LIBERDADE CONDICIONAL
REVOGAÇÃO
Sumário

Tendo o libertado praticado, como reincidente, um novo crime de tráfico de estupefacientes - pelo qual o Tribunal da condenação, num juízo mais atualizado, concluiu pela necessidade de aplicação de uma pena efetiva de prisão - logo após a libertação condicional, justifica-se a revogação desta, face ao insucesso das finalidades subjacentes à sua concessão: - prevenir que o libertado voltasse a delinquir.

(Sumário da responsabilidade da Relatora)

Texto Integral

Processo n.º 614/14.1TXPRT-O.P1

Acordam em conferência na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I.
Nos autos de incidente de incumprimento n.º 614/14.1TXPRT-O, a correr termos no Juízo de Execução de Penas do Porto – Juiz 1, do Tribunal de Execução de Penas do Porto, por decisão de 21.01.2024 (Ref.ª 6172858), foi determinada a revogação da liberdade condicional preteritamente concedida a AA e, consequentemente, a execução do remanescente da pena que cumpria à ordem do Proc. n.º 57/12.1PEPRT, do Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 7, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto.

*
I.2
Inconformado, veio o requerido interpor o recurso ora em apreciação (Ref.ª 1130197), referindo, em síntese, que:
- Nos presentes autos foi determinada a revogação da liberdade condicional ao arguido,
- Não podem determinar a fundamentação da revogação como resulta da decisão proferida pelo tribunal a quo, factos que ocorreram após o período de términus da liberdade condicional, ocorrendo vício de fundamentação nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 374º nº2 por remissão ao artigo 379º ambos do C.P.P.
- A condenação por crime cometido no período, quer da suspensão da execução da pena de prisão, quer da liberdade condicional, não opera, automaticamente, a sua imediata revogação, devendo ser realizado, previamente, o juízo sobre a possibilidade de ainda se alcançarem, em liberdade, as finalidades da punição e da sua reinserção, que ditará a opção entre o regime do art. 55º ou do art. 56º do Código Penal
- As declarações do arguido traduzem a assunção de um crime de tráfico de estupefacientes e de detenção de arma proibida, pois a mera posse preenche os requisitos de tal crime, demonstrando espírito crítico e noção do desvalor da conduta por si praticada
- Os factos assumidos pelo arguido são os únicos temporalmente que justificam a revogação do despacho em crise,
- O arguido cometeu o crime quando faltavam 6 meses para o términus da liberdade condicional...
- Tendo em conta que o mesmo já foi julgado e condenado, e que lhe foi aplicada a pena de 7 anos e 4 meses no âmbito do processo nº 10/17.9PEPRT (por reincidência), até que ponto se justifica a presente revogação? ( a moldura penal cominada é bastante penalizadora)
- Decorreram mais de 4 anos desde a data da prática do crime em questão, inexistindo fundamentos que justifiquem a revogação da liberdade condicional
- O arguido encontra-se inserido social e familiarmente, dispondo de apoio no EP.
- O arguido encontra-se a ser acompanhado clinicamente em local externo ao E.P. ..., podendo ser submetido a cirurgia ao cérebro em data próxima.
- Entende-se que ainda é possível efetuar um juízo de prognose favorável quanto ao comportamento do arguido, neste sentido vide o decidido e aí argumentado, no âmbito do Processo nº 445/07.5GAPVL que correu termos no Juízo Central Criminal de Guimarães – Juiz 3
- Termos em que deve o despacho que revogou a liberdade condicional ser revogado por outro que contemple decisão diversa
*
I.3
Admitido o recurso, o Ministério Público apresentou articulado de resposta (Ref.ª 1138206) referindo, em conclusões, o que a seguir se transcreve:
1.- o recurso versa a decisão que revogou a liberdade condicional que havia sido concedida ao condenado, aos 5/6 do cumprimento da pena única de 6 Anos e 3 Meses em que
está condenado pela prática, em coautoria, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado,
2.- a decisão recorrida não é uma sentença, logo não abrangida pelos vícios que podem contaminar esta;
3.- o recluso tanto nega o cometimento de crime no decurso da liberdade condicional, como afirma que o cometeu os factos que assumiu quando só faltavam seis meses para o termo
da mesma;
4.- concorda-se com o afirmado no recurso quanto a não operar a revogação da liberdade condicional automaticamente, como não operou in casu;
5.- se a revogação operasse automaticamente bastaria a comunicação do trânsito em julgado da sentença condenatória pela prática de crime no decurso da liberdade condicional e, sem mais, esta era revogada;
6.- ao condenado/recorrente foi concedida, a 05/03/2019, liberdade condicional obrigatória, por alcançados os 5/6 do cumprimento da pena em que foi condenado no proc. 57/12.1PEPERT, pela prática de crime de tráfico de estupefacientes agravado, a vigorar até 24/03/2020;
7.- é falso o afirmado quanto a terem os crimes que que conduziram à condenação que determinou a decisão recorrida ocorrido depois do termo da liberdade condicional;
8.- no proc. que agora o condenou na pena 7 Anos e 6 Meses de Prisão, pela prática de crime de tráfico de estupefacientes agravado pelo reincidência, provado ficou que desde data não concretamente apurada após a sua libertação em liberdade condicional até 06/07/2021, desenvolveu atividade de venda de produtos estupefacientes, e que no dia 19 de agosto de 2019, pelas 16h50, trazia na viatura automóvel em que se fazia transportar, uma placa de cannabis (resina), com peso líquido de 98,870 gramas, e …. envoltos em plástico, vários pedaços de cannabis (resina), com o peso líquido de 7,730 gramas, destinando todo o estupefaciente apreendido à venda a terceiros;
9.- os crimes pelos quais está condenado na pena ora em execução, de 7 Anos e 6 Meses de prisão foram cometidos, também, no decurso da liberdade condicional;
10.- o cometimento de mais este crime e tráfico de estupefacientes, de elevadíssima gravidade, para além do de detenção de arma proibida, no decurso de uma liberdade condicional, obrigatoriamente concedida, nos termos do disposto no artº 61º, nº 4, do Cód. Penal, quando cumpria pena pela prática de um anterior da mesma natureza, e agravado, revela a total incapacidade de o recluso/recorrente, em liberdade, manter conduta readaptada;
11.- a prática deste novo crime demonstra, à saciedade, o quanto o recluso/recorrente é impermeável, quer aos efeitos pretendidos alcançar com a condenação na pena de prisão, no âmbito da qual viu ser concedida a liberdade condicional, quer quanto à confiança que o sistema jurídico lhe concedeu, ordenando a concessão desta por decurso de cinco sexto do cumprimento daquela;
12.- a situação que o recluso presente encaixa, totalmente, ex vi artº 64º, no disposto no artº 56º, nº1 al. b), ambos do Cód. Penal, pois que não só cometeu crimes no decurso da liberdade condicional como revela que a finalidade pretendida alcançar com a concessão desta não foram alcançadas;
13.- o recluso não é merecedor da menor confiança do sistema jurídico e da sociedade, pelo que é de todo indiferente as declarações que preste, assumindo ou não a prática do crime;
14.- na sequência do entendimento já deixado expresso no parecer emitido nos termos o disposto no artº 185º, nº 6, do CEPMPL, a decisão ora recorrida é a certa e legalmente exigida, pelo que o recurso não merece provimento, se não mesmo ser rejeitado por manifesta improcedência;
Nestes termos e nos demais de direito, que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve ser, se não rejeitado, negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida de revogação da liberdade condicional ao condenado, assim de fazendo JUSTIÇA
*
I.4
Neste Tribunal o Digno Procurador-Geral Adjunto teve vista nos autos, tendo emitido parecer (Ref.ª 17930148) no sentido do não provimento do recurso interposto, aderindo à fundamentação constante da resposta apresentada em primeira instância.
*
Deu-se cumprimento ao disposto no art.º 417.º n.º 2 do C.P.P., não tendo sido exercido o contraditório.
Foram os autos aos vistos e procedeu-se à conferência, importando, pois, apreciar e decidir.
*
II.
Questões a decidir:
Conforme jurisprudência recorrente e pacífica, o âmbito de qualquer recurso é delimitado pelas conclusões que sobrevêm às alegações do recorrente (cfr. art.ºs 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2 e 410.º, n.º 2, als. a) a c) do C.P.P. e Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, de 19.10).
No caso, vistas as conclusões apresentadas em sede recursória, constitui objeto do presente recurso saber:
a) Da existência de vícios na decisão recorrida;
b) Se deve ser revogada a liberdade condicional ou mantida a sua execução.
*
III.
III.1
Por facilidade de exposição, retenha-se o teor da decisão recorrida, na parte relevante:
(…)
Com base nos elementos documentais constantes deste apenso, nomeadamente a certidão da decisão de concessão de liberdade condicional e da posterior decisão condenatória, e tendo em conta as declarações prestadas pelo condenado no decurso da sua audição, dão-se como assentes os seguintes factos com interesse para a decisão a proferir:
1) Quando se encontrava no estabelecimento prisional ... em cumprimento da pena de 6 anos e 3 meses de prisão, à ordem do processo n.º 57/12.1PEPRT, da Comarca do Porto - Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 7, pela coautoria um crime de tráfico agravado de estupefacientes, por decisão proferida em 11/01/2019, o condenado foi colocado em liberdade condicional em sede de cinco sextos da pena.
2) Foi fixada a data de 05/02/2020 para o termo do período da liberdade condicional, tendo o condenado sido libertado em 20/01/2019.
3) Por decisão transitada em julgado em 17/08/2023, proferida no processo n.º 10/17.9PEPRT, da Comarca do Porto - Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 3, por factos cometidos, para além do mais, em 19/08/2019, foi o recluso condenado na pena parcelar de 7 anos e 4 meses de prisão efectiva, pela autoria de um crime de tráfico de estupefacientes, agravado pela reincidência.
4) Esta última pena referida encontra-se agora em curso de execução, estando o seu termo calculado para 06/01/2029.
5) Ouvido, o condenado prestou as declarações registadas no sistema de gravação.
Cumpre, agora, aplicar o Direito.
A nova condenação referida em 3), motivada pela autoria de factos ilícitos, com relevância criminal, no decurso do período da liberdade condicional, inculca a ideia segundo a qual o condenado, não obstante ter daquela beneficiado, não se mostra capaz de, em liberdade, prosseguir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes – cf. o artigo 61.º, n.º 2, al. a), in fine, do Código Penal.
Notar-se-á, aqui, que o condenado voltou a cometer um crime de tráfico de estupefacientes (cf. o crime pelo qual cumpria pena aquando da sua libertação), agora com funcionamento do instituto da reincidência, o que bem ilustra o percurso criminoso em presença.
Mais, o novo crime foi praticado no próprio ano da sua colocação em liberdade, o que faz denotar nula intimidação sentida pela anterior intervenção do sistema de justiça penal/prisional.
De resto, o condenado nem sequer assume integralmente a sua prática (cf. o declarado em audição, acto em que circunscreveu a sua conduta criminosa à detenção de uma placa de 100 gr. de haxixe para consumo próximo, a qual referiu ter-lhe sido oferecida pelo seu irmão), pelo que não operou adequada interiorização da culpa.
Deste modo, afigura-se legítimo concluir que não logrou o agente reintegrar-se na sociedade (v. o artigo 40.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, onde surgem enunciadas as finalidades das penas, norma que constitui um tronco comum com o artigo 42.º, n.º 1, e com o mencionado artigo 61.º, n.º 2, ambos do código em referência), nem recobrou o sentido de orientação social – cf. o décimo parágrafo do ponto 9. do preâmbulo ao Código Penal, revisão de 1995.
Do mesmo passo se infere que as finalidades que estiveram na base da colocação do condenado em liberdade condicional não puderam, por meio desta, ser alcançadas.
Por fim, considera-se que nenhuma das medidas previstas no artigo 55.º do Código Penal se mostra aplicável no caso em presença, pois o cumprimento de pena de prisão efectiva à ordem de um outro processo inviabiliza, naturalmente, a sua aplicação/eficácia.
Em conformidade com o exposto, ponderando o estabelecido nos artigos 56.º, n.º 1, alínea b), e 64.º, n.º 1 e n.º 2, ambos do Código Penal, decido revogar a liberdade condicional aplicada em 20/01/2019 a AA, com os demais sinais dos autos, pelo que determino a execução da pena de prisão ainda não cumprida no processo n.º 57/12.1PEPRT, da Comarca do Porto - Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 7.
(…)
*
III.2
Apreciando
III.2.1
Dos vícios da decisão recorrida
Alega o recorrente que a decisão recorrida, na sua fundamentação, considerou factos ocorridos após o termo do período da liberdade condicional, verificando-se o vício previsto no art.º 374.º, n.º 2, por remissão do art.º 379.º, ambos do C.P.P..
Apreciando.
Dispõe o art.º 205.º da C.R.P. que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei, cumprindo-se, por esta via e em regra, duas funções [cfr. acórdão do Tribunal Constitucional 55/85, disponível em www. tribunalconstitucional.pt]: - Uma, de ordem endoprocessual, que visa impor ao juiz um momento de verificação e controlo crítico da lógica da sua própria decisão, permitindo ulteriormente às partes – face à decisão assim proferida - exercitar o direito ao recurso, designadamente no questionamento do raciocínio expresso pelo julgador e facilitando, ao Tribunal de recurso, na sua atividade sindicante, a construção de um juízo concordante ou divergente.
A outra função, já de ordem extraprocessual, possibilita o controlo externo e geral sobre a fundamentação lógica e jurídica da decisão visando, nas palavras de Michele Taruffo, garantir a transparência do processo e da decisão [vd. Note sulla garantizia constituzionale della motivazione, in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, vol. LV (1979), pág. 29 e ss.].
Também o art.º 20.º, n.º 4, da Lei Fundamental, ao proclamar que todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo pressupõe, quanto à equitatividade, um efetivo direito à motivação das decisões judiciais em ordem a garantir a proibição do arbítrio, a interdição da discriminação e a obrigação de diferenciação que o princípio da igualdade, decorrente dos art.ºs 13.º da C.R.P. e 14.º da C.E.D.H. também impõem.
A jurisprudência do T.E.D.H. valoriza o direito à motivação, como decorrência do direito a um processo justo e equitativo que o art.º 6.º da C.E.D.H. afirma.
O dever de fundamentação é, pois, uma garantia integrante do conceito de Estado de Direito Democrático e um instrumento, pela sua probidade, de legitimação da decisão judicial e potenciador de um efetivo direito ao recurso.
Em poucas palavras e trabalhando sobre a ideia expressa por André Teixeira dos Santos [A imparcialidade do juiz de julgamento, Revista do Centro de Estudos Judiciários, 2021-I] o juiz, depois de convencido, terá, por via da fundamentação, que convencer.
Revertendo ao caso em apreço a decisão de revogação da liberdade condicional, apesar de ser formalmente um despacho, deve conter, na medida do necessário, os requisitos das sentenças exigindo, pelos seus efeitos e no encerramento do competente incidente de revogação, uma fundamentação adequada que se aproxima à das sentenças, porquanto só este tipo de fundamentação permite que a decisão seja verdadeiramente sindicável em sede de recurso.
Em qualquer dos casos e independentemente da posição jurisprudencial que se adote quanto à questão – despacho, strictu sensu, complacente com uma fundamentação mais reduzida ou, no plano mais garantístico, equivalente a uma sentença, com aplicação do estatuído no art.º 374.º do C.P.P. – mesmo na interpretação mais favorável aos interesses do recorrente, em momento algum se alcança, como verificado, o vício indicado e que defluiria na correspondente invalidade (nulidade). É que a decisão proferida pelo Tribunal a quo enuncia os factos provados – a matéria factual sobre a qual incidiu o Direito aplicável – com indicação das provas que a sustentam (os elementos documentais), dando a conhecer os fundamentos de facto e permitindo, por essa via, a correspondente sindicância.
Por outro lado – contrariamente ao afirmado – o Tribunal não se louvou em factos ocorridos após o termo do período da liberdade condicional. Neste particular apenas reteve a posição assumida pelo condenado, aquando do exercício do contraditório já no âmbito do incidente de incumprimento, sendo, no entanto, relevante, para efeitos da revogação decretada, não esse posicionamento, mas a comissão de um crime de idêntica natureza no período da liberdade condicional e como se analisará infra.
Nesta medida e mostrando-se a decisão recorrida devidamente fundamentada, improcede, nesta parte, o recurso.
*
III.2.2
Da revogação da liberdade condicional
Conforme decorre do disposto no art.º 186.º, n.º 2 do C.E.P.M.P.L., em contexto de incidente de incumprimento, o recurso interposto é limitado à questão da revogação (ou não) da liberdade condicional, rege-se pelas normas que regulam os recursos em processo penal (cfr. art.º 239.º do C.E.P.M.P.L.) e, em substância, na falta de regulamentação específica e ante a remissão operada pelo art.º 64.º, n.º 1, do C.P., os fundamentos para uma eventual revogação devem buscar-se no regime instituído para o do incumprimento das condições da suspensão da execução da pena de prisão (art.º 55.º, als. a) a c) e 56.º, n.º 1, do C.P. não sendo, contudo, mesmo considerada a identidade de regimes, admitida a possibilidade de prorrogação da liberdade condicional, tendo a revogação desta, como única consequência, a execução do remanescente da pena).
Verificado o incumprimento, para além da consequência mais gravosa da revogação, com a sobredita defluência única do cumprimento do remanescente da pena, as incidências negativas que influenciem a execução do período da liberdade condicional podem, em modulação mais restrita, ter como consequência, a formulação de uma solene advertência ao libertado, a exigência de garantias de cumprimento das condições impostas à liberdade, a imposição de novas regras de conduta, ou a introdução de exigências acrescidas no plano de reinserção social [cfr. Joaquim Boavida, A Flexibilização da Prisão – Da Reclusão à Liberdade, Almedina, 2108, pág. 193].
No plano consequencial do incumprimento, a montante deverá ter-se em conta que pressupõe uma ação culposa do condenado, não bastando, pois, a verificação objetiva do inadimplemento, sendo necessário que “(…) a atuação do condenado, ao deixar de cumprir o dever, seja censurável. Só o incumprimento culposo, enquanto pressuposto material comum, é suscetível de acarretar uma das consequências jurídicas legalmente previstas” e, para tanto, isolada uma situação desconforme ao previsto e expetável, imputável ao condenado, deverá o juiz “(…) começar por averiguar qual o significado que o incumprimento assume para o juízo de prognose que foi feito no momento da concessão da liberdade condicional; trata-se de determinar se o incumprimento, mais do que pôr meramente em dúvida, infirma o juízo de prognose favorável que esteve na base da concessão da liberdade condicional”[Joaquim Boavida, op. e loc. cit.].
No mesmo sentido, decompondo e exemplificando, pode ler-se no acórdão desta Relação de 19.09.2023 [proc. n.º 433/14.5TXPRT-J.P1, Rel. Pedro Afonso Lucas, disponível em www.dgsi.pt], “(…) a revogação da liberdade condicional, que repristina a pena de prisão cuja execução estava interrompida, não é uma sanção pela prática de um novo crime no respectivo período, pois que aqui está em causa, ainda, a vinculação da pena aos factores de prevenção.
O que releva é poder ou não formular-se um juízo sobre a insubsistência da anterior previsão positiva sobre a ressocialização e a eficácia preventiva da liberdade condicional. Porque os princípios da proporcionalidade e da necessidade da pena cobrem todo o respectivo processo aplicativo, e subsistem até à extinção da sanção imposta, a decisão de revogação da liberdade condicional é delimitada aos casos em que esse facto imponha a conclusão de que se frustrou o juízo de prognose que a havia fundamentado. (…) Ora, o exacto sentido ou o ponto de diferenciação que deve ditar a manutenção ou a revogação da medida penitenciária de liberdade condicional perante a prática pelo agente de um novo crime durante o período da dita medida, traduz-se em apurar se as finalidades que estiveram na base da decisão prévia de concessão da liberdade condicional podem ou não ser ainda alcançadas – em caso afirmativo, será de manter a liberdade condicional; em caso negativo, deve ser a mesma revogada.
Aquele segundo elemento pressupõe, pois, que em concreto e tendo por referência o momento em que se toma a decisão, o cometimento do crime superveniente é demonstrativo de que não se cumpriram as expectativas que motivaram a aplicação da medida e que esta se revela, assim, inadequada para se alcançarem as finalidades da punição, ou seja, que o arguido não volte a delinquir.
Para consubstanciar tal aferição, importa ponderar em especial a relação temporal entre a data da concessão da liberdade condicional e a data em que foram praticados os novos factos, a relação entre os tipos de crime praticados, a análise das circunstâncias do cometimento do novo crime, ou seja, do quadro em que o condenado voltou a delinquir e o seu impacto negativo na obtenção das finalidades que justificaram a liberdade condicionada, e bem assim a evolução das condições de vida do condenado até ao presente – num juízo reportado ao momento em que importa decidir. (…)”.
Ainda no mesmo sentido [cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.03.2021, proc. n.º 1381/11.6TXLSB-G.L1-3, Rel. Cristina Almeida e Sousa, acedido em www.dgsi.pt] “Como a revogação da liberdade condicional, repristina a execução da pena de prisão que estava interrompida e não pode, ela própria, ser uma sanção pela prática de um novo crime no respectivo período, se o condenado cometer outro crime, no decurso do prazo liberdade condicional, pelo qual venha a ser condenado, tal condenação só desencadeará a revogação da liberdade condicional, se resultar demonstrado que as finalidades que estavam na base da sua concessão não puderam, por meio dela, ser alcançadas. E tal só sucederá se, depois de analisados, em concreto, o tipo de crime praticado, as condições em que foi cometido, a gravidade da conduta, as condições de vida do arguido e o seu comportamento até ao momento da decisão sobre a revogação da liberdade condicional, que não possam reputar-se estranhas à prática do novo crime ou dele dissociáveis, os seus antecedentes criminais, bem como, outras circunstâncias que se revelem pertinentes, se verificar o fracasso do prognóstico favorável relativamente ao comportamento do recluso, quanto à sua capacidade de interiorização dos valores ético-jurídicos que regem a vida em liberdade e o convívio social e de adequação da sua actuação de harmonia com esses valores.”.
Revertendo ao caso em apreço.
O instituto da liberdade condicional assume “um carácter de última fase de execução da pena a que o delinquente foi condenado e, assim, a natureza jurídica – que ainda hoje continua a ser-lhe predominantemente assinalada – de um incidente (ou de uma medida) de execução da pena privativa de liberdade. O agente, uma vez cumprida parte da pena de prisão a que foi condenado (pelo menos metade em certos casos, dois terços noutros casos) vê recair sobre ele um juízo de prognose favorável sobre o seu comportamento futuro em liberdade, eventualmente condicionado pelo cumprimento de determinadas condições – substancialmente análogas aos deveres e regras de conduta que vimos fazerem parte das penas de substituição da suspensão da execução da prisão e do regime de prova – que lhe são aplicadas.
Foi, desta forma, uma finalidade específica de prevenção especial positiva ou de socialização que conformou a intenção político-criminal básica da liberdade condicional desde o seu surgimento” [Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p. 528.].
Sendo a concessão de liberdade condicional alicerçada num juízo de prognose favorável, dispõe o art.º 64.º do C. P. que lhe é aplicável, como vimos, o disposto no art.º 52.º, nos n.ºs 1 e 2 do art.º 53.º, no art.º 54.º, nas als. a) a c) do art.º 55.º, no n.º 1 do art.º 56.º e no art.º 57.º, todos do mesmo diploma legal, sendo que a sua revogação determina a execução da pena de prisão ainda não cumprida.
Assim e em síntese, para o caso que nos ocupa, a liberdade condicional poderá ser revogada se o libertado tiver cometido crime pelo qual venha a ser condenado e revelar, por esta via, que as finalidades do período de liberdade condicional não puderam ser alcançadas.
Nos termos do art.º 56.º n.º 1 als. a) e b) do C.P. “A suspensão da execução da pena é revogada sempre que, no seu decurso o condenado (...) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas (…)”.
Ora a finalidade essencial subjacente à concessão da liberdade condicional foi a de permitir que o libertado se reinserisse, abandonasse comportamentos de risco, com o acompanhamento instituído em seu benefício. Paralelamente, era aposta essencial da concessão da liberdade condicional que o libertado não voltasse a delinquir.
No caso em apreço e quanto aos elementos vertidos na al. b), temos que o recorrente, quando se encontrava no estabelecimento prisional ... em cumprimento da pena de 6 anos e 3 meses de prisão, à ordem do processo n.º 57/12.1PEPRT, da Comarca do Porto - Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 7, pela prática, em coautoria, um crime de tráfico agravado de estupefacientes, por decisão proferida em 11/01/2019 foi colocado em liberdade condicional (pelos 5/6 da pena) com termo em 05/02/2020.
O ora recorrente, na execução da sobredita decisão, foi libertado no dia 20/01/2019.
Não obstante e, para além do mais, por factos cometidos em 19/08/2019, ou seja, escassos sete meses após libertação condicional, por decisão transitada em julgado em 17/08/2023, proferida no processo n.º 10/17.9PEPRT, da Comarca do Porto - Juízo Central Criminal do Porto – Juiz 3, foi o recorrente condenado na pena parcelar de 7 anos e 4 meses de prisão efetiva, pela autoria de um crime de tráfico de estupefacientes, agravado pela reincidência.
Neste conspecto e ante tais factos, é notório, claro e insofismável que o condenado frustrou qualquer das finalidades subjacentes à colocação em liberdade condicional, não se encontrando qualquer elemento factual – nem o recorrente o indica – que permita concluir que aquele juízo de prognose favorável (ainda que se tivesse tratado de concessão de liberdade condicional ope legis pelos 5/6 da pena) foi confirmado e que a libertação cumpriu os seus desígnios.
É certo que a revogação da liberdade condicional se apresenta como uma medida de ultima ratio. Mas também é certo que a concessão de liberdade condicional pressupunha que o libertado, no futuro, pautaria a sua vida de acordo com o cumprimento das regras e normas sociais, isento da prática de crimes.
Ora o condenado praticou um novo crime e não um qualquer ilícito menos gravoso ou mais negligenciável no seu percurso readaptativo. Tratou-se, concretamente, da prática de um novo crime de tráfico de estupefacientes, pelo qual o Tribunal da condenação, num juízo mais atualizado, concluiu pela necessidade de aplicação de uma pena efetiva de prisão – atentas as necessidades de prevenção geral e especial – que atualmente cumpre, praticado logo após a libertação condicional. Ademais, note-se, o recorrente foi condenado, nesta nova infração, como reincidente o que, desde logo e para efeitos do art.º 75.º, n.º 1 do C.P., pressupõe a conclusão de que “a condenação ou condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime”.
Efetivamente, será porventura difícil encontrar um caso tão óbvio e paradigmático de insucesso das finalidades subjacentes à concessão da liberdade condicional do que aquele que emerge do caso vertente. O recorrente foi libertado na execução de uma pena por crime de tráfico de estupefacientes e, no período, comete crime de idêntica natureza e gravidade pelo qual foi condenado em nova pena de prisão efetiva e como reincidente. E, note-se, o Tribunal a quo, na decisão recorrida, não levou em conta – ao contrário do afirmado – factos ocorridos após o termo do período de liberdade condicional. Apenas se referiu a uma aparente falta de consciência crítica, contemporânea ao momento da sua audição já na pendência do incidente de incumprimento.
Neste momento é, pois, incontornável a conclusão de que a liberdade condicional não atingiu o seu principal objetivo, que era o de, com base num juízo de prognose favorável, prevenir que o requerido voltasse a delinquir. Na verdade não conseguiu manter-se afastado da prática de crimes, cometeu novo crime, de idêntica natureza e pelo qual foi condenado em pena de prisão, evidência do postergar das finalidades da medida e que deflui no acerto da decisão revogatória e na improcedência da pretensão recursória.
*
IV.
Decisão:
Por todo o exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso interposto pelo requerido AA, mantendo na íntegra a decisão recorrida.
*
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC (art.º 515.º, n.º 1, al. b) do C.P.P. e art.º 8.º, n.º 9, do R.C.P., com referência à Tabela III).
*
Porto, 8 de maio de 2024
José Quaresma
Pedro Vaz Pato
Pedro Afonso Lucas