ARRENDAMENTO
RENDA
EQUIVALÊNCIA
Sumário

Para que exista um contrato de arrendamento não é necessário que a renda seja equivalente ao gozo do prédio.

Texto Integral

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

I- Relatório

B.........., com domicílio na Rua .........., ......, ........., instaura a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra C............., com domicílio na Avenida ............., ..., ........., alegando, em síntese que:
- D............, faleceu de uma neoplastia na bexiga, em 21 de Maio de 1988, no estado de viúvo, sem testamento e deixou como herdeiros os seus filhos - o autor e ré e ainda E..........., residente na mesma Av. ............., ........, F.............., residente na Rua ............., ..., .........., .........., e G............. casada com H............, residentes em ........., ............., ............, ............;
- Em 01 de Janeiro desse ano de 1988, o D............., sentindo a morte próxima, celebrou com a ré, sua filha, um contrato de arrendamento do prédio em que ambos residiam e a ré continua a residir, pela renda anual de 120.000$00, a pagar em duodécimos no primeiro dia útil do mês anterior aquele a que respeitasse;
- No início de 1988, esse prédio valia não menos de 40.000.000$00 e poderia produzir uma renda não inferior a 200.000$00 mensais, sendo certo que a renda fixada no contrato mal dá para pagar as despesas de conservação do prédio e contribuições inerentes, e obedeceu ao propósito de beneficiar a ré, em consequente detrimento dos irmãos, traduzindo-se numa doação indirecta e que, feita por este processo, não é susceptível de redução, sendo esse o objectivo do pai do autor e da ré ao celebrarem tal contrato, defraudando a aplicação de preceitos legais imperativos;
- O valor do prédio, se devoluto, representa não menos de 60 por cento do valor da herança deixada pelo Sr. D.........;
- O contrato é nulo e, a não se entender assim, deverá considerar-se de comodato, dada a desmedida falta de correspectividade entre o valor da cedência do uso e fruição do arrendado e a renda fixada.
Conclui por dever a acção proceder e, por essa via, ser declarado que o contrato de arrendamento em causa é uma doação indirecta, com ofensa da legítima dos autores, pelo que é nulo, ou, subsidiariamente, que não vale como arrendamento mas como comodato.
Mais requereu o autor a intervenção principal activa dos demais filhos do falecido Sr. D........... – E..........., G............... e marido H.............. e F............. - intervenção que veio a ser admitida, tendo apenas esta interveniente assumido a posição do autor.

Em contestação a ré excepcionou a ilegitimidade do autor e demais intervenientes, por entender que o direito invocado cabe à herança e não aos herdeiros, em nome próprio e por manifestação individual, bem como a caducidade pelo decurso do prazo superior a um ano desde o conhecimento do negócio por aqueles e defendeu a validade do contrato de arrendamento.

O autor replicou, concluindo pela improcedência das excepções suscitadas pela ré.

No despacho saneador foram julgadas improcedentes as excepções deduzida pela ré e após julgamento com base nas respostas dadas ao questionário elaborado e em resultado da matéria da especificação, acção veio a ser julgada totalmente improcedente, absolvendo-se a ré do pedido.

Inconformado com o decidido o autor recorreu, tendo concluído as suas alegações, pela forma seguinte:
1 - Está em causa determinar a qualificação jurídica do contrato (se, onoroso, de arrendamento, se gratuito, de comodato) pelo qual o falecido pai do Autor, dos Intervenientes e da Ré cedeu a esta pela renda mensal de 10.000$00, que mal dá para pagar as obras de conservação e contribuições inerentes, um prédio que valia 40.000.000$00; que, atendendo ao local da sua situação, poderia, devoluto, ser arrendado por 150.000$00/mês; e que, obedeceu ao propósito, de, sentindo o "locador" a morte próximo (veio a morrer antes de decorridos cinco meses sobre a data do contrato) garantir à Ré, que com ele vivia há 8 anos, uma habitação após a sua morte, em detrimento dos demais herdeiros.
2 -A, aliás, douta sentença recorrida pronunciou-se pela qualificação jurídica de arrendamento, considerando que o prédio não estava devoluto, o encargo de o "locador" continuar a viver com a locatária, e que não terá sido estranho à fixação da renda a retribuição do tratamento que a Ré dispensou a seu pai, o que torna compreensível a renda estipulada, embora de montante extremamente baixo.
3 - Mas, apesar da cláusula contratual, que concede ao proprietário o direito de continuar a viver no arrendado, e de a Ré estar a habitar o prédio à data do contrato nem por isso este deverá deixar de se considerar devoluto.
4 - É que o contrato foi outorgado não para garantir à Ré habitação, no momento da sua celebração, visto que ela já vivia, então, com seu pai há oito anos, mas depois da morte dele que, justificadamente sentia próxima (tanto assim, que durou menos de cinco meses), pelo que a cláusula referida na conclusão anterior, apenas se destinou a garantir a situação anterior à outorga do contrato.
5 - E seria fácil tornar o prédio devoluto, já que, sem contrato, a Ré era uma possuidora precária, que não tinha direito a ocupá-lo.
6 - Quanto à possível retribuição pelo tratamento que a Ré dispensou a seu pai, trata-se de matéria que não foi alegada e de que o Tribunal não podia, por isso, conhecer (art°s 264 e 664 C.P.C.), pelo que, conhecendo-a, cometeu a nulidade prevista na al. d) do n° 1 do art° 668 do mesmo diploma, cujo suprimento requer, nos termos do n° 3 do último preceito citado.
7 - Aliás, se tal conjectura formulada pelo Mmº. Juiz a quo estivesse certa, o respectivo facto não deixaria de ter sido alegado na contestação, e não o foi.
8 - Dadas as circunstâncias objectiva e a intenção referidas na antecedente conclusão 1, não poderá deixar de se concluir que no contrato em apreço o proprietário do prédio não pretendeu obter qualquer compensação para si (mais, concretamente, para seus sucessores, já que sentia a morte iminente) pela cedência do uso e fruição do prédio à Ré, mas tão somente assegurar a esta o seu uso por um simulacro de renda, em detrimento dos demais filhos (veja-se a tal respeito a doutrina e jurisprudência citadas).
9-Assim, considerando o contrato em causa oneroso, de arrendamento, e não gratuito, de comodato, a, aliás, douta sentença recorrida violou o disposto nos art°s 1022 e 1129 C.C., pelo que deve ser revogado e, consequentemente, proceder o pedido subsidiário, ou seja, declarado que o referido contrato constitui um comodato e não um arrendamento.

Houve contra-alegações, onde se defende a sentença recorrida.
Corridos os vistos, cumpre decidir:

II- Fundamentos
a)- A matéria de facto provada.
A) O A., os intervenientes E..........., G............., F............ e a ré são os únicos filhos de D.............
B) O D............ faleceu, em 21/05/88, vítima de uma neoplastia na bexiga.
C) Aqui se dá por reproduzido o teor das descrição de bens, da conferência de interessados, do mapa de partilha e da sentença homologatória desta, respeitante ao inventário de facultativo instaurado por óbito daquele D............ e cuja certidão consta fls. 101 a 130 do processo.
D) O D............. enviuvou em 27/02/1948 (fls. 46).
E) Em 01/01/1988, sentindo a morte próxima, o D............ celebrou com a ré o contrato cujas cláusulas constam do documento de fls. 11 e 12, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
F) O imóvel objecto desse contrato, e que constitui a verba nº 114 da citada descrição de bens, é uma moradia, de boa construção, com aquecimento central, de três pisos, com área de implantação de 112 m2 X 3 pisos, 7 quartos, três banhos, um sanitário de serviço, sala comum, quintal de 547,90 m2, galinheiros e um garagem de 28,00 m2.
G) Situa-se numa das artérias de maior prestígio, como zona habitacional, da cidade do ...........
H) A ré, desde 1980 e até à morte do pai, sempre viveu com este naquela casa.
1) A ré paga (actualmente) de renda a quantia de 11.803$00 por mês (reportada a 15/10/90).
J) Correspondendo a esse imóvel a contribuição autárquica de 16.830$00/ano.
L) Em inícios de 1988, o valor dessa moradia era não inferior a 40.000.000$00.(1)
M) A renda que essa moradia podia produzir, se livre e devoluta, segundos valores correntes era de, pelo menos, 150.000$00 mensais.(2)
N) A renda fixada no contrato em E) mal dá para pagar as reparações do prédio, se fossem/forem efectuadas, e as contribuições inerentes.(3)
O) A renda fixada no contrato, em 1988, foi de 10.000$00.(4)
P) A celebração do contrato mencionado em E) obedeceu, sobretudo, ao propósito do falecido D........... beneficiar a ré, no sentido de garantir-lhe o direito de habitar a casa em que já vivia, nas condições do mesmo contrato. (5)
Q) Em detrimento dos irmãos. (6)
R) Se devoluto, esse prédio representa cerca de 28% do valor da herança deixada pelo falecido D............ (8)
S) A celebração desse contrato foi da iniciativa do D............(9)
b)- Apreciação da matéria de facto, o direito e o recurso de apelação.

Sendo pelas conclusões que se determina o objecto do recurso (arts.684º, nº 3 e 690º, nº1 do CPC), salvo quanto às questões de conhecimento oficioso ainda não decididas com trânsito em julgado, vejamos, pois, do seu mérito.

1-Perante as conclusões do recorrente a questão a apreciar nesta apelação cinge-se agora em saber se os elementos fácticos dos autos permitem ou não entender que se está perante um contrato de comodato ou um contrato de arrendamento.
Ao limitar agora o seu recurso a esta questão, o recorrente autor abandona a tese do pedido principal, em que pedia se declarasse que o contrato de arrendamento em causa era uma doação indirecta com ofensa da legitima dos autores e, portanto, tal contrato seria por isso nulo.

2-Agora pretende o recorrente tão só que se aprecie o pedido subsidiário, no sentido de que seja declarado que o aludido contrato de arrendamento apenas pode valer como comodato.
Para o recorrente, o contrato em causa é nulo e, a não se entender assim, deverá considerar-se de comodato, dada a desmedida falta de correspectividade entre o valor da cedência do uso e fruição do arrendado e a renda fixada.

Vamos, pois, centrar a nossa atenção nesta questão, referindo-se contudo previamente que a factualidade dos autos dada como assente e acima transcrita terá de ser analisada à luz das respostas dadas ao questionário, com o alcance minuciosamente explicitado na peça de motivação constante de fls. 681 a 687.
Só por aqui poderemos compreender o que o tribunal respondeu, em face dos vários quesitos que foram formulados, com base em factos articulados pelo autor e ré.
3-Vejamos então:
O enquadramento factico da questão a decidir situa-se assim:
No questionário estavam formuladas as seguintes questões :
1-Em inícios de 1988,o valor da moradia era de 40.000.000$00?
2-e a renda que poderia produzir, segundo os valores correntes no local, era não inferior a 200.000$00/mês?
3-a renda fixada no contrato mal dava para pagar as reparações do prédio e as contribuições inerentes?
4-Sendo meramente simbólica?
5-Obedecendo ao propósito de beneficiar a Ré?
6-Em detrimento dos irmãos?
7-Sendo esse o objectivo do pai do A. e Ré e da Ré ao celebrarem esse contrato?
8-Se devoluto, esse prédio representa 60% do valor dos bens deixados pelo falecido D...........?
9-A celebração desse contrato foi da iniciativa do D............’
10-Tendo este comunicado essa intenção ao A. e ao irmão E..........., antes de o fazer à própria Ré?
11-A ré foi aconselhada pelo A. e pela irmã G............ a celebrar tal contrato?
Aos quesitos 7º, 10º e 11º, o tribunal respondeu não provado.

Quanto aos restantes (como resulta de fls. 681) o tribunal deu como provado que em inícios de 1988, o valor dessa moradia era não inferior a 40.000.000$00 (1º) e que a renda que essa moradia podia produzir, se livre e devoluta, segundo valores correntes era de, pelo menos, 150.000$00 mensais (2º).
Respondeu-se ainda que a renda inicialmente fixada foi de 10.000$00/mês (4º) e que a renda fixada no contrato mal dá para pagar as reparações do prédio, se fossem/forrem efectuadas, e as contribuições inerentes(3º).
Em resultado das respostas aos quesitos 5º, 6º e 9º ficou provado que a celebração do contrato, da iniciativa do D............, obedeceu, sobretudo, ao propósito do falecido D........... beneficiar a ré, no sentido de garantir-lhe o direito de habitar a casa em que já vivia, nas condições do mesmo contrato, em detrimento dos irmãos.
Finalmente ficou ainda assente que se devoluto, esse prédio representa cerca de 28% do valor da herança deixada pelo falecido D............ (8º).
Da especificação resultava já provado que (Al. E e F)que em 01/01/1988, sentindo a morte próxima, o D........... celebrou com a ré o contrato cujas cláusulas constam do documento de fls. 11 e 12, tratando-se de um imóvel que é uma moradia, de boa construção, com aquecimento central, de três pisos, com área de implantação de 112 m2 X 3 pisos, 7 quartos, três banhos, um sanitário de serviço, sala comum, quintal de 547,90 m2, galinheiros e um garagem de 28,00 m2, situada numa das artérias de maior prestígio, como zona habitacional, da cidade do ...........

4-Com este contexto factual o recorrente pretende que se conclua que o proprietário do prédio não pretendeu obter qualquer compensação para si (mais, concretamente, para seus sucessores, já que sentia a morte iminente) pela cedência do uso e fruição do prédio à Ré, mas tão somente assegurar a esta o seu uso por um simulacro de renda, em detrimento dos demais filhos.

Entendemos que na interpretação dos factos tal como eles ficaram provados à luz das respostas que foram dadas como provadas (que não contemplam a factualidade tal como ela foi alegada pelo autor) não é possível extrair a conclusão pretendida pelo recorrente, em termos de da existência de um simulacro de renda.

Repare-se em primeiro lugar que a resposta de não provado dada ao quesito 7º, afasta desde logo a possibilidade de se concluir que existiu um objectivo de com o contrato celebrado entre o pai do autor e ré, se pretender prejudicar todos os irmãos da ré.
Mas atente-se mais concretamente no que a este respeito se escreveu na motivação das respostas dadas aos quesito 6º e 7º para melhor se compreender o seu alcance.

Aí se refere que:
“E quanto ao detrimento dos irmãos constante da resposta dada ao quesito 6º o seu alcance não é o que pode resultar da resposta seca com que se apresentada mas deverá ser também compreendido à luz do que consta na a mesma motivação da respectiva resposta, ou seja:
“a questão posta é algo conclusiva (tal como a questão anterior), e também não é articulada factualidade que aclarasse os aspectos em que aquele benefício determine detrimento dos irmãos, para por este se poder concluir. Mas face à resposta ao ponto 5), impõe-se a resposta. O benefício da ré acaba por actuar em prejuízo dos restantes irmãos pois, pelo menos, não são beneficiados na mesma medida do benefício da ré e, neste sentido, há detrimento daqueles. Havendo benefício (pela renda inferior à que seria possível), o imóvel, pelo contrato, não tem o valor que teria se livre e esse facto redunda em detrimento dos restantes herdeiros. Não significa que, de facto, o "detrimento" viesse a recair sobre todos os irmãos já que o encargo decorrente do contrato acaba afectar (sobretudo) aqueles a quem o bem foi adjudicado em inventário. Isto apesar das testemunhas ouvidas (as que conheciam o falecido) afirmarem que este não prejudicaria ou discriminaria os filhos. A análise da prova testemunhal (nomeadamente das testemunhas referidas na motivação ao ponto 5)) e dos depoimentos prestados em audiência e do demais considerado nessa motivação, leva-nos à resposta dada ao quesito 6)”.

E quanto ao quesito 7º, embora se expresse na motivação das respostas que nenhum depoimento nem qualquer outro elemento de prova se mostra bastante para dar uma resposta positiva, mesmo que restritiva, no sentido do objectivo ou a intenção do pai do A. e de ré, com a celebração do contrato, ser o prejuízo dos irmãos desta, deixou-se também expresso que:
“Porém, é conclusão que se pode extrair, que do contrato poderia advir prejuízo para os irmãos, na medida que a habitação (parte substancial da herança) ficava onerada com um arrendamento e por isso com um valor inferior em partilha (o que, de facto, não se revela ter acontecido, ao menos de forma substancial, face á licitação que teve lugar e aos valores a que se chegou, tanto mais que também a ré licitou até um valor próximo do oferecido pelo irmãos B......... e F............). Para estes é claro que a existência de um contrato de arrendamento, pelo seu regime vinculístico, determinará menor valor do imóvel (ou ao menos, não produzira os rendimentos ou algo semelhante que, uma vez livre, podia produzir. De qualquer modo, não poderá afirmar-se aquele objectivo do pai da ré. As testemunhas referiram mesmo que o pai não discriminava nem quereria prejudicar qualquer dos filhos (apesar da referência do A. de que o pai o prejudicou toda a vida”.

5-Posto isto e deixando por agora a análise da restante matéria de facto provada e acima descrita, vamos analisar os elementos que constam do contrato à face das disposições legais pertinentes, para aferir se em face delas é possível detectar uma injustificada despropocionalidade do elemento de retribuição.

Como sabemos a locação (artº 1022º do CC) é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição, dizendo-se arrendamento quando versa sobre coisa imóvel (artº 1023º).
Os elementos típicos do contrato de locação são: Uma coisa dada em gozo; uma retribuição e um prazo. Os primeiros dois devem constar do contrato; a falta do terceiro é suprida pela lei (artº 1026º)-Cfr. Rodrigues de Bastos- Notas ao Código Civil-1995, Vol. IV, pág.194 a 197, onde é citada Bibliografia que esgota a doutrina existente sobre a matéria, e que por isso aqui nos dispensamos de repetir. Na jurisprudência, por todos o Ac. do STJ de 24.1.85, BMJ ,nº 343º, pág.318, com anotação de Antunes Varela na RLJ, nº 122º, pág.374 e ss).
O artº 1º do Regime do Arrendamento Urbano (R.A.U.)reproduz parcialmente aqueles artºs 1022º e 1023º do CC ao definir o arrendamento urbano.
O Prof. Antunes Varela-em Obrigações em Geral, Tomo I, 9ª ed. Pág. 407 e ss, refere também a este propósito que no contrato de locação a obrigação de pagar a renda imposta ao locatário, faz parte do sinalagma contratual, na medida em que se contrapõe à obrigação fundamental, imposta ao locador, de proporcionar o gozo do locatário.
E o mesmo Prof. Antunes Varela, clarifica esse pensamento no comentário que faz ao citado Ac do STJ na RLJ nº 122, pág.374, indicando que há que aferir a vontade das partes em face dos factos provados para saber se estamos em presença de um contrato de arrendamento ou de outro contrato. Cfr. ainda sobre esta mesma matéria o Prof. Galvão Telles_ Manual dos Contrato em Geral, pág.210 e ss e Acs, dos STL de 24.1.85-BMJ nº 343, pág318, de 7.7.1991, BMJ, nº 409,pág.699 e de 22.2.1994, BMJ, nº 434º, pág. 635 e ainda as obras de Aragão Seia –Regime do Arrendamento Urbano, 4ª edição, pág.53/57.

Do entendimento desta doutrina e jurisprudência pode-se concluir, para a análise do nosso caso, que os elementos essenciais e específicos do contrato de arrendamento urbano e que permitem diferenciá-lo de outros tipos negociais, são a concessão do gozo de um prédio urbano, no todo ou em parte, feita por certo prazo e mediante retribuição.

5-Outra figura muito próxima da locação é o comodato, definido no artº 1129º do CC como contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela com obrigação de a restituir.
Desde logo uma diferença entre estes contratos de locação e de comodato.
O primeiro é um contrato oneroso e simplesmente obrigacional e o segundo é basicamente gratuito (porque só uma das partes-o comodatário recebe benefícios) e de natureza real (porque só se aperfeiçoa com a entrega da coisa). (cfr. sobre esta matéria Pinto Furtado-Manual do Arrendamento Urbano,1996- pág.75/77 e Rodrigues de Bastos, Notas ao CC, Vol. IV, pág. 242/244.

Quanto ao elemento de retribuição do contrato de locação, Pinto Furtado, na obra acima citada, pág.48/49, refere que “embora a retribuição constitua a contrapartida do gozo do locatário, não é imperioso que as duas realidades se equivalham - mas sendo aquela insignificante comparativamente com o gozo da coisa, indiciará uma simulação ou um negócio indirecto, podendo inclusivamente ocorrer um negócium mixtum cum donatione. Caberá então, diz este autor, apurar se, no caso concreto, predomina o intento de liberdade ou de retribuição locativa. Na primeira hipótese, o contrato deverá ser disciplinado como uma doação modal, na segunda como locação”.
Para ilustrar este seu pensamento o autor afirma a concluir este trecho do seu texto que «o arrendamento feito pela municipalidade Vienense à Organização das Nações Unidas das grandiosas instalações que esta Organização ocupa na cidade de Viena, pela renda de 1 schilling por ano, é tudo menos um arrendamento».

6-Mas tomando em conta a estrutura principal deste pensamento do autor, em face do enunciado da questão do recurso a apreciar, sabemos que o recorrente não defende agora a existência de uma simulação, mas sim a conversão (por simulação relativa) do negócio jurídico celebrado como arrendamento, num contrato de comodato, que seria o negócio jurídico dissimulado.

Porém, aqui importa então trazer à colação os elementos de facto provados acima referidos, quanto à forma como foi estabelecida a retribuição do contrato entre a ré e seu pai como senhorio.

A renda mensal de 10.000$00 para o prédio em causa (e para uma possível renda de 150.000$00/mês, em simples aparência, podia apresentar-se como insignificante.
Repare-se contudo que o que ficou apurado quanto ao valor da renda da moradia em causa para inícios de 1988, de uma moradia de valor não inferior a 40.000.000$00, foi que essa moradia podia produzir de renda, se livre e devoluta, segundo valores correntes era de, pelo menos, 150.000$00 mensais.
Há, portanto aqui uma condição limitativa que nos leva a entender que o valor de 150.000$00/mês foi calculado para uma moradia livre e devoluta, em inícios de 1988 naquele local.
A renda fixada no contrato foi de 10.000$00/mês, certamente bem inferior ao valor locativo real, independentemente daquela situação de não se considerar a situação de moradia livre e devoluta.
Contudo para interpretar a celebração deste contrato existem outros elementos fácticos provados que importa ter presentes, ou seja, ficou apurado que a celebração do contrato, que foi da iniciativa do D..........., obedeceu, sobretudo ao propósito do falecido D........... beneficiar a ré, no sentido de garantir-lhe o direito de habitar a casa em que já vivia, nas condições do mesmo contrato, em detrimento dos irmãos (detrimento este que tinha o sentido explicitado na motivação das respostas ao questionário já acima referido).

Estes factos demonstram inequivocamente que houve uma vontade das partes (sobretudo do senhorio que tomou a iniciativa de tal, fazendo inserir no contrato apenas um clausula que lhe garantia o habitação no mesmo prédio) em celebrar efectivamente um contrato de arrendamento, embora com uma renda bem modesta para o valor do prédio.
Mas pelo facto de a renda de 10.000$00 ser modesta não significa que se considere que a mesma não preenche a existência do elemento retributivo do contrato de arrendamento.
Só a falta de retribuição poderia levar a considerar-se o contrato como de comodato (cfr. Isidro de Matos –Arrendamento e aluguer, pág. 26).
E como refere Pinto Furtado no texto que acima se reproduziu, não é imperioso que as duas realidades (renda e gozo do locado) se equivalham.
A discrepância existente no caso dos autos, entre a renda fixada e o valor da moradia com as divisões e área que comporta, encontra-se justificada pelas circunstâncias em que foi celebrado o contrato em causa, sendo de afastar quer a simulação, que agora já não está sequer em causa, quer a nulidade do próprio contrato de arrendamento celebrado(por simulação relativa).

Na verdade não se prova ter existido acordo entre declarante e declaratário e no intuito de enganar terceiros, pelo qual se possa constatar de divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante (artº 240º, nº 1-Simulação).
E igualmente também não se demonstram factos que levem a concluir que sob o negócio simulado exista um outro que as partes quisessem realizar (artº 241º-simulação relativa).

Por isso não se verificam os pressupostos de nulidade ou anulabilidade do contrato de arrendamento, para que se possa fazer operar a conversão num eventual negócio dissimulado que, no caso, o recorrente defendia ser o do comodato (cfr. Teresa Luso Soares-a Conversão do Negócio Jurídico, pág. 62 a 77).

Entendemos, assim, que foi bem decidida a acção, já que os factos provados não podem deixar de determinar senão a sua improcedência.

7-O recorrente invoca também que foi cometida a nulidade prevista na al. d) do n° 1 do art° 668 do mesmo diploma, cujo suprimento requer, nos termos do n°. 3 do mesmo preceito citado.
Fundamenta o recorrente esta nulidade no facto de no corpo da sentença se ter aludido a que a retribuição da renda dada moradia foi fixada assim pelo tratamento que a Ré dispensou a seu pai, matéria esta que não foi alegada e de que o Tribunal não podia, por isso, conhecer.
Trata-se, como é evidente de argumentação desenvolvida na fundamentação da sentença, de alguma forma apoiada no que consta da motivação da matéria de facto(meio da folha 684), mas que não teve implicação directa com a questão que foi decidida que era a alegada existência de nulidade do contrato de arrendamento.
Não ocorre, portanto, a invocada nulidade por excesso de pronúncia, pois que o tribunal apreciou em concreto as questões que lhe foram colocadas e não foi com outros fundamentos dos que foram alegados pelo autor que a acção foi julgada improcedente.

Nestes termos não assiste razão ao apelante, não merecendo a sentença qualquer censura e por isso se confirma.

III- Decisão.
Pelo exposto acorda-se em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante.
Porto, 6 de Maio de 2004
Gonçalo Xavier Silvano
Fernando Manuel Pinto de Almeida
João Carlos da Silva Vaz