria de facto em outras decisões que não são sentenças, desde que tais decisões sejam de privação ou restrição de direitos fundamentais.
Na mesma senda, na continuação da suprarreferida anotação ao art.º 32.º na obra mencionada, por parte de Germano Marques da Silva e Henrique Salinas, quando referem, na página 715, que “A análise da jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre o direito ao recurso em processo penal revela-nos que a parte final do n.º 1 não implica a recorribilidade de toda e qualquer decisão proferida ao longo do processo.
Este era já o sentido da jurisprudência, mesmo antes da Revisão de 1997, resultando da mesma que o direito ao recurso em processo penal não constituía um direito absoluto, podendo ser restringido em relação a decisões proferidas ao longo do processo, desde que não se atinja o conteúdo essencial do direito de defesa do arguido (negrito nosso).
“Já na fundamentação do acórdão nº 178/88 justificava-se esta solução nos seguintes termos: “A garantia de um duplo grau de jurisdição traduz-se, deste modo, na possibilidade de a situação de eventual ofensa ao direito de liberdade e segurança poder ser reexaminada, concernentemente a todos os fundamentos que poderão determinar a decisão da causa, por um tribunal diferente hierarquicamente superior. Dito de uma forma simplista, a garantia de um duplo grau de jurisdição tem que ver essencialmente com a definição da situação jurídico-criminal do arguido em matéria que contenda com a privação, limitação ou restrição dos seus direitos e garantias fundamentais da liberdade e segurança, e não, diretamente, com o cumprimento das regras procedimentais ou processuais a que o legislador subordine as decisões judiciais em tal matéria.”
Continuam dizendo: “Ou seja, como se exarou na fundamentação do acórdão nº 610/96, o preceito constitucional “impõe que se consagre o direito de recorrer de decisões condenatórias e de actos judiciais que, durante o processo, tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais do arguido”. Já no que respeita a outras decisões é admissível que o legislador determine a sua irrecorribilidade “desde que não atinja o conteúdo essencial das garantias de defesa (…) e a limitação seja justificada por outros valores relevantes no processo penal”.”
E é em consonância com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, com o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, com a Constituição da República Portuguesa e na esteira da douta interpretação dos excelsos constitucionalistas e penalista – Germano Marques da Silva, Henrique Salinas, Rui Medeiros e Paulo Pinto de Albuquerque –, e da vasta jurisprudência do Tribunal Constitucional e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem pelos autores mencionada, que constatamos ter o legislador preceituado no Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade a possibilidade de recurso, e, mais concretamente, a possibilidade de recurso da matéria de facto.
Efetivamente, o legislador fez constar do art. 146.º, n.º 1 do CEPMPL, que os atos decisórios do juiz de execução das penas são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
E não o fez por acaso ou capricho, referindo-se a todos os atos decisórios, e não só a sentenças.
Fê-lo, exatamente, de modo a que o internado (neste caso), possa conhecer todos os fundamentos que levaram à decisão, e também para que possa deles recorrer, efetivando, dessa forma, o seu direito de recurso, como forma de controlar os pressupostos das decisões que privem ou restrinjam os seus direitos fundamentais.
Ademais, vemos consignado no art.º 237.º, n.º 1 “do CEPMPL (“Âmbito do recurso”) que, “Salvo o disposto no número seguinte ou quando a lei dispuser diferentemente, o recurso abrange toda a decisão”- negrito nosso.
Sendo que o número seguinte faculta ao recorrente – não coartando, sublinhamos – a possibilidade de limitar o recurso que interponha à questão de facto ou à questão de direito, o que imediatamente induz a possibilidade de recurso da matéria de facto.
Embora as questões terminológicas não sejam as mais relevantes, atentamos para a terminologia utilizada no supracitado art. 237.º, n.º 1 do CEPMPL: DECISÃO. E esta tanto pode ser um despacho judicial como uma sentença. Aliás, a maior parte das decisões proferidas num Tribunal de Execução de Penas consubstanciam-se em despachos judiciais, poucas são as que revestem natureza de sentença e o próprio legislador no âmbito daquele código distingue-as. Ao optar pelo termo decisão está a optar por ambas.
Decisão que é, como acima mencionado, a decisão (ou uma das elencadas decisões) a que alude o art.º 171.º, n.º 1 do CEPMPL, que estatui: “Cabe recurso da decisão que determine, recuse, mantenha ou prorrogue o internamento e da que decrete a respectiva cessação”.
Para atacar esta decisão o CEPMPL admite expressamente a impugnação da matéria de facto. Este regime especial de recurso prevalece naturalmente sobre o do art. 400º do CPP.
Decisão essa que, in casu, foi proferida no âmbito da Revisão obrigatória prevista no art.º 158.º do CEPMPL e no art.º 93.º, n.º 2 do CP, e que manteve o internamento do recorrente.
Sendo, naturalmente, uma decisão privativa de direitos fundamentais.
Inclusive, mais intensamente, uma decisão privativa de um Direito, Liberdade e Garantia.
Uma decisão que priva o recorrente de um dos direitos fundamentais mais relevantes da pessoa humana – tal é a relevância que, parte da doutrina constitucionalista o equipara ao direito à vida –, o Direito à Liberdade, consagrado no art.º 27.º da Constituição da República Portuguesa.
José Lobo Moutinho, em anotação (na obra supra referida) ao art.º 27.º da C.R.P., assinala: “A liberdade é um momento absolutamente decisivo e essencial – para não dizer, o próprio e constitutivo modo de ser – da pessoa humana (Ac. nº 607/03: “exigência ôntica”), que lhe empresta aquela dignidade em que encontra o seu fundamento granítico a ordem jurídica (e, antes de mais, jurídico-constitucional) portuguesa (art.º 1º da Constituição). Pode dizer-se, nesse sentido, a “pedra angular” do edifício social” (Ac. nº 1166/96).”
Tratando-se deste direito fundamental que é o Direito à Liberdade, com a essencialidade que lhe é reconhecida, seria assaz incompreensível que o ordenamento jurídico e a prática judiciária não facultassem ao recorrente, perante a privação desse direito - quando ele considera legitimamente preencher os pressupostos para não ter de suportar essa privação -, a possibilidade de se defender da decisão que considera injusta através do recurso da matéria de facto.
Com efeito, é na parte do recurso da matéria de facto que o aqui recorrente poderá fazer a sua defesa em relação a uma decisão injusta.
Efetivamente, é na parte do recurso da matéria de facto que o Internado, aqui recorrente, poderá expor e dilucidar da forma que considera correta a historicidade da sua evolução clínica, a sua condição de saúde atual e os pressupostos de facto subsumíveis aos preceitos e ao Direito das Medidas de Segurança, que poderão resultar numa decisão diferente da proferida pelo Tribunal de Primeira Instância.
Mormente, é na parte do recurso da matéria de facto que o recorrente poderá fazer a sua defesa perante uma decisão injusta e demonstrar a um tribunal superior que são inexistentes exigências de prevenção especial e de prevenção geral no que concerne, designadamente, à sua situação atual, à de outros sujeitos processuais e da comunidade, em conformidade com o Direito das Medidas de Segurança.
Seria assaz redutor de um Estado de Direito se a uma decisão judicial de privação de um direito fundamental - acresce, com a primordial relevância do Direito à Liberdade – apenas coubesse recurso da matéria de direito e dos vícios elencados no artº 410.º, n.º 2 do CPP.
Com efeito, faz todo o sentido que uma decisão judicial que implique a privação de direitos fundamentais possa ser sindicada nas suas diversas dimensões, e particularmente na parte da matéria de facto.
Entendimento diferente, ofende, inapelavelmente, o conteúdo essencial do direito de defesa do arguido.
Em face do exposto, o recurso é admissível quanto à matéria de facto.
Argumenta o recorrente que considera incorretamente julgados como provados:
• Ponto 9 dos factos provados: "O internado mantém-se inimputável";
• Ponto 12 dos factos provados - última parte: "Não revela insight para as consequências do seu comportamento anti-normativo e perigosidade das adições.";
• Ponto 18 dos factos provados: "Face aos diversos confrontos com a Justiça, o internado tende a os justificar com problemas resultantes de uma infância e adolescência conturbada e de ordem social, procurando atenuar responsabilidades ou mesmo minimizar a gravidade de determinadas práticas. Os problemas de natureza mental são ignorados e ainda que refira a problemática alcoólica, a mesma não é valorizada.";
• Ponto 23 dos factos provados: "Mantém-se o quadro clínico que justificou a declaração de inimputabilidade, porquanto o mesmo é, pela sua natureza, crónico, bem como a sua perigosidade latente.";
Quanto à especificação exigida pelo art. 412°, n.° 3, al. b do CPP, o recorrente indica o Relatório sobre evolução comportamental datado de 10 de Agosto de 2023 subscrito pela Técnica Superior de Reeducação, presente nos autos, bem como passagens específicas das provas referenciadas na motivação da decisão, das quais, em seu entender, se deve concluir com segurança que o tribunal decidiu mal na valoração que fez daquelas provas, a saber:
1) Pontos 9 e 23 dos factos provados 1.1.) Relatório de Avaliação Clínica e Comportamental datado de 28 de Julho de 2023 subscrito por médica psiquiatra: "não existe registo de alguma vez ter apresentado evidência de doença mental grave, nomeadamente sintomatologia psicótica ou alterações graves do humor"; "(...) actualmente mantém um comportamento calmo e adequado(...)"; "(…) cumpridor das regras da lnstituição(...)";"foi sempre cumpridor da terapêutica psicofarmacológica instituída, estando, actualmente, não medicado por não existir, de momento, essa necessidade;"(...) muito embora o quadro clínico se encontre estabilizado (...);
1.2) Relatório de Perícia Médico-Legal em Psiquiatria datado de 25 de Outubro de 2023: "A postura era colaborante, mas tentando dar de si uma imagem favorável. Encontrava-se orientado em todas as dimensões. O discurso era coerente, fluente. Não foram evidentes alterações do curso, forma ou conteúdo pensamento ou de outros sintomas psicóticos. Não foram percetíveis défices cognitivos, nomeadamente ao nível mnésico. O humor era eutímico. Juízo crítico conservado.(...) Da análise de todos os elementos disponíveis, verificou-se que o examinando não evidenciava alterações psicopatológicas significativas. (...). O examinando reunia condições para prestar declarações perante o Tribunal, com ampla compreensão do seu contexto e respetivas implicações".
1.3) Declarações prestados pelo Internado (cfr. minutos 6.13 a 6.47 do registo sonoro das declarações) perante o Tribunal: "Hoje tenho outra maturidade" (..), já não sou "um jovem que tem a vida toda à sua frente")
Pelo que devia ter-se feito uma referência explícita à atenuação da perigosidade social no âmbito do quadro clínico atual do internado.
Refere a propósito que O Tribunal "a quo", ao fundamentar a valoração efetuada à perícia médico- legal, subtraído que está o seu juízo técnico à apreciação do julgador, deverá sempre fazê-lo nos precisos termos do seu alcance de reporte ao art. 163.°CPP, inexistindo qualquer razão para da mesma divergir.
Não o tendo feito, violou o tribunal "a quo" o disposto nos artigos. 127.° e 163.° ambos do Cód. de Proc. Penal.
A prova por si invocada não impõe versão diferente da encontrada pelo tribunal a quo e dada por assente na medida em que padecendo de doença de natureza crónica, alcoolismo, tendo uma eventual recaída a perigosidade virá ao de cima e por essa razão que se deu como provado o ponto 23.
A demais matéria fáctica invocada pelo recorrente não coloca a restante em causa, pois que o relatório de avaliação fala na inexistência de doença mental grave o que não afasta a existência de problemas de foro mental associadas ao consumo de álcool, a inimputabilidade associada àquele consumo e alguma dificuldade em perceber a perigosidade das adições e o comportamento antinormativo que aquelas podem geral.
De todo o modo não pode ignorar-se a evidência de que no atual quadro clínico se verifica uma atenuação da perigosidade social, na medida em que inexiste sintomatologia psicótica ou alterações graves de humor, mantém um comportamento calmo e adequado, cumpriu com a terapia psicofarmacológica, estando atualmente não medicado por não existir necessidade, com quadro clínico estabilizado, sendo o seu humor eutímico, ou seja, normal.
É claro que se trata de um quadro clínico onde o recorrente se encontra muito controlado sem possibilidade de acesso ao álcool, mas não pode ser ignorado, pelo que se deve acrescentar o ponto 23-A com a seguinte redação “ No âmbito do atual quadro clínico do internado a sua perigosidade social mostra-se mais atenuada”.
Refere o recorrente relativamente aos Pontos 12 e 18 dos factos provados que do teor das declarações do Internado e no relatório subscrito pela técnica Superior de Reeducação em momento algum decorre que o Internado desvalorize as suas adições de álcool e droga, e, sobretudo, negue os seus problemas mentais.
Das provas suprarreferenciadas resulta precisamente o contrário, ou seja, o Internado revela profunda interiorização da sua conduta desvaliosa e problemas de saúde mental.
Sustenta-se nas seguintes provas: Relatório sobre evolução comportamental datado de 10 de Agosto de 2023 subscrito pela Técnica Superior de Reeducação: "(...) perante a medida de internamento o doente reconhece a necessidade da sua aplicação";
Declarações prestados pelo Internado perante o Tribunal: do registo sonoro das declarações): "(...) Tenho consciência que foi uma coisa grave que eu fiz" (...) e " isto (o internamento) "até veio em boa hora, porque estava a tomar consciência que estava a entrar num estado de alcoolismo crónico" (cfr. minutos 2.05 a 2.47); "Hoje tenho outra maturidade" (...), já não sou "um jovem que tem a vida toda à sua frente" (cfr. minutos 6.13 a 6.47)
Pelo que o Tribunal" a quo" deveria, diversamente, ter dado como provado que "o internado tem consciência da doença e da necessidade do tratamento".
Vejamos.
Parece-nos que não pode ignorar-se estas informações e embora se não chegue à conclusão que haja profunda interiorização da sua conduta desvaliosa, revelam que o internado começa a reconhecer não só a necessidade do internamento ocorrido mas também as implicações que o seu estado de alcoolismo tiveram e podem ter quer na sua saúde quer na sua relação com os outros.
Em face do exposto, deve a última parte do ponto 12 e o ponto 18 dos factos provados factos provados ser substituído por:
Ponto 12 última parte: "Começa a revelar insight para as consequências do seu comportamento anti-normativo e perigosidade das adições."
Ponto 18 "Face aos diversos confrontos com a Justiça, o internado tende a os justificar com problemas resultantes de uma infância e adolescência conturbada e de ordem social, procurando atenuar responsabilidades ou mesmo minimizar a gravidade de determinadas práticas. Os problemas de natureza mental são ignorados e referindo a problemática alcoólica, a mesma começa a ser valorizada ao ter consciência da doença que padece, da perigosidade das suas adições e da necessidade do tratamento".
Invoca o recorrente a existência de uma situação de erro notório na APRECIAÇÃO DA PROVA.
Ora, o vicio do erro notório diz respeito à impugnação da matéria de facto de forma restrita.
No expressamente invocado vício do erro notório na apreciação da prova, com referência ao art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPPenal estão em causa defeitos que têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida, sem apoio em quaisquer elementos externos à mesma, salvo a sua interpretação à luz das regras da experiência comum. São falhas que hão de resultar da própria leitura da decisão e que são detetáveis pelo cidadão médio, devendo ser patentes, evidentes, imediatamente percetíveis à leitura da decisão, revelando juízos ilógicos ou contraditórios.
O erro notório na apreciação da prova é uma falha que resulta, como se referiu, do próprio texto da decisão recorrida, sem apoio em quaisquer elementos externos à mesma, salvo a sua interpretação à luz das regras da experiência comum, e traduz-se numa deficiência lógica na apreciação da prova, num «erro patente, evidente, percetível por um qualquer cidadão médio.»[1]
É o caso, por exemplo, de as provas apontarem em determinado sentido e na decisão se concluir em termos opostos, o que é passível de ser detetado por qualquer pessoa de mediana formação[2].
Importa salientar, todavia, que a mera divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida e a convicção do Tribunal não configura o vício em apreço[3].
E também não configura tal vício, como parece resultar da argumentação, um diferente enquadramento jurídico da matéria fáctica exarada no texto da decisão.
Tal como se mostra exarada a matéria fáctica pelo tribunal a quo não encontramos nenhuma distorção lógica entre os factos ou entre estes e a motivação ou entre estes dois últimos e o enquadramento jurídico que o tribunal deu na interpretação que fez daqueles factos.
Não se verifica, pois o vicio do erro notório na apreciação da prova.
Também não se verifica nenhuma situação que possa configurar-se como violação do princípio do in dubio pro reo.
Afirma o recorrente que o Tribunal a quo violou o princípio do in dubio pro reo.
O artigo 127º do Código de Processo Penal consagra o princípio da livre apreciação da prova, o qual pressupõe que esta seja considerada segundo critérios objetivos que permitam estabelecer o substrato racional da fundamentação da convicção.
O princípio in dubio pro reo constitui um limite normativo a esse outro princípio da livre apreciação da prova, na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos: em tal situação, impõe-se que o tribunal decida a favor do arguido.
Como corolário do princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, decorre do princípio in dubio pro reo que todos os factos relevantes para a decisão que sejam desfavoráveis ao arguido e que, face à prova, não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador, não podem dar-se como provados.
Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, será dado como não provado se lhe for desfavorável, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa.
Porém, não é toda a dúvida que justifica a absolvição com base neste princípio. Mas apenas aquela que for inultrapassável, séria e razoável a reserva intelectual à afirmação de um facto que constitui elemento de um tipo de crime ou com ele relacionado, deduzido da prova globalmente considerada. A própria dúvida está sujeita a controlo, devendo revelar-se conforme à razão ou racionalmente sindicável, pelo que, não se mostrando racional, tal dúvida não legitima a aplicação do citado princípio.
A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Terá de ser uma dúvida séria, positiva, racional e que ilida a certeza contrária. Por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a íntima convicção do tribunal, que seja argumentada e coerente (cf. Os acórdãos do STJ de 17-03-2016, processo n.º 849/12.1JACBR.C1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt, e de 04-11-1998, in BMJ n.º 481, pág. 265.).
Daí que o Tribunal de recurso só possa censurar o uso feito desse princípio se da decisão recorrida resultar que o Tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido.
O princípio in dubio pro reo encerra, portanto, uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa, pelo que a sua violação exige que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.
À semelhança do que sucede com os vícios consagrados no n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo, em sede de recurso, a violação do princípio in dubio pro reo apenas ocorre quando tal resulte da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, pois o recurso não constitui um novo julgamento (cf. o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/01/2015, processo n.º 72/11.2GDSRT.C1 disponível em http://www.dgsi.pt.).
No caso em apreço, o recorrente apela ao princípio in dubio pro reo essencialmente como corolário da sua apreciação da prova, no sentido que se impunha considerar uma alteração atenuativa do estado de perigosidade e nessa medida ter-se colocado o recorrente em liberdade para prova. Contudo, em momento algum resulta da decisão recorrida que relativamente aos factos provados e objeto dos autos, o Tribunal a quo se defrontou com dúvidas que resolveu contra aquele ou demonstrou qualquer dúvida na formação da sua convicção.
Pelo exposto, não tem fundamento invocar aqui o princípio constitucional in dubio pro reo, improcedendo o recurso também nesta parte.
Do enquadramento jurídico.
Posto, isto, tendo presente as alterações que se fizeram supra na matéria fáctica dada por assente, importa, agora sim, analisar se é possível ir pela via requerida pelo recorrente para obtenção da liberdade de prova.
Preceituam os artigos 158.º do Código de Execução das Penas e 93.º, n.º 2 do Código Penal que a revisão da medida de segurança é obrigatória decorridos dois anos sobre o seu início ou sobre a decisão que o tiver mantido.
Cabe ao Tribunal, neste âmbito, aferir da manutenção dos pressupostos que determinaram a aplicação ao arguido de uma medida de segurança, devendo cessar logo que cesse o estado de perigosidade (artigo 92.º, n.º 1 do Código Penal).
A execução da medida de segurança visa, portanto, o tratamento e a reinserção do condenado e, sobretudo, a prevenção da prática de novos factos ilícitos, em defesa da comunidade, em geral, e da vítima, em especial, face à perigosidade que o inimputável manifeste.
Considerando o Tribunal que, não obstante a existência de perigo, subsistem razões que permitam esperar que a medida de segurança aplicada cumprirá as referidas finalidades preventivas no exterior, o Tribunal coloca o internado em liberdade para prova (artigo 94.º, n.º 1 do Código Penal).
Porém, nos termos do disposto no art. 93º, nº 3, quando não tiver ainda decorrido o prazo mínimo de internamento, como é o caso, acresce verificar se a libertação do internado é “compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social” – cfr. art. 91º, nº 2, parte final, para o qual remete o citado nº 3.
Importa primeiramente considerar que o que está sobretudo em causa é uma situação de alcoolismo grave e foi nessa situação que o recorrente insultou agentes de autoridade que se deslocaram à sua casa e tendo sido detido na sequência dos insultos, provocou danos na viatura policial da ordem dos €400,00. Não estamos perante um individuo que andava pelas ruas a insultar policias, os insultos ocorreram num contexto concreto e ocasional, nem estamos perante alguém que andava por reiteração a destruir ou provocar danos em bens de terceiros com especial aptidão para bens de natureza pública.
O internado foi considerado inimputável naquela concreta situação em que foi julgado, não se tratando de uma situação de inimputabilidade geral, permanente associada a doença mental grave.
Contudo, sendo um alcoólico crónico, padece de uma doença incurável, sendo que bebendo álcool irá potenciar a sua perigosidade latente que só surgirá em contexto etílico.
Verifica-se que no atual contexto e quadro clínico o internado está estável e compensado, com humor normal, sem quaisquer sintomas de abstinência ou de doença mental grave ou psicótica, não necessitando que tomar qualquer tipo de medicação.
Verifica-se igualmente que começou a tomar consciência de que o álcool é um problema, do qual precisa de se afastar e que potencia comportamentos anti- normativos, embora ainda procure desculpas no seu passado.
Não se pode olvidar que de facto muitos dos comportamentos anti- normativos resultantes do consumo do álcool têm a sua origem em traumas sofridos na meninice e no seio familiar, que não sendo desculpa ajudam a perceber a sua origem, mas isso não significa que simultaneamente se não faça uma autocritica.
Muitos daqueles que abusam de álcool cronicamente apresentam certos traços de personalidade: sentimentos de isolamento, solidão, timidez, depressão, dependência e hostilidade e impulsividade autodestrutiva.
Na origem do consumo estão factores da sociedade — atitudes transmitidas pela cultura ou da educação infantil — afetam os padrões de consumo e o comportamento subsequente. O transtorno por uso de álcool pode ocorrer com qualquer um, independente de idade, sexo, história, etnia ou situação social e factores genéticos. Considera-se que entre 45 a 65% do risco seja decorrente de fatores genéticos. A incidência do transtorno por uso de álcool é maior em filhos biológicos de pessoas com problemas com álcool, por exemplo. Há evidências de predisposição genética ou bioquímica, incluindo dados que sugerem que algumas pessoas que desenvolvem transtorno por uso de álcool são menos facilmente intoxicadas (isto é, elas apresentam limiar mais alto para efeitos no sistema nervoso central).
Em geral, os pacientes com transtorno por uso de álcool experimentam consequências sociais graves. A intoxicação frequente é óbvia e destrutiva; ela interfere na capacidade de se socializar e trabalhar. Lesões são comuns. Por fim, podem resultar em relacionamentos frustrados e perda de empregos em decorrência do absenteísmo e prática de crimes.
Em situações como as do internado a literatura tem vindo a dizer que no caso de um dependente de álcool, alguns dos fatores costumam influenciar o tempo de internamento, não se podendo esperar que uma pessoa que usou álcool por 30 anos se comporte da mesma forma que uma que se tornou dependente há 6 meses. Quanto mais cedo se começa o tratamento, melhor. E nem todas as pessoas são internadas voluntariamente. Muitas delas resistem, ao menos inicialmente, ao tratamento e por isso a etapa de desintoxicação pode ser mais demorada. Há também aquelas que no início estão motivadas, mas quando percebem o quanto é difícil se livrar do vício, desanimam.
Os ciclos de tratamento em regime de internamento podem chegar a 18 meses, mas não há como garantir que após este período o paciente estará apto a continuar se tratando fora dos espaços de reabilitação. É muito importante frisar que o facto de um paciente ser liberado para ir para casa é sinónimo de que ele passou pela primeira etapa do tratamento com sucesso, mas não se pode deixar de considerar que a dependência é uma doença crónica.
Isso significa que ela não tem cura, requerendo que a pessoa esteja em constante vigilância para impedir que volte a consumir bebida alcoólica. É por isso é costume estabelecer-se protocolos de prevenção a recaídas porque, quando alguém retoma a sua vida em sociedade, precisará lidar com uma série de situações em que o álcool parecerá uma saída para aliviar suas dores e frustrações.
Assim, frequentar grupos de apoio como os Alcoólicos Anónimos é fundamental para que o indivíduo possa estar em contacto com aqueles que passam pelas mesmas situações e compreendem suas angústias e necessidades.
É importante levar em conta que o internamento é apenas um dos métodos possíveis de tratamento contra a dependência química. Nem todos os que sofrem com esse problema precisam ser internados, e existe um movimento crescente dos especialistas em dependência em usar este método o mínimo possível, em favor de intervenções que não isolem o alcoólico do seu círculo familiar e da sua rotina normal.
Ao mesmo tempo, há casos em que a internamento representa um factor de segurança a mais, podendo inclusive salvar vidas. Porque, além da distância do álcool, há profissionais preparados (psicólogos, psiquiatras, terapeutas ocupacionais, entre outros) para atender a qualquer momento que o paciente precisar.
Ora, o internado recorrente já está nesta fase há mais de dois anos na medida em que o seu internamento ocorreu em 18.11.21. Está agora estável e sem qualquer tipo de medicação, pelo que nos parece que o tempo de internamento para este concreto caso já se mostra exagerado.
Sendo a sua perigosidade latente porquanto dependente de eventual consumo de álcool, não arreda a sua inimputabilidade, mas mostra-se atenuada a sua perigosidade, tanto mais que não estamos perante crimes de sangue.
Não olvidamos que uma das fases naturais pela qual indivíduos alcoólatras em processo de reabilitação passam é a abstinência. Na mesma proporção da sua normalidade, ela é também muito difícil. É nesse momento que muitos dependentes voltam a procurar o álcool se não tiverem a orientação correta.
O tratamento para o alcoolismo deve durar um período médio de 6 meses para a desintoxicação física, mas o sucesso do tratamento é considerado alcançado 5 anos após a conclusão do tratamento, com completa abstinência e total controlo sobre o álcool.
O internamento deve ser considerado quando o alcoolismo está muito avançado e o paciente não consegue controlar o consumo. É preciso que o paciente entenda que a internamento é uma forma de tratamento e não uma punição ou castigo pelos seus atos, o que parece estar agora a acontecer com o recorrente.
O tratamento exige comprometimento e dedicação do paciente para que ele possa se recuperar. E isso aconteceu nesta primeira fase na medida em que o recorrente foi colaborante com a intervenção ocorrida no estabelecimento psiquiátrico.
Depois é necessário seguir um plano de tratamento para que o alcoolismo não volte a se manifestar e haja controlo e acompanhamento da pessoa, principalmente em situações que ativam gatilho e necessidade de procurar o álcool como refúgio.
Posto isto concorda-se com o recorrente, não nos parecendo proporcional quer aos atos praticados e que o levaram ao internamento, quer ao tempo já decorrido, estado atual clínico do recorrente e interiorização que já vai fazendo exigir-se que o mesmo continue na situação em que se encontra atualmente, ou seja internado.
De facto, já há muito que o Internado deixou de estar medicado.
Pelo que, não há qualquer relação entre a atenuação da perigosidade e a terapêutica psicofarmacológica a que o mesmo terá sido alguma vez sujeito. Embora se admita que o facto de permanecer longe do acesso ao álcool, porque internado, facilite essa atenuação.
O internado não necessita de qualquer fármaco para ter um comportamento controlado, adequado, lúcido e consciente.
Pelas razões suprarreferidas necessita de vigilância médica ou outra, mas nada impede que a mesma possa ser efetuada em regime ambulatório, uma vez concedida a liberdade.
Por outro lado, face ao conteúdo do relatório social, pergunta-se o que seria necessário para se considerar que, em liberdade, o Internado beneficiaria de um "apoio familiar capaz de exercer controle férreo".
Conhecedoras e cientes dos problemas de adição e psiquiátricos do Internado, nada indica que a mãe e irmã não serão capaz de apoiar a sua reintegração e, sobretudo, controlar as suas obrigações terapêuticas, mas não se pode olvidar que no limite estamos perante um adulto que terá de tomar as suas opções. Contudo, a existência destas pessoas revelam a existência de retaguarda familiar e apoio, tanto mais que seria na própria casa da mãe que o Internado iria viver, uma vez em liberdade.
O facto de constar no relatório que mãe e irmã "minimizavam e/ou negavam qualquer dimensão relacionada com saúde mental do Internado" não quer dizer que não estejam cientes do problema alcoólico do internado.
E não se pode equiparar um "apoio familiar incapaz de exercer um controlo férreo" a uma ausência total de qualquer apoio familiar.
Em parte alguma dos relatórios presentes nos autos se considera não subsistirem condições para o Internado possa beneficiar do regime de liberdade para prova.
Apenas se evidencia a necessidade de cumprir determinados requisitos, nos seguintes termos: "apesar das condições favoráveis, necessita de integração progressiva e contacto com o meio livre de modo a acautelar os propósitos de ressocialização que ainda não foram testados.”
Por outro lado, refere a douta decisão que "as licenças de saída e o cumprimento da MS em regimes abertos constituem etapas indispensáveis para que o internado possa ser testado através de contactos e solicitações vindas do exterior, pelo que necessita de iniciar o gozo de medidas de flexibilização, o que no caso assume particular relevância, considerando a personalidade evidenciada pelo internado. Só assim se saberá se o mesmo adquiriu a mínima preparação para o reingresso na sociedade."
É verdade, mas não lhe tendo sido atribuídas até agora, não se pode usar tal argumento para inviabilizar o instituto em causa.
Nos termos do art.° 94º, n.° 1 do C.P se da revisão da situação do internado resultar que há razões para esperar que a finalidade da medida de segurança possa ser alcançada em meio aberto, o internado é aí colocado pelo Tribunal.
Sendo certo que, no caso dos autos, tal só seria possível se, nos termos da última parte do n° 2 do artigo 91° do CP "essa libertação se revelasse compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social".
Embora fosse, de facto, desejável que o Internado tivesse já beneficiado de uma licença de saída (e compreendendo-se que essa circunstância facilitaria a análise do seu comportamento na reaproximação ao meio livre, bem como a recetividade da comunidade à sua presença), não pode, contudo, invocar-se o facto de não ter sido possível testar previamente esse comportamento em liberdade para manter o Internamento do Recorrente.
Esse "teste" prévio não é, de todo condição sine qua non para se poder restituir o Internado à liberdade.
Quanto à perigosidade do Internado, no caso em concreto e sustentados na prova, impõe-se dizer que o princípio da perigosidade é o princípio verdadeiramente essencial do direito das medidas de segurança, consubstanciando-se como o princípio conditio sine qua non de qualquer medida de segurança, seja ela privativa ou não da liberdade.
Este princípio "é tão essencial que de um certo ponto de vista (inteiramente análogo àquele, segundo o qual, o princípio da culpa seria uma decorrência jurídico-constitucionalmente imposta) se poderia afirmar que, onde ele seja postergado, aí residirá uma inconstitucionalidade por violação do princípio da preservação da dignidade pessoal." - in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime - Jorge de Figueiredo Dias. “Do que se trata, no direito das medidas de segurança, sob a epígrafe da perigosidade, é da comprovação, num momento dado, de uma probabilidade de repetição pelo agente, no futuro, de crimes de certa espécie. Que grau de probabilidade deve ser exigido, é coisa que depende de formulações legais cabidas a propósito da singular medida de segurança a aplicar e da sua proporcionalidade, no caso, com o facto ilícito-típico praticado. Uma coisa é, em todo o caso, segura: não basta nunca a mera possibilidade de repetição pois que esta, em rigor, existe sempre; necessária é sempre uma possibilidade qualificada." - in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime - Jorge de Figueiredo Dias "Exige-se hoje na verdade, em regra, uma qualquer qualificação do perigo referido, para que ele se torne em perigo "criminal" e, assim, constitua pressuposto da aplicação de uma medida de segurança, nomeadamente de uma medida de segurança privativa da liberdade. Esta exigência é político- criminalmente fundada. Um qualquer perigo de repetição de factos ilícito- típicos pode, de algum modo, dizer-se que existe sempre, que a capacidade de repetição dormita em cada pessoa, e que, por conseguinte, daí não pode logo concluir-se pela necessidade de aplicação de uma medida de segurança. Pelo contrário, bem pode afirmar-se que nestes casos a comunidade deve tomar sobre si o risco de repetição e não possui, sem mais, legitimidade para dele se defender.(...) "O perigo há-de pois ser um tal - é este o critério decisivo - que convalide a aplicação da medida de segurança em nome de um interesse público preponderante - in "Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime" (Jorge de Figueiredo Dias).
Assevera ainda o Professor Figueiredo Dias, ob. cit.: "Numa palavra: perigosidade criminal capaz de justificar, face a exigências de estadualidade de direito, a aplicação de medidas de segurança só existe quando se verifique o fundado receio de que o agente possa vir a praticar factos da mesma espécie da do ilícito típico que é pressuposto daquela aplicação (...). A qualificação, por esta via, da perigosidade relevante acaba, de resto, por revelar-se mais importante do que o mero requisito da gravidade, uma vez que a este já plenamente se ocorre, em rigor, através dos princípios da necessidade e da proporcionalidade."
Subjaz aqui o juízo de prognose que o tribunal tem de emitir. E é, de facto, ao tribunal que cabe fazer tal juízo, cabendo à perícia formular apenas as bases da decisão.
Como nos diz o Professor Figueiredo Dias, ob. cit., "(…) Do ponto de vista jurídico-penal substantivo, já se disse, o que se exige é a probabilidade de repetição, não a mera possibilidade, nem obviamente a certeza de que ela irá ter lugar. Isto significa, no âmbito do processo penal, que o tribunal - pressuposta a verificação dos restantes requisitos - aplicará a medida de segurança se tiver alcançado a convicção da probabilidade de repetição;
"Não a ordenará se se tiver convencido de que a repetição é possível mas não provável; como igualmente a não ordenará, de acordo com o princípio in dúbio pro reo, se tiverem persistido no seu espírito dúvidas inultrapassáveis quanto à possibilidade de repetição. "
No direito das medidas de segurança, dever-se-ão ter em conta os princípios da subsidiariedade, da necessidade e da proibição do excesso, sendo que os dois primeiros constituem, em último termo, manifestações do princípio jurídico-constitucional da proibição de excesso em matéria de limitação de direitos fundamentais.
Sobre o princípio da proibição do excesso, diz-nos o Professor Figueiredo Dias que "terá o juiz de averiguar, antes de tudo, se a aplicação no caso de uma certa medida de segurança serve concretamente a realização dos fins a que ela se destina, isto é, como se viu, a finalidade primária de socialização do agente e a finalidade secundária de segurança da sociedade face à perigosidade comprovada (princípio de conformidade ou de adequação dos meios com os fins). Em seguida, terá o tribunal de averiguar se, no caso, a aplicação de uma medida (legalmente prevista) menos onerosa não será suficiente e eficaz relativamente à prossecução dos fins apontados, caso em que se imporá a sua aplicação (princípio da necessidade ou exigibilidade). Finalmente - e sobretudo -, deverá o tribunal analisar se a aplicação da medida de segurança, apesar de adequada e necessária, não representará para o agente uma carga desajustada, excessiva ou desproporcionada face à gravidade do facto ilícito-típico praticado e ao perigo de repetição de factos da mesma espécie (princípio dada proporcionalidade em sentido estrito)".
Diz-nos também o mesmo Autor que o princípio da proporcionalidade em sentido estrito - como, de resto, todo o princípio da proibição de excesso - vale para o inteiro âmbito das medidas de segurança, seja qual for a natureza ou a espécie delas. E seja também qual for (trata-se aqui de uma ideia praticamente muito importante) o estádio ou o momento em que uma decisão sobre elas deva ser tomada. O que significa que o princípio vale relativamente não apenas à questão de saber se uma medida de segurança deve ou não ser aplicada, mas também a qualquer questão relacionada com a sua execução (v.g., saber se o internamento deve cessar).
No que concerne aos critérios de proporcionalidade, o Professor Figueiredo Dias refere que "a primeira consideração a tomar em conta é a de que o princípio da proporcionalidade - tal como sucede, de resto, com vários princípios jurídico-constitucionais, nomeadamente o princípio da igualdade - assume um certo sentido cariz negativo (como de resto se revela adequado à sua natureza de subprincípio enformador de uma proibição de excesso): o tribunal não tem de comprovar ("positivamente") uma proporcionalidade, mas ("negativamente") uma desproporcionalidade conducente à não aplicação ou não execução da medida de segurança.”
Como acima se expôs, devidamente acautelado o acompanhamento regular em consulta de psiquiatria ou frequência de grupo terapêutico, o juízo acerca do internado na questão aqui versada só poderia de uma perigosidade atenuada.
Com tais acompanhamentos sendo possível que possa vir a consumir álcool, não nos parece provável. Trata-se de um risco que também a sociedade terá de aceitar, tal como o risco que a condução de um veículo automóvel traduz, sendo certo que a perigosidade resultante do consumo de álcool por este concreto internado, como atrás vimos, não apresenta uma vertente sanguinária e de lesão de bens de natureza pessoal.
Não se poderá considerar excluída, à partida, a possibilidade de, no seio da família, com a indispensável vigilância e tutela dos serviços de reinserção social e um controle do Tribunal através da imposição de exames e outras regras de conduta, o recorrente ter o necessário suporte para compensar as suas carências.
Por outro lado, não se vislumbra que, submetido à continuação de um internamento efetivo, venha a encontrar melhor apoio para a sua cura, sabido como é que o isolamento da família e o afastamento dos universos habituais de vivência gera muitas vezes, incompreensão o que prejudica a recuperação desejada.
E no que diz respeito ao facto de a libertação do internado ser "compatível com a defesa da ordem jurídica e paz social" (cfr. última parte do n°2 do artigo 91°, CP), cumpre ainda dizer:
A finalidade de prevenção geral é secundária no direito das medidas de segurança.
Refere o Professor Figueiredo Dias, na obra supra mencionada, que esta finalidade "não possui qualquer autonomia no âmbito da medida de segurança; ela só pode ser conseguida de uma forma inteiramente reflexa e dependente, na medida em que a privação ou restrição de direitos em que a aplicação e execução da medida de segurança se traduz (privação ou restrição da liberdade física, interdição de profissões, actividade ou exercício de direitos, etc) possa servir para afastar a generalidade das pessoas da prática de factos ilícitos-típicos. Nomeadamente quando aplicada a inimputáveis, diz-se, as exigências de prevenção geral não se fazem sentir, porque a comunidade compreende bem que a reacção contra a perigosidade individual é ali fruto exclusivo de condições endógenas anómalas, que não põem em causa as expectativas comunitárias na validade da norma violada porque o homem normal não tende a tomar como exemplo o inimputável."
E defende, também, o Professor Figueiredo Dias que "o princípio da defesa social assume, por conseguinte, a sua função legitimadora não quando considerado na sua veste puramente fáctica, naturalística e pragmática, antes sim, como justamente nota Roxin, quando conjugado com o princípio da ponderação de bens conflituantes. Com o princípio segundo o qual a liberdade da pessoa (de qualquer pessoa, mesmo do inimputável) só pode ser suprimida ou limitada "quando o seu uso conduza, com alta probabilidade, a prejuízo de outras pessoas que, na sua globalidade, pesa mais do que as limitações que o causador do perigo deve sofrer com a medida de segurança".
Como depreendemos das suas palavras, a finalidade de prevenção geral não assume no caso das medidas de segurança particular relevância, sendo certo, todavia, que no caso de crimes de sangue existem fortes razões de prevenção geral atinentes à defesa do ordenamento jurídico e na reposição da paz e segurança social.
De alguma forma o internamento de pessoas inimputáveis perigosas gere também as expetativas da comunidade sustentadas numa ideia de segurança da própria comunidade.
Orientamos a nossa vida em função de expectativas, quando ocorre um crime as expectativas são frustradas. Aquando da frustração haverá que reafirmar a confiança nas normas. Saímos de casa todos os dias porque temos expetativas de que não nos vão assaltar, matar, violar, não vão andar de carro alcoolizados… Se não tivéssemos essas expetativas teríamos uma vida diferente daquela que temos. Quando acontece um crime essas expetativas saem frustradas. O que o direito penal nestes casos faz é dizer: A expetativa desta pessoa é aquilo que vale e deve ser mantida. A verdade é que foi violada mas a expetativa está certa e é para manter. Prova-se às pessoas que as expetativas são para manter através da punição ou internamento de quem as violou. A lógica da prevenção geral positiva serve para restabelecer a confiança das pessoas na validade da norma é para isso que vamos afastar o inimputável perigoso. Se todos nós achássemos que amanha a lei já não era para cumprir ou que eramos complacentes então amanhã deixávamos de ser cidadãos cumpridores da lei e passávamos a ser criminosos. Visa que o cidadão cumpridor da lei se mantenha assim e não passe a praticar crime alegando que a sua expetativa mudou.
Para provar que a expectativa é para manter o direito penal reage.
E com maior acuidade no caso dos inimputáveis, conforme suprarreferido.
Ora, no caso concreto do recorrente, este foi declarado inimputável em virtude de anomalia psíquica-quadro de transtorno por uso de álcool grave, tendo praticado o crime de injúria agravado (por ter proferido insultos a dois agentes da PSP no exercício das suas funções) e um crime de dano qualificado (por ter danificado uma viatura policial).
Não se vislumbra qualquer perturbação da ordem e da paz social caso o internado seja colocado em liberdade, tanto mais que é altamente improvável que o Internado se volte a encontrar com os ofendidos.
E, no caso de se entender que existirá alguma perturbação da ordem e da paz social com a libertação do recorrente, na sequência da realidade exposta - essa perturbação da ordem e da paz social deve ser considerada mínima.
E com ínfimas repercussões nas pessoas das vítimas e no local da prática da conduta desvaliosa.
Atenta a natureza e gravidade dos factos ilícitos praticados, a sua libertação é compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.
Nada obsta à aplicação do regime de liberdade para prova, face às informações constante nos relatórios clínicos.
De facto, impunha-se considerar que houve uma alteração do estado perigosidade que permite fazer uma aproximação à vida em sociedade dentro da tutela da execução da medida, impondo regras e supervisão estreitas.
Conforme refere Maria João Antunes in Consequências Jurídicas do Crime (pág. 105), "Para as situações em que há alterações do estado de perigosidade do internado, durante a execução da sanção, vale o instituto da liberdade para prova, um verdadeiro incidente da execução da medida de segurança de internamento. (...) Pressuposto material da colocação em liberdade para prova é, por conseguinte, a subsistência do estado de perigosidade criminal que deu origem à medida de segurança, podendo, no entanto, a finalidade preventivo-especial da sanção ser alcançada em meio aberto. Desta forma dá-se concretização ao princípio da proporcionalidade, com ganhos evidentes para o processo de reintegração do agente em sociedade."
Assim, decide revogar-se a decisão do tribunal a quo, colocando o internado em regime de liberdade para prova pelo período de dois anos, período que não ultrapassa o tempo que falta para o limite máximo de duração do internamento decretado (18.11.26) reintegrando-o em sociedade e próximo à sua vida familiar sujeitando-o às injunções necessárias, supervisão estreita e acompanhamento e tratamento em regime ambulatório no que concerne à doença de que padece.
Para o efeito deverá a DGRSP elaborar regime de prova que passe pela supervisão médico psiquiátrica periódica, frequência de grupo de alcoólicos anónimos e cessação absoluta do consumo de álcool, arts. 94º, nº 3, 98º, nº 3 e 4 e 53º e 54º do CP.
Os alcoólicos anônimos (AA) são o grupo de autoajuda mais comum. Os pacientes devem encontrar um grupo de AA no qual se sintam confortáveis. Os AA proporcionam amigos não bebedores aos pacientes, os quais ficam sempre disponíveis, e uma área sem bebidas em que podem se socializar. Os pacientes também escutam os outros discutirem cada racionalização que já utilizaram para que bebessem. A ajuda que fornecem a outros pacientes com transtorno por uso de álcool pode-lhes dar a autoestima e a confiança previamente encontradas apenas no álcool.
Para o caso de se mostrar relutante em procurar os AAs não pode deixar de ter aconselhamento individual.
Portanto, a medida de segurança é necessária e proporcional face ao narrado circunstancialismo clínico, já não o sendo o seu internamento.
Atentas as circunstâncias concretas dos factos praticados a libertação do internado é compatível com a ordem e paz social.
Sendo o instituto da liberdade para prova idóneo a salvaguardar, por um lado, a situação de liberdade do inimputável constitucionalmente protegida e, por outro, a defesa da sociedade face à perigosidade criminal, o quadro clínico atual de doença do recorrente, permite alguma garantia que com seguimento em ambulatório e com suficiente apoio, se mantenha atenuada a perigosidade social a um ponto tal que em que é possível e razoável esperar que a finalidade da medida de segurança imposta pode ser alcançada em meio aberto, devendo o risco inerente à libertação ser comunitariamente assumido e suportado.