CRIME DE HOMICÍDIO POR NEGLIGÊNCIA
INOBSERVÂNCIA DO DEVER DE CUIDADO
ATRAVESSAMENTO DA VIA
CULPAS CONCORRENTES
PROCEDÊNCIA PARCIAL DO RECURSO
APROVEITAMENTO PELO ARGUIDO QUANTO À PENA
Sumário

I - Conduzindo o arguido um veículo pesado cujas características não permitem um ângulo de visão directa, a partir do lugar do condutor, para um espaço de até 1,20 m. em frente ao mesmo veículo, é–lhe exigível que, antes de retomar a marcha, verifique se não se encontra qualquer obstáculo – nomeadamente um peão – nesse mesmo espaço, designadamente através da utilização do espelho próprio para tal específico efeito aposto na parte frontal exterior da viatura, sendo esse espelho (e a respectiva utilização) o instrumento que permite sustentar a exigência do dever de cuidado imposto ao arguido na situação em causa.
II - Não era imprevisível para o arguido, enquanto condutor numa zona densamente urbana por si bem conhecida, de quarteirões de prédios de habitação também com lojas comerciais térreas, que estando a circular numa fila de trânsito e em situação de pára–arranca, uma pessoa apeada atravessasse a via por entre os veículos, mesmo tendo uma passadeira a poucos metros de distância.
III - Tal como o condutor pode ter a expectativa de que um peão não atravesse pela sua frente quanto ele está na iminência de retomar a marcha numa fila de trânsito, também ao peão é reconhecido o direito à confiança de que, antes de retomar essa mesma marcha, o condutor adopte o dever de cuidado de verificar se o pode fazer em segurança, do mesmo modo que ao condutor é reconhecido o mesmo direito exigindo ao peão que atravesse a via na passadeira para peões ou se o fizer fora da passadeira observe as regras de cuidado exigível de modo a que não ocorra acidente.
IV – Ocorrendo o acidente por inobservância desses deveres, existe concorrência de culpas na sua produção;
V – Interposto o recurso apenas pela demandada seguradora, da sua procedência parcial beneficia o arguido, face à repartição do grau de culpas, o que determina quanto a ele a reapreciação da medida da pena, em que fora condenado

Texto Integral

Proc. nº 9690/20.7T9PRT.P1
Tribunal de origem: Juízo Local Criminal do Porto, Juiz 7 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Acordam em conferência os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO

No âmbito do processo comum (tribunal singular) com o nº 9690/20.7T9PRT.P1 que corre seus termos no Juízo Local Criminal do Porto – Juiz 7, em 17/07/202 foi proferida Sentença, cujo dispositivo é do seguinte teor:

« III. DECISÃO

Pelo exposto, decide-se:

a) Condenar o arguido AA pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º, nº 1, do Código Penal na pena de 10 (dez) meses de prisão, cuja execução se suspende pelo período de 1 (um) ano, suspensão esta subordinada à condição de o arguido proceder ao pagamento à Associação ... (com sede na Av. – ... ..., ...), no prazo de 10 (dez) meses, da quantia de € 1.000,00 (mil euros), provando tal facto, documentalmente, nos autos;

b) Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 6 (seis) meses, nos termos do disposto no artigo 69º, nº 1, al. a) do Código Penal;

c) Julgar o pedido de reembolso deduzido pelo CENTRO NACIONAL DE PENSÕES do INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, I.P. parcialmente procedente e, em consequência, condenar a “A...-Companhia de Seguros, S.A.” a pagar-lhe a quantia de € 11.509,16 (onze mil quinhentos e nove euros e dezasseis cêntimos), bem como os respetivos juros de mora legais, absolvendo-a do demais peticionado;

d) Absolver o arguido/demandado AA e a sociedade demandada “B..., S.A.” do pagamento da quantia contra si peticionada.

Custas

Parte criminal:

Vai o arguido condenado, nos termos dos artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal, no pagamento das custas do processo, fixando-se em 3 unidades de conta a taxa de justiça, nos termos do artigo 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III anexa.

Parte civil:

As custas serão suportadas pelo demandante e pela demandada A...-Companhia de Seguros, SA na proporção do respectivo decaimento (artigo 527º, nº 1 e 2, do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 4º do Código de Processo Penal)


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Remeta boletins à D.S.I.C.C..

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Comunique a presente decisão à A.N.S.R.

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Fixa-se em 10 dias, após o trânsito em julgado da presente decisão, o prazo para a arguida entregar a carta de condução na secretaria deste Tribunal ou no Posto policial da área da sua residência, sob pena de não o fazendo incorrer na prática de um crime de desobediência.. »

Inconformado com a decisão, dela recorreu, em 27/09/2023, o arguido AA, extraindo da motivação as seguintes conclusões :

I. O presente recurso tem como objeto, por um lado, no contexto mais restrito dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, al. c) do CPP e, por outro, no âmbito da impugnação ampla regulada no artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do mesmo diploma que condenou o Recorrente pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º, nº 1, do Código Penal na pena de 10 (dez) meses de prisão, cuja execução se suspende pelo período de 1 (um) ano, suspensão esta subordinada à condição de o arguido proceder ao pagamento à Associação ... (com sede na Av. – ... ..., ...), no prazo de 10 (dez) meses, da quantia de €1.000,00 (mil euros), provando tal facto, documentalmente, nos autos;

II. E ainda, na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 6 (seis) meses, nos termos do disposto no artigo 69º, nº 1, al. a) do Código Penal;

– Do erro notório de apreciação da prova

III. Verifica-se vício do art.º 410.º, nº 2, do CPP, porquanto, da análise do texto da decisão recorrida, em conjugação com as regras da experiência comum, se detecta erro ostensivo que evidencia o desacerto da opção tomada quanto à matéria que o tribunal considerou provada.

IV. Assim, no que tange aos factos dados como provados, 5 e 7, os mesmos não poderiam ter sido dados como provados nos termos descritos e como o foram na douta Sentença recorrida.

V. Efetivamente, o que se constata, em sustento da decisão de condenar o arguido resulta, em suma, do facto de se considerar exigível ao arguido/condutor que : “antes de iniciar a marcha do camião tivesse olhado para o espelho exterior frontal, colocado na parte superior do para brisas, a fim de se certificar se alguém passava ou não na frente do mesmo” – a fls. 10

VI. E não o tendo feito (olhado para o espelho exterior central), como o próprio confessa, consubstancia o preenchimento dos pressupostos de que depende a imputação do crime por via da violação do disposto no artigo 12º do Código da Estrada que dá por consumado.

VII. Ou seja, de modo objetivo, o Tribunal a quo faz depender a condenação no pressuposto, que deu como assente, de que o arguido, após parar, acto continuo, (re)iniciou a marcha no exato momento em que o falecido já se encontrava à frente do veículo por si conduzido.

VIII. Todavia, da fundamentação quanto à matéria de facto dada como assente, acima transcrita, o tribunal a quo, que elencou as suas razões da valoração que efectuou, identificando nomeadamente a prova testemunhal que relevou na formação da sua convicção não se vislumbra qualquer consideração/ponderação, por relação com as provas recolhidas em audiência de julgamento, quanto ao modo como poderá ter criado essa mesma convicção.

IX. Assim, sabendo-se que o acidente ocorreu numa situação de trânsito intenso, vulgarmente designado de “pára-arranca” e mesmo admitindo as circunstâncias de tempo e lugar melhor descritas nos factos 1, 2 e 4 dos factos provados, tudo mais quanto se possa dizer no que à dinâmica do acidente concerne, não passam de meras conjeturas, desprovidas totalmente de consistência probatória que, em última análise, podem resultar numa chocante injustiça (posto que, forçosamente, baseado apenas em convicção).

X. Aliás, tal como resulta patente do texto da Sentença em apreço, nenhuma testemunha presenciou os acontecimentos, tornando, portanto, impossível recriar aquele concreto momento histórico.

XI. Termos em que, o Tribunal a quo dá como provada realidade – facto 2 parcialmente, 5 e 7 da matéria dada como provada - que não está em condições de afirmar nem resulta do texto da Sentença qualquer menção à prova e/ou raciocínio logico-dedutivo que sustente minimamente essa conclusão

XII. O uso feito do princípio in dubio pro reo afere-se pelo texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sendo que quando daí resultar que o Tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, optou pelo sentido desfavorável ao arguido, se impõe concluir que ocorreu violação daquele princípio.

XIII. Pelo que, na dúvida, devia o Tribunal a quo ter decidido a favor do arguido, dando-se como não provados os factos constantes da acusação, em especial os constantes dos artigos 5º e 7º dos factos provados na Douta Sentença,

XIV. Sendo notório que, existe uma infundada e claríssima dúvida razoável de que o arguido praticou os factos de que foi acusado e pelo qual foi condenado, sendo que tais factos deviam ter sido dados como não provados.

XV. Ao decidir como decidiu, o tribunal violou o princípio da presunção da inocência e do “in dubio pro reo” decorrente do nº 2 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, porque não decorrente da maior ou menor credibilidade ou fiabilidade a reconhecer à prova, nomeadamente a testemunhal.

XVI. Posto isto, do quadro descrito na motivação quanto à matéria de facto provada e do teor global da decisão recorrida, com o devido respeito e salvo melhor entendimento, sindicamos que o Tribunal a quo cometeu um erro notório na apreciação da prova, nos termos do artigo 410º, nº 2, alínea c) do CPP.

XVII. Assim, deve ser revogada a sentença recorrida e o arguido absolvido.

- Da Impugnação ampla da matéria de facto e de direito

XVIII. Agora pela via da impugnação à matéria de facto e de direito e sem deixar de aproveitar as razões já supra expostas, acrescem razões de ordem probatória que impõem decisão diversa da que se consignou nos invocados pontos da factualidade provada, concretamente, factos 5 e 7.

XIX. Conforme já exposto, da globalidade da prova produzida, não é possível retirar a conclusão que o arguido parou e que acto continuo iniciou a marcha quando o falecido BB se encontrava à frente do veículo.

XX. De facto, nenhuma testemunha presenciou os acontecimentos.

XXI. Sendo impossível determinar, o modo concreto como o falecido BB invadiu a faixa de rodagem.

XXII. Desconhecendo-se, em absoluto e mormente, se invadiu a faixa de rodagem em passo lento ou apressado,

XXIII. bem como, se o arguido já havia iniciado a marcha ou se a iniciou no momento em que o falecido BB se encontrava em frente ao veículo.

Sem prescindir,

XXIV. A Douta Sentença em apreço, estabelece uma relação indissociável entre o acidente e o que considera uma atuação em violação das normas de início de marcha, tuteladas pelos artigos 12.º, nº 1 do Código da Estrada a qual estabelece que os condutores não podem iniciar ou retomar a marcha (…) sem adoptarem as precauções necessárias para evitar qualquer acidente.

XXV. Sendo que, admite expressamente existir um concurso de culpas manifesto e determinante na produção do acidente em termos tais que imputa ao falecido BB conduta em violação do estabelecido no artigo 101º, nº 1 do Código da Estrada,

XXVI. o qual ocorreu, necessariamente e na sua perspetiva, da conjugação desses dois factores a partir do momento em que a vítima “(...) efectuou a travessia da estrada fora da passagem especialmente assinalada para o efeito, vulgo passadeira, que se localizada a cerca de 11 metros do local, bem como o fez por entre veículos parados em situação vulgarmente designada de “paraarranca””.

XXVII. Não obstante, não esclarece, minimamente, em que medida sopesou o contributo de cada uma das condutas/infracções que identificou em detrimento de outra,

XXVIII. Ora, contrariamente ao preconizado, entendemos que deve pender, decisivamente, a favor do Recorrente, a imprevisibilidade conhecida que decorre do surgimento do falecido BB na faixa de rodagem em razão das normas estradais que regulam o normal comportamento de cada um dos envolvidos naquelas concretas circunstâncias.

XXIX. Isto porque, é factual e expressamente assumido pela Douta Sentença em apreço, que a vítima, actuou com incúria, omitiu um dever geral de cuidado, atravessando a via de forma inesperada, repentina e sem se certificar que o podia efetuar em segurança.

XXX. Diversamente, o ora Recorrente, seguia corretamente na sua faixa de rodagem, em velocidade perfeitamente adequada para as circunstâncias, calculada de até 5km/h.

XXXI. Não é conhecido o intervalo de tempo entre a atuação temerária do falecido BB e o atropelamento.

XXXII. O trânsito encontrava-se em situação de “pára-arranca”, o que, por si só, torna muito questionável a própria discussão quanto à obrigatoriedade constante de o condutor ter que recorrer ao dito espelho frontal naquelas circunstâncias.

XXXIII. Ou seja, estamos perante uma situação de transito que é de efetiva circulação, embora lenta.

XXXIV. Não se podendo afirmar que estamos perante um início de marcha nem uma retoma, pois por vezes as interrupções são frações de segundos.

XXXV. Mais, ao condutor não é exigido, e pelo contrário proibido, nomeadamente, imprimir velocidade no veículo com os olhos direcionados ao espelho, considerando a prioridade primária de salvaguardar a normal circulação rodoviária.

XXXVI. Aliás, as regras estradais foram gizadas, especialmente, no pressuposto de prever condições normais de trânsito e não circunstâncias anómalas e derivadas de imprevidência alheia – neste sentido, Ac. Relação de Guimarães de 15.03.2018, processo 3721/16.2T8GMR.G1, in www.dgsi.pt

XXXVII.Vale por dizer que, mesmo que se considere defensável exigir a precaução prévia de olhar para o espelho em questão, é absolutamente incontornável que, nas mais das vezes, tal cautela, não é sequer exequível em função das concretas circunstâncias e dinâmica própria e em constante mutação do trânsito em cada momento.

XXXVIII. E nem o facto de o Tribunal se mostrar convicto que, por ser numa zona urbana, não era “absolutamente imprevisível” a travessia de um peão e, como tal, sugerir ser exigível ao arguido o constante recurso ao espelho de cada vez que (re)iniciasse a marcha permite abalar o raciocínio que se deixa referido.

XXXIX. Bem pelo contrário, até o confirma, na medida em que acaba por admitir a imprevisibilidade anómala da situação, o que se consente.

XL. É nesta perspetiva, sem perder de vista as palavras do Professor FARIA COSTA que refere que ao condutor “…não se lhe exige uma atenção tão profundamente expectante que tornasse a própria condução insuportável.” que justamente se invoca o que se tem apelidado de “princípio da confiança (rodoviária)”, “(…) segundo o qual, comportando-se um determinado utente da via de acordo com as normas de cuidado impostas na concreta situação, (…), deve poder confiar que o mesmo sucederá com os restantes utentes da via, partindo do princípio que as outras pessoas são seres igualmente responsáveis.

XLI. Com efeito, o princípio da confiança encontra o seu fundamento material no princípio da auto-responsabilidade de terceiros: se as outras pessoas são também seres responsáveis; se se comportam descuidadamente, tal só poderá afectar, antes de tudo, a sua própria responsabilidade”

XLII. Não sendo exigível aos condutores que contem em cada momento com os obstáculos que surjam inopinadamente ou totalmente avessos ao curso ordinário das coisas (imprevidência alheia), sob pena estarmos perante a invocação de um novo princípio, o “principio da desconfiança” (Professor FIGUEIREDO DIAS)

XLIII. Neste sentido, propendemos, pois, a considerar absolutamente determinante e causal do acidente a conduta do falecido BB que inadvertidamente e sem se inteirar que o podia efetuar em segurança (nomeadamente, fazendo notar a sua presença e intenção aos automobilistas), procedeu à travessia de uma fila de trânsito por entre 3 faixas de rodagem em movimento - a propósito da conduta a observar pelos peões na travessia, vide, Ac. Do STJ, de 26.02.2019, P. n.º 4419/13.9TBGDM.P1-S1,

Concluindo,

XLIV. É pois forte a convicção do Recorrente que não existem nos autos e muito menos foi produzida prova no decurso da audiência de discussão e julgamento suficiente que permitisse ao Tribunal a quo, formar as suas convicções e a final condenar o arguido, ora Recorrente, nos termos em que foi.

XLV. O Tribunal a quo, ao assim decidir, extravasou clamorosamente os limites que lhe são impostos na apreciação da prova que foi levada a julgamento, subsumindo na factualidade típica exigida (e que lhe é indissociável) pelas respectivas normas incriminatórias, condutas que não foram minimamente comprovadas, por qualquer modo, em sede de audiência de julgamento e ainda outras que, se tidas em consideração, como eram merecedoras, conduziriam certamente a outro resultado.

XLVI. No que concerne à dinâmica do acidente, a douta sentença errou ao descartar por completo o flagrante desrespeito ao comando legal do art.º 101º nº 1 do Cód. da Estrada por parte da vítima, revelando ainda imprudência, desatenção e desrespeito pelos demais utentes da via pública.

XLVII. De todo o modo, assim o impõe também o princípio "in dubio pro reo", já que, no decurso da audiência, não se demonstraram quaisquer factos que pudessem fazer concluir pela condenação.

XLVIII. A douta sentença recorrida violou assim os normativos legais constantes dos arts. 69.º e 137a do Código Penal; art.º 101º do Código da Estrada; e art.º 127° do Código de Processo Penal, bem como o princípio "in dubio pro reo";

XLIX. O que a prova impunha era que tais normativos fossem interpretados precisamente no sentido inverso ao plasmado na decisão de que ora se recorre;

L. Temos, pois, que, in casu, é manifesto que o arguido não cometeu o crime de que vem acusado, uma vez que não se mostram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime em causa, concluindo-se pela absolvição.

Também inconformada com a decisão, dela recorreu, em 02/10/2023, a demandada “A... – Companhia de Seguros, S.A.”, extraindo da motivação as seguintes conclusões:
1. A Recorrente não se conforma com a douta sentença proferida nos presentes autos, que julga a ação parcialmente provada e procedente, por entender que a matéria de facto foi incorretamente julgada e que não existiu correta aplicação do Direito.
2. Concretamente, os pontos 7, 8 e 9 dos factos provados foram incorretamente julgados, uma vez que a prova carreada nos presentes autos impunha decisão de facto diversa da recorrida e que devia ser proferida.
3. Resulta, assim, inequívoco do depoimento do Arguido AA, e de fls 7 do Apenso, o que foi confirmado pela testemunha CC que o acidente ocorreu pela falta de cautela e imprevidência do falecido BB que, naquela situação de trânsito, tendo em conta que fez a travessia em frente a um veículo de pesados, a cerca de 11 (onze) metros da passadeira sem que fosse visível para o Arguido deveria abster-se de atravessar pelo local que o fez.
4. Devem tais concretos pontos de facto serem alterados e considerados provados apenas que:
7. O descrito atropelamento, e a morte do falecido deveu-se exclusivamente à conduta descuidada e imprevidente do falecido, que não acautelou a possibilidade de atropelamento e, imprudentemente, confiou que, mesmo estando o trânsito parado, não iria arrancar.
8. Não adotou, assim, a vítima, as adequadas cautelas que o dever geral de prudência determina e que deveria ter adotado nas supra descritas circunstâncias, de modo a evitar o embate;
9. Causou, assim, por imprevidência, aquele acidente de viação e a sua morte;
5. Assim, impunha-se ao Tribunal a quo formar convicção diferente da que consta na douta sentença.
6. Face à supra indicada alteração da matéria de facto, impõe-se, necessariamente, alteração da decisão proferida, absolvendo a Recorrente do pedido.
7. Mas mesmo que assim não se entenda, entende a Recorrente que, à cautela, sempre salvo melhor opinião, a matéria só por si, já considerada provada pelo Tribunal a quo impunha decisão e enquadramento jurídico diverso do que consta da douta sentença recorrida, igualmente com absolvição do pedido, ou mesmo que assim não se entenda, concretamente no que respeita à percentagem de responsabilidade.
8. Isto, pois, conforme resulta do referido, o acidente ficou a dever-se única e exclusivamente à conduta temerária do peão.
9. Mas mesmo que assim não se entenda, deveu-se não só ao facto de o condutor do veículo seguro na Ré não ter acautelado a possibilidade da passagem de peões pela frente do camião (o que apenas se admite por dever de patrocinio), uma vez que o trânsito estava parado, mas também à falta de prevenção da vítima por ter feito a travessia em local inapropriado, a 11 (onze) metros de passadeira sem que fosse visível ao Arguido, atravessando junto ao veiculo pesado sem que fosse visível ao condutor.
10. Como tal, o lesado tinha espaço, tempo e visibilidade para fazer a travessia em segurança.
11. Flui do exposto que, apesar do condutor do veículo ter culpa pela falta de previsibilidade do acidente, não é tal facto propício para a atribuição da quase totalidade da responsabilidade do sinistro ao condutor do veículo.
12. Assim, conclui-se que, sempre salvo devido respeito por melhor opinião, que deve ser alterada a responsabilidade do acidente absolvendo-se à demandante civil por o acidente ser apenas da exclusiva responsabilidade da vítima, ou caso assim não se entenda, por concurso de culpas, atribuindo-se 30 por cento ao Arguido, condutor veiculo seguro e 70% à vítima.

Os recursos foram admitidos.

Ao recurso apresentado pelo arguido respondeu o Ministério Público, consignando da seguinte forma:

Invoca, em primeiro lugar, o recorrente que o Tribunal julgou incorrectamente uma parte dos factos apurados em sede de audiência de julgamento, ou seja, procede à impugnação da matéria de facto dada como provada na sentença. (…)

No caso vertente, consideramos que a sentença recorrida não incorreu em qualquer erro na determinação da matéria de facto considerando a globalidade prova produzida em sede de audiência de julgamento.

Na verdade, é de fácil constatação e meridiana clareza que, tendo o veículo conduzido pelo arguido atropelado a vítima BB, é incontornável que a viatura avançou quando o mesmo se encontrava à sua frente. Para além disso, é o próprio arguido quem refere que estava no “pára arranca” no momento em que tudo ocorreu e que tinha acabado de arrancar/retomar a marcha (o que pressupõe que estava parado) quando as pessoas começaram a gritar. Admite também, expressamente, que não olhou para o espelho exterior que lhe permitiria ver o metro e vinte para a frente do qual não tinha visibilidade de outra maneira.

Ora, se o arguido admite que não usou a única forma de ver parte do trajecto à sua frente quando transitava numa zona urbana do centro do Porto e se é certo que atropelou um peão que ali circulava, bem andou a Mm.ª Juiz a quo ao julgar provados os factos impugnados (5 e 7).

É certo que a vítima contribuiu para o acidente. Mas isso não exclui a responsabilidade penal do arguido, devendo ser valorado, como foi, em sede de medida concreta da pena.

É patente do texto da decisão recorrida qual o caminho seguido pelo Tribunal a quo até à decisão sobre a matéria de facto, desde a aquisição da prova até à sua valoração.

Quanto a esta última, entendemos que a decisão do Tribunal respeitou os limites balizados pelo art.º 127.º do CPP.

É manifesto, pois, que o recorrente pretende unicamente substituir a convicção do Tribunal pela sua própria, o que não é admissível.

Quanto ao segundo vício, de erro notório na apreciação da prova. (…)

Ora, é nosso entendimento que a sentença recorrida não incorreu em qualquer erro notório na determinação da matéria de facto considerando a globalidade prova produzida em sede de audiência de julgamento. Com efeito, é patente do texto da decisão recorrida qual o caminho seguido pelo Tribunal a quo até à decisão sobre a matéria de facto, desde a aquisição da prova até à sua valoração, sendo aí explicado, de forma clara, racional e compreensível, o motivo pelo qual optou por credibilizar mais determinados elementos de prova e, sobretudo, porque é que, com base nas regras da experiência e da normalidade do acontecer, entendeu que tais elementos apontavam logicamente para a comissão da infracção pelo arguido.

A decisão do Tribunal é clara e respeitou os limites balizados pelo art.º 127.º do CPP.

Na verdade, repetimo-lo, da leitura da sentença recorrida pode o destinatário concluir dos motivos que justificaram a convicção do Tribunal. Aquilo contra o que se insurge o recorrente, mais uma vez, é precisamente quanto à valoração que foi feita desses elementos de prova, o que é coisa bem distinta do erro notório.

Também neste caso não se verifica qualquer erro evidente na apreciação da prova por parte do Tribunal a quo e, de resto, um eventual erro não resulta do texto da decisão recorrida.

Acresce que entendemos ser, no caso, inaplicável, o princípio in dubio pro reo, uma vez que o Tribunal a quo não decidiu com dúvidas inultrapassáveis e insanáveis (mas com uma convicção formada no sentido da decisão proferida).

Pelos motivos explanados o Ministério Público do Juízo Local Criminal do Porto entende que o presente recurso deve ser julgado improcedente.

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no parecer que emitiu propugna pela improcedência do recurso, referenciando:

O recorrente começa por invocar, como dissemos, a existência do vício previsto no art. 410º, nº 2, al. c), do C. P. Penal, ou seja, erro notório na apreciação da prova.

Porém, o que aqui faz, na nossa opinião, é alegar e defender a existência de erro de julgamento, por impugnação da decisão sobre matéria de facto.

Ou seja, o recorrente mais não faz do que criticar a apreciação da prova efectuada pelo Tribunal a quo, considerando que não foi a mais correcta, já que “nenhuma testemunha presenciou os acontecimentos”.

De qualquer forma, sempre diremos que não se vislumbra a existência deste ou de qualquer outro dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, do C. P. Penal.

De qualquer modo, o que nos parece que o recorrente pretende, verdadeiramente, é alegar a existência de erro de julgamento, ou seja, impugnar decisão em matéria de facto, pois que entende que o Tribunal a quo não apreciou correctamente a prova produzida.

O que, aliás, defende no segmento seguinte do seu recurso, que expressamente intitula “Impugnação ampla da matéria de facto e de direito”.

Cremos, porém, que não o faz da forma prevista no art. 412º, nºs 3, als. b) e c), e 4, do C. P. Penal, pois que não indica as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, nem as provas que devem ser renovadas, nem tão pouco indica concretamente as passagens das gravações da prova em que funda a sua impugnação.

Ainda assim, não cremos que tenha existido qualquer erro de julgamento, pois que o Tribunal a quo apreciou correctamente o conjunto da prova produzida em julgamento, e fê-lo de acordo com o princípio da livre apreciação da prova e as regras da experiência, conforme rege o art. 127º do C. P. Penal.

Na motivação da decisão, concretamente no capítulo 3. designado Convicção do Tribunal, o Tribunal a quo explicitou, de forma detalhada, as razões da valoração que efectuou, identificando a prova que relevou na formação da sua convicção e indicando os aspectos da mesma que conjugadamente o levaram a concluir no sentido de considerar demonstrada a factualidade dada por provada, para além de ter assinalado de forma lógica e racional os fundamentos que, no seu entendimento, justificam a credibilidade que reconheceu e peso probatório que conferiu à citada prova.

As declarações do arguido foram apreciadas e valoradas, concretamente o facto de ter admitido que não olhou para o espelho exterior, “…aqui radicando a sua atitude imprevidente e de inobservância dos cuidados que se lhe impunham”, como se explica na douta sentença recorrida.

Na sentença recorrida explica-se, ao pormenor, a importância do espelho exterior que existia, como é obrigatório, no veículo conduzido pelo recorrente, atentas as suas dimensões, e a importância da sua efectiva utilização para prevenir acidentes, particularmente numa situação de “pára-e-arranca” em local bastante movimentado como era àquela em que o recorrente se encontrava - o que o arguido, confessadamente, não fez.

Esta apreciação da prova efectuada respeita as regras da experiência comum e surge aos olhos de quem a analisa perfeitamente coerente e convincente.

Não se descortina, pois, qualquer erro de julgamento, que apenas ocorre quando a prova produzida impunha necessariamente uma decisão diferente daquela que foi tomada - o que, manifestamente, não sucede no caso em apreço.

Por outro lado, e como se refere na resposta do Senhor Procurador da República junto do tribunal recorrido, “É certo que a vítima contribuiu para o acidente. Mas isso não exclui a responsabilidade penal do arguido, devendo ser valorado, como foi, em sede de medida concreta da pena”.

Acresce que não existe qualquer fundamento para se invocar, in casu, a violação do princípio in dúbio pro reo pois que, como é por demais sabido, tal princípio, para ter aplicação, pressupõe que o Tribunal tenha ficado com dúvidas sobre determinada factualidade. Não tendo o Tribunal a quo ficado com dúvidas, como não ficou, em relação aos factos provados (o que bem decorre daquele capítulo 3. Convicção do tribunal), não existe qualquer fundamento para o recorrente invocar a violação de tal princípio.

Foi cumprido o disposto no artigo 417º/2 do Cód. de Processo Penal, nada vindo a ser acrescentado de relevante no processo.


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Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.

Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir.


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II. APRECIAÇÃO DOS RECURSOS

 

O objecto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, devendo assim a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como é designadamente o caso das nulidades insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento (previstas expressamente no art. 119º do Cód. de Processo Penal e noutras disposições dispersas do mesmo código), ou dos vícios previstos no art. 379º ou no art. 410º/2, ambos do Cód. de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Acórdão do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995), podendo o recurso igualmente ter como fundamento a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada, cfr. art. 410º/3 do Cód. de Processo Penal.

São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – cfr. arts. 403º, 412º e 417º do Cód. de Processo Penal e, entre outros, Acórdãos do S.T.J. de 29/01/2015 (proc. 91/14.7YFLSB.S1)[[1]], e de 30/06/2016 (proc. 370/13.0PEVFX.L1.S1)[[2]]. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, ‘Curso de Processo Penal’, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

A esta luz, as questões a conhecer no âmbito do presente acórdão são as de apreciar e decidir sobre:

1. saber se a sentença recorrida padece de algum dos vícios previstos no art. 410º/2 do Cód. de Processo;

2. saber se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, nos termos do art. 412º/3 do Cód. de Processo Penal;

3.saber se na Sentença recorrida violado o princípio do in dúbio pro reo;

4.saber se estão reunidos, e em que termos, os pressupostos do crime de homicídio por negligência pelo qual o recorrente/arguido vem condenado, e bem assim do pagamento da indemnização civil em que a recorrente/demandada foi condenada.


*

Comecemos por fazer aqui presente o teor da decisão recorrida, na parte da mesma que releva para a presente decisão.

 

a. É a seguinte a matéria de facto considerada pelo tribunal de 1ª Instância:

« II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Factos provados

Da audiência de julgamento resultou provada a seguinte factualidade:

1. No dia 21 de Setembro de 2020, o arguido conduzia na faixa de rodagem o veículo automóvel pesado de mercadorias de matrícula ..-VR-.., no sentido norte/sul, na Rua ..., nesta cidade, vindo da Rua ...;

2. O veículo conduzido pelo arguido encontrava-se numa fila compacta de trânsito, tendo o arguido detido a sua marcha junto ao nº ...96 da Rua ..., a cerca de 11 metros de um semáforo existente no local;

3. O veículo conduzido pelo arguido encontrava-se dotado de um espelho auxiliar frontal na parte superior direita do para-brisas, que permitia ao condutor, e como tal ao arguido, a plena visualização dos obstáculos e dos peões existentes imediatamente à frente do veículo;

4. Entretanto, o falecido BB, por razões que se desconhecem, encetou a travessia da faixa da faixa de rodagem no sentido oeste/leste, ou seja, da direita para a esquerda da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha do arguido, por entre os vários veículos;

5. Quando BB, passava à frente do veículo pesado de mercadorias conduzido pelo arguido, o arguido reiniciou a marcha daquele veículo, vindo o mesmo a embater no corpo do falecido, provocando a sua queda;

6. O corpo do ofendido ficou debaixo do veículo pesado de mercadorias conduzido pelo arguido, junto da roda da frente, do lado esquerdo, sofrendo as lesões físicas descritas no relatório de autópsia de fls. 78 a 86, designadamente múltiplas lesões e lacerações traumáticas meningo-encefálicas, torácicas, vertebromedulares e abdominais, as quais foram a causa directa e necessária da sua morte;

7. O descrito atropelamento, e a morte do falecido foram consequência da condução descuidada e imprevidente do arguido, tendo o mesmo imprudentemente confiado que, por se encontrar numa fila compacta de trânsito, não se encontravam quaisquer peões à sua frente, incluindo o falecido, e que por isso poderia percorrer livremente o espaço à sua frente; pelo que, antes de imprimir novamente a marcha do veículo por si conduzido, não cuidou de, pelo menos imediatamente antes, verificar através daquele espelho se se encontravam pessoas à sua frente, incluindo o falecido;

8. Não adoptou assim o arguido as adequadas cautelas que o dever geral de prudência determina e que deveria ter adoptado nas supra descritas circunstâncias, de modo a evitar o embate no peão e as lesões físicas dele advenientes, por si causadas, e que determinaram o óbito do falecido;

9. Causou assim o arguido, por imprevidência sua, aquele acidente de viação e a morte do falecido; Representou como possível que pudesse provocar um desastre de graves consequências para as pessoas nele intervenientes, embora não se tenha conformado com a sua ocorrência;

10. Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Da contestação:

11. O falecido BB dispunha de uma passadeira a cerca de 11 metro do local onde efectuou a travessia da estrada, que não utilizou para o efeito;

Do pedido do Centro Nacional de Pensões:

12. Por decorrência da morte do beneficiário BB, identificado com o NISS ...55, foi apresentado pela viúva, DD um requerimento para atribuição de prestações por morte, deferido em 10/2020;

13. O Centro Nacional de Pensões atribuiu-lhe pensões de sobrevivência, sendo que no período de 10/2020 a 08/2022 perfaz € 15.125.23 (quinze mil cento e vinte cinco euros e vinte e três cêntimos), e subsídio por morte no valor de € 1.316.43 (mil trezentos e dezasseis euros e quarenta e três cêntimos). Os pagamentos efetuados pelo Centro Nacional de Pensões totalizam nesta data a quantia global de € 16.441.66 (dezasseis mil quatrocentos e quarenta e um euros e sessenta e seis cêntimos).

Do relatório social:

14. AA, à data da ocorrência dos factos, constituía agregado familiar com o cônjuge de 62 anos de idade, em casa própria tipo moradia unifamiliar, dotada de adequadas condições de habitabilidade, localizada em zona residencial. Uma das suas duas filhas ficou viúva aos 25 anos de idade e, não obstante ter uma situação de autonomia habitacional, é permanência habitual em casa do arguido, que a apoiou ao longo dos anos em termos emocionais e de acompanhamento da descendente. Atualmente o arguido mantém o agregado familiar descrito;

15. Na sua vida profissional, que iniciou jovem e manteve até à reforma sem interrupções, sempre exerceu a profissão de motorista, nos últimos 30 anos que antecederam a reforma, na empresa “B..., SA”. Reformou-se aos 62 anos de idade, data em que já tinha efetuado 46 anos de contribuições para a segurança social, pese embora tenha continuado a trabalhar como motorista, tendo o acidente que deu origem aos presentes autos ocorrido quando se encontrava a trabalhar;

16. Terá sido na sequência deste que o arguido tomou a decisão de não continuar a trabalhar como motorista;

17. Atualmente dedica-se à agricultura para autoconsumo e faz as atividades de jardinagem e arranjo exterior da casa da filha, como forma de ocupar o seu tempo, dado não ter hábitos de frequência de espaços de sociabilidade na comunidade. É descrito como um individuo focado na família e no trabalho;

18. Aufere como pensão 707,22€ e o cônjuge, operária fabril, aufere 550.00€ relativos ao subsídio de desemprego, atribuído em fevereiro último, na sequência da extinção do seu posto de trabalho. As despesas fixas mensais apresentadas são no valor de 171.05€ e referem-se ao pagamento da água, gás, energia elétrica e telemóveis. A situação do agregado é avaliada como estável;

19. O arguido está positivamente integrado na comunidade e mantém um estilo de vida pró-social, dedicando-se ao acompanhamento da neta e há agricultura. Os factos corridos são do conhecimento da mesma, pese embora o acidente tenha ocorrido noutra localidade, que se mostra solidária com o arguido;

20. Da análise da informação recolhida constata-se que o arguido é detentor de competências pessoais e sociais favorecedoras da manutenção do comportamento ajustado socialmente que o caracterizou ao longo dos anos nas diferentes dimensões da sua vida, familiar, profissional e social;

21. Este é o seu primeiro confronto com o sistema de justiça penal e o arguido, na fase imediamente posterior ao acidente, apresentou dificuldades em dormir, choro fácil e apatia. O apoio do cônjuge e descendentes terá sido determinante para o ultrapassar deste mau estar pessoal, apresentando-se, atualmente, ansioso com o desfecho do processo, mas conformado com o ocorrido;

22. Pese embora demostrar empatia face à vitima, apenas equaciona como um desfecho justo do presente processo a sua absolvição.

Mais se provou que:

23. Do certificado do registo criminal do arguido nada consta.

2. Factos não provados

Com relevância para a decisão da causa não se provou:

1. Que nas circunstâncias de tempo e lugar referidas no ponto 1 dos factos provados, o sinal do semáforo que regulava a circulação do veículo conduzido pelo arguido mudou para a cor vermelha, com a consequente imposição de paragem dos veículos ali em circulação, incluindo o conduzido pelo arguido;

2. Que o falecido BB, vendo que o sinal do semáforo estava vermelho para os veículos, encetou a travessia da faixa da faixa de rodagem;

3. Que quando o falecido BB passava à frente do veículo conduzido pelo arguido o semáforo mudou para a cor verde;

4. Que o corpo do ofendido foi atropelado com a roda da frente do lado esquerdo;

5. Que o corpo do falecido ficou esmagado debaixo daquela roda (frente do lado esquerdo).»

b. É a seguinte a motivação da decisão de facto apresentada pelo Tribunal de 1.ª Instância :

«3. Convicção do tribunal

A convicção do tribunal fundou-se no conjunto da prova produzida em julgamento, a qual se encontra integralmente documentada e valorada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal.

Assim, quanto às características da via e do local onde ocorreu o atropelamento o Tribunal baseou-se nas declarações do próprio arguido e dos agentes da P.S.P. EE e CC.

O agente EE elaborou a participação de acidente de viação junto a fls. 3 e ss. do Apenso A, elaborou o cróqui de fls. 6, assim como o Relatório fotográfico de fls. 7 e ss., que claramente ilustram o local onde o acidente ocorreu, as características da via, tratando-se, de resto, de uma das principais artérias de entrada de veículos no centro da cidade do Porto.

O cróqui elaborado permite ainda verificar a existência de uma travessia para peões (passadeira) devidamente assinalada, e que as fotografias também ilustram, a qual se localizada a cerca de 11.40 metros do local onde o falecido BB efectuou a travessia da estrada.

O agente da P.S.P. EE explicou que foi determinada a sua deslocação ao local por ter ocorrido um atropelamento e ali chegado elaborou todo o expediente que se encontra junto aos autos no Apenso A.

De igual modo, o agente CC, que integra a Brigada de Serviço Permanente da Divisão de Investigação Criminal da P.S.P., explicou que foi chamado ao local e elaborou o aditamento nº 1 junto a fls. 17 do Apenso A.

Desse Apenso consta ainda uma Reportagem Fotográfica elaborada pelos Agentes da Investigação Criminal junta a fls. 21 a 29, das quais resulta que o falecido não ficou esmagado debaixo da roda do camião (fotos de fls. 29), situação que de resto também não é mencionada no Relatório da Autópsia junto aos autos, o que ocorreu é que o falecido BB ficou caído debaixo do camião, em consequência da sua queda, após ter sofrido o embate do camião.

O arguido nas declarações que prestou explicou que não foi a circunstância de o semáforo existente no local ter mudado para a cor vermelha que o levou a parar o camião que conduzia. O que sucedeu é que estavam numa situação, vulgarmente designada de pára-arranca, e foi por essa razão que parou o camião. Quando retomou a marcha não se apercebeu de ninguém a efectuar a travessia da estrada e apenas parou porque as pessoas começaram a gritar (berrar, na expressão por si utilizada). Estava ciente da existência do espelho auxiliar frontal na parte superior direita do para brisas, que assumiu que lhe permite ver a parte da frente do camião, e que é muito utilizado em obra. Admitiu que sentado no local do condutor do veículo pesado que conduzia há uma faixa frontal de cerca de 1,20 metros que não é visível, medição efectuada pelo Agente da P.S.P. CC, e documentada no aditamento de fls. 17 do Apenso A, e que o espelho exterior permite ver essa frente do camião.

As testemunhas FF, socorrista, e GG, enfermeiro, estavam, ambos no interior do Hospital ..., no Porto, que se localiza a cerca de 50 metros do local onde ocorreu o atropelamento e deslocaram-se de imediato para o local a fim de prestaram socorro ao falecido BB.

Recordam que o corpo do falecido estava debaixo do camião e pediram ao condutor para recuar a fim de libertarem o corpo e prestarem o auxílio possível. Admitem que parte do pé esquerdo ou das calças estava preso na roda esquerda, da frente do veículo, mas o corpo não estava esmagado. Explicou o enfermeiro GG que o falecido já não respirava e pouco puderam fazer, aguardando a chegada ao local do INEM, que ainda efectuou manobras de reanimação, mas sem sucesso.

A testemunha de defesa HH, foi sócio gerente de uma empresa onde o arguido trabalhou cerca de 10/11 anos, considerando que o arguido tinha um comportamento exemplar. Era diligente, trabalhador e amigo dos colegas.

Concluindo, a questão essencial a avaliar, consiste em saber se era exigível ou não, que o arguido antes de iniciar a marcha do camião tivesse olhado para o espelho exterior frontal, colocado na parte superior do para brisas, a fim de se certificar se alguém passava ou não na frente do mesmo.

E como resulta da matéria de facto dada como assente entendemos que sim.

O arguido tinha o camião parado numa situação de pára-arranca no trânsito urbano, numa zona movimentada da cidade, quer do ponto de vista da circulação de veículos a motor, quer de pessoas, não era por isso absolutamente imprevisível que um peão pudesse efectuar a travessia da estrada fora da passadeira, ao que todos os que circulam na via pública, seja como condutores como passageiros, ou até como peões, assistem diariamente.

Por outro lado, as dimensões do veículo conduzido pelo arguido impõem especiais e acrescidos deveres de cuidado na circulação do mesmo, impondo desde logo a obtenção de carta de condução específica para esse fim.

As características do veículo pelo conduzido pelo arguido obrigam à colocação de um espelho exterior, enquanto dispositivo para visão indirecta, definidos pelo artigo 2º, al. a) do Decreto-Lei nº 215/2004, de 25/08, como sendo “os dispositivos para observar a área de circulação de trânsito adjacente ao veículo que não possa ser observada por visão directa, podendo ser espelhos convencionais, dispositivos do tipo câmara-monitor ou outros dispositivos susceptíveis de mostrar informação sobre o campo de visão indirecta ao condutor”.

Ao exigir a colocação destes espelhos, o legislador vem dar a possibilidade ao condutor deste tipo de veículos de se certificar de que pode colocar os mesmos em marcha em segurança, sem colidir com nada nem com ninguém. Uma posição de condução que impede de ver cerca de 1,20 metros para a frente do veículo, exige um cuidado e segurança acrescidos que é dada pela colocação do espelho e pelo uso que necessariamente tem de ser feito do mesmo, sendo que o arguido, confessadamente admitiu não ter olhado para o espelho exterior, aqui radicando a sua atitude imprevidente e de inobservância dos cuidados que se lhe impunham.

O Tribunal atendeu ainda ao teor do relatório da autópsia junto a fls. 78 e ss.; ao relatório social junto a fls. 310 e ss.; ao certificado do registo criminal junto a fls. 312 e à certidão junta a fls. 264 pelo Centro Nacional de Pensões que comprova o valor pago à viúva do beneficiário BB, a título de subsídio por morte e pensões de sobrevivência.»

c. É como segue a apreciação e qualificação jurídico–penal da matéria de facto que foi efectuada pelo Tribunal de 1.ª Instância:

« A. Enquadramento jurídico-penal dos factos praticados pelo arguido

O crime de homicídio por negligência

O arguido vem acusado da prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º, nº 1 do Código Penal.

Estabelece o nº 1 deste preceito que “Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.

A negligência vem definida no artigo 15º do Código Penal, só sendo jurídico-penalmente relevante nos casos expressamente previstos na lei, uma vez que a responsabilidade do direito penal, em regra, pressupõem um comportamento doloso, existindo tipos negligentes apenas quando a lei expressamente os prevê (artigo 13º), como é o caso do artigo 137º do Código Penal.

Os tipos negligentes estão ligados, designadamente, à existência de determinadas condutas e actividades da vida actual que, aliadas à evolução tecnológica, vão aumentando o grau de risco inerente às condições normais da vida do dia-a-dia; actividades que, todavia, não podem deixar de acontecer sob pena de paralisação de toda a vida social.

Até certo ponto há um rico permitido, o qual é definido pelas normas que regulam o exercício de tais actividades.

Um dos exemplos desta situação é o trânsito rodoviário, o qual tem no Código da Estrada a definição das regras que permitem distinguir quando estamos perante uma situação de risco permitido e quando estamos perante uma situação susceptível de criar perigo para determinados bens jurídicos, a qual ultrapassa tal risco permitido.

É aqui que entra o dever objectivo de cuidado, o qual deve ser aferido pela actuação do Homem médio cuidadoso e consciente do sector a que pertence o agente quando colocado na concreta situação de perigo que este contemplava.

Nas palavras do Prof. Eduardo Correia, (Direito Criminal I, Almedina, Coimbra, 1971, Pág. 421): "Antes de tudo a negligência é omissão de um dever objectivo de cuidado ou diligência.".

Para que haja, então, o preenchimento do tipo de ilícito inerente à negligência é necessário que exista:

- uma actuação que não observa o cuidado objectivo exigido pelo caso concreto;

- a possibilidade de prever o perigo de realização do tipo (neste caso, o perigo da ocorrência da morte de uma pessoa);

- a produção do resultado típico.

Não basta, porém, que ocorra o resultado típico, pois é ainda necessário que exista um nexo de causalidade entre esse resultado e a conduta do agente, e que aquele possa “imputar-se objectivamente à conduta e subjectivamente ao agente” (Ac. do S.T.J. de 5/11/97, C.J. S.T.J., ano V, tomo 3, pág. 227), isto é, que a conduta seja adequada a produzir aquele resultado.

No que ao caso respeita, e em síntese, um comportamento contra ordenacional deve ser imputado ao arguido como causal do acidente, a saber: a violação das normas de início de marcha, tuteladas pelos artigos 12, nº 1 do Código da Estrada.

Estabelece a citada disposição legal que os condutores não podem iniciar ou retomar a marcha (…) sem adoptarem as precauções necessária para evitar qualquer acidente.

Será que dos factos que se apuraram se pode retirar a existência de uma actuação por parte do arguido de inobservância do dever de cuidado que lhe exigia o caso concreto?

Cremos, manifestamente, que sim.

Na verdade o arguido retomou a marcha sem se certificar de que o podia fazer em segurança, nomeadamente colidindo com quem pudesse estar a efectuar a travessia da estrada, ainda que de forma indevida, como adiante explicitaremos, sendo cero que o podia e devia ter feito, bastando para tanto socorrer-se do espelho exterior, colocado no para-brisas que lhe permitia ver a frente do camião na sua totalidade, e assim a perceber-se da presença do malogrado BB.

Esta manobra do arguido foi a causa do atropelamento do falecido BB, e das gravíssimas consequências que dele derivaram, concretamente a sua morte.

Contudo, entendemos que a conduta da vítima também contribui para a eclosão do seu atropelamento uma vez que resultou dos factos provados que o falecido BB efectuou a travessia da estrada fora da passagem especialmente assinalada para o efeito, vulgo passadeira, que se localizada a cerca de 11 metros do local, bem como o fez por entre veículos parados em situação vulgarmente designada de “para- arranca”.

Estabelece o artigo 101º, nº 1 do Código da Estrada que

1 - Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respetiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente.

2 - O atravessamento da faixa de rodagem deve fazer-se o mais rapidamente possível.

3 - Os peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando nenhuma exista a uma distância inferior a 50 m, perpendicularmente ao eixo da faixa de rodagem.

Assim, impunha-se ao falecido BB efectuar a travessia da estrada na passagem assinalada para o efeito existente nas proximidades do local, a cerca de 11 metros, bem como se lhe impunha que não efectuasse a travessia imediatamente na frente de um veículo com as dimensões daquele que era conduzido pelo arguido, pois impedia a sua visualização directa por parte do condutor.

Estamos, pois, convictos que da conjugação da falta de cuidado do arguido quando retomou a marcha do veículo e da inobservância dos cuidados necessários para a travessia da rua por parte do falecido estiveram na origem do embate em causa.

O arguido agiu sem observar o disposto no artigo 12º do Código da Estrada, e actuou dessa forma sendo certo que podia e devia prever o perigo de vir a originar um acidente, o que veio de facto a suceder, sendo que a conduta adequada para a produção do resultado que se verificou, a morte do BB.

Pelo exposto, entendemos que os factos praticados pelo arguido integram o crime de homicídio por negligência p. e p. pelo artigo 137º, nº 1 do Código Penal.  »

d. É como segue a apreciação efectuada pelo Tribunal de 1.ª Instância quanto à determinação das consequências penais no caso :

«B. A medida da pena

A escolha da pena

Estabelece o artigo 137º, nº 1 do Código Penal que o crime de homicídio por negligência é punido com a moldura abstracta de pena de prisão até três anos ou com pena de multa, pelo que à luz do artigo 70º do Código Penal, o tribunal deve dar preferência fundamentada à segunda, fundamentação esta exigida nos termos do artigo 208º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.

A pena de prisão, e de acordo com o preâmbulo do Decreto-Lei nº 48/95 no seu ponto 4, deve ser reservada para situações de maior gravidade e alarme social, devendo ser dada preferência à pena de multa, desde que essa pena não detentiva de liberdade se afigure como suficiente "para promover a reintegração do delinquente na vida social e dar satisfação aos fins da retribuição e da prevenção das penas" (Robalo Cordeiro, Escolha e medida da pena, Jornadas de Direito Criminal, C.E.J., pág. 238).

Ora, o caso dos homicídios estradais é precisamente uma das situações legais em que são muito elevadas as necessidades de prevenção geral, atenta a elevada sinistralidade rodoviária nas nossas estradas e o crescente número de mortos e sinistrados em consequência de acidentes de viação, pese embora todas as campanhas de prevenção, o que em nosso entender justifica a aplicação ao arguido de uma pena de prisão.

A determinação concreta da pena

A determinação em concreto da medida da pena consiste em determinar, dentro da moldura abstractamente aplicável o quantum de pena concreta aplicável ao agente, tendo em conta os critérios estabelecidos no artigo 71º do Código Penal.

Estabelece o nº 1 deste preceito que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção de futuros crimes.

A pena será assim determinada entre o limite mínimo dado pela prevenção geral e o limite máximo dado pela culpa, actuando na determinação da medida concreta da pena os critérios de prevenção especial de ressocialização.

Importará, pois, ponderar que o arguido actuou com negligência inconsciente, não chegando sequer a prever a possibilidade de, com a sua conduta, matar outrem; a gravidade das consequências da sua conduta foi elevada uma vez que foi abalado o bem supremo que é a vida e que maior tutela merece no nosso sistema penal. Para a verificação do resultado contribui também o comportamento do falecido que não observou a obrigatoriedade de atravessar a estrada na passadeira existente a cerca de 11 metros do local.

Importa ponderar em favor do arguido que o mesmo não tem antecedentes criminais. Vive na companhia da sua esposa e filha e é uma pessoa socialmente inserida e bem considerada.

Como já referimos são muito elevadas as exigências de prevenção geral.

Tudo ponderado consideramos justa e suficiente, pelas exigências de prevenção geral e especial e pelo princípio da necessidade da pena, à luz dos critérios estabelecidos no artigo 71º, o cumprimento de uma pena de 10 meses de prisão (que se entende não ser de substitui por multa nos termos do artigo 45º, nº 1 do Código Penal).


*

C. Da suspensão da execução da pena

O artigo 50º do Código Penal atribui ao Tribunal o poder-dever de suspender a execução da pena de prisão não superior a cinco anos, sempre que, reportando-se ao momento da decisão, o julgador possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento futuro do arguido (cfr. Figueiredo Dias, “Velhas e novas questões sobre a suspensão da execução da pena”, Rev. de Leg. E Jur., ano 124º, pág. 68).

Como justamente se salientou no Ac. do S.T.J. de 8/5/1997 (Proc.º nº 1293/96) "factor essencial à filosofia do instituto da suspensão da execução da pena é a capacidade da medida para apontar ao próprio arguido o rumo certo no domínio da valoração do seu comportamento de acordo com as exigências do direito penal, impondo-se-lhe como factor pedagógico de contestação e auto-responsabilização pelo comportamento posterior; para a sua concessão é necessária a capacidade do arguido de sentir essa ameaça, a exercer sobre si o efeito contentor, em caso de situação parecida, e a capacidade de vencer a vontade de delinquir".

Assim, em face da ausência de antecedentes criminais do arguido, da sua situação familiar e profissional perfeitamente estabilizada, entende o tribunal que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, motivo pelo qual se decide suspender a execução da pena de prisão pelo período de um ano, ao abrigo do disposto no artigo 50º, nº 1 e 5 do Código Penal, suspensão essa que, contudo, irá subordinada à condição de o arguido proceder ao pagamento à Associação ... (com sede na Av., ..., ... em ...), no prazo de 10 (dez) meses, da quantia de € 1.000,00 (mil euros), provando tal facto, documentalmente, nos autos (artigo 51º, nº 1 al. c) do Código Penal).


*

D. Da aplicação da pena acessória de inibição de conduzir

Estabelece o artigo 69º, nº 1, al. a) do Código Penal que “É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido: a) Por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes previstos nos artigos 291º ou 292º.”

Face à elevada ilicitude da conduta, à ausência de antecedentes criminais do arguido e atendendo ainda à concorrência de culpa da vítima mortal BB, fixa-se a pena acessória a cumprir pelo arguido em 6 (seis) meses de proibição de conduzir veículos com motor.  »

e. É como segue a apreciação do pedido de indemnização civil que vem efectuada pelo Tribunal de 1.ª Instância :

«E. Pedido de reembolso do Centro Nacional de Pensões

Pelo Centro Nacional de Pensões do Instituto da Segurança Social, I.P., foi deduzido pedido de reembolso de prestações da Segurança Social contra AA, B..., SA e A...-Companhia de Seguros, SA, pedindo a condenação dos mesmos a pagar ao Centro Nacional de Pensões do Instituto da Segurança Social, I.P., a quantia de €16.441.66 (dezasseis mil quatrocentos e quarenta e um euros e sessenta e seis cêntimos), bem como o que vier posteriormente a ser apurado, até ao limite da indemnização a conceder, bem como os respetivos juros de mora legais, sendo €15.125,23 correspondente às pensões de sobrevivência pagas à viúva entre 10/2020 e 08/2022, e €1.316,43 correspondente ao subsídio por morte.

O pedido do ISS baseia-se no artigo 70º, da Lei nº 4/2007, de 20/12 onde se diz que: “No caso de concorrência pelo mesmo facto do direito a prestações pecuniárias dos regimes de segurança social com o de indemnização a suportar por terceiros, as instituições de segurança social ficam sub-rogadas nos direitos do lesado até ao limite do valor das prestações que lhes cabe conceder”.

Com efeito, como se pode ver no Relatório do Decreto-Lei n.º 59/89, de 22/02, a Segurança Social, nos casos de eventos que provocam a perda de remunerações, pelas quais há terceiros responsáveis “assegura provisoriamente a protecção do beneficiário, cabendo-lhe em conformidade exigir o valor dos subsídios e pensões pagas”.

A responsabilidade do Centro Nacional de Pensões é assim de garante subsidiário do obrigado principal, pretendendo o legislador que sejam imediatamente satisfeitos à vítima ou seu agregado familiar, por parte do referido Centro Nacional de Pensões, enquanto não houver responsável apurado pelo evento, pelo menos parte dos proventos a que o lesado ou membros do respectivo agregado familiar tenham direito, para assim se evitarem rupturas sociais.

Ora, é nessa perspectiva que incumbe ao Centro Nacional de Pensões a satisfação de pensões de sobrevivência ou subsídios por funeral enquanto se não mostre definido um responsável pela prática do acto gerador do dano (v. Ac. RP, de 11/05/2004, publicado em www.dgsi.pt/jtrp, que aqui seguimos de perto).

Face ao acabado de expor, somos levados a concluir que a seguradora A... se mostra obrigada a reembolsar o ISS do montante entregue aos familiares beneficiários por este Instituto a título de subsídio por morte e pensões de sobrevivência.

Não tem direito ao reembolso das prestações vencidas posteriormente à dedução do pedido, uma vez que só pode considerar-se existir sub-rogação relativamente às prestações que já efectuou até àquele momento (cfr. artigos 592º, nº 1 e 593º, nº 1, ambos do Código Civil).

Sucede que no caso em apreço, entendemos haver concorrência de culpas entre o arguido condutor do veículo pesado de mercadorias e o peão e vítima mortal BB, sendo certo que a contribuição do veículo para a eclosão do atropelamento terá de ser necessariamente maior em face da perigosidade inerente ao próprio veículo e suas dimensões, e ao facto de o arguido reiniciar a marcha do veículo sem ter certificado que o podia fazer sem causar qualquer perigo para terceiros, considerando-se de 70% a contribuição do arguido para a eclosão do embate e de 30% a contribuição do peão (artigo 570º, nº 1 do Código Civil), pelo que a seguradora demandada será responsável pelo pagamento de 70% da quantia peticionada, ou seja, de € 11.509,16 (onze mil quinhentos e nove euros e dezasseis cêntimos).

Responsável pelos prejuízos causados será a demandada civil “A...- Companhia de Seguros, S.A.”, uma vez que a mesma, por contrato de seguro titulado pela apólice ...70, assumiu a responsabilidade por danos causados a terceiros emergentes da circulação do veículo de matricula ..-VR-...  »

      Apreciemos então as questões suscitadas, pela ordem de prevalência processual sucessiva que revestem – isto é, por forma a que, por via da sucessiva apreciação de cada uma, se vá alcançando, na medida do necessário, um progressivo saneamento processual que permita a clarificação do objecto das seguintes.

1. De saber se a sentença recorrida padece de algum dos vícios previstos no art. 410º/2 do Cód. de Processo Penal.

(questão suscitada pelo recorrente/arguido AA)

      Vem o arguido/recorrente AA impugnar a decisão recorrida desde logo em quanto respeita à matéria de facto considerada na mesma.

Como é consabido, a decisão da matéria de facto adoptada em primeira instância pode ser sindicada em sede de recurso por duas vias alternativas :

– no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410º/2 do Cód. de Processo Penal,

– ou através da designada impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º/3/4/6, do mesmo diploma.

No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do referido art. 410.º, cuja indagação, como resulta imposto do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento ; no segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do Cód. de Processo Penal.

Tratar–se–à nesta parte da aludida primeira vertente, suscitada em recurso pelo recorrente AA, e em que estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº 2 do referido art. 410º do Cód. de Processo Penal – mais concretamente o de erro notório na apreciação da prova.

Estabelece, assim, este art. 410º/2 do Cód. de Processo Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;

b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) o erro notório na apreciação da prova.

Saliente-se que, como acima já se enunciou, em qualquer das apontadas hipóteses, qualquer dos vícios deverá traduzir–se em falhas que hão-de resultar da própria leitura da decisão devendo ser patentes e perceptíveis à leitura do restrito teor da decisão, revelando juízos ilógicos ou contraditórios. Assumem–se, pois, como erros de lógica intrínsecos na construção da sentença, a relevar da contextualização interna da estrutura da mesma, ainda que congraçada com as regras ou máximas da experiência comum, entendidas estas como o regular, normal e adquirido vivenciar do homem, histórico-socialmente situado.

Cumpre realçar que não sustenta a configuração de tais vícios, o esgrimir de argumentos opinativos quanto ao mérito do julgamento de facto a que o tribunal chegou e que verteu no texto da decisão, nem a mera crítica ao processo formativo cognitivo–racional que sustentou uma tal apreciação factual ou valoração probatória – a menos que ofendam em tal grau o senso comum que por isso não viabilizem sequer a validação do acto de julgamento efectuado.

Revertendo directamente à concreta alegação do recorrente, sucintamente se caracteriza o vício do “erro notório na apreciação da prova” (cfr. art. 410º/2/c) do Cód. de Processo Penal) pela constatação de uma situação em que um homem médio, perante o teor da decisão recorrida – por si só ou conjugada com o elementar senso comum –, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.

O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, “Recursos em processo penal”, 5.ª edição, pág. 61 e seguintes).

Este vício do erro notório na apreciação da prova existe, pois, quando o tribunal valoriza a prova ostensivamente contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª Ed., pág. 341).

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, “Recursos em Processo Penal”, 6ª Ed., pág. 74).

Esta interpretação, para além acolhida por todos os Tribunais da Relação, é também sufragada pelo Supremo Tribunal de Justiça, podendo referenciar–se neste sentido, e entre muitos outros, o Acórdão do S.T.J. de 09/03/2023 (1368/20.8JABRG.G1.S1)[[3]], «O erro notório na apreciação da prova é um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão, nomeadamente, através da leitura da matéria de facto e da fundamentação da matéria de facto, mas nem sempre detetável por um simples homem médio sem conhecimentos jurídicos. Na verdade, o erro pode não ser evidente aos olhos do leitor médio e, todavia, constituir um erro evidente para um jurista de modo que a manutenção da decisão com base naquele erro constitui uma decisão que fere o elementar sentido de justiça».

Não obstante, e como adverte o Acórdão do S.T.J. de 23/09/2010 (proc. 427/08.0TBSTB.E1.S2)[[4]], «O vício da al. c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP – erro notório na apreciação da prova (…) tem também que ser um erro patente, evidente, perceptível por um qualquer cidadão médio. E não configura um erro claro e patente um entendimento que possa traduzir-se numa leitura que se mostre possível, aceitável, ou razoável da prova produzida».

Ou seja, não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.

Isto dito, e passando a apreciar da pretensão recursória do arguido nesta parte, suscita o mesmo a verificação na sentença recorrida de uma situação de erro notório na apreciação da prova, especificamente no que se refere à matéria dada como provada nos pontos 5. e 7. da fundamentação, onde se consigna nos seguintes termos :

5. Quando BB, passava à frente do veículo pesado de mercadorias conduzido pelo arguido, o arguido reiniciou a marcha daquele veículo, vindo o mesmo a embater no corpo do falecido, provocando a sua queda ;

7. O descrito atropelamento, e a morte do falecido foram consequência da condução descuidada e imprevidente do arguido, tendo o mesmo imprudentemente confiado que, por se encontrar numa fila compacta de trânsito, não se encontravam quaisquer peões à sua frente, incluindo o falecido, e que por isso poderia percorrer livremente o espaço à sua frente; pelo que, antes de imprimir novamente a marcha do veículo por si conduzido, não cuidou de, pelo menos imediatamente antes, verificar através daquele espelho se se encontravam pessoas à sua frente, incluindo o falecido.

      Alega o recorrente que da motivação para dar como provada esta factualidade não resulta qualquer menção à prova e/ou raciocínio logico-dedutivo que sustente minimamente a conclusão do Tribunal a quo de que o arguido, após parar, acto continuo, (re)iniciou a marcha no exacto momento em que o ofendido BB (ora falecido) já se encontrava à frente do veículo por si conduzido.

      Assim, alega, sabendo-se que o acidente ocorreu numa situação de trânsito intenso, vulgarmente designado de “pára-arranca” e mesmo admitindo as circunstâncias de tempo e lugar melhor descritas nos factos 1, 2 e 4 dos factos provados, tudo mais quanto se possa dizer no que à dinâmica do acidente concerne, não passam de meras conjecturas, desprovidas totalmente de consistência probatória, não sendo possível retirar a conclusão que o arguido parou e que acto contínuo iniciou a marcha quando o ofendido já se encontrava à frente do veículo, sendo impossível determinar, o modo concreto como o mesmo invadiu a faixa de rodagem.

      Apreciando se dirá que não se julga que assista razão ao recorrente.

      Nesta parte, assenta o arguido a sua invectiva no essencial na consideração de não resultar de qualquer elemento probatório dos autos a concreta demonstração dos termos em que o ofendido adentrou na faixa de rodagem (para a atravessar), não sendo assim possível afirmar–se que o mesmo «passava à frente do veículo pesado de mercadorias conduzido pelo arguido, [quando] o arguido reiniciou a marcha daquele veículo».

      Ora, não se descortina na descrição dos aludidos pontos da matéria de facto provada, em conjugação com quanto resulta enunciado em sede de motivação probatória, qualquer raciocínio errático ou desconforme com quaisquer regras de lógica ou experiência comum.

      Aquilo que, lida a decisão recorrida, resulta haver o tribunal a quo considerado demonstrado é que, entendendo resultar dos elementos de prova que enuncia e analisa (máxime das próprias declarações do arguido e, no que tange às características da via e do local onde ocorreu o atropelamento e ao estado/posicionamento em que se encontrava a vítima após o evento, também das declarações dos agentes da P.S.P., o croquis e o relatório fotográfico elaborados por estes últimos), a colisão do veículo conduzido pelo arguido com a vítima se deu inevitável e necessariamente quando esta já estava na frente do mesmo veículo, e, obviamente também, quando este reiniciou a marcha naquela situação de pára–arranca.

      Ou seja, na lógica da dinâmica do acidente que o tribunal a quo entender ser a resultante dos objectivos elementos de prova dos autos, o mesmo ocorreu necessariamente quando a vitima se encontrava na frente do veículo e este reiniciou a marcha sem que o arguido se haja apercebido dessa presença (sendo que a alternativa a esta última premissa seria a de um atropelamento deliberadamente determinado por parte do arguido).

      E nisto não se descortina qualquer raciocínio ilógico ou descabido à luz do que decorre de elementares regras de experiência, não se vislumbrando, com franqueza, qualquer alternativa sequer fisicamente viável àquela a que chega o tribunal a quo – pelo contrário, afigura–se sim de inarredável lógica que o ofendido já estaria a atravessar a via e a passar em frente ao veículo conduzido pelo arguido (e ali não se materializou) quando este reiniciou a respectiva marcha e inadvertidamente (e disto não se suscita qualquer dúvida) o colheu.

Ou seja, o exercício de ponderação que vem efectuado pelo tribunal a quo, e percorrido todo o teor da decisão recorrida, não se revela assente em premissas ilógicas, nem se revela contrário àquelas que são as regras de experiência comum relativas a quanto é possível percepcionar das características da via, das características do veículo conduzido pelo arguido e das circunstâncias em que o mesmo circulava, e do posicionamento da vítima após o embate.

Como decorre de quanto inicialmente se disse, para que de um erro notório na apreciação da prova pudesse falar–se, necessário seria que estivéssemos perante um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidenciasse aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, e in casu, em dar-se como não provado o que manifestamente teve de ter acontecido.

Também se diga, ainda por reporte aos termos da alegação do recorrente, que as dúvidas que logo neste segmento o recorrente refere justificarem–se, não assolaram no critério decisório do tribunal a quo em face da ponderação da globalidade da prova e da globalidade dos factos.

E, nessa perspectiva, não fez uso do princípio do in dúbio pro reo, o qual, respeitando ao direito probatório, implica, em termos sintéticos, que o julgador deve decidir a favor do arguido se, face ao material probatório produzido em audiência, tiver dúvidas sobre qualquer facto. Ou seja, a ter-se por afectada a adequada certeza probatória que qualquer condenação penal exige como seu fundamento – quando, por via das circunstâncias ligadas à produção de prova nos autos se tenha por inquinado o processo de formação da convicção do Tribunal na correspondente parte – não será de assacar ao arguido a actuação imputada.

Não se detectando, pois, o aludido estado de dúvida na explanação efectuada na sobredita motivação, não tinha o tribunal recorrido que lançar mão do princípio in dubio pro reo – ficando deste modo afastada a também invocada violação do mesmo nesta parte.

Não se tem, pois, por verificado na sentença recorrida o invocado vício do erro notório na apreciação da prova por parte do tribunal a quo.

Assim como, já agora se diga, não se tem por verificado qualquer dos outros vícios estruturais em sede de decisão sobre a matéria de facto, que se mostram previstos no citado nº2 do art. 410º do Cód. de Processo Penal.

Na verdade, percorrida a fundamentação de facto da sentença e bem assim o respectivo exercício de motivação probatória, bem como, a jusante, a decisão jurídico–criminal e indemnizatória que aquelas vêm a determinar, além de não se descortinar qualquer erro patente (ou sequer menos patente) de raciocínio por parte do tribunal a quo, também não se detecta qualquer contradição intrínseca na fundamentação de facto, em si mesma ou por confronto com a aludida motivação, revelando–se, enfim, a matéria factual decidida suficiente para a decisão jurídico–penal que vem a ser depois adoptada.

Em suma, improcede esta vertente do recurso interposto pelo arguido AA.

2. De saber se o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, nos termos do art. 412º/3 do Cód. de Processo Penal.

(questão suscitada por ambos os recorrentes – arguido AA e demandada “A..., S.A.”)

      Vêm ambos os recorrentes recorrer do julgamento da matéria de facto que vem efectuado pelo tribunal a quo, propugnando, em síntese, haver sido considerados erradamente como provados os factos em que assentou a condenação do arguido AA pelo crime de homicídio negligente e, por essa via, a condenação da recorrente seguradora “A..., S.A.” no pedido de reembolso formulado pelo “Centro Nacional de Pensões do Instituto da Segurança Social, I.P.”.

Estamos agora no campo da supra aludida segunda vertente em que pode assentar o recurso penal em matéria de decisão de facto, ou seja, o da arguição do erro de julgamento consagrada no artigo 412º/3 do Cód. de Processo Penal – a já designada impugnação ampla da matéria de facto.

O erro de julgamento ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado; ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

Neste caso, o recurso visa a reapreciação de concretos segmentos de prova produzida em primeira instância, havendo assim que a reproduzir tale quale em segunda instância, por forma a apreciar da verificação da específica deficiência suscitada.

Notar–se–á, não obstante, que nos casos de tal impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, mas antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, e sempre na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.

E é exactamente por o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituir um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, os aludidos erros que o recorrente deverá expressamente indicar, que se impõe a este o ónus de proceder a uma especificação sob três vertentes, conforme estabelecido no art. 412º/3 do Cód. de Processo Penal, onde se estatui que, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar :

a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados,

b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida,

c) as provas que devem ser renovadas (quanto aplicável).     

      A assim exigida tríplice especificação traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal exercício recursivo com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõem decisão diversa da recorrida, com a explicitação da razão pela qual assim se entende.

      Sendo que, com relação às duas últimas especificações, recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência : estando em causa o apelo a prova objecto de gravação, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal – é o que resulta do nº4 do art. 412º do Cód. de Processo Penal, que exactamente exige que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.

Em suma, e retomando quanto se vinha dizendo, quando se pretenda efectivamente sindicar a decisão recorrida no âmbito desta apreciação mais alargada resultante da impugnação da matéria de facto, resulta imposto pelo texto do nº3 do art. 412º do Cód. de Processo Penal que não é uma qualquer divergência que pode levar o Tribunal ad quem a decidir pela alteração do julgado em sede de matéria de facto. Quando, no artigo 412º/3/b) do Cód. de Processo Penal se alude às «concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida», deve distinguir-se essa situação daquelas em que as provas em causa, sem imporem decisão diversa, admitiriam decisão diversa da recorrida na base de um outro juízo sobre a sua fidedignidade.

Notar–se–á que a remissão para o verbo impor, especificamente estipulada no art. 412º/3/b) do Cód. de Processo Penal, consubstancia a exigência de verificação de uma obrigação impreterível, de um imperativo, de um dever mandatório inquebrável e sem alternativas. Assim, não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo tribunal a quo.

Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo não só é vulgar, como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto.

O que aqui se mostra necessário é que o recorrente demonstre que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido, em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada, à solução por si (recorrente) defendida, e não àquela consignada pelo Tribunal.

Donde dever o recorrente, na sua argumentação e apreciação alternativas, fazer uso de um raciocínio lógico e de exame crítico com o mesmo grau de exigência que se impõe ao tribunal na fundamentação das suas decisões, e com respeito pelos princípios da imediação e da livre apreciação da prova.

Estas ideias encontram eco indisputado na jurisprudência, podendo citar–se, por todos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15/12/2005 e de 09/03/2006 (procs. nº 2951/05 e 461/06)[[5]] – citados pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11/05/2022 (proc. 299/20.6GAVGS.P1)[[6]] –, onde se escreve que «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse: antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros».

Efectuadas estas considerações – como forma de enquadramento dos limites em que se move a invocação desta forma de impugnação ampliada do exercício de fundamentação de facto por parte do tribunal a quo –, vejamos quanto sucede no caso concreto dos autos.

No caso, os recorrentes vêm invocar o incorrecto julgamento da matéria de facto por parte do tribunal de primeira instância, alegando que tal deficiente exercício se prende, fundamentalmente, com uma inadequada avaliação efectuada da prova produzida em sede de audiência.

Em concreto, e desde logo em cumprimento da primeira vertente da especificação aqui exigida, e imposta na alínea a) do art.412º/3 do Cód. de Processo Penal, os recorrentes anunciam impugnar a matéria de facto dada como provada nos seguintes pontos da fundamentação de facto da Sentença recorrida :

– no que tange ao arguido AA, aquela que se mostra vertida nos pontos 5. e 7.,

– e quanto à demandada “A..., S.A.”, a matéria assente nos pontos 7., 8. e 9..

Recordemos o teor dos pontos da matéria de facto cujo julgamento vem assim impugnado:

A parcial sobreposição da matéria de facto cujo erro de julgamento vem suscitado pelos recorrentes já possibilita percepcionar que, no essencial, ambos propugnam por uma inversão da mesma no sentido de não se ter por demonstrada qualquer actuação típica negligente (no caso) por parte do ora arguido e que haja sido determinante do acidente em causa nos autos, isto é, o atropelamento do ofendido BB – pugnando antes por que tal evento danoso se terá devido em exclusivo à conduta do próprio ofendido, traduzida, essencialmente, na forma descuidada e imprevisível (para o arguido) como procedeu ao atravessamento da via naquele local e naquelas circunstâncias.

A primeira nota que não pode deixar de efectuar–se é a de que o exercício de impugnação efectuado por qualquer dos recorrentes passa, no essencial, pela crítica à convicção adquirida pelo tribunal recorrido, mas pretendendo ver o seu próprio juízo pessoal, sobre a avaliação dos elementos probatórios dos autos prevalecer, sobre a livre apreciação que serviu de base àquela e à resultante conclusão de condenação formulada pela primeira instância.

Por outras palavras, com base nos argumentos que vêm aduzir, pretendem que este tribunal de recurso formule uma nova e diversa convicção, e por essa via modifique ou altere os factos provados de molde a ir ao encontro dos seus interesses.

Tal circunstância é desde logo particularmente clara na impugnação deduzida pelo recorrente/arguido AA quando se constata que o mesmo, no que tange à exigência de especificação decorrente da alínea b) do nº3 do art. 412º do Cód. de Processo Penal, parte da consideração de que a matéria dada como provada nos aludidos pontos 5. e 7. não encontra sustento em qualquer elemento probatório produzido nos autos, para assim concluir que a forma como os factos em causa foram descritos como provados se mostra incorrecta.

É, pois, evidente que, ao apenas invocar em sustento da sua alegação a falta de elementos de prova que consubstanciem a conclusão do tribunal a quo, não referencia especificadamente trechos da prova produzida nos autos dos quais resulte a imposição do sentido probatório por si propugnado.

Contudo, ainda assim, entende–se que será de considerar, no limite, cumprida a exigência que aqui vimos existir.

      A favor deste entendimento, e analisando a propósito de hipótese similar àquela que aqui se mostra colocada, se pronunciou o Conselheiro Sérgio Poças, no seu artigo «Processo Penal – quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto» publicado na Revista Julgar, nº10 – 2010, a pág. 33, e nos seguintes termos :

«Mas sobre o que temos vindo a expor – da posição do recorrente na impugnação da matéria de facto – atentemos numa situação do quotidiano judiciário: o tribunal a quo dá como provado determinado facto para o que dá determinadas razões, identificando depoimentos e as razões por que tais depoimentos lhe mereceram crédito.

O recorrente especifica tal facto como incorrectamente julgado, cumprindo os requisitos acima explicitados.

Aqui uma situação pode ocorrer: o recorrente pode desde logo agarrar nos depoimentos identificados pelo tribunal na motivação da decisão sobre a matéria de facto, analisá-los e em discurso argumentativo pretender demonstrar que daqueles depoimentos o tribunal não podia concluir, como concluiu, mas deveria ter concluído precisamente em sentido contrário.

De facto, no caso de não ter havido quaisquer outras provas para além das indicadas na motivação da decisão, em minha opinião, o procedimento descrito será normal. O recorrente não pode indicar outras provas — que não existem — que imponham decisão diversa, mas pode defender que aqueles depoimentos impõem decisão diversa da recorrida.

Como nos parece evidente, o recorrente ao questionar a valoração da prova levada a cabo pelo tribunal está verdadeiramente a impugnar a matéria de facto, apesar de não estar a indicar outras provas que impõem decisão diversa. (…)

Cada caso tem de ser analisado com ponderação, sob pena de se cair no logro de dizer, em situações como a descrita que o recorrente não impugnou validamente a decisão da matéria de facto quando verdadeiramente o fez ».

No presente caso, é esta a situação que se configura : o recorrente assenta essencialmente a sua impugnação naquilo que o tribunal a quo transcreve da prova produzida, alegando (com fundamento ou não, é quanto se verá) que daí não resulta a prova de determinado facto, e que, ademais, inexistem outras provas que determinem o resultado probatório acolhido pela decisão recorrida.

É nesta perspectiva que se julga processualmente admissível a impugnação do julgamento da matéria de facto nos termos que vêm formulados.

Isto dito, prossigamos.

v Quanto ao ponto 5. da matéria de facto provada.

É do seguinte teor a matéria de facto aqui em causa:

5. Quando BB, passava à frente do veículo pesado de mercadorias conduzido pelo arguido, o arguido reiniciou a marcha daquele veículo, vindo o mesmo a embater no corpo do falecido, provocando a sua queda.

Vem o recorrente AA alegar que as provas recolhidas e produzidas nos autos não permitem concluir – reiterando em parte quanto já invocara em sede de impugnação restrita da matéria de facto – que o arguido parou e que acto contínuo iniciou a marcha quando o falecido BB se encontrava à frente do veículo.

      Efectivamente, prossegue, nenhuma testemunha presenciou os acontecimentos, sendo assim – alega – impossível determinar o modo concreto como o ofendido BB invadiu a faixa de rodagem, mormente se o fez em passo lento ou apressado, bem como, se o arguido já havia iniciado a marcha ou se a iniciou no momento em que o ofendido se encontrava em frente ao veículo.

Ou seja, reitera o recorrente a sua crítica à decisão de facto da sentença na consideração como assente que o ofendido já se encontrava na frente do veículo conduzido pelo arguido quando este reiniciou a sua marcha.

Donde, não pode deixar de se consignar nesta sede que, percorridos agora materialmente (e não apenas na respectiva descrição em sede de sentença) por esta instância os elementos de prova enunciados pelo tribunal a quo em sede de motivação (máxime as próprias declarações do arguido e, no que tange às características da via e do local onde ocorreu o atropelamento e ao estado/posicionamento em que se encontrava a vítima após o evento, também as declarações dos agentes da P.S.P., o croquis e o relatório fotográfico elaborados por estes últimos) – sendo de assinalar que a fiabilidade objectiva da respectiva enunciação àquele que é o seu conteúdo, não vem pelo(s) recorrente(s) colocada em causa –, se afigura inarredável a conclusão a que chegou o tribunal a quo de que colisão do veículo conduzido pelo arguido com o ofendido se deu inevitável e necessariamente quando este último já estava na frente do mesmo veículo, e, obviamente também, quando o arguido reiniciou a marcha naquela (indisputada) situação de pára–arranca.

      Ou seja, aquela que acima se indicou haver sido a lógica da dinâmica do acidente que o tribunal a quo entendeu ser a resultante dos objectivos elementos de prova dos autos, afigura–se também a esta instância, e no que tange ao aspecto especificamente invectivado neste segmento pelo arguido/recorrente, isenta de censura e insusceptível de alteração por via da impugnação em análise.

      Não se vislumbra, na verdade, de que outra forma poderia haver ocorrido a colisão em causa nos autos, de que resultou quedar–se o corpo da vitima debaixo da parte da frente do veículo do arguido, junto à roda frontal esquerda (aquela mais próxima do eixo da via) se o primeiro não estivesse já em frente ao mesmo veículo quando este retomou a sua marcha.

      Porque é tão apenas isso que aqui se mostra assente – e isto é independente da forma mais ou menos apressada como o ofendido haja entrado na via para a atravessar, e assim do grau da sua própria (do ofendido) falta de cuidado nessa actuação.

      Exactamente porque o arguido conduzia o seu veículo pesado de mercadorias numa fila de trânsito e numa situação de pára–arranca, é que qualquer outra alternativa à descrição do ponto 5. da matéria de facto provada não reveste, de todo, a mesma coerência com elementares regras de lógica e de experiência comum – porque se traduziria numa situação em que, ou o ofendido teria iniciado aquela travessia pela frente do veículo do arguido quando este já estava em andamento, ou o arguido teria percepcionado a presença do ofendido e ainda assim teria reiniciado (ou prosseguido) a marcha.

      Crê–se, pois, que bem decidiu o tribunal a quo ao não contemplar qualquer alternativa sequer fisicamente viável àquela assim vertida na matéria de facto – afigurando–se, pois, a evidência da conclusão de que o ofendido já estaria a atravessar a via e a passar em frente ao veículo conduzido pelo arguido (e ali não se materializou) quando este reiniciou a respectiva marcha e inadvertidamente (e disto não se suscita qualquer dúvida) o colheu.

Ou seja, e como já acima se disse, o exercício de ponderação que vem efectuado pelo tribunal a quo revela–se em absoluto coerente com premissas lógicas, e conforme àquelas que são as regras de experiência comum relativas a quanto é possível percepcionar das características da via, das características do veículo conduzido pelo arguido e das circunstâncias em que o mesmo circulava, e do posicionamento da vítima após o embate.

Nesta medida, não se impõe qualquer alteração deste concreto ponto (5.) da matéria de facto provada.

        

v Quanto aos ponto 7., 8. e 9. da matéria de facto provada.

É do seguinte teor a matéria de facto aqui em causa:

7. O descrito atropelamento, e a morte do falecido foram consequência da condução descuidada e imprevidente do arguido, tendo o mesmo imprudentemente confiado que, por se encontrar numa fila compacta de trânsito, não se encontravam quaisquer peões à sua frente, incluindo o falecido, e que por isso poderia percorrer livremente o espaço à sua frente; pelo que, antes de imprimir novamente a marcha do veículo por si conduzido, não cuidou de, pelo menos imediatamente antes, verificar através daquele espelho se se encontravam pessoas à sua frente, incluindo o falecido.

8. Não adoptou assim o arguido as adequadas cautelas que o dever geral de prudência determina e que deveria ter adoptado nas supra descritas circunstâncias, de modo a evitar o embate no peão e as lesões físicas dele advenientes, por si causadas, e que determinaram o óbito do falecido.

9. Causou assim o arguido, por imprevidência sua, aquele acidente de viação e a morte do falecido; Representou como possível que pudesse provocar um desastre de graves consequências para as pessoas nele intervenientes, embora não se tenha conformado com a sua ocorrência.

      Como facilmente se constata, a matéria considerada assente pelo tribunal a quo nestes pontos da fundamentação de facto da sentença mostra–se claramente conexionada entre si, consubstanciando o essencial da actuação típica criminalmente relevante assacada ao arguido AA, na medida em que caracteriza os termos da violação do dever de cuidado por parte do mesmo e a causalidade adequada de tal violação relativamente ao resultado danoso que veio a verificar–se.

      Assim, e pese embora por parte do recorrente AA apenas se mostre especificadamente impugnado o julgamento do ponto 7. da matéria de facto, a coerência e completude do exercício de impugnação em causa mostra–se assegurado por via do recurso da demandada “A..., S.A.”, que procede à alegação de erro de julgamento com relação a toda a factualidade aqui em causa.

      A argumentação do recorrente/arguido AA nesta parte é, afinal, aquela já acima enunciada – porque efectuada conjuntamente para os pontos 5. e 7. –, isto é, alega o recorrente ser impossível determinar, porque nenhuma testemunha presenciou os factos, o modo concreto como o ofendido BB invadiu a faixa de rodagem, mormente se o fez em passo lento ou apressado, bem como, se o arguido já havia iniciado a marcha ou se a iniciou no momento em que o ofendido se encontrava em frente ao veículo.

      Na vertente mais directamente relacionada com o teor do ponto 7. da matéria de facto provada, propugna, pois, o recorrente não resultar da prova produzida que da parte do arguido/recorrente AA tenha existido uma violação de dever de cuidado causal ao acidente verificado.

      No mesmo sentido se orienta a alegação da recorrente/demandada “A..., S.A.”, considerando que da prova nos presentes autos – designadamente do depoimento do arguido AA e do teor fl. 7 do Apenso (confirmado pela testemunha CC – resulta antes que o acidente ocorreu pela falta de cautela e imprevidência do ofendido/falecido BB, o qual, naquela situação de trânsito, tendo em conta que fez a travessia a cerca de 11 (onze) metros da passadeira e em frente a um veículo de pesados sem que fosse visível para o arguido, deveria abster-se de atravessar pelo local que o fez.

      Uma nota prévia, antes de prosseguir, para adequadamente delimitar o âmbito das impugnações recursórias nesta parte, e da correspondente decisão a que as mesmas apelam.

A impugnação dos recorrentes nesta sede não se dirige, pois, a dirimir graus de intensidade da violação dos deveres de cuidado que no caso impenderiam sobre cada um dos intervenientes no acidente em causa – isto é, o arguido/condutor, e o ofendido/peão –, mas sim tem por objecto a invectiva à decisão tribunal a quo de não excluir inteiramente que tal violação haja existido da parte do primeiro (arguido).

Ou seja, aquilo que os recorrentes propugnam é que em sede de fundamentação de facto não resulte assente que o arguido haja, de todo, violado qualquer dever de cuidado que tenha contribuído para causar o acidente dos autos.

      Isto dito, prossigamos.

      Em sustento da sua alegação remete a recorrente “A..., S.A.” desde logo para trechos das declarações prestadas pelo arguido AA na sessão da audiência de julgamento do dia 16/05/2023 (gravadas cfr. ficheiro refª 20230516143908_16267214_2871500), os quais transcreve pela seguinte forma :

– ao minuto 00’15” :

Arguido: Eu seguia em situação de pára-arranca e de facto naquele momento instantâneo não olhei para o espelho, de facto, nada me fazia prever que alguém ia passar de forma a não ser visto. O camião é alto e, portanto, não dá para ver (..) e naqueles instantezinhos de arranque eu ouvi (e por isso é que parei) ouvi alguém a berrar «pare, pare», parei do meu lado direito e eu pensei que nem era comigo (...), mas «pare, pare, não ande mais!» e vi aquilo...

– ao minuto 02’30”:

Juíza: Há quanto tempo conduzia este camião?" Arguido: "Este camião conduzia sensivelmente há dois anos

Juíza: E era funcionário desta empresa há quantos anos?

Arguido: Nessa altura? Nessa altura, ora foi em 2020, portanto há 19 anos. Entrei em 2001

Juíza: Sempre como motorista?

Arguido: Sempre como motorista.

– ao minuto 03’38”:

Juíza: O senhor circulava normalmente naquela artéria ou não costumava circular ali?

Arguido: Já lá tinha passado várias vezes, tinha.

Juíza: Mas não era um percurso que fizesse semanalmente, pergunto eu, ou era?

Arguido: Portanto a gente tinha aquela obra perto da câmara ..."

Juíza: Tinha uma obra junto da câmara?

Arguido: Tinha, tinha.

– ao minuto 04’42”:

Juíza: Aqui diz que o senhor estava, pronto, que imobilizou o seu camião junto do 896, estava a certa de 11 metros do semáforo. "

Arguido: Sim, foi a Autoridade que mediu e chegaram a essa conclusão.

Juíza: Neste semáforo há passadeira? Há travessia para peões?

Arguido: Sim, sim, sim.

– ao minuto 08’51”:

Juíza: Agora diz aqui que o veículo que o senhor conduzia é dotado de um espelho auxiliar frontal na parte superior direita do pára-brisas. Ora explique-me lá que espelho é este?

Arguido: Portanto, no exterior da cabine, à direita, no cantinho do lado direito, tem um espelho

Juíza: Qual é o uso, ou melhor, qual é a função, qual é a razão, ou quando é que o senhor habitualmente ou para que é que o senhor usa habitualmente esse espelho exterior?

Arguido: Portanto, esse espelho ajuda-nos muito em obra, dentro de obra. A gente anda ali em obra, há pilares, há isto, há aquilo, há trabalhadores e, portanto, em estacionamentos, em lugares apertados que a gente tem que aproveitar. Então aquele espelho a gente verifica que vai até... usamos muito esse espelho nestas condições: em estacionamento, e depois estamos parados algum tempo e olhamos para o espelho, por exemplo, se for perto de uma passadeira. De facto, em estrada, com uma condução como aquela a gente olha para ele, não há dúvida, mas não é àquele espelho que tem necessidade de estar sempre a olhar.

Juíza: E esse espelho, senhor AA, o que é que lhe permite ver? Permite ver a frente toda do camião?

Arguido:     Sim, vejo.

Juíza: E lateralmente? Permite ver alguma coisa? Alguma parte?

Arguido: Para os lados não permite ver... "

Juíza: Permite-lhe ver a frente mesmo até ao próprio camião?

Arguido: Sim, sim.

Juíza: O senhor há bocado explicou-me que lá em cima do camião, uma pessoa que esteja em pé o senhor só a consegue ver se fizer 1 metro e...

Arguido: 1 metro foi medido pelo polícia, 1 metro e tal.

Juíza: Mais de 1 metro à frente do camião?

Arguido: Mais de 1 metro à frente do camião.

Juíza: Uma pessoa que esteja encostada ao camião, o senhor só a consegue ver se... ?

Arguido: Se olhar para lá.

Juíza: Se olhar para lá, certo.

– ao minuto 11’03”:

Juíza: A acusação diz que realmente ele ficou...fícou esmagado debaixo da roda do lado esquerdo, da roda da frente do lado esquerdo. O senhor não se apercebeu de nenhum momento de embater em nada?

Arguido:     Nada, Sra. Dra., nada... Se não fossem as pessoas a falar eu andava sempre.

– ao minuto 13’44”:

Procuradora: Olhe, este senhor, de acordo com o que disse, bem disse que não o viu a passar, mas disse que viria da sua direita para a sua esquerda.

Arguido: Sim, porque depois o pessoal disse que ele atravessou ali...

Procuradora: Ou seja, ele já teria passado o veículo quase inteiro quando... estaria a concluir a passagem.

Arguido: Pois.

Procuradora: Então o senhor estava parado, estava parado no momento em que ele estava a passar. No momento em que ele passou... a frente do veículo tem quantos metros?

Arguido: Dois, mais ou menos dois.

Procuradora: No momento em que ele concluiu, que também serão dois passos, o senhor estava parado nesses momentos…

(…)

Procuradora: O senhor mal iniciou a marcha, disseram-lhe logo «páre», parei"?

Arguido:     Mal comecei a andar disseram «páre», parei. Mas eu estava a olhar para o carro à minha frente e eu nem pensei que fosse comigo...

Procuradora: E o senhor, quando começa a andar com aquele veículo, não costuma olhar para aquele espelho?"

Arguido: Sra. Dra., se estivermos muito tempo parados, costumamos olhar, mas naquele sítio nada me fazia prever... o semáforo aberto para nós, para o trânsito, os carros andam, eu ando, param, eu paro, eu naquela situação de condução... não há outra forma de dizer. Eu ia a olhar, começaram a berrar e eu pensei «não bati em ninguém, porque é que vou parar? Então tens cedência, espera aí...» e vi aquilo.

      Depois, remete ainda para o teor do Aditamento nº1 junto a fl. 17 do Apenso, elaborado pela testemunha CC, agente da P.S.P. – que o confirmou em depoimento audiência de julgamento –, e onde o mesmo consigna que «É de realçar que na simulação efectuada, qualquer passagem á frente do veículo pesado numa distância inferior a 1,2m o peão não era visível ao condutor desse mesmo veículo».

      Alega a recorrente “A..., S.A.” – em termos coerentes com a impugnação do arguido – que destes elementos resulta que ao arguido não poderia ser exigida outra conduta, sabendo que estava parado em semáforos, com passadeira para travessia de peões a 11 (onze) metros de distância, não lhe sendo designadamente exigível que esteja constantemente a olhar para todos os espelhos e auxiliares de condução para que tal circulação seja feita em segurança, sendo que o espelho aposto na frente do veículo para ver a parte frontal do mesmo apenas serve para auxílio na realização de manobras e não para circulação corrente.

Donde, é manifesto que o peão/ofendido apenas terá passada junto ao veiculo pesado a menos de 1,20 metros de distância do veículo, o que impossibilita totalmente a visão ao condutor do veiculo pesado pelo que, não pode considerar-se provado que o arguido tenha «condução descuidada e imprevidente (...) tendo o mesmo imprudentemente confiado que, por se encontrar numa fila compacta de trânsito, não se encontravam quaisquer peões à sua frente», ou que «Não adoptou assim o arguido as adequadas cautelas que o dever geral de prudência determina e que deveria ter adaptado nas supra descritas circunstâncias, de modo a evitar o embate no peão e as lesões físicas dele advenientes, por si causadas, e que determinaram o óbito do falecido».

Apreciando se dirá que não assiste razão aos recorrentes.

      Desde logo se dirá que, em bom rigor, dos segmentos de prova assim aportados não resulta qualquer divergência relativamente à decisão do tribunal a quo às circunstâncias em que o arguido estava exercendo a condução naquele momento e lugar, nem quanto às características do veículo conduzido pelo arguido – incluindo aqui a existência (descrita no ponto 3. da matéria de facto provada, e que não se mostra impugnado), aposto no mesmo veículo, de «um espelho auxiliar frontal na parte superior direita do pára-brisas, que permitia ao condutor, e como tal ao arguido, a plena visualização dos obstáculos e dos peões existentes imediatamente à frente do veículo» –, nem tão pouco de que o ofendido atravessou a estrada, da direita para a esquerda (atento o sentido de marcha do veículo) a menos de 1,20 metro da frente do camião, existindo uma passadeira de peões a cerca de 11 metros de distância.

      Tudo isto resulta pacificamente demonstrado, assim como demonstrados sem discussão estão mais três factos:

– primeiro, que o arguido não se apercebeu da presença do ofendido naquele local e efectuando a aludida travessia pela sua frente,

– segundo, que o ângulo de visão possibilitado pelo aludido espelho desde o interior da cabine de condução, permite ver toda a parte da frente do camião não visível directamente pelo condutor,

– e terceiro, que o arguido, antes de retomar a marcha naquela situação de trânsito em pára–arranca, não olhou para o aludido espelho.

      Nada disto vindo em bom rigor discutido – porque revelado ex abundante desde logo por via dos exactos elementos de prova enunciados pelos recorrentes, máxime o depoimento do próprio arguido –, aquilo que na verdade os recorrentes invectivam é o facto de se considerar demonstrado que ao arguido, enquanto condutor daquele veículo, era exigível prever a presença do ofendido efectuando a travessia da estrada naquelas circunstâncias assim demonstradas, e, por isso, se lhe era exigível que, antes de retomar a marcha, olhasse para o aludido espelho para se certificar de que tinha espaço livre à sua frente para o fazer.

      Pois bem, e começando por retomar as dúvidas que o recorrente AA suscita quanto à possibilidade de o ofendido ter iniciado aquela travessia junto à frente do veículo do arguido já depois de este haver retomado a sua marcha – o que reduziria quase na íntegra a exigência de que o arguido pudesse controlar através daquele espelho a parte da frente da sua viatura já em marcha –, não só já acima se disse que tal hipótese se mostra desconforme com elementares regras lógica e de experiência comum (pois seria uma manobra radicalmente temerária por parte do ofendido), como se julga que o depoimento do arguido, por referência tão apenas às partes supra transcritas, confirma a inviabilidade de tal haver sucedido.

      Na verdade, e como se constata, o próprio arguido, ao descrever os factos, refere que «naqueles instantezinhos de arranque eu ouvi (e por isso é que parei) ouvi alguém a berrar» e «Mal comecei a andar disseram «páre», parei».

      Reitera–se, pois, quanto nesta parte já acima se enunciou nesta parte.

      Quanto à exigibilidade de prever a presença do ofendido efectuando a travessia da estrada naquelas circunstâncias, e, por isso, de, antes de retomar a marcha, olhar para o aludido espelho para se certificar de que tinha espaço livre à sua frente para o fazer, crê–se que também bem decidiu o tribunal a quo, assentando essa conclusão, aliás, desde logo no próprio depoimento do arguido – referindo que o mesmo «Admitiu que sentado no local do condutor do veículo pesado que conduzia há uma faixa frontal de cerca de 1,20 metros que não é visível, medição efectuada pelo Agente da P.S.P. CC, e documentada no aditamento de fls. 17 do Apenso A, e que o espelho exterior permite ver essa frente do camião», e que «confessadamente admitiu não ter olhado para o espelho exterior, aqui radicando a sua atitude imprevidente e de inobservância dos cuidados que se lhe impunham».

      É que, salvo o muito devido respeito, a crítica dos recorrentes labora numa omissão determinante para a solução que aqui se crê dever prevalecer. Na verdade, não estamos aqui perante uma mera travessia de um peão pela frente de um veículo em trânsito normal, mas sim de uma travessia de um peão que, mesmo considerando haver sido efectuada também de forma descuidada – o que resulta igualmente da matéria de facto provada e vem a reflectir–se na decisão jurídica criminal e indemnizatória –, ocorre pela frente daquele concreto veículo, com aquelas concretas características, em trânsito naquela concreta situação de pára–arranca.

      Ora, como bem assinala o tribunal a quo em sede de motivação, a questão essencial aqui é saber «se era exigível ou não, que o arguido antes de iniciar a marcha do camião tivesse olhado para o espelho exterior frontal».

Dito de outro modo, a utilização daquele espelho, naquelas circunstâncias de momento e lugar, é o instrumento que no caso permite sustentar a exigência de cuidado imposta ao arguido na situação em causa, porque tal utilização – aliás, apenas tal utilização – lhe permitia verificar se não estava ninguém em frente do camião, e no espaço não visível a si como condutor, no momento em que retomou a marcha. É nesse contexto que surge o espelho, como instrumento específico que viabilizava o cumprimento desse especifico dever de cuidado.

      E é o próprio arguido quem, como constatamos, acaba admitindo que o deveria e poderia ter feito – e que não o fez.

      Muito ao contrário do alegado pela recorrente “A..., S.A.”, não estamos no concreto caso perante uma situação em que se exija ao arguido «que esteja constantemente a olhar para todos os espelhos e auxiliares de condução para que tal circulação seja feita em segurança, sendo que o espelho aposto na frente do veículo para ver a parte frontal do mesmo apenas serve para auxílio na realização de manobras e não para circulação corrente» – estamos sim perante uma situação em que naquelas circunstâncias essa exigência se impõe : o que era exigível ao arguido não era que, já em marcha, fosse a conduzir e a olhar em permanência para aquele espelho ; o que lhe era exigível, sim, era que olhasse para aquele espelho, naquele momento em que ia retomar a sua marcha – pelo singelo motivo de que não era para si visível directamente o espaço de pelo menos 1,20 metro à frente do veículo, e o espelho permite ver exactamente esse espaço.

      A proposta configuração alternativa da matéria de facto que os recorrentes pretendem dever impor–se nesta parte passaria por desconsiderar que aquele específico veículo conduzido pelo arguido é uma viatura cuja visibilidade para a sua frente – isto é, no crucial sentido da sua marcha efectiva – apenas se inicia pelo menos 1,20 metro à frente do próprio veículo.

      A desconsideração em que assim erradamente laboram os recorrentes evidencia–se nomeadamente quando a recorrente “A..., S.A.” alega, em sustento da sua argumentação que «Basta imaginar, a título de exemplo, qualquer condutor numa circulação automóvel ao circular junto a uma escola primária deve sempre acautelar a sua circulação por poder ser possível que uma criança de forma descuidada faça a travessa da estrada. Não temos dúvidas. Mas se parar num semáforo junto a uma escola não tem que, antes de iniciar a marcha, abrir a porta para ver se alguma criança está a tirar uma bola ou brinquedo que inadvertidamente tenha caído para debaixo do seu veículo antes de iniciar a marcha. Essa não é a normalidade da vida real. Não pode ser exigível ao arguido que antes de iniciar toda a marcha do veículo em causa nos autos tenha de olhar para todos os espelhos e até fora da janela do veículo para evitar o inesperável».

      Tem toda a razão.

      Mas se a criança do exemplo estiver a atravessar a estrada, ainda que descuidadamente, num espaço de até 1,20 metro de distância do veículo, alguma dúvida se coloca quanto a ser exigível ao condutor do veículo em causa não reiniciar a sua marcha se o não puder fazer em segurança? Nenhuma dúvida, julga–se.

      Então porque é menos exigível ao arguido, naquelas circunstâncias, e conduzido aquele veículo, antes de reiniciar a marcha, certificar–se – tendo um instrumento regulamentarmente destinado especificamente a isso mesmo – que até tal distância, e por isso num espaço que não lhe é visível directamente, não se encontra alguém ?

      As especiais características do veículo conduzido pelo arguido na altura, em termos de altura da cabine de condução e, por isso, do ângulo de visibilidade que da mesma se tem para a sua frente, não excluem, de todo, a exigência de o respectivo condutor, ao reiniciar a marcha, adoptar exactamente os mesmos deveres de cuidado de qualquer outro condutor – pelo contrário, se alguma diferença existe, é no sentido da respectiva acentuação.

      Como vemos referido e admitido pelo próprio arguido quando questionado quanto à utilização do espelho aqui em causa, «e depois estamos parados algum tempo e olhamos para o espelho, por exemplo, se for perto de uma passadeira. De facto, em estrada, com uma condução como aquela a gente olha para ele, não há dúvida, mas não é àquele espelho que tem necessidade de estar sempre a olhar» e «se estivermos muito tempo parados, costumamos olhar».

Ou seja, é óbvio que já em andamento, não é de todo exigível que o condutor daquele veículo vá sempre a olhar para o dito espelho; mas tendo estado parado, e antes de reiniciar a marcha, crê–se que bem decidiu o tribunal a quo ao considerar que o é.

Circunscrever a exigibilidade de utilização daquele espelho a um contexto de facilitar manobras «em obra, dentro de obra. A gente anda ali em obra, há pilares, há isto, há aquilo, há trabalhadores e, portanto, em estacionamentos, em lugares apertados que a gente tem que aproveitar», como referiu o arguido, ou, nessa sequência, alegar que «O espelho que estava na frente do veículo apenas serve para auxílio na realização de manobras e não para circulação corrente», como o faz a recorrente “A..., S.A.”, é uma asserção francamente redutora e, julga–se, não permitida relativamente à crucial utilidade do espelho em causa.

E assim é por dois liminares motivos.

O primeiro de ordem formal e regulamentar, pois que, como muito bem assinala o tribunal a quo em sede de motivação probatória, «As características do veículo conduzido pelo arguido obrigam à colocação de um espelho exterior, enquanto dispositivo para visão indirecta, definidos pelo artigo 2º, al. a) do Decreto-Lei nº 215/2004, de 25/08, como sendo “os dispositivos para observar a área de circulação de trânsito adjacente ao veículo que não possa ser observada por visão directa, podendo ser espelhos convencionais, dispositivos do tipo câmara-monitor ou outros dispositivos susceptíveis de mostrar informação sobre o campo de visão indirecta ao condutor”. Ao exigir a colocação destes espelhos, o legislador vem dar a possibilidade ao condutor deste tipo de veículos de se certificar de que pode colocar os mesmos em marcha em segurança, sem colidir com nada nem com ninguém. Uma posição de condução que impede de ver cerca de 1,20 metros para a frente do veículo, exige um cuidado e segurança acrescidos que é dada pela colocação do espelho e pelo uso que necessariamente tem de ser feito do mesmo».

E o segundo de ordem lógica e de elementar bom senso: tal proposta deixa completamente por explicar por que estranho e indecifrável motivo a utilização do espelho em causa seria um instrumento essencial para evitar colisões e acidentes em cenário de obras e manobras, mas já em cenário de circulação rodoviária deixaria de ter similar relevância.

Já quanto à imprevisibilidade de naquelas circunstâncias surgir alguém atravessando a estrada pela frente do aludido veículo, e fora de uma passadeira de peões situada a cerca de 11 metros, crê–se efectivamente que não se trata, de facto, da ocorrência mais expectável para um condutor automóvel.

Porém, daí a tratar–se de um evento com as características de absoluta imprevisibilidade pela qual pugnam radicalmente – nesta sede dos respectivos recursos – os ora recorrentes, vai uma larga distância.

Reitera–se que não estamos, nesta sede, a debater graus de intensidade da violação dos deveres de cuidado que no caso impendiam sobre cada um dos intervenientes no acidente em causa (o arguido e o ofendido), mas sim, sob proposta dos recorrentes, a sindicar a decisão tribunal a quo de não excluir inteiramente que tal violação haja existido da parte do arguido/condutor.

Ora, como claramente deflui da matéria de facto provada, e decorre sem qualquer divergência de todos os elementos de prova recolhidos nos autos – bastando, para o confirmar sem a mais ténue dúvida, atentar na reportagem fotográfica junta a fls. 43 e segs. dos autos principais (e melhor visível ainda na versão original de fls. 21 e segs. do Apenso) –, o local onde os factos ocorreram situa–se no centro urbano da cidade do Porto, sendo uma via com permanente circulação de veículos e de peões.

É totalmente imprevisível para um condutor que, numa zona de quarteirões de prédios de habitação também com lojas comerciais térreas, estando a circular numa fila de trânsito e em situação de pára–arranca, alguém atravesse a via por entre os veículos, mesmo tendo uma passadeira a poucos metros de distância?

Julga–se claramente que não, e também não decorre dos elementos probatórios invocados qualquer imposição de sinal oposto.

Pelo contrário, além da aludida reportagem fotográfica, decorre das próprias declarações do arguido que o mesmo conhecia perfeitamente o local e as suas características tipicamente urbanas, pois que, desde logo por motivos profissionais, já tinha passado várias vezes.

A conclusão do tribunal a quo de que tal circunstância não era completamente imprevisível para o arguido assenta, pois, em elementares regras de lógica e daquilo que ensinam liminares regras de experiência atinentes a contextos situacionais semelhantes.

      Concluindo nesta parte, e por reporte a ambos os recorrentes, não se considera verificado qualquer erro de julgamento quanto aos pontos e aspectos da matéria de facto da sentença impugnados pelos recursos.

Como já se assinalou, não poderá falar–se em erro de julgamento nos termos e para os efeitos prevenidos no art. 412º do Cód. de Processo Penal, quando o caminho de convicção trilhado pelo tribunal de primeira instância não ofenda as regras da experiência comum, e quando, no âmbito da imediação e da oralidade, enquanto ferramentas essenciais nesse seu exercício de julgar, o mesmo tribunal fundamente racionalmente os factos dados como provados com base nos vários elementos probatórios, derivados de provas directas ou indirectas, devidamente conjugados entre si.

Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16/03/2005 (proc. 05P662)[[7]] «O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular – a fundamentação em matéria de facto –, mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito. (…) O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos de credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção».

Foi exactamente aquilo que o tribunal a quo aqui fez, laborando no âmbito de um exercício de indagação incidente sobre vários elementos probatórios e de exame crítico dos mesmos.

Aliás, e também nesta perspectiva, os elementos de prova que vêm referenciados pelos recorrentes não permitem inquinar a leitura que o tribunal a quo fez da prova produzida (ou seja, não se demonstra, como seria necessário, a existência de prova que imponha decisão diversa) : é patente que todos os elementos e segmentos de prova invocados pelos recorrentes foram devidamente ponderados pela primeira instância, e com relação precisamente à matéria fáctica cujo sentido o recurso pretendia inverter.

Também constatamos, nesta ordem de ideias, que o julgador de primeira instância não emitiu nenhum dado de raciocínio que pudesse sugerir arbitrariedade ou preconceito na decisão, nem tão pouco subverteu, ocultou ou extrapolou o significado de nenhum dado probatório.

Em conclusão, as argumentações expendidas, quer nas motivações, quer nas conclusões dos recursos, não são eficientes para produzir qualquer alteração dos impugnados pontos da matéria de facto provada. As explicações do tribunal nessa parte assentam em critérios de senso comum, estão respaldadas nos princípios da imediação, da oralidade e do contraditório que são característicos da audiência e terá assim de prevalecer a convicção formada sobre aquela divergente convicção dos arguidos acerca do sentido global da prova.

Não se determina, pois, qualquer modificação nos aludidos pontos 5., 7., 8. e 9. da matéria de facto provada, improcedendo, assim, esta parte dos recursos interpostos.


 

3. De saber se na Sentença recorrida violado o princípio do in dubio pro reo.

(questão suscitada pelo recorrente/arguido AA)

No âmbito da sua impugnação da decisão recorrida em sede de matéria de facto, o arguido AA reitera a alegação de que se deverá ter por desrespeitado o princípio in dúbio pro reo.

Não lhe assiste, porém, razão.

O princípio do in dúbio pro reo, como é consabido, traduz–se em que a condenação de uma pessoa pela prática de qualquer crime exige que a convicção positiva do julgador assente numa certeza cujo grau, alicerçado por sua vez em elementos probatórios concretos e seguros o bastante, afaste as dúvidas que razoavelmente possam suscitar–se sobre essa mesma convicção.

Donde, a ter-se por afectado esse exigível grau de segurança e certeza probatória que qualquer condenação penal exige como seu fundamento – maxime quando, por via das circunstâncias ligadas à produção de prova nos autos, se tenha por inquinado o processo de formação da convicção do tribunal na correspondente parte – não será de assacar ao arguido a culpa imputada.

Ou seja, um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido, conforme ensina Figueiredo Dias, em “Direito Processual Penal”, I, pág. 213.

O princípio em causa é, pois, violado quando o tribunal decide contra alguém tendo dúvidas consistentes nesse sentido e em relação à fiabilidade da prova.

Ora, em sede de recurso, a eventual violação desta manifestação do princípio da presunção de inocência plasmado no art. 32º/2 da Constituição da República Portuguesa, deve resultar seja do texto da decisão recorrida (de forma directa e imediata, decorrendo, inequivocamente, da motivação da convicção do tribunal explanada naquele texto), seja porque o tribunal considerou assentes factos duvidosos desfavoráveis ao arguido mesmo que não tenha manifestado ou sentido a dúvida, mesmo que não a reconheça (isto é, quando do confronto com a prova produzida se conclui que se impunha um estado de dúvida).

Porém, anote–se, o princípio in dubio pro reo, não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua subjectiva interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos – é, antes, uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este dever pronunciar–se de forma favorável ao arguido quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.

Como se escreveu no Acórdão da Relação de Coimbra de 10/12/2014 (proc. 155/13.4PBLMG.C1)[[8]], «a dúvida relevante de que cuidamos, não é a dúvida que o recorrente entende que deveria ter permanecido no espírito do julgador, após a produção da prova, mas antes apenas a dúvida que o Julgador não logrou ultrapassar».

Daqui não resulta, pois, que tendo havido versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes, o arguido deva ser absolvido em obediência a tal princípio. A violação deste princípio pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, da decisão recorrida decorrer, por forma evidente, que se suscita um estado de dúvida quanto à culpabilidade do arguido, e que, apesar disso, o tribunal optou por decidir contra o mesmo.

Ora, in casu – e como, aliás, acaba de se constatar –, o Tribunal a quo não revela haver ultrapassado uma dúvida razoável sobre os factos relevantes à decisão por via de uma decisão desfavorável ao arguido/recorrente.

Como se consignou no Acórdão do S.T.J. de 04/11/1998 (proc. 1415/97)[[9]], «livre apreciação da prova não é, portanto, livre arbítrio ou valoração puramente subjetiva, mas apreciação que, liberta do jugo de um rígido sistema de prova legal, se realiza de acordo com critérios lógicos e objetivos, e, dessa forma, determina uma convicção racional, logo, também ela objetivável e motivável», logo prosseguindo o citado aresto jurisprudencial referindo que «já se vê, assim, que sendo a dúvida que legitima a aplicação do princípio in dubio pro reo, obviamente, a que obsta à convicção do juiz, tal dúvida não pode ser puramente subjetiva, antes tem de, igualmente, revelar-se conforme à razão ou racionalmente sindicável».

Pois bem, manifestamente no caso do recorrente o que o mesmo propugna é pela existência de um desrespeito do princípio aqui em causa por força do estado de dúvida que ele próprio, enquanto sujeito processual, subjectivamente extrai da matéria probatória dos autos, e com base no qual pretende ver substituída a convicção formada pelo tribunal a quo.

Não é isso, porém, como já se afirmou, que determina o funcionamento do princípio in dúbio pro reo aqui propugnado.

E esta instância de recurso, procedendo à ponderação da prova produzida na perspectiva de efectuar o controlo da sua avaliação pelo julgador de primeira instância, e examinando as razões de discordância que são opostas à decisão, constatou não serem procedentes essas razões, não se impondo qualquer estado de dúvida que determine solução diversa daquela que vem adoptada na Sentença recorrida.

Fica, deste modo, afastada a violação do princípio in dubio pro reo invocada pelo arguido AA.

4. De saber se estão reunidos, e em que termos, os pressupostos do crime de homicídio por negligência pelo qual o recorrente/arguido vem condenado, e bem assim do pagamento da a indemnização civil em que a recorrente/demandada foi condenada.

(questão suscitada por ambos os recorrentes – arguido AA e demandada “A..., S.A.”)

      Já em sede de recurso quanto à matéria de Direito, vêm ambos os recorrentes impugnar a decisão adoptada pela sentença – fazendo–o, cada um, na perspectiva que mais directamente lhes reporta.

      Assim, e em apertada síntese, o recorrente AA invoca pelo erro da sua condenação pelo crime de crime de homicídio por negligência, propugnando que, não se demonstrando que da sua parte haja existido a violação de um dever de cuidado que lhe fosse exigível adoptar (atenta a absoluta imprevisibilidade da actuação do próprio ofendido) e que se revele causal ao acidente dos autos, deveria antes a Sentença tê–lo absolvido do dito crime.

      Quanto à demandada “A..., S.A.”, coloca a sua invectiva nesta parte em dois planos sucessivos : num primeiro, pugnando igualmente, e por similares motivos, pelo não preenchimento dos pressupostos típicos de crime de homicídio por negligência pelo qual o arguido AA vem condenado, logo, pela respectiva absolvição e consequente improcedência total do pedido cível contra si deduzido ; num segundo plano, e subsidiariamente – isto é, ainda que daquele primeiro modo não se entenda –, caso se confirme verificada a situação de concurso de culpas que vem decidida, sempre deverá pelo menos ser reponderada a graduação da contribuição da violação dos respectivos deveres de cuidado impostos a cada um dos intervenientes no acidente para a ocorrências do mesmo, fixando–se aquela do arguido em 30% e a do ofendido BB em 70%, invertendo assim a sopesagem que vem decidida.

      Por razões de ordem lógica, e atenta a parcial sobreposição das pretensões recursórias nesta parte, proceder–se–à à análise das questões assim suscitadas de acordo com a sua materialidade.

      Comecemos por analisar quanto respeita à pretensão de absolvição criminal do arguido AA e consequente absolvição da demandada “A..., S.A.” da petição cível.

         O ponto fundamental da reivindicação dos recorrentes neste segmento passa pelo não preenchimento dos pressupostos típicos do crime de homicídio por negligência pelo qual vem o arguido vem condenado.

      Não podem, porém, ter sucesso nesta sua derradeira pretensão.

Sucintamente se dirá que tal reclamação recursória assentava em pressupostos que, como resulta da análise já acima efectuada, não se verificam. Tais pressupostos passavam, naturalmente, pela procedência das alterações pelas quais os recorrentes pugnavam em sede de matéria de facto assente, por via dos recursos em sede de matéria de facto que vinham efectuados.

Era, pois, a inversão do sentido pelo qual os pontos da matéria de facto ali impugnados se mostram considerados na sentença recorrida – no rumo da sua não demonstração –, que sustentaria, a jusante, o não preenchimento dos pressupostos de tipicidade, ilicitude e culpa do crime em causa por parte do arguido, e, consequentemente, da responsabilidade cível da demandada.

Ora, com relação a tais factos vimos já não merecer censura a sentença recorrida, devendo assim ser mantida integralmente a sua decisão quanto a tal matéria. Donde, naturalmente, daí decorre, e tal como decidido pelo tribunal a quo, mostrarem–se ainda e sempre preenchidos pelo arguido os pressupostos típicos do crime de homicídio negligente em causa.

Não deixam de se aditar os seguintes considerandos.

Nesta sede o recorrente AA em particular repristinava grande parte da argumentação recursória antes aventada, designadamente pela recorrente “A..., S.A.”, em sede de impugnação ampla da matéria de facto – ou seja, mostram–se aqui reiterados os termos da alegação segundo a qual não se pode ter por demonstrado que da parte do arguido haja existido a violação de um dever de cuidado que lhe fosse exigível adoptar (atenta a absoluta imprevisibilidade da actuação do próprio ofendido) e que se revele causal ao acidente dos autos.

Isto é, e atalhando caminho para o cerne da alegação recursória, considera o recorrente que não se pode ter por verificado o comportamento que a Sentença imputa ao arguido como causal do acidente, a saber, a violação das normas de início de marcha, tuteladas em especial pelo art. 12º/1 do Cód. da Estrada, onde se estipula que «Os condutores não podem iniciar ou retomar a marcha sem assinalarem com a necessária antecedência a sua intenção e sem adotarem as precauções necessárias para evitar qualquer acidente».

      Porque, como se disse, a argumentação aduzida nesta parte repristina quanto já ficou analisado supra (no ponto 2. da presente decisão), dá–se aqui por integralmente reproduzido tudo quanto ali se exarou, e de onde decorre considerar esta instância que bem decidiu o tribunal a quo ao considerar que da parte do arguido existiu efectivamente a violação do dever em causa.

      Em especial se reitera bem haver decidido o tribunal a quo resultar dos elementos de prova dos autos que as circunstâncias em que se vinha verificando a circulação rodoviária do arguido, configurando embora um contexto de pára–arranca, consubstanciam todavia, e com relação ao concreto momento em que ocorreu o acidente, uma efectiva situação de retoma de  marcha do veículo depois de estar imobilizado algum tempo, e não uma continuidade de andamento fragmentada por uma interrupção de «frações de segundos», ao contrário do alegado. Por isso que, como se disse, era efectivamente exigível ao arguido que adoptasse aquele dever de cuidado, para o que teria de ter recorrido ao instrumento especificamente aposto no veículo para prevenir o risco do perigo aqui em causa.

      Invoca ainda o recorrente AA, citando o Professor Faria Costa, que o que se tem apelidado de «princípio da confiança (rodoviária) (…) segundo o qual, comportando-se um determinado utente da via de acordo com as normas de cuidado impostas na concreta situação, (…), deve poder confiar que o mesmo sucederá com os restantes utentes da via, partindo do princípio que as outras pessoas são seres igualmente responsáveis. Com efeito, o princípio da confiança encontra o seu fundamento material no princípio da auto-responsabilidade de terceiros: se as outras pessoas são também seres responsáveis; se se comportam descuidadamente, tal só poderá afectar, antes de tudo, a sua própria responsabilidade», prosseguindo com a consideração de não ser exigível aos condutores que contem em cada momento com os obstáculos que surjam inopinadamente ou totalmente avessos ao curso ordinário das coisas (imprevidência alheia), sob pena estarmos perante a invocação de um novo princípio, o “princípio da desconfiança” (Professor Figueiredo Dias). Donde., conclui, propender a considerar «absolutamente determinante e causal do acidente a conduta do falecido BB que inadvertidamente e sem se inteirar que o podia efectuar em segurança (nomeadamente, fazendo notar a sua presença e intenção aos automobilistas), procedeu à travessia de uma fila de trânsito por entre 3 faixas de rodagem em movimento».

      Nesta parte, desde logo também se retoma quanto acima já se disse relativamente à alegação da imprevisibilidade da conduta adoptada pelo ofendido como excludente da culpa do arguido – ou seja, da adequação causal do acidente à violação do aludido dever de cuidado pelo arguido.

      É indiscutível quanto decorre da formulação do aludido princípio da confiança em sede de circulação rodoviária, sem o qual, como bem alega o recorrente, o exercício da condução seria quase impraticável.

      Porém, tal princípio tutela a actuação de todos os utilizadores das vias públicas, e não apenas dos condutores automobilísticos.

Como reiteradamente já se assinalou, e ao contrário do que procura inculcar o alegado, o concreto circunstancialismo de facto em que ocorreu o atropelamento dos autos não se traduz numa situação em que o veículo do arguido estivesse em movimento e o ofendido se tenha como que jogado para a frente do mesmo nesse contexto. Donde, tal como o arguido, enquanto condutor, pode ter a expectativa de que um peão não atravesse pela sua frente quanto ele está na iminência de retomar a marcha numa fila de trânsito, também ao peão é reconhecido o direito à confiança de que, antes de retomar essa mesma marcha, o condutor adopte o dever de cuidado de verificar se o pode fazer em segurança – e isso é assim ainda que a actuação do mesmo peão possa revelar–se também ela concomitantemente incauta e, por isso, censurável e culposa.

Se a estas premissas juntarmos quanto já se disse sobre o contexto exuberantemente urbano da localização dos factos, melhor se percepciona que aquela travessia pedonal, por temerária que haja sido, não era um evento com um grau de imprevisibilidade tal que excluísse a obrigatoriedade de o arguido observar o dever de cuidado a que estava adstrito.

Como se resumiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08/02/2023 (proc.168/19.2GTLRA.C1)[[10]], «VI - Para se verificar o tipo de culpa inerente à negligência é necessário que o agente tenha omitido um dever de cuidado que, se tivesse sido acatado, teria impedido a produção de um evento danoso em si previsível. VII - Existe previsibilidade quando o agente podia, nas circunstâncias em que se encontrava e tendo em conta as circunstâncias em que o evento se produziu, ter representado como possível o resultado ocorrido. VIII - A negligência consiste, em qualquer das suas modalidades, na omissão de um dever objectivo de cuidado e de diligência: o dever de não confiar leviana ou precipitadamente na não produção do facto ou o dever de ter previsto tal facto e de ter tomado as diligências necessárias para o evitar. IX - Em matéria de acidentes de viação a tarefa de delimitação do conteúdo do dever objectivo de cuidado está facilitada pela existência de regras da circulação rodoviária cuja infracção é indicadora da violação daquele dever.».

É certo que, no caso, estamos – como bem vem decidido – no campo da designada concorrência de culpas ; mas do que neste ponto se trata é da alegação do(s) recorrente(s) de que tal concorrência não existiu sequer, ou seja, e como alega o arguido, que será antes «absolutamente determinante e causal do acidente a conduta do falecido BB», sopesando assim a contribuição desta última para o mesmo acidente como exclusiva.

      Ora, julga–se fora de dúvida que a violação do caracterizado dever de cuidado por parte do arguido/condutor preenche efectivamente os pressupostos do tipo de ilícito negligente aqui em causa pois que se constata a concreta verificação de um nexo de causalidade adequada entre essa conduta infractora e o resultado danoso – ou seja, e como se consigna no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14/06/2023 (proc. 77/20.2GAVFR.P1)[[11]], «Para que a ilicitude se afirme, é ainda necessário que o resultado típico proibido possa ser imputado à concreta violação do dever objetivo de cuidado pelo agente, em conformidade com as regras da imputação objetiva. Dito de outro modo, é necessário que no dano ocasionado – no caso, a morte da vítima – se possa reconhecer uma concretização típica do perigo criado, assumido ou potenciado pelo agente ao não observar o dever de cuidado a que estava obrigado em razão das regras da experiência ou por força de determinada norma jurídica. (…) Este nexo deve ser conforme aos critérios da teoria da causalidade adequada. Como adverte o Prof. Eduardo Correia (“Direito Criminal”, vol. I, Almedina, 2001, (reimpressão), pág. 258), “(...) para que se possa estabelecer um nexo de causalidade entre um resultado e uma ação não basta que a realização concreta daquele se não possa conceber sem esta: é necessário que, em abstrato, a ação seja idónea para causar o resultado. (...) O processo lógico deve ser o de uma prognose póstuma, ou seja, de um juízo de idoneidade, referido ao momento em que uma ação se realiza, como se a produção do resultado se não tivesse ainda verificado, isto é, o de um juízo «ex ante» (...) segundo as leis, as regras gerais da experiência comum aplicado às circunstâncias concretas da situação.”.

         Embora a circulação rodoviária não consubstancie uma atividade proibida, a mesma oferece uma razoável probabilidade de lesão dos bens jurídicos, designadamente, a vida humana, e é por isso que constitui uma atividade tida como perigosa, afigurando-se o veículo automóvel – especialmente no contexto histórico-social hodierno – como uma "arma" potencialmente letal.

         Para se responder à questão fundamental e decisiva de saber se uma violação do dever de cuidado à qual se segue uma morte, fundamenta, ou não, um homicídio negligente, Claus Roxin propõe o seguinte procedimento: examine-se qual a conduta que não se poderia imputar ao agente como violação do dever de acordo com os princípios do risco permitido; faça-se uma comparação entre ela e a forma de atuar do arguido, e comprove-se então se, na configuração dos factos submetidos a julgamento, a conduta incorreta do autor fez aumentar a probabilidade de produção do resultado em comparação com o risco permitido. Se assim for, existe uma violação do dever que se integra na tipicidade e dever-se-á punir a título de crime negligente. Se não houver aumento do risco, o agente não poderá ser responsabilizado pelo resultado e, consequentemente, deve ser absolvido. [“Problemas Fundamentais de Direito Penal”, Colecção Vega Universidade, 2ª edição, páginas 257/258]».

      Sendo que, como lapidarmente no mesmo aresto se adita e com especial relevância para o presente caso, «Hipóteses de concausalidade (de contribuição culposa de terceiros ou das próprias vítimas para a ocorrência do resultado danoso), não influem no plano dos pressupostos da responsabilidade, relevando, unicamente, no momento da determinação das consequências jurídicas do crime. (…) A concorrência de causas do acidente (e de culpas) não impede, pois, a condenação do arguido/recorrente pelo crime de homicídio negligente. Atenuando a sua responsabilidade, poderá unicamente influir na operação de escolha e medida da pena.».

      É precisamente tudo quanto se crê haver sucedido no caso dos presentes autos.

      O que também já responde a uma derradeira crítica recursória do recorrente AA, qual seja a de que, pese embora a Sentença recorrida admita expressamente existir um concurso de culpas manifesto na produção do acidente, «não esclarece, minimamente, em que medida sopesou o contributo de cada uma das condutas/infracções que identificou em detrimento de outra».

      A ponderação em causa – quer da contribuição da culpa do ofendido para causar o acidente, quer da graduação da atitude descuidada do próprio arguido em si mesma – encontra o seu adequado reflexo na determinação concreta das consequências penais decididas pelo tribunal a quo, sendo que em tal sede se referencia, além do mais, que «Importará, pois, ponderar que o arguido actuou com negligência inconsciente, não chegando sequer a prever a possibilidade de, com a sua conduta, matar outrem; a gravidade das consequências da sua conduta foi elevada uma vez que foi abalado o bem supremo que é a vida e que maior tutela merece no nosso sistema penal. Para a verificação do resultado contribui também o comportamento do falecido que não observou a obrigatoriedade de atravessar a estrada na passadeira existente a cerca de 11 metros do local.».

      E se é certo que, nessa sede – da concretização punitiva criminal – o tribunal a quo não traduz aritmeticamente a graduação em causa, é manifesto que a mesma reflecte quanto vem a considerar–se a jusante, a propósito da determinação do valor devido pela demandada “A..., S.A.” a título de ressarcimento peticionado pelo demandante “Centro Nacional de Pensões do Instituto da Segurança Social, I.P.”, onde expressamente consigna, em representação percentual, que «Sucede que no caso em apreço, entendemos haver concorrência de culpas entre o arguido condutor do veículo pesado de mercadorias e o peão e vítima mortal BB, sendo certo que a contribuição do veículo para a eclosão do atropelamento terá de ser necessariamente maior em face da perigosidade inerente ao próprio veículo e suas dimensões, e ao facto de o arguido reiniciar a marcha do veículo sem ter certificado que o podia fazer sem causar qualquer perigo para terceiros, considerando-se de 70% a contribuição do arguido para a eclosão do embate e de 30% a contribuição do peão (artigo 570º, nº 1 do Código Civil), pelo que a seguradora demandada será responsável pelo pagamento de 70% da quantia peticionada, ou seja, de € 11.509,16 (onze mil quinhentos e nove euros e dezasseis cêntimos).» – sublinhado agora aposto.

      Em suma, e para concluir nesta parte, não pode proceder a pretensão dos recorrentes de reversão da condenação do arguido pela prática do crime de homicídio negligente – e a concomitante pretensão da demandada “A..., S.A.” de exclusão da sua responsabilidade civil no caso.

        

        

      Vejamos agora quanto tange à questão da sopesagem da contribuição de cada uma das concorrentes violações de deveres de cuidado, por parte do arguido/condutor e do ofendido/peão, para o causar do acidente/atropelamento dos autos – questão suscitada pela recorrente/demandada “A..., S.A.”.

      Assim, e como acabou agora mesmo de se verificar, o tribunal a quo, aplicando a regra imposta pelo art. 570º/1 do Cód. Civil – onde se estipula que «Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída» –, veio a considerar que a contribuição do veículo conduzido pelo arguido para a eclosão do atropelamento é maior, em face da perigosidade inerente ao próprio veículo e suas dimensões, e ao facto de o arguido reiniciar a marcha do veículo sem ter certificado que o podia fazer sem causar qualquer perigo para terceiros, considerando de 70% a contribuição do arguido para a eclosão do embate e de 30% a contribuição do peão.

Pelo que, e em conformidade, condenou a seguradora demandada “A..., S.A.” no pagamento de 70% da quantia peticionada (€16.441,66), ou seja, a pagar o valor de €11.509,16.

Alega a recorrente “A..., S.A.” que, naquelas circunstâncias, pese embora o trânsito estivesse parado, ocorreu falta de prevenção da vítima por ter feito a travessia em local inapropriado (a 11 metros de passadeira) e atravessando junto ao veículo pesado sem que fosse visível (directamente, aditamos nós) ao condutor – pelo que o lesado tinha espaço, tempo e visibilidade para fazer a travessia em segurança.

Donde, a conduta descuidada do arguido/condutor do veículo não é facto propício à atribuição da quase totalidade da responsabilidade do sinistro ao mesmo.

Assim, conclui, deve ser pelo menos alterada a graduação de culpas concorrentes para o acidente, atribuindo-se 30% ao arguido/condutor do veiculo seguro, e 70% ao ofendido/peão.

E julga–se que nesta derradeira parte do seu recurso assiste efectivamente parcial razão à recorrente “A..., S.A.”.

Na verdade, e não retirando nem desvalorizando absolutamente nada de quanto fica anteriormente dito, considera–se que a actuação do ofendido BB foi sobremaneira temerária e acentuadamente descuidada, pelos exactos motivos que a recorrente assinala.

Desde logo resulta evidenciado da matéria de facto provada que, também da sua parte, se mostra – como bem realça o tribunal a quo – desrespeitada a regra que, enquanto utilizador apeado das vias públicas de trânsito automóvel, lhe é imposta pelo art. 101º do Cód. da Estrada (inserido precisamente no Título III – Trânsito de peões do citado diploma) onde, especificamente a propósito do “Atravessamento da faixa de rodagem” se determina, no nº1, que «Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respetiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente», aditando com especial acuidade no caso o nº3 que «Os peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando nenhuma exista a uma distância inferior a 50 m, perpendicularmente ao eixo da faixa de rodagem».

Não pode também ter passado despercebido ao ofendido o especial constrangimento que, independentemente da aposição de instrumento técnico e regulamentar apto a supri–lo, afectava a visibilidade directa do condutor daquele específico veículo, com aquelas específicas características físicas, pela frente do qual optou por atravessar, numa situação em que não era também imprevisível que o mesmo pudesse retomar a sua marcha a qualquer instante.

Donde, como nesta parte bem alega a recorrente, afigura–se que o lesado teria tido o lesado tinha espaço, tempo e visibilidade para fazer a travessia de outra forma e em segurança.

Em tal circunstancialismo, e não deixando de dar aqui por reproduzidas todas as considerações efectuadas pelo tribunal a quo e também na presente decisão a propósito da caracterização da violação do dever de cuidado que se impunha por seu turno ao arguido, também o comportamento do ofendido contribuiu de forma acentuada para eclosão do muito infeliz e lamentável evento que é objecto material dos presentes autos – ou seja, também a violação dos deveres de cuidado que incumbiam ao ofendido enquanto peão naquelas circunstâncias, constituiu causa parcialmente adequada do evento danoso ocorrido.

E julga–se que a ponderação e sopesagem da contribuição de cada uma das causas concorrentes aqui em concurso, deverá resultar numa graduação de absoluta equiparação entre ambas, pois que se julga que qualquer delas contribuiu, na mesma e exacta medida, para o acidente dos autos.

        

Assim, e por reporte ao que determina o já citado art. 570º/1 do Cód. Civil, considera–se agora de 50% (cinquenta por cento) a contribuição do arguido/condutor para a eclosão do embate e igualmente de 50% (cinquenta por cento) a contribuição do ofendido/peão para o mesmo.

Pelo que, e em conformidade, sendo certo estarem indiscutidamente assentes todos os devidos pressupostos da respectiva responsabilidade ressarcitória civil, será a demandada seguradora “A..., S.A.” condenada no pagamento de 50% da quantia peticionada (€16.441,66) pelo demandante “Centro Nacional de Pensões do Instituto da Segurança Social, I.P.”, ou seja, a pagar o valor de €8.220,83 (oito mil duzentos e vinte euros e oitenta e três cêntimos).

Assim, e na procedência parcial do recurso da demandada “A..., S.A.”, será de revogar a Sentença recorrida na parte correspondente a tais alterações, substituindo–a pela presente decisão.

Dos efeitos penais da procedência parcial do recurso na parte cível.

Aqui chegados, e constatando–se os termos – acabados de enunciar – da procedência parcial do recurso interposto da Sentença pela demandada cível, cumpre aquilatar dos efeitos de tal decisão no que tange também à parte criminal que é objecto primário dos autos.

Na verdade, e como, a propósito do “Âmbito do recurso”, resulta (na parte que aqui releva) do disposto no art. 402º/2/c) do Cód. de Processo Penal, «Salvo se for fundado em motivos estritamente pessoais, o recurso interposto … Pelo responsável civil, aproveita ao arguido, mesmo para efeitos penais».

Como assinala o Conselheiro Pereira Madeira – em “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, ed. 2014, pág. 1304 –, «O aproveitamento do recurso cível pelo arguido e vice–versa (alíneas b) e c) do nº2 [do art. 402º]), fundamenta–se na circunstância de haver fundamentos comuns à decisão civil e penal, como serão os fundamentos da responsabilidade num e noutro caso».

É precisamente esta a situação aqui configurada, pois que os fundamentos em que se sustenta a pretensão recursória da demandada claramente se justapõem sobre os pressupostos da responsabilidade criminal do arguido e da respectiva punibilidade – não respeitando em exclusivo à causa cível e aos respectivos intervenientes.

Dito de outro modo, é muito claro que a alteração da decisão recorrida reporta aos termos em que se configura e delimita o grau de responsabilidade do arguido na eclosão do evento danoso, e que, tudo, é simultâneo sustento da sua responsabilidade criminal e da enxertada responsabilidade cível da demandada.

Ora, sendo indiscutível – como aliás já acima se deixou evidenciado – que a determinação das penas (principal e acessória) concretas aplicadas ao arguido teve em consideração a ponderação de um grau de culpa do agente diverso daquele que agora deverá prevalecer, naturalmente deverão essas punições concretas ser também alteradas na medida que se tenha por adequadamente correspondente à alteração da graduação em causa ora determinada.

Assim, e isso fazendo, no que diz respeito á pena principal, dando–se desde logo por integralmente reproduzidos os considerandos exarados em sede de decisão recorrida quanto à aplicação in casu (que, note–se, não se mostra objecto de impugnação) dos critérios de escolha e determinação da medida concreta da pena decorrentes dos arts. 40º, 70º e 71º do Cód. Penal – e julgando–se por isso imposta a opção por pena privativa da liberdade –, condena–se agora o arguido AA, pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137º/1 do Cód. Penal, na pena de 7 (sete) meses de prisão.

Pena esta que, nos mesmos e exactos termos consignados em sede de decisão recorrida – que nesta parte se ratifica integralmente –, será suspensa na respectiva execução pelo período de 1 (um) ano, suspensão esta subordinada à condição de o arguido proceder ao pagamento à Associação ... (com sede na Av. – ... ..., ...), no prazo de 10 (dez) meses, da quantia de € 1.000,00 (mil euros).

No que tange à pena acessória, considerando ainda e sempre neste momento decisório as considerações – não discutidas em sede de recurso – explanadas na decisão recorrida quanto aos critérios que in concreto sustentam a respectiva fixação, nos termos do art. 69º/1/a) do Cód. Penal mais se condena agora o arguido AA na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 4 (quatro) meses.

O que, tudo, se decidirá.


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III. DECISÃO

Nestes termos, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em:

1º, não conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido AA.

Custas do recurso do arguido da responsabilidade do recorrente, fixando–se em 3 UC´s a taxa de justiça (cfr. art. 513º do Cód. de Processo Penal e 8º/9 do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último).

2º, conceder parcial provimento ao recurso da demandada “A...–Companhia de Seguros, S.A.”, e, em consequência, revogar a decisão recorrida na parte relativa à condenação cível, substituindo–a pela presente decisão de :

a. julgar o pedido de reembolso deduzido pelo “Centro Nacional de Pensões do Instituto da Segurança Social, I.P.” parcialmente procedente, e, em consequência, condenar a “A...–Companhia de Seguros, S.A.” a pagar–lhe a quantia de €8.220,83 (oito mil duzentos e vinte euros e oitenta e três cêntimos), bem como os respectivos juros de mora legais, absolvendo–a do demais peticionado ;

b. as custas do pedido civil serão suportadas por demandada e demandante na proporção dos respectivos vencimentos.

Custas do recurso da demandada por esta e pela demandante, na proporção do respectivo decaimento (cfr. art. 523º do Cód. de Processo Penal e 527º/1/2 do Cód. de Processo Civil).

3º, revogar a decisão recorrida no que tange aos termos da condenação criminal do arguido AA, substituindo–a pela presente decisão de:

a) condenar o arguido AA pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137º/1 do Cód. Penal na pena de 7 (sete) meses de prisão, cuja execução se suspende pelo período de 1 (um) ano, suspensão esta subordinada à condição de o arguido proceder ao pagamento à Associação ... (com sede na Av. – ... ..., ...), no prazo de 10 (dez) meses, da quantia de €1.000,00 (mil euros), provando tal facto, documentalmente, nos autos ;

b) condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 4 (quatro) meses, nos termos do disposto no artigo 69º, nº 1, al. a) do Código Penal.


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Porto, 24 de Abril de 2024
Pedro Afonso Lucas
Paulo Costa
Raúl Esteves

(Texto elaborado pelo primeiro signatário como relator, e revisto integralmente pelos subscritores – sendo as respectivas assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo da primeira página)

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[[1]] Relatado por Nuno Gomes da Silva, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[[2]] Relatado por Arménio Sottomayor, acedido em https://www.stj.pt  
[[3]] Relatado por Helena Moniz, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf 
[[4]] Relatado por Souto de Moura, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[[5]] Relatados ambos por Simas Santos, e acedidos em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[[6]] Relatado por Pedro Vaz Pato, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[[7]]Relatado por Fernando Chaves, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[[8]] Relatado por Vasques Osório, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[[9]] Relatado por Leonardo Dias, disponível em Col. Jurisprudência – Acs STJ, Vol. III – 1998, p.201.
[[10]] Relatado por Alice Santos, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[[11]] Relatado por Liliana de Páris Dias, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf