AUTORIDADE TRIBUTÁRIA ADUANEIRA
ACÇÃO DE FISCALIZAÇÃO PREVENTIVA DE ROTINA
PODERES
ENCOMENDA POSTAL
CORRESPONDÊNCIA
APREENSÃO
VALIDADE
Sumário

I – A Autoridade Tributária Aduaneira pode realizar acções de fiscalização aduaneira e examinar mercadorias importadas para a União Europeia, o que inclui o poder de abrir as respectivas encomendas para verificar o seu conteúdo. Estes poderes, atribuídos pelo Código Aduaneiro Comunitário e legislação interna conexa às autoridades aduaneiras nacionais, não ofendem as regras constitucionais que protegem a reserva da vida privada e a inviolabilidade do domicílio, uma vez que o artigo 8º nº 5 da Constituição, interpretado de harmonia com o princípio da cooperação leal, estabelecido no artigo 4º nº 3 do Tratado da União Europeia, garante a prevalência do direito comunitário sobre o direito nacional.
II – A acção de fiscalização preventiva de rotina realizada pela Autoridade Tributária e Aduaneira, prévia a qualquer inquérito criminal e não determinada pela suspeita da prática de crime, em que se abre uma encomenda postal e se detecta a importação de uma arma ilegal, não está sujeita à autorização judicial prévia prevista no artigo 179º do Código de Processo Penal, dado que esta norma apenas regula os actos de inquérito.
III – A apreensão de uma arma pela Autoridade Tributária e Aduaneira naquelas circunstâncias não constitui prova proibida em processo penal, por violação das regras do artigo 179º do respectivo código.

(da responsabilidade do relator)

Texto Integral

Processo nº 4474/22.0T9MTS.P1
Comarca do Porto
3ª Secção do Juízo de Instrução Criminal de Matosinhos

Acórdão deliberado em Conferência

1. Relatório

1.1 Decisão recorrida

Decisão instrutória de não pronúncia, proferida em 19 de Dezembro de 2023, na qual o tribunal recorrido, com base nas regras de proibição de prova e na insuficiência de indícios, decidiu não pronunciar o arguido AA, que tinha sido acusado pelo Ministério Público de um crime de detenção de arma proibida, previsto nos artigos 2º nº 1 al. o), 3 nº 2 al. j), 4º nº 1 e 86º nº 1 al. d) da Lei 5/2006.

1.2 Recurso, resposta e parecer

1.2.1. O Ministério Público recorreu da decisão instrutória, pedindo a sua revogação e substituição por outra que pronuncie o arguido pelos factos e crime de que foi acusado, invocando, em suma, o seguinte:

- O processo penal não regula o controlo aduaneiro de mercadorias, cujas normas permitem a respectiva verificação pelas autoridades, sem necessidade da autorização prévia do juiz prevista no artigo 179º do CPP;

- Aquela verificação das mercadorias, pelas autoridades aduaneiras, não fere a essência do direito à reserva da vida privada, pois está em causa uma limitação imposta pelo direito à segurança que ao Estado incumbe proteger;

- Sendo a verificação da mercadoria legal, a sua posterior apreensão insere-se na investigação criminal, sujeita às regras do Código de Processo Penal;

- A prova é portanto legal e deve ser considerada para a pronúncia do arguido;

- No que respeita aos indícios do crime, eles existem, na medida em que o arguido apresentou no inquérito e instrução versões contraditórias sobre os factos e ocultou ser militar da GNR, o que reforça a conclusão que sabia que estava a importar uma arma proibida.

1.2.2. O arguido não pronunciado respondeu ao recurso alegando, em resumo, que concorda com a decisão recorrida no que respeita à invalidade da prova e acrescentando que não apresentou versões contraditórias sobre os factos, tendo-se limitado a responder às questões que lhe foram colocadas. Se quisesse ocultar que era militar da GNR, teria aceitado a suspensão provisória do processo, que lhe foi proposta pelo Ministério Público.

1.2.3. Na Relação, o Ministério Público acompanhou a argumentação da motivação do recurso e emitiu parecer no sentido de lhe ser dado provimento, considerando e aditando, em síntese, que:

- A recusa do arguido em apresentar a documentação que permitia o desalfandegamento do objecto que se continha na encomenda que lhe era dirigida esvaziou a necessidade de protecção do sigilo da correspondência;

- Mesmo que a apreensão fosse inválida, o auto de notícia sobre a retenção do objecto na alfândega e a identificação do destinatário sempre seriam meios de prova válidos que o tribunal tinha de levar em consideração;

- O arguido teve duas posturas diferentes nos dois interrogatórios e no primeiro omitiu ser militar da GNR, ocultação que é um indício de que sabia que tinha importado um objecto proibido.

2. Questões a decidir no recurso

As duas questões a decidir são a de saber, em primeiro lugar, se a prova recolhida pelas autoridades alfandegárias é proibida e como tal insusceptível de ser valorada no processo e, em segundo lugar, se a questão não ficar prejudicada, se o tribunal recorrido deveria ter proferido decisão instrutória de pronúncia por terem sido recolhidos em inquérito indícios suficientes de que o arguido praticou o crime pelo qual foi acusado.

3. Fundamentação

3.1. Súmula da decisão recorrida

Importa transcrever o resumo relevante do despacho de não pronúncia (com os sublinhados, negritos e itálicos do original).

(…)

Quanto aos factos não indiciados, concluiu-se, desde logo, pela não valoração do meio de obtenção de prova adoptado (apreensão), por violação dos pressupostos estabelecidos pelo legislador para a realização de apreensão de encomenda.

Por conseguinte, impõe-se abordar o fundamento jurídico que impede a valoração da prova obtida nos autos e o regime legal da apreensão da correspondência.

(…)

Concretizando o disposto no artigo 32.º, n.º 8, da Constituição da República Portuguesa, prescreve o artigo 126.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, com a epígrafe métodos proibidos de prova, que ressalvados os casos previstos na lei, são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.

(…)

A norma em causa tutela a reserva da vida privada, na sua dimensão material, constitucionalmente protegida pelo artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e na sua dimensão formal (domicílio, correspondência e comunicações), protegida pelo artigo 34.º da Lei Fundamental, que estabelece a proibição de toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal.

(…)

No que respeita à correspondência, concretamente à sua apreensão, dispõe o artigo 179.º do Código de Processo Penal que “1 - Sob pena de nulidade, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão, mesmo nas estações de correios e de telecomunicações, de cartas, encomendas, valores, telegramas ou qualquer outra correspondência, quando tiver fundadas razões para crer que: a) A correspondência foi expedida pelo suspeito ou lhe é dirigida, mesmo que sob nome diverso ou através de pessoa diversa; b) Está em causa crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos; e c) A diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.” O n.º 3 deste preceito explica que se o juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência é a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida, sendo que se a considerar relevante para a prova, fá-la juntar ao processo; caso contrário, restitui-a a quem de direito, não podendo ela ser utilizada como meio de prova, e fica ligado por dever de segredo relativamente àquilo de que tiver tomado conhecimento e não tiver interesse para a prova.

(…)

Assim, ao abrigo do disposto no artigo 179.º do Código de Processo Penal, é admissível uma restrição ao direito fundamental de sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada, núcleo de reserva de intimidade da vida privada protegido pelo artigo 34.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa, pois que o legislador constituinte entendeu que os valores jurídico-constitucionais prosseguidos no âmbito do processo penal o justificam.

Porém, tal restrição, como exige a norma citada, só é admissível com a intervenção do juiz, a qual deve assegurar um justo equilíbrio entre as finalidades visadas pelo processo penal e os direitos fundamentais por este afectados, legitimando as ingerências restritivas nos direitos fundamentais dos cidadãos.

(…)

É, portanto, inequívoco que no caso do artigo 179.º do Código de Processo Penal a falta de intervenção do juiz determina a nulidade da apreensão.

Revertendo estas considerações para o caso dos autos, mediante uma análise conjugada da prova documental carreada para os autos, verifica-se que o objecto com o nº LT...65NL foi sujeito a um controlo aduaneiro em 16-04-2021 (cfr. relatório de fls. 6), onde se verificou que se tratava de “1 taser”, descrevendo o auto de notícia de fls. 15 e segs. que “No âmbito da fiscalização aduaneira de rotina” se procedeu “à verificação do objeto postal com o número de origem LT...65NL”.

Mais explica o auto de notícia que, após essa verificação, existindo “a suspeita que poderia conter armas” e “[d]ada a natureza da mercadoria foi comunicado aos CTT – Correios de Portugal, S.A. que o desalfandegamento do objecto postal (…) estava dependente do cumprimento das condições e apresentação dos documentos necessários para dar continuidade ao processo.”

Sendo que, “tratando-se de um objeto postal que se encontrava no Armazém de Depósito Temporário autorizado da empresa CTT – Correios de Portugal, S.A. (…) notificaram o destinatário através do documento denominado aviso para desalfandegamento (AD), da necessidade de autorização da PSP para importação do referido objeto.”

Contudo, uma vez que “o destinatário não apresentou autorização de importação, nem prova de existência de qualquer contacto com a PSP, nomeadamente no sentido da marcação de uma peritagem, foram feitas as diligências com a PSP no sentido de ser a mesma peritada”.

Tendo sido o objecto, posteriormente, submetido a exame pericial (cfr. fls. 5), que deu origem ao relatório n.º 2194/2022, datado de 24-03-2022. No mesmo consta, entre outros aspectos, o seguinte: “Aparelho emissor de descargas eléctricas”.

Após o recebimento dos resultados do exame pericial, foi o objecto apreendido pela Delegação Aduaneira das Encomendas Postais da Alfândega do Aeroporto de Lisboa, conforme auto de apreensão já supra referido.

No auto de apreensão de fls. 13 e 14 pode ler-se, entre o demais, o seguinte: “Procederam à apreensão da mercadoria/documentos discriminados no campo 2, nos termos do disposto no artigo 37º do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT), aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, conjugado com o artigo 178.º do Código de Processo Penal (CPP).”

Deste modo, constata-se que a encomenda em questão foi, num primeiro momento, verificada no âmbito de uma fiscalização aduaneira de rotina, tendo aí surgido uma suspeita relativamente à mesma, de que poderia conter armas. Refira-se que, da prova documental constante dos autos não consta qualquer explicação ou descrição de como foi feita essa verificação. Ou seja, não se sabe como é que a autoridade aduaneira verificou a encomenda, se recorrendo à sua abertura ou utilizando outros métodos de verificação que não implicassem a abertura da encomenda.

Num segundo momento, verifica-se que foi o destinatário da encomenda notificado para apresentar uma autorização para importação do objecto, o que não foi apresentado.

Constata-se, ainda, que após essa comunicação o objecto foi sujeito a uma peritagem, sendo que o teor do relatório de peritagem dá conta das características do objecto examinado. Deste modo, depreende-se que a encomenda foi aberta com vista ao exame do objecto nela contido.

Ademais, verifica-se que a apreensão efectuada pela Delegação Aduaneira das Encomendas Postais da Alfândega do Aeroporto de Lisboa foi efectuada após o recebimento do resultado do exame pericial, ou seja, após a abertura da encomenda.

Assim, analisada a prova documental junta aos autos constata-se que a apreensão da encomenda não foi precedida de despacho judicial que a autorizasse ou ordenasse. Por outro lado, verifica-se que a encomenda foi aberta e que foi adquirido o conhecimento do seu conteúdo sem a existência de prévio despacho judicial.

Como se pode ler na fundamentação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18-05-2006 (disponível em www.dgsi.pt), e que trata de assunto similar ao analisado no presente caso:

“Pergunta-se então se, não podendo as autoridades aduaneiras apreender correspondência sem autorização prévia do juiz, não se está a facilitar o cometimento de ilegalidades fiscais e criminais por essa via, cada vez mais usada como meio de remessa de pequenas mercadorias num mundo globalizado, com espaços económicos muito alargados?

A resposta é a de que as autoridades aduaneiras podem exercer fiscalização sobre toda a correspondência que envolve o transporte de mercadoria, mas tal fiscalização não passa pela apreensão nem pela abertura não autorizada das embalagens, mas pela faculdade de só emitir o despacho alfandegário quando houver a certeza de que a declaração da mercadoria corresponde ao real conteúdo da correspondência, o que pode ser concretizado pelo pedido de documentação adicional ou pelo pedido de desembalagem ao interessado. É o que resulta, por exemplo, dos art.ºs 37.º e 46.º do Código Aduaneiro Comunitário – Regulamento (CEE) n.º 2913/92 do Conselho.

Essa faculdade de retenção da mercadoria até ao seu despacho alfandegário não pode confundir-se com a apreensão e muito menos com a violação de correspondência, pois aquela, ao contrário destas, não confere a faculdade de quebrar o direito ao sigilo da vida privada e, portanto, não interfere com as normas constitucionais ou de processo penal indicadas.

O mesmo se passa com o visionamento de correspondência através de técnicas que não envolvem a abertura da correspondência e que só permitem uma conferência sumária do interior da mesma, pois tais técnicas afiguram-se proporcionais e adequadas aos fins visados (conferir a mercadoria com a declaração alfandegária) e não dão azo a uma violação do referido direito constitucional.

A suspeita pelas autoridades aduaneiras de que se está perante uma actividade criminal tem de dar lugar aos procedimentos a que se reporta o Código de Processo Criminal, como é óbvio(sublinhados e negritos nossos).

Como é bom de ver, o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça vai no sentido de que a actividade de fiscalização aduaneira, e normas aplicáveis, não pode subverter os procedimentos estabelecidos na lei de processo penal para a apreensão de encomendas.

E é neste sentido que se tem pronunciado a jurisprudência recente em casos idênticos ao destes autos.

Assim, decidiu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 07-06-2017 (disponível em www.dgsi.pt), o seguinte:

“I – O n.º 1 do art. 252.º do CPP refere-se aos casos já prevenidos no artigo 179.º do mesmo diploma, em que existe prévia ordem ou autorização judicial para proceder à apreensão, devendo nesse caso a correspondência ser levada intacta ao juiz, seguindo-se o procedimento do n.º 3 desse normativo (o juiz toma conhecimento do conteúdo da correspondência e fá-la juntar ao processo se for relevante para a prova).

II – Quando não exista qualquer intervenção prévia da autoridade judicial competente para ordenar a apreensão, regem os n.ºs 2 e 3 do artigo 252º, nos seguintes parâmetros:

- a autoridade policial deve informar o juiz, o qual pode autorizar a abertura imediata da correspondência; ou

- a autoridade policial pode ordenar a suspensão da remessa da correspondência e se, no prazo de 48 horas, a ordem não for convalidada pelo juiz, a correspondência é remitida ao destinatário.

III – É, pois, clara a lei no sentido de não poder ocorrer apreensão de correspondência sem prévia intervenção do juiz, apenas sendo legalmente permitida a medida cautelar de suspensão da sua remessa.

IV – A apreensão realizada à revelia das citadas disposições legais é, por força do disposto no artigo 179.º, n.º 1 do CPP, nula; sendo este vício atinente a meio de prova, não segue o regime do artigo 122.º do mesmo Código, mas antes o prescrito nos arts. 125.º e 126.º, n.º 3, ainda do mesmo corpo de normas” (sublinhado e negrito nosso).

No mesmo sentido decidiu-se no recente Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 27-09-2022 (disponível em www.dgsi.pt), que:

“A “encomenda postal” em análise nos presentes autos, estando fechada, constituía correspondência.

Com efeito, e como bem assinala Manuel da Costa Andrade (in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Coimbra Editora, 1999, Tomo I, pág. 758), “é precisamente este facto - estar fechada - que define a fronteira da tutela penal do sigilo de correspondência e dos escritos, em geral”.

Ou seja, a correspondência é, por definição, fechada.

Enquanto fechada, a correspondência é sigilosa por natureza, e, logicamente, goza da proteção constitucional que o artigo 34º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa concede ao “sigilo da correspondência”.

Como tal, está dependente de autorização do Juiz de Instrução Criminal, “sob pena de nulidade”, a apreensão, mesmo nas “estações de correios”, de “encomendas” (ou de qualquer outra correspondência).

É, pois, clara a lei no sentido de não poder ocorrer apreensão de correspondência sem prévia intervenção do juiz, apenas sendo legalmente permitida a medida cautelar de suspensão da sua remessa. A apreensão realizada à revelia das citadas disposições legais é, por força do disposto no artigo 179º, nº 1, do CPP, nula..

Essa nulidade, atinente a meio de prova, não segue o regime do artigo 122º do C. P. Penal, mas, isso sim, o preceituado nos artigos 125º e 126º, nº 3, do mesmo diploma legal (trata-se de prova nula, não podendo ser utilizada no presente processo)” (sublinhado e negrito nosso).

Apesar da jurisprudência citada, não ignoramos que existem posições em sentido contrário, como é exemplo João Conde Correia (in ob. cit., pág. 666) que entende que “O sigilo da correspondência (…) não abrange as cartas, os pacotes e encomendas que, ao abrigo dos preceitos aduaneiros devam ser apresentados à fiscalização alfandegária para efeitos de eventual aplicação dos correspondentes tributos. As autoridades aduaneiras podem e devem, no âmbito das suas competências próprias (v.g. art. 139.º do CAU, aditado pelo Regulamento (UE) n.º 952/2013 do Parlamento Eurupeu e do Conselho) verificar todas as mercadorias que lhes sejam apresentadas, para comprovar se aquilo que foi declarado corresponde realmente àquilo que foi enviado.”

E, ainda, o Parecer do Conselho Consultivo da PGR P000151995 (disponível em www.dgsi.pt), que conclui, entre o demais, o seguinte:

“O sigilo da correspondência estatuído nos nºs 1 e 4 do artigo 34º da Constituição da República não abrange os pacotes e encomendas postais, contendo mercadorias, que devam ser apresentados a fiscalização alfandegária;

Consequentemente, a fiscalização, pelas autoridades aduaneiras, dos "objectos de correspondência postal e das encomendas postais" conduzidos à alfândega, para assegurar o cumprimento da legislação aduaneira e demais disposições aplicáveis às mercadorias sob fiscalização aduaneira, nos termos previstos nos Regulamentos (CEE) nº 2913/92, de 12 de Outubro, do Conselho das Comunidades Europeias (Código Aduaneiro (Comunitário), e 3665/93, de 21 de Dezembro, da Comissão das Comunidades Europeias, directamente aplicáveis na ordem interna, é compatível com o sigilo da correspondência previsto nos nºs 1 e 4 do artigo 34º da Constituição da República;”

Entendemos, contudo, não acolher os preditos argumentos. Em primeiro lugar, porque a verificação de encomendas pelas autoridades aduaneiras não tem que implicar necessariamente a violação do sigilo da correspondência. Tal como aponta o Acórdão do STJ supra citado, a conferência da correspondência pode recorrer a técnicas de visionamento ou inspecção que não implicam a abertura da correspondência, sendo as mesmas adequadas e proporcionais aos fins inspectivos da alfândega, sem que sejam violados os direitos fundamentais dos cidadãos.

Depois, porque tais entendimentos subvertem por completo o fundamento jurídico das proibições de prova, ou seja, a garantia de que a actividade investigatória não pode ser feita com um intolerável sacrifício dos direitos dos cidadãos. De resto, é a própria Constituição que, prevendo a restrição de direitos fundamentais, dita que tal só pode ser feito em respeito da lei em matéria de processo criminal.

Ademais, repare-se que, no caso em apreço, a autoridade aduaneira procedeu à apreensão da encomenda com base no disposto nos artigos 37.º do Regime Geral das Infracções Tributárias e 178.º do Código de Processo Penal. Ou seja, a referida autoridade prevaleceu-se de uma medida cautelar, nos termos do RGIT, praticando um acto que, de acordo com o normativo referido, se encontra previsto para casos urgentes ou de perigo de demora. Porém, atentando ao acervo documental supra referido e descrito, constata-se que tal acto foi praticado em 11-11-2022 (cfr. fls. 13), ou seja, decorrido mais de um ano desde o controlo aduaneiro de rotina realizado em 16-04-2021 (cfr. fls. 6). Deste modo, não se compreende como é realizado o enquadramento do acto de apreensão numa medida cautelar de urgência, uma vez que o período temporal decorrido não aponta para a existência de uma necessidade urgente, para além de que a encomenda já tinha sido aberta, pelo menos, no âmbito do exame pericial realizado pela PSP.

Acresce que a predita norma do RGIT remete para o disposto no artigo 249.º do Código de Processo Penal, o qual prevê providências cautelares quanto aos meios de prova, a levar a cabo pelos órgãos de polícia criminal, sendo que este preceito prevê a possibilidade de se proceder a apreensões no decurso de revistas ou buscas ou em caso de urgência ou perigo na demora, bem como adoptar as medidas cautelares necessárias à conservação da integridade dos animais e à conservação ou manutenção das coisas e dos objectos apreendidos. No caso dos autos, não estando a autoridade perante uma revista ou busca, a apreensão só poderia ter lugar em caso de urgência ou perigo na demora, o que não se verifica pelo argumento já aduzido. E, mesmo que se verificasse uma situação de urgência ou perigo na demora, sempre teria a autoridade aduaneira que obedecer ao regime estatuído no 178.º do Código de Processo Penal, ou seja, teria a apreensão que ser validada pela autoridade judiciária, no prazo máximo de setenta e duas horas. Porém, a apreensão realizada nos presentes autos não se enquadra no regime geral das apreensões previsto no artigo 178.º do Código de Processo Penal, cabendo sim no regime especial do artigo 179.º desse diploma, uma vez que está em causa uma encomenda.

Aliás, refira-se que a norma do Regime Jurídico das Infracções Fiscais Aduaneiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 376-A/89, de 25 de Outubro (respeitante à parte em que este diploma se encontra ainda em vigor), invocada no Parecer do Conselho Consultivo da PGR P000151995, apesar de estabelecer uma competência para a fiscalização de mercadorias remete, igualmente, para os “termos” e “limites fixados no Código de Processo Penal” (cfr. artigo 49.º do referido diploma).

Em suma, são as próprias normas aduaneiras que remetem para a aplicação das regras do processo penal, pelo que, estabelecendo a lei processual penal procedimentos específicos para a obtenção da prova, os quais se encontram harmonizados com as directrizes constitucionais, qualquer desvio aos mesmos gera uma nulidade da prova obtida, que, contendendo com os direitos fundamentais constitucionalmente protegidos, determina a proibição da sua valoração.

Face ao exposto, aderindo à jurisprudência supra citada, entendemos que é nula, constituindo prova proibida, a apreensão que deu origem aos presentes autos, por violação do disposto no artigo 34.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa e dos artigos 126.º, n.º 3 e 179.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na medida em que a apreensão da encomenda não foi autorizada ou ordenada por despacho de juiz, nem foi um juiz a tomar primeiro conhecimento da mesma.

Como tal, quedaram por indiciar os factos como tal descritos.

Mas diremos mais.

Ainda que não fosse o supra exposto o nosso entendimento sobre a nulidade da apreensão, sempre teríamos de concluir pela falta de indiciação dos factos por outra ordem de razões.

É que o arguido, de forma que soou sincera, negou ter encomendado o objecto em questão, que não foi aquele que terá visualizado no site da “A...” (e no anúncio, referente a este, que lhe apareceu no Facebook), ante tendo pesquisado, e encomendado, uma lanterna táctica, que explicou do que se trata e porque a encomendou, de forma que se nos afigurou plausível.

Assim, afirmou que, sendo militar da GNR, pretendeu adquirir lanterna táctica porque este tipo de lanternas tem um botão de ligação em local que permite a utilização em complemento da arma de fogo, sendo que tal espécie de lanterna não lhe foi fornecida pela GNR no posto onde prestava serviço.

E mais referiu que o anúncio que viu aludia a “lanterna táctica preta” (e tal se pode ver – ainda que não se veja a totalidade das letras – a fls. 37), não tendo visto referência a arma de disparos eléctricos, pois que se visse, dada a sua profissão, saberia que não a poderia encomendar.

Negou, assim, que o objecto que pretendeu encomendar fosse um daqueles que se pode visualizar nos elementos juntos pelo M.P. a fls. 41 e 42. Estes, diremos nós, apenas indiciam que os objectos representados seriam anunciados no site da “A...”, não que tivessem correspondência com o visto e encomendado pelo arguido.

Aliás, quer o preço (inferior a €20) do objecto que o arguido diz ter encomendado, quer o facto de ser anunciado em site de grande notoriedade e acessível a qualquer pessoa, onde são anunciados ao público em geral múltiplos objectos de natureza absolutamente inócua, contribuem para dar plausibilidade ao afirmado por aquele, que consideramos credível; assim não seria se estivesse em causa objecto anunciado como arma apta a disparos eléctricos, por valor considerável, num qualquer obscuro site ou na denominada “dark web”.

Face ao exposto, resultaram os factos imputados ao arguido não indiciados.

3.2. Vicissitudes processuais relevantes

- No dia 16/4/2021, funcionários da Autoridade Tributária e Aduaneira (ATA) procederam ao controlo de uma encomenda postal dirigida ao arguido, anotando como resultado desse controlo o seguinte “1 taser” e “Peritagem PSP” (Relatório de Controlo Aduaneiro e Pesquisa de Envios, fls. 3 a 9);

- No dia 24/3/22 foi feita a peritagem do objecto pela PSP, que considerou tratar-se de um “aparelho emissor de descargas eléctricas (…) dissimulado sob a forma de outro objecto – lanterna”, “Sem marca” e “Sem modelo”, a qual foi enviada para a ATA em 22/7/2022 (Relatório de Peritagem e Ofício de fls. 1 e 2);

- Em 11/11/2022, a ATA elaborou um auto de notícia, onde se indica que (resumo nosso): (i) em fiscalização de rotina tinha-se procedido à verificação do objecto postal procedente da China, tendo surgido suspeita de que poderia conter armas; (ii) constatou-se que era uma arma; (iii) comunicou-se aos CTT que o desalfandegamento ficava dependente da apresentação de documentação a apresentar pelo destinatário; (iv) os CTT notificaram o arguido com um “aviso de desalfandegamento” para apresentar autorização da PSP para importar o referido objecto; (v) o arguido não apresentou; (vi) o objecto foi apresentado para peritagem na PSP, que concluiu que era uma arma; (vii) pelo que a ATA elaborou o auto de notícia e procedeu à apreensão do objecto (Auto de Notícia e Auto de Apreensão de fls. 10 a 15);

- Em 22/11/22 os documentos referidos acima foram enviados para o Ministério Público que determinou a abertura do inquérito que deu origem ao presente processo.

3.3. Validade da prova

A questão que nos é posta para decidir é se a prova documental enviada pela ATA ao Ministério Público – a apreensão de uma arma remetida numa encomenda postal dirigida ao arguido – é proibida, por violação do direito à reserva da vida privada, o que remete para a questão de saber se a ATA tinha de obter prévia autorização judicial para abrir a encomenda e apreender o seu conteúdo no momento do seu desalfandegamento.

A questão é complexa e já foi objecto de decisões contraditórias nos tribunais. No acórdão do TRP, de 13/3/2024, no processo 1708/22.5T9PV2.P1[1], decidiu-se que a prova é válida, como decidido no acórdão do STJ, de 6/6/2002, processo 02P1874 (ambos consultáveis em www.dgsi.pt). Ainda no mesmo sentido é referido o Parecer do Conselho Consultivo da PGR, de 10/5/95, processo P000151995 (consultável em https://www.dgsi.pt/pgrp.nsf/7fc0bd52c6f5cd5a802568c0003fb410/5f88d398284babb28025829700366f1d?OpenDocument).

No sentido oposto, isto é, da invalidade da prova, vêm citados na decisão recorrida, o acórdão do STJ, de 18/5/2006, processo 06P1394, e os acórdãos TRP, de 7/6/2017, processo 96/14.8EALSB-A.C1 e TRE, de 27/9/2022, processo 15/19.5FBOLH.E1 (todos consultáveis em www.dgsi.pt). Deve dizer-se, no entanto, que nestes dois últimos acórdãos, do TRC e do TRE, o que estava em causa eram actos de apreensão de encomendas nas estações dos CTT por autoridades policiais, na sequência de suspeitas sobre a actividade dos respectivos arguidos, situação substancialmente diferente e com contornos pouco relevantes para a decisão do caso em apreciação.

Como justificaremos de seguida, a decisão recorrida partiu de um equívoco factual, que contaminou o enquadramento jurídico, chegando a uma solução interpretativa que nos parece formalista e desfasada das exigências da sociedade actual.

O primeiro aspecto que importa reter é que a abertura da encomenda postal dirigida ao arguido foi realizada no âmbito de uma acção preventiva de controlo aduaneiro da competência da ATA. Do auto de notícia resulta que durante uma verificação de rotina se procedeu à abertura da encomenda e que só nesse momento, descoberto o objecto em causa, surgiu a suspeita de que poderia tratar-se de uma arma. Ou seja, a ATA não abriu a encomenda por suspeitar que a mesma continha uma arma.

O Decreto-Lei 376-A/89 (Regime Jurídico das Infracções Fiscais e Aduaneiras) confere à ATA as competências de fiscalização, que incluem o exame de mercadorias (artigo 49º nº 1). Por oposição à previsão do nº 2 do preceito, que remete para os termos do processo penal quando a fiscalização decorra na sequência de suspeita de crime, é nítido que a previsão do nº 1 se refere a acções preventivas, prévias à existência de qualquer suspeita e à abertura de qualquer inquérito. No artigo 50º, dispõe-se, ainda, que a ATA, quando presenciar qualquer infracção, apreende a mercadoria e levanta auto de notícia.

O Decreto-Lei 118/2011 (Lei Orgânica da Autoridade Tributária e Aduaneira) atribui à ATA a competência para exercer o controlo da fronteira externa da União Europeia, nomeadamente exercendo acções de inspecção aduaneira (artigo 2º nº 1 al. b).

O Código Aduaneiro Comunitário (Modernizado), aprovado pelo Regulamento (CE) nº 450/2008, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Abril de 2008, e alterado pelo Regulamento (EU) nº 528/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho), depois de definir o que é o “controlo aduaneiro” (artigo 4º nº 3), dispõe que esse controlo pode consistir na verificação de mercadorias (artigo 25º nº 1) e que as autoridades aduaneiras podem “proceder à verificação das mercadorias” (artigo 27º nº 1).

A Lei 17/2012 (Regime jurídico aplicável à prestação de serviços postais), em coerência com as normas referidas, determina que a prestação de serviços postais, que incluem as encomendas com mercadorias, deve salvaguardar a inviolabilidade e o sigilo, mas com a ressalva dos “limites e excepções previstos na lei penal e demais legislação aplicável”.

Das normas acabadas de referir resulta, sem margem para qualquer dúvida, que a ATA pode, em acções preventivas, independentemente de qualquer suspeita concreta, proceder à “verificação” ou “exame” de rotina de mercadorias no momento do desalfandegamento, sendo da própria natureza das coisas que essa “verificação” ou “exame” implica necessariamente o poder de proceder à respectiva abertura – não é possível verificar ou examinar o conteúdo de uma encomenda fechada sem a abrir.

Chegados aqui, encontramos o equívoco factual da decisão recorrida que inquinou a análise jurídica. É que a acção da ATA, de abrir a encomenda dirigida ao arguido, não constituiu uma diligência inserida num inquérito criminal regulada pelo processo penal. Tratou-se, como já dito, de uma diligência de inspecção preventiva regulada pelas normas especiais da legislação aduaneira. Claro que esta constatação é da maior importância porque toda a construção da tese jurídica da ilegalidade da prova adquirida pela apreensão do objecto, partiu do pressuposto de que a abertura da encomenda teria de obter a autorização judicial prévia prevista no artigo 179º do CPP, o que não é verdade. Esta norma apenas se aplica à apreensão e exame de correspondência no decurso de inquéritos criminais já em curso. Seria uma impossibilidade jurídica, exigir que as acções preventivas de rotina da ATA, que por definição se realizam sem que na sua base se encontre qualquer suspeita sobre o destinatário ou o conteúdo da encomenda, tivessem de obter prévia autorização judicial, a qual, obviamente, só é concedida em inquéritos em curso para investigação de suspeitas de crime já determinadas.

O artigo 179º do CPP, que regula actos praticados no inquérito, prevê que o juiz autoriza a apreensão de correspondência e que, uma vez efectuada essa apreensão, é o primeiro a tomar conhecimento do conteúdo, para decidir se o mesmo é relevante e fica no processo ou se é irrelevante e é restituído a quem pertence. A correspondência é apreendida intacta, sem ser aberta pela autoridade que executa o mandado do juiz, como decorre expressamente do artigo 252º nº 1 do CPP. Por isso, estas regras nem sequer podem aplicar-se à situação em apreço, pois uma encomenda já aberta e verificada pela ATA já não é susceptível de ser apreendida e levada intacta ao juiz para se inteirar em primeiro lugar o seu conteúdo.

A ATA só teria de obter a prévia autorização do juiz para proceder à apreensão da encomenda dirigida ao arguido se estivesse a actuar, não no âmbito da sua competência para realizar acções de fiscalização preventiva de rotina, mas na sequência de uma qualquer suspeita que devesse considerar-se notícia de crime e ter dado previamente origem à abertura de inquérito.

Por outro lado, não é minimamente convincente o argumento de que a ATA pode exercer as suas competências de fiscalização, recorrendo a meios técnicos que permitam tomar conhecimento do respectivo conteúdo sem abrir as encomendas. Em primeiro lugar, está por demonstrar que existem esses meios técnicos que permitem à ATA verificar todas as mercadorias, embaladas em todo o tipo de invólucros. Em segundo lugar, admitindo-se a hipotética existência desses meios técnicos e ainda que fossem aplicáveis as regras do artigo 179º do CPP, não vemos como é que respeitaria o direito à reserva da correspondência aceder por meios técnicos ao conteúdo da correspondência sem autorização judicial. O que a regra da inviolabilidade da correspondência proíbe é a intromissão não autorizada judicialmente no respectivo conteúdo, não sendo, sequer, autorizada a sua abertura. Ora, se as autoridades públicas utilizassem meios técnicos que lhes permitissem tomar conhecimento do conteúdo da correspondência sem a abrir, a intromissão que a lei visa afastar estaria igualmente consumada.

Sendo, portanto, inaplicável ao caso o artigo 179º do CPP, cai pela base a argumentação do despacho recorrido, no sentido de concluir que a prova obtida na acção preventiva da ATA é proibida, por violação do direito à reserva da vida privada. Porém, seguindo ainda a lógica dessa argumentação, importa verificar se as normas que atribuem à ATA o poder de verificar mercadorias sem despacho judicial contendem com preceitos constitucionais, ao ponto de determinarem, por outra via, a invalidade da prova. Consideramos que não.

O artigo 34º nº 4 da CRP dispõe que “É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal”. O nível de protecção concedido pelo nosso legislador constitucional à inviolabilidade da correspondência é maior do que o previsto no artigo 7º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, interpretado com o sentido e âmbito da protecção da privacidade da correspondência estabelecida no artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (artigo 52º nº 3). A nossa Constituição admite ingerência das autoridades públicas na correspondência apenas no âmbito do processo criminal, ao passo que o ordenamento jurídico europeu admite essa ingerência nas situações de necessidade “para a segurança nacional, para a segurança pública, para o bem-estar económico do país, a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais, a protecção da saúde ou da moral, ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros”.

Como vimos acima, o Regime Jurídico das Infracções Fiscais e Aduaneiras e a Lei Orgânica da Autoridade Tributária, em conformidade com as disposições do Código Aduaneiro Comunitário, atribuem à ATA o poder de verificar o conteúdo das encomendas postais no momento da entrada das mercadorias no território da União Europeia, fora do âmbito de qualquer processo-crime. Ora, posta assim a questão, temos que o direito da União Europeia e a legislação nacional admitem aquela ingerência das autoridades públicas na correspondência, estabelecida para a aplicação uniforme das normas do Código Aduaneiro Comunitário (artigo 1º nº 1) e para a protecção dos interesses financeiros da União Europeia e dos Estados-membros (artigo 2º al. a)), indo mais além do que a nossa Constituição, que apenas a admite nos casos previstos na lei em matéria de processo criminal.

Havendo, assim, como há, soluções contraditórias entre o nosso direito interno e o direito da União Europeia, a harmonização prática terá de passar necessariamente pela prevalência das regras estabelecidas no Código Aduaneiro Comunitário, tendo em conta o princípio do primado do direito da União face ao direito nacional e a necessidade dos Estados-membros interpretarem e aplicarem o seu direito nacional em conformidade com o direito da União Europeia. Esta regra de harmonização jurídica está prevista no artigo 8º nº 5 da CRP, tem sido afirmada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia e decorre do princípio da cooperação leal estabelecido no artigo 4º nº 3 do Tratado da União Europeia[2].

É suposto que a aplicação prática da lei não conduza a resultados socialmente absurdos. Exigir que a ATA obtivesse previamente a autorização de um juiz para proceder à verificação, com abertura, dos milhares e milhares de encomendas que entram no território da União Europeia por Portugal, sabendo-se, ademais, que essa autorização não seria concedida, visto não existir na fiscalização de rotina qualquer suspeita que a justificasse, simplesmente tornaria inútil e ineficaz todo o sistema de controlo aduaneiro instituído pelo Código Aduaneiro Comunitário.

Quem importa bens provenientes de países terceiros para o território da União Europeia sabe que as mercadorias podem ser verificadas pela ATA e que essa verificação, para ser completa e eficaz, pode implicar a abertura das encomendas, independentemente da existência de qualquer suspeita criminal. Nessas circunstâncias, o titular do direito à inviolabilidade da correspondência, ao importar mercadorias que passam por verificação alfandegária, não tem nenhuma espectativa legítima de protecção desse direito pelas autoridades públicas. Seria simplesmente absurdo proteger esse direito ao ponto de impedir as autoridades de exercerem as suas funções de fiscalização, pois isso permitiria que houvesse importação de todo o tipo de bens sem qualquer controlo – armas, explosivos, drogas, etc.

Avançando na análise do caso, temos então que a ATA, numa verificação de rotina, para a qual não é necessária autorização judicial prévia e que não viola a regra constitucional da inviolabilidade da correspondência, descobriu um objecto que suspeitou ser uma arma proibida. Quer isto dizer que nesse momento surgiu uma suspeita de crime. Porém, uma suspeita sujeita a confirmação, na medida em que é à PSP que está atribuída a competência de fiscalizar a comercialização e transporte de armas (artigo 3º nº 3 al. a) da Lei Orgânica da Polícia de Segurança Pública) e fazer as respectivas peritagens (artigo 63º do Regime Jurídico das Armas e Munições – RJAM). Toda a acção da ATA, nas comunicações estabelecidas com a PSP, entre a descoberta do objecto suspeito de ser uma arma importada sem autorização e a realização da peritagem, se insere nesses procedimentos tendentes à verificação, por um lado, da qualidade do objecto, para se saber se era arma proibida, e, por outro lado, à fiscalização da sua comercialização, as quais são, como se viu, competência da PSP.

Quando a PSP confirmou a natureza proibida do objecto e fez essa comunicação à ATA, surgiu a notícia de um crime. Daí que, a ATA tivesse, elaborado, no momento subsequente, o auto de notícia e enviado a denúncia ao Ministério Público, em conformidade com o disposto nos artigos 242º nº 1 als. a) e b) e 243º do CPP.

A apreensão da arma, ao contrário do que se afirma na decisão recorrida, não foi feita ao abrigo das regras do artigo 179º do CPP. O objecto estava descoberto e qualificado como arma. Não se tratava de correspondência fechada que devesse ser apreendida e entregue ao juiz para a abrir em primeiro lugar. A apreensão da arma pela ATA, já com a confirmação da notícia do crime e a elaboração do respectivo auto de notícia, enquadra-se, isso sim, nos poderes policiais atribuídos nos artigos 178º nº 4 e 249º nº 2 al. c) do CPP e ainda no artigo 65º do RJAM, que prevê precisamente a apreensão de armas importadas sem a respectiva licença.

Temos, pois, em conclusão, que a ATA não recolheu provas em violação das normas constitucionais e legais que protegem a reserva da vida privada e a inviolabilidade da correspondência. Consequentemente, tais provas não são proibidas, nos termos dos artigos 38º nº 8 da CRP e 126º nº 3 do CPP, e têm de ser valoradas para a decisão instrutória.

3.4. O critério legal de “indícios suficientes”

3.4.1. No despacho recorrido o tribunal concluiu também não terem sido recolhidos indícios suficientes da prática do crime pelo arguido, mesmo na hipótese das provas serem consideradas válidas.

Transcreve-se a parte relevante da decisão:

Ainda que não fosse o supra exposto o nosso entendimento sobre a nulidade da apreensão, sempre teríamos de concluir pela falta de indiciação dos factos por outra ordem de razões.

É que o arguido, de forma que soou sincera, negou ter encomendado o objecto em questão, que não foi aquele que terá visualizado no site da “A...” (e no anúncio, referente a este, que lhe apareceu no Facebook), antes tendo pesquisado, e encomendado, uma lanterna táctica, que explicou do que se trata e porque a encomendou, de forma que se nos afigurou plausível.

Assim, afirmou que, sendo militar da GNR, pretendeu adquirir lanterna táctica porque este tipo de lanternas tem um botão de ligação em local que permite a utilização em complemento da arma de fogo, sendo que tal espécie de lanterna não lhe foi fornecida pela GNR no posto onde prestava serviço.

E mais referiu que o anúncio que viu aludia a “lanterna táctica preta” (e tal se pode ver – ainda que não se veja a totalidade das letras – a fls. 37), não tendo visto referência a arma de disparos eléctricos, pois que se visse, dada a sua profissão, saberia que não a poderia encomendar.

Negou, assim, que o objecto que pretendeu encomendar fosse um daqueles que se pode visualizar nos elementos juntos pelo M.P. a fls. 41 e 42. Estes, diremos nós, apenas indiciam que os objectos representados seriam anunciados no site da “A...”, não que tivessem correspondência com o visto e encomendado pelo arguido.

Aliás, quer o preço (inferior a €20) do objecto que o arguido diz ter encomendado, quer o facto de ser anunciado em site de grande notoriedade e acessível a qualquer pessoa, onde são anunciados ao público em geral múltiplos objectos de natureza absolutamente inócua, contribuem para dar plausibilidade ao afirmado por aquele, que consideramos credível; assim não seria se estivesse em causa objecto anunciado como arma apta a disparos eléctricos, por valor considerável, num qualquer obscuro site ou na denominada “dark web”.

Face ao exposto, resultaram os factos imputados ao arguido não indiciados

Porém, afirma o Ministério Público no recurso que a circunstância de o arguido ter apresentado versões diferentes nas duas vezes em que foi ouvido e de na primeira ter ocultado a sua qualidade de militar da GNR, indiciam que sabia que estava a importar uma arma proibida.

3.4.2. Dispõe o artigo 308º nº 1 do CPP que se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz pronuncia o arguido pelos factos respectivos. Por sua vez, o artigo 283º nº 2 do CPP, aplicável à verificação dos indícios no momento da decisão instrutória (ex vi artigo 308º nº 2 do CPP) prevê que os indícios se consideram suficientes sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança. Ou seja, simplificando a definição, há suficiência de indícios para pronunciar o arguido sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de condenação em julgamento.

Recuperando a conclusão do acórdão do TRP, de 7/12/2016, proferido no processo 866/14.7.PDVNG.P1, disponível para consulta em www.dgsi.pt[3], «o juiz de instrução deverá proferir despacho de pronúncia quando considerar que os indícios disponíveis, avaliados em função do seu valor probatório no momento e de uma previsão prudente sobre a sua evolução dinâmica em julgamento, conduzem a uma conclusão racionalmente fundada em elementos objectiváveis de que é mais provável que o arguido venha a ser condenado do que absolvido e de que se justifica, no plano da proporcionalidade, comprimir o direito à presunção de inocência em nome da protecção do direito à realização da justiça e da protecção dos valores com tutela penal».

Definida esta interpretação, de que existem indícios suficientes quando predomina a probabilidade de condenação, estamos em condições agora de verificar se a decisão recorrida avaliou bem os indícios disponíveis.

3.4.3. O arguido, quando foi ouvido no inquérito e constituído arguido, ficou a constar, no local reservado à indicação da profissão, o seguinte: “Desconhecida ou sem Profissão – Empregado por conta de outrem”. No auto consta como tendo declarado que “vive de trabalhos que lhe aparecem”. No interrogatório perante o juiz de instrução, em que se identificou como militar da GNR, quando questionado sobre a estranheza de antes não o ter feito, disse não se recordar de lhe ter sido perguntado e que não declarou viver de trabalhos que lhe aparecem. Nada disto é credível. O funcionário que procedeu ao interrogatório do arguido não ia escrever aquilo se não tivesse sido declarado nem o arguido assinaria o auto daquela forma. Temos, portanto, como conclusão suficientemente indiciada que o arguido ocultou intencionalmente a sua identidade.

Porém, a conclusão que o Ministério Público retira desse facto não é segura. É verdade que aquela ocultação podia resultado do facto de o arguido saber que tinha querido importar uma arma proibida e que a sua qualidade profissional dificultaria uma defesa baseada na tese de o ter feito sem conhecimento. Simplesmente, o facto de o arguido ter sido notificado previamente para fazer prova da autorização de importação de uma arma, na hipótese de ele ter mesmo feito a encomenda por engano, e de já saber aquilo que lhe era imputado quando foi ouvido no inquérito, pode também explicar a ocultação da identidade. Ou seja, uma pessoa pode ocultar um facto de dificulta a sua defesa, tanto na hipótese de ter cometido o crime como na hipótese contrária.

Da simples circunstância de o arguido ter ocultado a sua profissão no inquérito não retiramos um indício suficientemente forte da sua culpabilidade para justificar a sua submissão a julgamento. Ou esse indício aparece corroborado por outros, ou com toda a probabilidade acabará absolvido, se for assim pronunciado.

O arguido declarou que encomendou no site A... uma “lanterna táctica”, na qual não havia qualquer indicação de ser igualmente uma arma de descargas eléctricas – taser. Quis apenas comprar uma lanterna para seu serviço. Ficou surpreendido quando recebeu a notificação da retenção da encomenda com a indicação de se tratar de uma arma. Como não era o que queria comprar, convenceu-se que o assunto terminava ali e desinteressou-se, não respondendo a essa notificação.

Esta versão é aparentemente implausível, na medida em que poderíamos ser razoavelmente inclinados a dizer que, em primeiro lugar, ninguém vende uma arma disfarçada de lanterna sem indicar para que serve e, em segundo lugar, que ninguém compra uma lanterna táctica se lá estiver indicado que faz descargas eléctricas. Só que a mera busca do site A... pelas palavras “lanterna táctica” revela não é fácil descortinar exactamente de que objectos de trata. Aparecem lanternas de defesa, em que na descrição se indica que têm bastão extensível ou taser, relativamente às quais dificilmente se poderá alegar credivelmente desconhecimento das suas características. Mas também aparecem lanternas em que não há qualquer indicação de servirem também para fazer descargas eléctricas mas em que aparecem fotos em que essas descargas são visíveis. Estas, ou são mesmo armas e é possível comprá-las sem se saber disso; ou então não são armas mas nas fotos da lanterna parecem ser. Há aqui uma dúvida muito séria sobre a possibilidade de o site A... vender mesmo uma lanterna que ao mesmo tempo faz descargas eléctricas, sem que isso seja claro na respectiva descrição.

O que acabámos de expor diz-nos que era crucial conhecer exactamente que encomenda fez o arguido e que descrição e imagens apareciam do objecto. Só isso permitiria perceber, com um mínimo de segurança, se é verdadeira a tese da acusação – ele não podia deixar de saber o que estava a comprar – ou a do arguido – comprou por engano.

O objecto apreendido não tem marca nem modelo. O Ministério Público não fez diligências para reproduzir documentalmente a encomenda feita pelo arguido, o que era possível, com toda a probabilidade, a partir das mensagens de correio electrónico relativas à confirmação e entrega. Limitou-se a juntar prints de objectos similares que era possível comprar no site A.... Isso, porém, é insuficiente porque não se sabe se correspondem à compra do arguido e porque, como dissemos, a consulta do site não afasta, de todo, a possibilidade de se comprar aquele objecto por engano.

Por outro lado, aquilo que o arguido argumentou é também relevante para criar uma dúvida sobre a sua culpabilidade. É que ele foi notificado da possibilidade de suspensão provisória do processo e opôs-se. Isso permite dizer que um militar da GNR, sabendo que tinha comprado uma arma proibida e que podia ser condenado por isso, mais facilmente aceitaria um desfecho processual mais vantajoso do que o risco de um julgamento e uma eventual condenação.

Ora, com estes indícios, que são aqueles que existem, torna-se improvável uma condenação em julgamento. Não se sabendo que encomenda fez, basta o arguido demonstrar que no site A... aparecem objectos à venda que parecem ser armas sem essa indicação para se criar uma dúvida séria e intransponível sobre aquilo que ele pensou quando encomendou o objecto em questão.

As provas que existem no inquérito não nos parecem suficientes para vencer o teste da maior probabilidade de condenação. É verdade que o conceito legal de “indícios suficientes” não exige que neste momento se veja a possibilidade de condenação com o mesmo grau de certeza necessária para condenar em julgamento. Porém, se predomina uma possibilidade séria de absolvição, se a versão da acusação não está suficientemente sustentada nas provas e se a versão do arguido tem uma plausibilidade igualmente sustentada, não se pode concluir pela verificação dos pressupostos do artigo 308º nº 1 do CPP para que seja proferido despacho de pronúncia.

Donde resulta que o recurso é improcedente e que a decisão recorrida tem de ser confirmada, embora não em todos os seus fundamentos.

4. Decisão

Pelo exposto, acordamos em julgar o recurso improcedente e em consequência decidimos confirmar o despacho de não pronúncia.

Sem custas.

Porto, 8 de Maio de 2023
Manuel Soares
Francisco Mota Ribeiro
Liliana de Páris Dias
_____________
[1] O ora relator interveio aí como juiz adjunto votando favoravelmente a decisão.
[2] Ver, com mais desenvolvimento, “O princípio do primado do direito da União sobre o direito nacional e as suas implicações para os órgãos jurisdicionais nacionais”, Carla Farinhas, www.julgar.pt.
[3] Com o mesmo relator do presente acórdão