REQUERIMENTO DE PROVA
INDEFERIMENTO DE DILIGÊNCIAS
PODERES DO JUIZ
Sumário

I - Seria incoerente e ilógico que o juiz, a quem se concede o poder de conformação do processo e de direção da audiência, estivesse completamente coartado e subjugado à vontade incontestável do requerente, quanto à espécie e amplitude dos meios de prova a produzir e consignados no seu requerimento de prova.
II - Com exceção do rol de testemunhas (cujo úmero a lei limita), quanto às demais diligências probatórias, se ao juiz não fosse reconhecido qualquer papel sindicante e, se necessário, limitador, então estaria encontrado o caminho para o completo entorpecimento da realização da justiça, gerando escolhos inultrapassáveis na coalizão de todos os interpretes para a realização de uma das finalidades mais essenciais do Estado.
III - Embora o tribunal deva, ainda que oficiosamente, ordenar a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigurar necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, competindo-lhe investigar o facto sujeito a julgamento e construir, por si, o suporte da decisão, o pressuposto princípio de investigação sofre naturais limitações impostas pelos princípios da necessidade, da legalidade e da adequação, habilitando o juiz a apreciar e, se necessário, limitar o requerimento de prova apresentado.

Texto Integral

Proc. n.º 1992/20.9T9VFR.P1





Acordam em conferência na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto


I.
Nos autos de processo comum n.º 1992/20.9T9VFR, que correu termos no Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira – Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, por despacho de 15.02.2023 (Ref.ª 125794088), foram indeferidas as diligências probatórias requeridas pelo arguido na sua contestação, no caso a notificação das operadoras Vodafone, Nowo e Meo para informarem a identidade do titular do número de onde terão sido enviadas as mensagens objeto dos autos e, ainda, a notificação da entidade Facebook para informar a quem pertence/é/são utilizador(es) da página identificada.
Ulteriormente e realizada a competente audiência de julgamento, por sentença de 17.11.2023 foi o arguido AA condenado, além do mais:
(i) na pena de 3 meses de prisão, pela prática de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos art.ºs 180.º, n.º 1, 184.º e 188.º, n.º 1, al. a) do C.P.;
(ii) na pena de 8 meses de prisão, pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos art.ºs 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a) do C.P.
(iii) em cúmulo, na pena única de 9 meses de prisão efetiva.

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I.1
Inconformado, veio o arguido interpor recurso interlocutório do despacho suprarreferido e da subsequente sentença (Ref.ª 14338461 e 15492227) referindo, em conclusões, o que a seguir se transcreve:
I.1.1
Do recurso interlocutório
I – Normas Jurídico-Penais que o Recorrente considera incorrectamente aplicadas:
-art. 311.º B n.º 3 do CPP.
-art. 340º, Do CPP.
- art. 2º, da CRP.;
- art. 32º, da CRP.;
- art. 6º, nº 3, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem;
- art. 14º, nº 3, do Pacto Internacional Sobre os Direitos Civis e Políticos.
1- O aqui Recorrente apresentou, oportunamente, contestação, e com o rol de testemunhas requereu diligências pertinentes e adequadas à sua defesa, ao abrigo do disposto no n.º 3 do art. 311.º B do CPP., pelo que não tem aplicação o disposto no art. 340.º do mesmo diploma legal.
2-Sem prejuízo e sem prescindir, as diligências requeridas não se mostram, não obstante, dilatórias, atenta a data agendada para a realização da Audiência de Discussão e Julgamento, nem inúteis, porquanto, não obstante dos Autos resultar, como discorre do douto despacho de fls., a apreensão do telemóvel ao Arguido, tal não significa, que o mesmo seja sua propriedade, nem tão pouco que o perfil de facebook utilizado tivesse sido criado ou fosse utilizado por este. Igualmente, não são inadequadas, de obtenção impossível, nem duvidosas.
3-Entende, assim, o Recorrente, que o indeferimento das diligências em questão, restringe, gravemente, as garantias de defesa, impostas pelas normas constitucionais e internacionais e inerentes ao estatuto de qualquer arguido.
Acresce que, não garante, de todo, um processo justo, equitativo e próprio de um Estado de Direito.
NESTES TERMOS, Deve o presente Recurso ter provimento e, em consequência, ser revogado o despacho de fls.., com o que se fará JUSTIÇA!

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I.1.2
Do recurso da decisão final
1.º Requer-se a apreciação do recurso apresentado em 22/02/2023, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos, por nele se manter interesse.
2.º Considera o aqui Recorrente que foram violadas os seguintes normativos:
- art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPP;
- art. 32º, da CRP.;
- art. 180º, nº 1, 184º e 188º, nº 1, al. a) do CP;
- art. 153º, nºs 1 e 155º, nº 1, al. a) do CP;
- art. 14.º, do CP.
3.º Os elementos probatórios constantes dos Autos afiguram-se manifestamente insuficientes para imputação ao aqui Recorrente dos crimes em que foi condenado.
4.º Em primeiro lugar, porque não ficou comprovado que o telemóvel em crise, pertencesse ao Recorrente ou que estivesse na posse do mesmo,
5.º Em segundo lugar, não resultou demonstrada a Autoria dos factos constantes da Acusação de fls.. isto é que tenha sido o aqui Recorrente a redigir e remeter as enunciadas mensagens.
6.º Na verdade, e perante tais fundadas dúvidas o digno representante do Ministério Público, já em sede de audiência de julgamento, de 09/10/2023, viu-se “forçado” a requerer provas adicionais, nos seguintes termos:
7.º A valoração da prova não se mostra compatível com o contexto sócio-económico do Arguido, sendo consabida a adição a estupefacientes, não só por parte do mesmo, mas também de outros que com ele coabitavam e ali tinham liberdade de movimento e acesso,
8.º Acrescendo que, as declarações do Ofendido de per si, não são passíveis de fundamentar uma condenação, designadamente quando as mesmas se baseiam em constatações, que podiam e deveriam ter sido demonstradas com base em outros elementos probatórios.
9.º Pelo exposto, os factos constantes dos pontos 1.º, 3.º, 4.º e 5.º, dos factos provados, deveriam ter sido dados como não provados, por ausência de prova cabal dos mesmos, ou caso assim não se entenda, sempre a decisão seria a mesma, ao abrigo do princípio do in dúbio pro reu, que expressamente se invoca, enquanto vertente do princípio constitucional da presunção de inocência (art. 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP).
10.º Mais considera, o aqui Recorrente que a sentença “a quo” padece de nulidade, por se afigurar ocorrer contradição insanável da fundamentação, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, al. b), do C.P.P.. Ora, por um lado, afirma que “tendo em conta o que supra se disse, também esta conduta do arguido não integra a agravação contida na alínea a) do nº 1 do artigo 183º do Código Penal, uma vez que o arguido não praticou a ofensa através de meio que facilitasse a sua divulgação, uma vez que, se trata de um chat de conversas privadas. Certamente que o arguido não saberia que estava sob escuta.”, sublinhado nosso, mas por outro considera que o aqui Recorrente actuou com dolo.
11.º Dando por assente que fora o Recorrente a redigir e remeter tais mensagens, o que se admite por mera hipótese académica, não se poderia concluir que alguma vez imaginasse que, as mesmas, iriam chegar ao conhecimento do Ofendido,
12.º Não podia, pois, o Tribunal “a quo” dar como provados os pontos 7.º a 10.º, dos factos provados, uma vez que nenhuma prova directa ou indirecta permitiria retirar tal conclusão.
NESTES TERMOS,
Deve o presente Recurso ter provimento e, em consequência, ser revogada a sentença proferida, com o que se fará JUSTIÇA!
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I.2
Admitidos ambos os recursos, por tempestivos e legais, o Ministério Público apresentou articulados de resposta (Ref.ª 14460252 e 15591218), pugnando pela improcedência, referindo:
1.2.1
Do recurso interlocutório
No caso em apreço, o arguido foi notificado do despacho de indeferimento de produção de prova no dia 28/02/2023 – cf. ref. 14256371 de 07/03/2023.
Ora, o indeferimento de tais diligências de prova configura uma nulidade por omissão de realização de diligências reputadas essências para a descoberta da verdade (cf. art.º 120º, n.º 2 al. d), do C.P.P.).
Sendo uma nulidade do procedimento está sujeita ao regime de invocação e sanação das nulidades em geral, decorrente dos art.ºs 120º e 121º, do mesmo Código, pelo que tinha de ser invocada no prazo de 10 dias (art.º 105º, n.º 1, do C.P.P.), se outra coisa não resultar do n.º 3 do mesmo art.º 120º, nomeadamente da sua al. a), que impõe que a nulidade deve ser arguida
"antes que o acto esteja terminado", tratando-se de nulidade de ato a que o interessado assista.
Por conseguinte, em primeira linha o recorrente tinha de arguir a referida nulidade no prazo de 10 dias após a notificação do despacho e somente após a decisão que, eventualmente, julgasse não verificada essa nulidade poderia lançar mão do recurso desse último despacho.
E, no caso em apreço, não foi isso que sucedeu.
Ao invés de arguir a nulidade do despacho de indeferimento da diligência de prova no prazo previsto na lei (ou seja, nos 10 dias seguintes à notificação do despacho) e, após a decisão que viesse a ser proferida, recorrer dela, o arguido optou antes por no dia 22/03/2023 interpor recurso diretamente do despacho de indeferimento de produção de prova sem previamente ter
suscitado a arguição da mencionada nulidade desse despacho.
No entanto, em via de recurso apenas devem ser conhecidas as nulidades processuais cobertas por despacho que sobre elas se tenha pronunciado (a não ser que sejam de conhecimento oficioso) o que não foi o caso.
Portanto, a ter sido verificada a referida nulidade a mesma encontra-se sanada porquanto não foi tempestivamente arguida perante o Tribunal da 1ª Instância a fim do mesmo tomar posição expressa sobre ela.
Caso assim não se entenda, sempre se dirá que o recorrente não esclareceu qual a pertinência da realização das diligências requeridas, motivo pelo qual o Tribunal “a quo” não pôde apreciar em concreto qual a necessidade para a descoberta da verdade e boa decisão da causa de tais diligências, já que nada foi alegado a esse respeito na contestação.
Por fim, e subsidiariamente, sempre se dirá que as diligências em causa eram manifestamente irrelevantes e dilatórias pelas seguintes razões:
1. o teor das mensagens descritas na acusação tem de ser analisado no contexto do processo n.º 849/18.8PAESP no qual o ofendido\agente da PSP BB investigava o arguido pela prática do crime de tráfico de estupefacientes;
2. antes da produção de prova em julgamento, o arguido no interrogatório em sede de inquérito disse ser conhecido por “...”, que tinha um filho que é conhecido por “CC” e mencionou que não estava bem de saúde existindo a forte possibilidade de ter escrito o mencionado nos autos;
3. o telemóvel a partir do qual foram enviadas as mensagens foi apreendido ao próprio arguido no processo n.º 849/18.8PAESP e objeto de exame pericial;
4. estando o telemóvel na posse do arguido não é relevante a identificação do titular do número porque era o arguido quem o usava;
5. na criação de um perfil no facebook os dados indicados nesse registo (nome, morada, profissão, contato telefónico, e-mail, etc…) não permitem identificar a pessoa que o criou pois não existe qualquer tipo de controle no que toca à autenticidade da pessoa que criou esse perfil nem daquela que o utiliza (ou seja, numa abertura de um perfil numa página do facebook não é exigível qualquer documento de identificação pessoal como uma cópia do cartão de cidadão); aliás, é o próprio recorrente que no requerimento de abertura de instrução constata essa realidade “qualquer pessoa, com extrema facilidade, abre um perfil de facebook com o nome que pretender (independentemente de esse ser ou não o seu nome verdadeiro)” – cf. pág. 111 (verso);
6. a rede social facebook não responde aos pedidos de cooperação judiciária internacional quando em causa estão delitos que se inserem na pequena criminalidade;
7. a rede social facebook nunca identificaria a pessoa que efetivamente criou o referido perfil, mas apenas os dados que foram introduzidos nessa conta os quais como se referiu não estão sujeitos a qualquer controle quanto à sua autenticidade; quando muito poder-se-ia tentar
identificar o endereço de IP a partir do qual foi efetuado o registo do perfil da página para se saber a identidade do titular do serviço de internet a partir do qual foi realizada essa comunicação; porém, o recorrente não solicitou essa diligência, sendo que a identificação do endereço de IP de uma comunicação apenas fica guardado nas operadoras nacionais pelo prazo de 6 meses1 (tendo já decorrido esse prazo desde a prática dos factos – 11/05/2020); tudo isto sem prejuízo da criação da página do facebook poder ter sido efetuada através do uso de um serviço de internet de um espaço público, de um serviço de internet registado em nome de terceiros ou de um serviço de internet adstrito a um número de telemóvel não identificado ou a um cartão pré-pago.
Face ao exposto, deverá manter-se na íntegra o despacho judicial proferido no dia 15/02/2023, o qual não violou os artigos 340º do C.P.P. e 32º da C.R.P. e, em consequência, ser julgado o recurso improcedente.
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I.2.2
Do recurso da decisão final (conclusões)
I. A sentença recorrida revelou adequadamente e com suficiência como chegou à fixação da matéria de facto provada, tendo apreciado as declarações de todas as testemunhas e conciliando as com a prova documental;
II. O arguido no processo n.º 849/18.8PAESP estava a ser investigado pela prática do crime de tráfico de estupefacientes; nesse processo o seu telemóvel foi objeto de escutas telefónicas que evidenciam que só ele utilizava o telemóvel; o telemóvel foi apreendido no quarto da habitação onde residia; o telemóvel foi objeto de exame pericial do qual resultou a extração de conversas que o arguido teve com terceiros, nas quais ameaçava e difamava o ofendido BB, sendo que este tomou conhecimento do teor dessas palavras;
III. Assistida a prova pessoal em audiência de julgamento conjugada com a prova documental e, depois de efetuada a leitura da sentença que se debruçou sobre ela na fundamentação da matéria de facto, não se pode concluir que o Tribunal “a quo” tenha apreciado arbitrariamente a prova e que se impunha uma decisão diversa;
IV. Não é possível alterar a matéria de facto, ainda que os sujeitos processuais tenham convicções pessoais diferentes sobre a valoração da prova que foi feita;
V. O princípio in dubio pro reo só é desrespeitado quando o Tribunal, colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação das provas, decidir, em tal situação, contra o arguido;
VI. Ora, resulta, de forma lapidar, do texto da sentença que o Tribunal, após ponderada reflexão e análise crítica sobre toda a prova recolhida, obteve a convicção plena, porque subtraída a qualquer dúvida razoável, sobre a verificação dos factos imputados ao arguido e que motivaram a sua condenação, apreciando prova válida e sem contrariar as regras da experiência comum, não tendo por isso ficado num estado de dúvida;
VII. Por conseguinte, não houve erro de julgamento por violação do artigo 127.º, do C.P.P. nem violação do disposto no art.º 32º, n.º 2 da C.R.P.;
VIII. O facto de as conversas do arguido com terceiros terem sido realizadas num chat privado não permitiu dar por assente que esse meio possibilitava que a ofensa fosse facilmente divulgada perante terceiros e, nessa medida, não poderia o arguido ser punido com a agravação prevista no art.º 183º, n.º 1, al. a) do C.P.;
IX. Todavia, essa circunstância em nada invalida o facto de o Tribunal “a quo” ter dado como provado que o arguido agiu com dolo ao dirigir perante terceiros palavras ofensivas da honra e consideração do ofendido bem como ameaças;
X. Por conseguinte, a sentença não padece do vício da contradição na fundamentação da matéria de facto provada, previsto no art.º 410º, n.º 2, al. b) do C.P.P.
Termos em que, deve o recurso interposto pelo ora recorrente ser julgado improcedente e, em consequência, manter-se a decisão recorrida.
V.ª(s) Ex.ª(s), porém, e como sempre farão, JUSTIÇA
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I.3
Neste Tribunal a Digna Procuradora-Geral Adjunta teve vista nos autos, tendo emitido parecer (Ref.ª 17751961) no sentido do não provimento do recurso, na parte atinente ao crime de injúria. No que concerne ao crime de ameaça, refere que se verifica erro notório na apreciação da prova, na parte final do facto 9, não podendo afirmar-se que o arguido agiu com o propósito de amedrontar o ofendido, pois trata-se de factualidade que se não coaduna, segundo a lógica e as regras da experiência comum, com a restante prova colhida, bem como com a factualidade que se deu como provada, no que diz respeito ao modo como a “conversa” chegou ao conhecimento do ofendido, não resultando que fosse previsível para o arguido que o que escrevia chegasse ao conhecimento do ofendido e, muito menos, que o arguido tivesse pretendido que tal acontecesse ou que fosse sua intenção - ao escrever as palavras em causa - assustar o ofendido para, amedrontando-o, condicioná-lo no exercício das suas funções enquanto agente da autoridade.
Conclui referindo que a sentença sob escrutínio deverá ser parcialmente revogada, dando-se como não provado, na parte final do art.º 9 dos factos provados “o que pretendeu e logrou”, passando a absolver-se o arguido da prática do crime de ameaças agravado.
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Deu-se cumprimento ao disposto no art.º 417.º n.º 2 do C.P.P., não tendo o recorrente exercido o contraditório.
Foram os autos aos vistos e procedeu-se à conferência, importando, pois, apreciar e decidir.
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II.
Questões a decidir:
Conforme jurisprudência recorrente e pacífica, o âmbito de qualquer recurso é delimitado pelas conclusões que sobrevêm às alegações do recorrente, sem prejuízo do conhecimento, ainda que oficioso, dos vícios da decisão a que se alude no n.º 2 do art.º 410.º do C.P.P. (cfr. art.ºs 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2 e 410.º, n.º 2, als. a) a c) do C.P.P. e Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, de 19.10).
No caso, vistas as conclusões apresentadas em sede recursória, constitui objeto dos recursos, apreciar:
a) Do indeferimento do requerimento de prova (recurso interlocutório);
b) Dos vícios decisórios;
c) Do erro de julgamento;
d)Da violação do princípio in dubio pro reo.
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III.
III.1
Do despacho recorrido
Quanto ao recurso interlocutório, o despacho recorrido tem o seguinte teor:
Na sua contestação, veio o arguido requerer a notificação:
- das operadoras, nomeadamente, Vodafone, Nowo e Meo, para virem informar os presentes, sobre a identidade do titular do número, melhor identificado nos autos, do qual foram enviadas as mensagens objecto dos presentes; e
- da Entidade Facebook para vir informar a quem pertence/é/são utilizador(es) da página em causa.
Aberta vista ao Ministério Público, este opôs-se à realização das diligências requeridas, porquanto as mesmas não se revelam necessárias à descoberta da verdade e boa decisão da causa.
Cumpre apreciar.
No que tange às diligências probatórias a ter lugar, no decurso da audiência de julgamento, pode o Tribunal determinar quais são aquelas que se mostram necessárias para apurar da verdade material.
Deste modo, apenas devem ser produzidos os meios de prova pertinentes à boa decisão da causa, mas que se coadunam, de igual forma, com um eficaz exercício da acção penal, que não pode resultar comprometido, designadamente, com a irrestrita admissão de todos os meios de prova indicados, mormente, daqueles que se revelam inúteis e entorpecedores do processo.
Deste modo, os meios de prova a produzir na fase de julgamento podem ser dotados, efectivamente, destas características, pelo que se impõe averiguar se a produção dos mesmos não fragiliza a celeridade processuais e se afigura realmente necessária para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa, de modo que pretendem acautelar e assegurar o exercício do direito de defesa.
É também este o tratamento que devem conhecer os meios de prova a produzir e que sejam indicados pelo arguido, na sua contestação, nos termos do art. 311.º B, do CPP, os quais estão, por isso, sujeitos ao regime do art. 340.º do CPP – cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16/11/2016, P.º 204/14.9JAGRD.C1 (www.dgsi.pt).
Deste modo, também quanto a ela, não vigora a tese da irrestrita apresentação de meios de prova, não sendo consentida a realização de diligências inúteis para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, sob pena de frustração da justiça penal.
Ora, ao abrigo do art. 340.º do CPP, impõe-se o indeferimento de requerimentos probatórios cujos meios de prova sejam irrelevantes ou supérfluos, em que o meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidoso, e em que o requerimento tenha uma finalidade meramente dilatória (n.º4), sendo que, em todo o caso, os meios de prova devem mostrar-se necessários à descoberta da verdade e boa decisão da causa (n.º1).
“A prova deve ser considerada irrelevante quando é indiferente, sem importância ou interesse para a decisão da causa; supérflua quando é inútil para a decisão da causa; inadequada quando é imprópria, nada permite demonstrar ou estabelecer, de nada serve para a decisão da causa; de obtenção impossível ou de obtenção muito duvidosa quando é inalcançável ou, segundo as regras da experiencia, improvavelmente alcançável, com finalidade meramente dilatória quando visa protelar ou demorar a audiência.” - assim, MENDES, Oliveira, Anotação ao art. 340.º do CPP, in Código de Processo Penal Comentado, António Henriques Gaspar e outros, 3.ª Edição Revista. Almedina: Coimbra. 2021, p. 1063.
Consequentemente, não tendo sido indicado qual a necessidade para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, que o requerido pelo arguido, na sua contestação, assume, não se vislumbra, por ora, pertinência nas diligências probatórias requeridas, para a descoberta da verdade e boa decisão da causa. Com efeito, já foi apreendido o telemóvel, ao arguido, com o qual este se encontrava e este foi ainda objecto de perícia, da qual se extraíram as referidas mensagens.
A isto acresce que, considerando o conhecimento geral da criação de perfis em redes sociais, como é o caso do Facebook, em que não ocorre qualquer tipo de identificação do titular do endereço de e-mail utilizado para registo, não se vislumbra que a diligência requerida seja susceptível, sequer, de aferir do utilização da página em questão.
Face ao exposto, indefere-se as diligências probatórias requeridas.
Notifique.
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Apreciando.
No entender do recorrente, o mecanismo de controlo judicial inserto no art.º 340.º do C.P.P. - quanto à possibilidade de indeferimento das diligências requeridas em sede de contestação - é inaplicável. Desta sorte, o despacho recorrido não poderia ter indeferido as diligências requeridas com base naquele dispositivo legal.
Ainda que assim não se entenda, acrescenta o recorrente que as diligências requeridas não eram impertinentes, nem dilatórias, pelo que o seu indeferimento restringiu gravemente as suas garantias de defesa, com assento constitucional e supraconstitucional.
Vejamos.
Nos termos do disposto no art.º 311.º-B do C.P.P., na redação introduzida pela Lei n.º 13/2022, de 01.08, “1 – O arguido, em 20 dias a contar da notificação do despacho referido no artigo anterior, apresenta, querendo, a contestação acompanhada do rol de testemunhas, sendo aplicável o disposto no n.º 14 do artigo 113.º. 2 – A contestação não está sujeita a formalidades especiais. 3 – Juntamente com o rol de testemunhas, o arguido indica os peritos e consultores técnicos que devem ser notificados para a audiência, bem como qualquer outra prova que entenda adequada à sua defesa. 4 – Ao rol de testemunhas é aplicável o disposto no alínea e) do n.º 3 e nos n.ºs 7 e 8 do artigo 283.º”.
Por sua vez estatui o art.º 340.º do C.P.P., na parte aqui relevante, que “(…) 3 – Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 328.º, os requerimentos de prova são indeferidos por despacho quando a prova ou o respectivo meio forem legalmente inadmissíveis. 4 – Os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que: a) … b) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas; c) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou d) O requerimento tem finalidade meramente dilatória”.
Por fim importa referir, como premissa da decisão a que nos propomos e ante a posição assumida pelo Ministério Público em sede de resposta, que a decisão do tribunal de permitir (ou não) a produção de prova requerida é recorrível, designadamente com o fundamento de que foi prolatada fora das condições legais, posto que a sua irrecorribilidade não está prevista no art.º 399.º do C.P.P.
Por sua vez, a omissão de produção de meio de prova necessário, quer a sua produção haja sido ou não requerida, constitui nulidade relativa, nos termos da al. d) do n.º 2 do art.º 120º do C.P.P. Quando a omissão ocorre na sequência de indeferimento de requerimento para a sua produção, a impugnação do decidido deve ser feita por via de recurso. Na situação inversa – inexistência de requerimento motivante da ação - o interessado na produção da prova deve arguir a nulidade até ao encerramento da audiência, sob pena de sanação e, fazendo-o, deve interpor recurso da respetiva decisão de indeferimento.
É certo, como decorre da posição assumida na resposta, que já se questionou se antes da interposição do recurso da decisão que, na ótica do interessado, padece de nulidade (não sanada) seria necessário argui-la previamente, ao que o art.º 410.º, n.º 3 do C.P.P. fornece resposta negativa.
Retomando e em análise dirigida à posição do recorrente, entende o mesmo que, sendo o requerimento de prova formulado em fase interlocutória da audiência e no uso de prerrogativa do interessado, seria, no caso, inaplicável o disposto no art.º 340.º, n.º 4 do C.P.P. em subsídio do indeferimento, preceito legal próprio da dinâmica da audiência e dirigido a situações de produção suplementar de prova não contemplada em pretérito requerimento oferecido com a contestação, inibindo, no caso, o juízo de oportunidade/pertinência do julgador.
Discordamos.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque [Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2.ª Ed., em anotação ao artigo 315.º do C.P.P. na redação então vigente, pág. 807, notas 8 e 9] “Com a contestação o arguido pode juntar o “rol de testemunhas” e a lista das demais provas, isto é, os meios de prova e de obtenção de prova cuja produção ou exame são requeridos e os factos que através deles se espera provar. Com efeito, qualquer pedido de produção ou exame de meios de prova e de meios de obtenção de prova deve ser acompanhado da respectiva justificação, isto é, da indicação do facto que se pretende provar, para efeitos do artigo 340.º, n.º 4. É assim durante a audiência e também na contestação. De outro modo, o juiz ficaria impedido de apreciar a legalidade dos meios de prova requeridos e de proferir decisão sobre a sua admissibilidade. As testemunhas não têm, contudo, de ser arroladas com indicação de quesitos ou de perguntas a que devam responder, pois a lei não estabelece limite atinente ao número de quesitos ou perguntas a pôr a cada testemunha” (destacado nosso).
Também no sentido da possibilidade de o julgador poder avaliar da admissibilidade/utilidade/pertinência dos meios de prova/produção de prova requeridos com o oferecimento da contestação se pronunciou o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16.11.2016 [proc. n.º 204/14.9JAGRD.C1, Rel. Maria Pilar de Oliveira, acedido em www.dgsi.pt], aí se podendo ler e que sufragamos:
“(…) A tese do recorrente é no sentido de que o juiz não dispõe de qualquer poder para admitir ou recusar as provas que foram indicadas pelo arguido na contestação, sendo admitidas todas as provas que não forem proibidas por lei nos termos do artigo 125º do Código de Processo Penal.
Convoca nesse sentido o princípio da igualdade de armas, mais invocando a inconstitucionalidade do artigo 315º, nº 3 quando interpretado no sentido de que apenas permite que o arguido apresente rol de testemunhas e indique peritos e consultores técnicos, podendo meramente sugerir outros meios de prova que serão ou não admitidos pelo juiz presidente, por violação do artigo 32º da Constituição.
A questão proposta não dispensa um breve excurso sobre o objecto e finalidades do processo penal em que é manifesta uma tensão entre a necessidade de realizar a justiça criminal (punindo os autores de crimes como meio essencial de defesa e pacificação da vida em sociedade) e de garantir aos suspeitos da prática de crimes efectivas garantias de defesa consentâneas com a total possibilidade de prova da inocência ou de instalar a dúvida sobre a culpabilidade (cfr. artigos 32º, nº 1 e 2 da CRP).
Nos termos do artigo 18º, nº 2 da Constituição a equação está sempre na necessidade de harmonização entre direitos liberdades e garantias e outros interesses constitucionalmente protegidos, admitindo-se as restrições necessárias de uns para salvaguardar outros. Esta filosofia deve determinar tanto as soluções legislativas como a sua interpretação (cfr. Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda – Rui Medeiros, Tomo I, em anotação ao citado preceito).
(…)
É essencial ao exercício da acção penal a liberdade de indicação dos meios de prova que a sustentam, sendo certo que se trata de uma liberdade adstrita ao princípio da legalidade que deve impedir não só a indicação de meios de prova não legalmente admissíveis como de meios de prova inócuos. Mas o que está essencialmente em causa na acusação é a indicação de meios de prova já produzidos no decurso do inquérito (embora a prova oral deva ser (re)produzida em julgamento) e que sustentam a decisão de deduzir acusação, sendo certo que, além desses, pode o Ministério Público requerer a produção de outros, conforme se estipula no artigo 283º, nº 3, alínea f) do Código de Processo Penal.
Mas se a acusação não colher manifestamente apoio nos meios de prova indicados, tem desde logo o arguido a possibilidade de o demonstrar através de requerimento de instrução e conduzir desse modo ao arquivamento do processo.
Também na instrução os meios de prova que o arguido pretenda produzir estão sujeitos a apreciação judicial no sentido da sua utilidade para a decisão, devendo ser produzidos apenas aqueles que forem úteis; relevantes para a decisão instrutória de pronúncia ou não pronúncia (cfr. artigo 291º, nº 1 do Código de Processo Penal).
O que justifica que apenas devam ser produzidos os meios de prova relevantes para a boa decisão da causa é a necessidade do eficaz exercício da acção penal que podia ser seriamente comprometido com a irrestrita admissão de todos os meios de prova indicados, ainda que completamente inúteis e até com objectivo de entorpecer o processo.
A pedra de toque da distinção está, como resulta do exposto, em que os meios de prova que sustentam a acusação foram previamente produzidos e não têm aptidão para entorpecer a celeridade processual, enquanto os meios de prova a produzir na fase de julgamento podem ter essa potencialidade, importando, portanto, produzir apenas os que efectivamente sejam necessários para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.
Ora, desde já adiantamos uma conclusão.
Na indicação de meios de prova inúteis para a boa decisão da causa não se pode encontrar o verdadeiro exercício do direito de defesa e este será sempre perfeitamente acautelado com solução legal que admita a produção dos meios de prova relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, sem que isso represente qualquer compressão inadmissível à luz da constituição. Antes será solução que se impõe pela necessidade de compatibilização do direito de defesa e do efetivo exercício da acção penal.
(…)
Sendo certo que a mencionada disposição legal [art.º 340.º do C.P.P.] se encontra inserida nas disposições da audiência de julgamento, não deixa de ser aplicável a toda a prova que pela primeira vez vai ser produzida e que não se encontra subtraída expressamente a esse regime.
A tese da irrestrita possibilidade de apresentação de meios de prova a produzir na fase de julgamento e que consentiria, portanto, a realização de diligências inúteis para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, poderia conduzir no limite à própria frustração da justiça penal.
E se tanto a prova requerida em julgamento, como aquela a produzir na fase de julgamento e requerida na contestação não podem colidir com o interesse da realização da justiça penal, tanto se justifica a aplicação do disposto no artigo 340º a uma como a outra, sendo decisivo para tal conclusão o teor já salientado dos artigos 283º, nº 3, alínea f) e 315º, nº 3 do Código de Processo Penal.
(…)
Como não se pode vislumbrar o exercício efectivo do direito de defesa em provas não necessárias à descoberta da verdade, cremos ser manifesto que o preceito citado na interpretação pugnada não atenta contra o disposto no artigo 32º da CRP, nomeadamente o disposto no seu nº 1 quando consagra que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa.
Aliás, o nº 2 do mesmo artigo estipula que o arguido deve ser julgado no mais curto prazo compatível com o exercício do direito de defesa, numa clara manifestação constitucional de que não se pode vislumbrar o exercício do direito de defesa no requerimento de provas não necessárias à descoberta da verdade e que tenham como única virtualidade retardar o julgamento. (…)”.
Efetivamente, seria incoerente e ilógico que o juiz, a quem se concede o poder de conformação do processo e de direção da audiência, estivesse completamente coartado e subjugado à vontade incontestável do requerente, quanto à espécie e amplitude dos meios de prova a produzir. A ser com o pretende o recorrente – e se ao juiz não fosse reconhecido qualquer papel sindicante quanto a requerimento de prova oportunamente formulado – então estaria encontrado o caminho para o completo entorpecimento da realização da justiça, gerando escolhos inultrapassáveis na coalizão de todos os interpretes para a realização de uma das finalidades mais essenciais do Estado. Bastaria que qualquer requerente almejasse a produção dos mais amplos e inatingíveis desideratos no espetro da produção de prova, designadamente a obtenção de provas por todo o planeta e junto de quaisquer entidades e sem qualquer envolvimento percetível com o objeto do processo, que ao juiz estaria vedado indeferir, tornando impossível ou insustentavelmente moroso o seu desfecho e inconsequente a prossecução da justiça penal.
Embora o tribunal deva, ainda que oficiosamente, ordenar a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigurar necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, competindo-lhe investigar o facto sujeito a julgamento e construir, por si, o suporte da decisão, o pressuposto princípio de investigação sofre naturais limitações impostas pelos princípios da necessidade, da legalidade e da adequação, princípios que o art.º 340.º do C.P.P. também incorpora e materializa, habilitando o juiz, nos termos já abordados no aresto supra transcrito, a apreciar e, se necessário, limitar o requerimento de prova apresentado.
Como refere Oliveira Mendes [Código de Processo Penal Comentado, 3ª Ed., Almedina 2021, pág. 1062-1063] “A procura da verdade material, tendo em vista a realização da justiça, constitui o fim último do processo penal. O processo penal não é um processo de partes, não existindo o ónus da prova. Por isso, a lei atribui ao tribunal o poder/dever de ordenar, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova que entenda necessários à descoberta da verdade e à boa decisão da causa. (…). O juízo de necessidade ou desnecessidade de produção de prova cabe ao tribunal, ou seja, aos juízes que o compõem, isto é, ao juiz ou aos juízes e jurados, consoante o tribunal que julga a causa. A decisão sobre a necessidade ou desnecessidade da prova, sobre a admissibilidade da prova, pertence naturalmente àqueles que têm de apreciar a prova e julgar a causa. (…)”.
Destarte e quanto ao primeiro segmento da argumentação do recurso interlocutório, seguimos a posição expressa na decisão recorrida, sendo aplicável, in casu, o disposto no art.º 340.º do C.P.P., permitindo ao juiz apreciar a adequação do requerido e a sua conformidade ao objeto do processo.
No que tange ao mérito, em substância, do decidido, entendemos que também aqui não merece censura.
O despacho recorrido considerou que:
“Consequentemente, não tendo sido indicado qual a necessidade para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, que o requerido pelo arguido, na sua contestação, assume, não se vislumbra, por ora, pertinência nas diligências probatórias requeridas, para a descoberta da verdade e boa decisão da causa. Com efeito, já foi apreendido o telemóvel, ao arguido, com o qual este se encontrava e este foi ainda objecto de perícia, da qual se extraíram as referidas mensagens.
A isto acresce que, considerando o conhecimento geral da criação de perfis em redes sociais, como é o caso do Facebook, em que não ocorre qualquer tipo de identificação do titular do endereço de e-mail utilizado para registo, não se vislumbra que a diligência requerida seja susceptível, sequer, de aferir do utilização da página em questão.”.

Ora, o raciocínio expresso, ante os elementos conhecidos e no momento em que foi proferida a decisão, afigura-se-nos perfeitamente razoável e adequado. Não há enquadramento proposto para a relevância do requerido e ante a sua objetividade revela-se, por um lado, irrelevante, tendo em conta que importava determinar a autoria das mensagens, independentemente da titularidade do número emissor, sendo que o telemóvel já fora apreendido, na posse do arguido e subsequentemente analisado e, por outro, são válidas as considerações quanto à possibilidade e utilidade da obtenção da informação pretendida junto da sociedade detentora do “Facebook”.
Por todo o exposto improcede, in totum, o recurso interlocutório que não despojou o arguido de quaisquer garantias constitucionais de defesa.
*

III.2
Do recurso da decisão final
Por facilidade de exposição, retenha-se o teor da sentença, na parte atinente à respetiva fundamentação, nas partes relevantes para a decisão:
(…)
II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
FACTOS PROVADOS
Com relevância para a boa decisão da causa, após realização do julgamento, foram dados como provados os seguintes factos:
1. O telemóvel do arguido AA no âmbito do inquérito crime n.º 849/18.8PAESP foi sujeito a perícia relativamente aos dados constantes no mesmo.
2. Numa conversação por chat, o arguido falava com DD e nessa conversa referiu-se ao ofendido BB.
3. O ofendido é agente Principal da PSP e em Maio de 2020, encontrava-se no exercício de tais funções o que era do pleno conhecimento do arguido.
4. Não obstante, em tal conversa, no dia 11.05.2020, pelas 21h15:39 na aplicação Facebook Messenger o arguido disse ao seu interlocutor: “Eu disse o BB todas as vezes que me fez não me conseguiu apanhar foste logo p meu filho ele não disse nada o boi”.
5. No dia 11.05.2020, pelas 21h18:51 o arguido disse ao seu interlocutor: “Foi se o meu filho for preso vou fazer lhe a cama bem feita vou o porto falar com 3 amigos que tiveram presos comigo metem lhe em coma”.
6. O ofendido veio a ter conhecimento destas palavras no exercício das suas funções e sentiu-se ofendido e com receio que tais ameaças se concretizassem.
7. O arguido AA sabia que não podia proferir as expressões que proferiu relativamente ao ofendido, que foi devidamente identificado na aplicação de chat e o arguido sabia perfeitamente que aquele exercia funções de agente da PSP, encontrando-se na data em causa, no exercício das respectivas funções, bem sabendo que o ofendido assumia tal qualidade e era visado nessa qualidade no texto.
8. O arguido bem sabia que se pronunciava sobre actos próprios das funções do ofendido e ao seu exercício, e com tais expressões, quis ofender, como ofendeu, o respeito e
consideração que lhe é devido por exercer funções públicas e enquanto cidadão, bem sabendo que fez tais afirmações ofensivas da honra e consideração deste.
9. O arguido AA agiu sempre de forma livre voluntária e consciente, e quis com tais expressões significar que pediria ajuda a terceiros e atentaria contra a saúde e mesmo contra a vida do ofendido BB, o que fez com foros de seriedade, deixando-o com receio e medo da concretização de tais intentos e limitando a sua liberdade de autodeterminação pessoal e de movimentos, o que pretendeu e logrou.
10. Ao actuar das formas supra descritas o arguido bem sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal vigente.
11. O arguido está preso no Estabelecimento Prisional ... desde 19.07.2023 e aguarda pela colocação num curso que lhe dará a equivalência ao 5º e 6º ano de escolaridade.
12. Quando em liberdade, o arguido era pescador.
13. O arguido tem três filhos, já maiores de idade.
14. Como habilitações literárias, tem o 4º ano de escolaridade.
15. O arguido já beneficiou da suspensão provisória do processo, por despacho de 14.06.2017, proferido no âmbito do processo 450/17.3T9VFR, 2ª secção do DIAP de Santa Maria da Feira, pela prática de um crime de violência doméstica, com a duração de 18 meses, com início em 28.06.2017 e termo em 28.12.2018, com cumprimento das injunções aplicadas, conforme despacho de 04.02.2019.
16. O arguido já sofreu as seguintes condenações transitadas em julgado:
- PCS nº 550/19.5PAESP, por sentença proferida em 20.01.2020, transitada a 19.02.2020, pela prática em 05.2019, de um crime de violência doméstica, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa por quatro anos, com a obrigação de se sujeitar ao tratamento da sua dependência de consumo de produto estupefaciente.
- PCC nº 849/18.8PAESP, por sentença proferida em 27.04.2022, transitada a 26.10.2022, pela prática em 26.10.2018, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, na pena 6 anos e 9 meses de prisão efectiva;
- PCC nº 849/18.8PAESP.1, em cúmulo jurídico com o processo nº 550/19.5PAESP, por sentença de 14.03.2023, transitada em julgado a 13.04.2023, na pena única de 8 anos de prisão efectiva.

FACTOS NÃO PROVADOS
Inexistem factos provados com relevância para a discussão da causa.

MOTIVAÇÃO
A convicção do tribunal fundou-se na prova produzida em audiência de julgamento e a prova documental junta aos autos, analisada e conjugada, criticamente, à luz das regras da experiência comum e de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. Este princípio tem como único limite à discricionariedade do julgador, as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica e é indissociável do princípio da imediação da prova, que privilegia aperceção direta que o julgador tem da produção da prova, maxime os depoimentos testemunhais prestados em audiência.
A prova produzida tem de ser globalmente analisada e valorada na sua interconexão e também na perspetiva das deduções/presunções que é possível extrair dos factos conhecidos e provados segundo as normais regras da experiência.
Posto isto, o tribunal valorou o depoimento da testemunha arrolada pela acusação que se mostrou credível e isento, os depoimentos das testemunhas arroladas pela defesa, incluindo a mãe do arguido, as quais prestaram depoimentos pouco credíveis, parciais e comprometidos, o teor dos documentos juntos aos autos: o auto de transcrição de fls. 20 a 26; certidão de fls. 35 e ss. e certidão judicial do processo 849/18.8PAESP, junta aos autos no dia 11.10.2023, que inclui o despacho promoção e do despacho judicial que determinou a realização de buscas domiciliárias aos arguidos desse processo de autorização de realização das buscas domiciliárias à residência onde vivia o arguido e certidão do auto de busca e apreensão dos objectos que estavam no interior da residência onde o arguido AA residia ou frequentava.
O arguido, exercendo o seu direito ao silêncio, não prestou declarações em audiência de discussão e julgamento.
Foi ouvido o ofendido BB, agente principal da PSP, a exercer funções na Esquadra ..., que conhece o arguido em virtude da investigação do processo nº 849/18.8PAESP, relativo a um processo de tráfico de estupefacientes, no âmbito do qual veio o arguido a ser condenado.
Esta testemunha prestou um depoimento seguro, espontâneo e verdadeiro, tendo o tribunal acreditado nas suas palavras. Além disso, e como explicou ao tribunal, conhece bem o arguido, por força da sua profissão e iniciou e terminou a investigação que deu origem ao referido processo nº849/18.8PAESP, no âmbito do qual foram interceptadas e transcritas as mensagens aqui em causa nos autos.
Esclareceu, então, que teve conhecimento das expressões e ameaças proferidas pelo arguido, em conversa com outro indivíduo, no chat do Facebook, e dirigidas a si, quando, no âmbito da investigação já mencionadas, recebeu a perícia feita pela Polícia Judiciária ao telemóvel que o arguido utilizava diariamente e que estava registado em nome dele. Este telemóvel foi alvo de escutas, autorizadas pelo Juiz de Instrução, e analisou cerca de 12000 sessões de escutas relativas ao arguido, em que era o mesmo a usar o referido telemóvel.
Mais disse que o telemóvel apreendido e objeto de perícia tinha várias fotos do arguido com dinheiro, armas e droga e inúmeras mensagens da sua autoria trocadas com amigos e clientes.
Além do mais, no âmbito de buscas domiciliárias, foi apreendido em casa dos pais do arguido, onde ele vivia, no seu quarto, não pertencendo, nem à mãe, nem ao pai, sendo que, apenas os três viviam nessa residência.
No que respeita à propriedade ou utilização do telemóvel pelo arguido, as testemunhas arroladas pela defesa, a mãe do arguido e duas amigas, antigas vizinhas, EE e FF, quiseram fazer crer ao tribunal que o arguido nem sequer tinha telemóvel, que era toxicodependente e nem dinheiro tinha, e que várias vezes pediu às vizinhas para lhe emprestarem o telemóvel para contactar a mãe. A testemunha GG, mãe do arguido, confirmou que o filho vivia em sua casa, onde tem um quarto só para ele. Confirmou que esteve presente nas buscas domiciliárias, mas que não sabe onde estava o telemóvel apreendido, nem de quem era; apenas sabe, com certeza, que não é do seu filho AA, ora arguido, o que revela a conveniência e parcialidade do seu depoimento. Ainda acrescentou que o seu telemóvel e do marido não foram apreendidos, sem saber explicar o motivo da apreensão do terceiro aparelho. Esta testemunhas prestaram depoimentos comprometidos, parciais, incoerentes e totalmente inverosímeis, sem qualquer correspondência com a realidade, pelo que, o tribunal não lhes atribuiu credibilidade.
Acresce que, em face das regras da experiência e da normalidade do acontecer, não pode o tribunal acreditar que o arguido, com pouco mais de 40 anos, na actualidade, em pleno século XXI, não tinha telemóvel para utilizar no seu dia a dia, quando qualquer pessoa o tem.
Além do mais, a prova documental constante dos autos, aliado ao depoimento da testemunha Agente BB, contraria a versão da defesa, a qual não encontra sustentação fáctica e legal.
O tribunal valorou, ainda, a prova documental junta aos autos: as transcrições das conversações tidas pelo arguido, o auto de apreensão do telemóvel em causa nos autos, a certidão judicial emitido pelo processo nº 849/18.8PAESP quanto à autorização das buscas domiciliárias na residência e anexos utilizados pelo arguido e do auto de busca e apreensão dos objectos que estavam no interior da residência onde o arguido AA residia ou frequentava, a certidão de fls. 2 e ss. e 35 e ss..
Desta prova, analisada conjuntamente, resulta que o arguido era detentor ou utilizador do telemóvel apreendido no âmbito das buscas domiciliárias autorizadas no processo nº 849/18.8PAESP, que utilizou o mesmo para enviar as mensagens que constam dos autos e acerca do ofendido, a um terceiro, através do chat do Facebook, o Messenger (fls. 24 dos autos), apreensão essa que é legítima, conforme resulta das certidões juntas aos autos em 11.10.2023.
Acresce, como já se disse, o amplo conhecimento desta situação do ofendido BB, que constatou a utilização deste telemóvel pelo arguido durante o tempo que a investigação durou, informando que o mesmo continha dados pessoais do arguido, incluindo fotos suas, conversas com clientes e amigos, o que, tudo conjugado, evidencia claramente que o arguido, se não era o proprietário do telemóvel em causa, pelo menos, era o seu detentor e utilizador diário, estando o mesmo na sua posse.
Face ao exposto, o tribunal não teve dúvidas em considerar provados os factos vertidos na acusação pública.
No que respeita ao elemento subjectivo, foram esclarecedoras as palavras do arguido, que disse, de forma espontânea e séria, que, quando leu estas mensagens, sentiu-se ofendido e ferido na sua imagem e consideração, entendendo que tais palavras denigrem a sua imagem, tanto mais que, todos vivem no mesmo local, desde sempre, e todos se conhecem. Além do mais, e principalmente, sentiu medo e receio, por si e pelos seus, quando leu a ameaça de que foi alvo, esclarecendo que, em virtude das suas funções, investigava o arguido e outros suspeitos, incluindo os filhos daquele, quanto à eventual prática de um crime de tráfico de estupefacientes, facto esse que atribui, além do mais, foro de seriedade às expressões proferidas. O facto de viver no mesmo local, em ..., que o arguido reforça esse sentimento de insegurança e receio pela sua integridade física.
Assim, entende o Tribunal que, coligados, concatenados e analisados os factos objetivos provados e convocando, ademais, as regras da experiência comum e os critérios de normalidade é forçoso concluir pela prova da factualidade expressa em 6 a 10. Como é consabido, dificilmente a comprovação da vontade interna do agente resulta de prova direta, o que apenas ocorrerá quando haja confissão do arguido, o que não aconteceu nos autos. Consequentemente, quando tal confissão não suceda, haverá a mesma de ser extraída lançando mão da prova indireta, lida a partir do comportamento exterior do agente plasmado nos factos objetivos provados, por forma a perceber-se, em face dos mesmos, o modo como o agente se determinou.
No caso concreto dos autos, revisitada a factualidade provada tradutora do comportamento exterior do arguido, não poderá deixar de se concluir que este atuou de forma deliberada, livre e consciente, querendo ofender a honra, o bom nome e a consideração pessoal e profissional do ofendido, bem como, fazê-lo temer pela sua integridade física, o que logrou conseguir. Acresce que, ficou sobejamente provado que o arguido conhecia o ofendido, bem sabendo que era agente da PSP, tendo actuado desta forma, por causa das suas funções. O arguido, apesar de ter um baixo grau de escolaridade, não podia ignorar que, atentas as funções exercidas pelo ofendido, ao proferir tais expressões, por meio de mensagem escrita, ofenderia a sua honra e causar-lhe-ia medo e receio, coartando assim a sua liberdade de movimento e de acção. Não restam dúvidas ao tribunal de que o arguido agiu com dolo directo.
Para prova das condições económicas e sociais do arguido, o tribunal valorou as suas declarações, que reputou de verdadeiras.
Para prova dos antecedentes criminais e da suspensão provisória do processo, o tribunal valorou o teor do Certificado de Registo Criminal do arguido e a pesquisa à base de dados da suspensão provisória de processos crime.
*
(…)

*
III.3
Dos vícios decisórios
Refere o recorrente, como objetivamente violado, o disposto no art.º 410.º, n.º 2, al. b) do C.P.P. – contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
Para tanto, afirma que a sentença recorrida “(…) por um lado, afirma que “tendo em conta o que supra se disse, também esta conduta do arguido não integra a agravação contida na alínea a) do nº 1 do artigo 183º do Código Penal, uma vez que o arguido não praticou a ofensa através de meio que facilitasse a sua divulgação, uma vez que, se trata de um chat de conversas privadas. Certamente que o arguido não saberia que estava sob escuta.”, sublinhado nosso, mas por outro considera que o aqui Recorrente actuou com dolo. Dando por assente que fora o Recorrente a redigir e remeter tais mensagens, o que se admite por mera hipótese académica, não se poderia concluir que alguma vez imaginasse que, as mesmas, iriam chegar ao conhecimento do Ofendido”.
No Parecer apresentado já nesta instância, aponta a Exma. Procuradora-Geral Adjunta para a existência de vício decisório, no mesmo segmento, qualificando-o de erro notório na apreciação da prova.
Vejamos.
Nos termos do art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P. «Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova».
Assim e como decorre expressamente da letra da lei, qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam exógenos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo no julgamento, salientando-se também que as regras da experiência comum “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece” [Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, pág. 338/339], isto é, qualquer um dos referidos vícios tem de existir «internamente, dentro da própria sentença ou acórdão» [Germano Marques da Silva, op. cit., pág. 340].
No caso específico do vício decisório prevenido na al. a), a indicada insuficiência determina a formação incorreta de um juízo porque a conclusão ultrapassa as premissas. A matéria de facto (não os meios de prova que a sustêm) é insuficiente para fundamentar a solução de direito correta, legal e justa, estando, pois, associado à insuficiência da matéria de facto para a decisão.
No segundo caso, o da “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. b) e invocado concretamente pelo recorrente, este consiste na incompatibilidade, de inviável ultrapassagem através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Tal vício ocorre quando um mesmo facto, obviamente com interesse para a decisão da causa, seja julgado como provado e não provado simultaneamente e logicamente anulando-se, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode prevalecer, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
Por fim, o invocado “erro notório na apreciação da prova”, prevenido no inciso da al. c), ocorre quando um homem, medianamente sagaz, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente intui e percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação notoriamente errada, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou inverosímeis.
De igual sorte, aponta-se a ocorrência de erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis [cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 5.ª edição, pág. 61 e ss.].
Trata-se, no caso, de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia pela simples leitura da decisão, e que consiste, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido [cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, op. cit., pág. 74], não se verificando se a discordância resulta apenas da forma como o tribunal aprecia a prova produzida, por desconforme àquela que, na ótica do recorrente, deveria ter sucedido.
No caso sub judice, foi o arguido condenado, além do mais, pela prática de um crime de ameaça agravado, p. e p. pelo art.º153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a), ambos do C.P.
Para tanto refere-se, na parte atinente à matéria de facto provada, além da objetividade das expressões proferidas e imputadas ao arguido, que este “(…) agiu sempre de forma livre voluntária e consciente, e quis com tais expressões significar que pediria ajuda a terceiros e atentaria contra a saúde e mesmo contra a vida do ofendido BB, o que fez com foros de seriedade, deixando-o com receio e medo da concretização de tais intentos e limitando a sua liberdade de autodeterminação pessoal e de movimentos, o que pretendeu e logrou.”.
Em fundamentação do decidido, refere a sentença recorrida que o ofendido “teve conhecimento das expressões e ameaças proferidas pelo arguido, em conversa com outro indivíduo, no chat do Facebook, e dirigidas a si, quando, no âmbito da investigação já mencionadas, recebeu a perícia feita pela Polícia Judiciária ao telemóvel que o arguido utilizava diariamente e que estava registado em nome dele. Este telemóvel foi alvo de escutas, autorizadas pelo Juiz de Instrução, e analisou cerca de 12000 sessões de escutas relativas ao arguido, em que era o mesmo a usar o referido telemóvel”. Adiante refere-se, no que respeita ao elemento subjetivo, que o ofendido sentiu receio e que “Como é consabido, dificilmente a comprovação da vontade interna do agente resulta de prova direta, o que apenas ocorrerá quando haja confissão do arguido, o que não aconteceu nos autos. Consequentemente, quando tal confissão não suceda, haverá a mesma de ser extraída lançando mão da prova indireta, lida a partir do comportamento exterior do agente plasmado nos factos objetivos provados, por forma a perceber-se, em face dos mesmos, o modo como o agente se determinou.
No caso concreto dos autos, revisitada a factualidade provada tradutora do comportamento exterior do arguido, não poderá deixar de se concluir que este atuou de forma deliberada, livre e consciente, querendo ofender a honra, o bom nome e a consideração pessoal e profissional do ofendido, bem como, fazê-lo temer pela sua integridade física, o que logrou conseguir. Acresce que, ficou sobejamente provado que o arguido conhecia o ofendido, bem sabendo que era agente da PSP, tendo actuado desta forma, por causa das suas funções. O arguido, apesar de ter um baixo grau de escolaridade, não podia ignorar que, atentas as funções exercidas pelo ofendido, ao proferir tais expressões, por meio de mensagem escrita, ofenderia a sua honra e causar-lhe-ia medo e receio, coartando assim a sua liberdade de movimento e de acção. Não restam dúvidas ao tribunal de que o arguido agiu com dolo directo.”.
Em operação subsuntiva e a propósito do crime de difamação, refere-se, também, a propósito da aplicação Messenger, que “Esta aplicação permite comunicações instantâneas de texto e imagem em que o usuário/remetente escolhe o “contacto”/destinatário e tem uma clara e legítima expectativa de privacidade, ao contrário do que pode ocorrer em “grupos” alargados ou “páginas” de redes sociais que podem redundar em falta de controle sobre a identidade e número de destinatários e subtrair a tutela da privacidade. Aquelas são, assim, mensagens pessoais que gozam do inerente direito de reserva e confidencialidade. É um canal privado de comunicação, apenas reservado aos respetivos utilizadores, sendo que as mensagens trocadas têm natureza pessoal dessas pessoas e a que outros não podem aceder nem utilizar os seus conteúdos. O Messenger é, pois, uma funcionalidade equivalente a uma comunicação privada, ainda que possa ser enviada a vários destinatários.”.
Prossegue a decisão posta em crime acrescentando “Na conversa tida com terceira pessoa, o arguido, ao utilizar tal expressão, fê-lo com verdadeira intenção de criar um estado de medo no ofendido, bem sabendo que essa ameaça seria levada a sério. E, com efeito, o ofendido, ao tomar conhecimento da mesma, ficou receoso e temeu que o mesmo pudesse concretizar tais intentos anunciados, até porque o arguido o conhece bem, atenta a sua profissão, vivem na mesma localidade (...) e com facilidade o ofendido seria encontrado pelo arguido. Ademais, face às circunstâncias – investigação criminal com alguma gravidade e riscos de o arguido e o seu filho serem presos – maior força adquire a ameaça proferida.
Por isso, tendo em conta a expressão proferida, forçoso é concluir que a ameaça proferida pelo arguido e dirigida ao ofendido, é apropriada, dentro de um critério de razoabilidade próprio do homem médio ou comum, a criar um estado de medo no mesmo.
Mais ainda, é indiscutível que a expressão em causa consubstancia uma ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos, designadamente o crime de ofensas à integridade física qualificada ou até um crime de homicídio.
Por fim, ficou provado que o arguido quis ameaçar o ofendido, da forma que o fez, e causar-lhe medo, o que logrou conseguir, fê-lo de livre e espontânea vontade e com consciência de que agia contra a lei, bem sabendo tratar-se de um agente da PSP e que, inclusive, fazia parte da equipa que investigava o arguido e outros pela suspeita da prática de outros crimes”.
De todo o exposto resulta que o Tribunal a quo entendeu, ante o silêncio do arguido e face à objetividade dos factos, que o mesmo quis, efetivamente, criar um estado de inquietação no ofendido, dando a entender que poderia efetivamente atentar contra a sua integridade física ou mesmo contra a sua vida.
No entanto e quanto ao meio utilizado pelo arguido para se expressar, o Tribunal caraterizou a aplicação Messenger como equivalente a um dispositivo que permite a manutenção de uma comunicação privada e que aquelas expressões, notadas de intimidatórias, foram proferidas no âmbito dessa mesma comunicação privada mantida entre o arguido e um terceiro, seu amigo.
Ora, para além de todas as judiciosas e corretas considerações expendidas na sentença recorrida a propósito do tipo legal em causa, seus elementos constitutivos e bem jurídico salvaguardado, sendo pacífico que para a consumação do crime não é necessário que a ameaça seja proferida perante a pessoa ameaçada, mas sendo necessário o conhecimento, pelo ameaçado, do conteúdo da ameaça, correspetivamente o dolo do agente deverá abranger todos os elementos do tipo objetivo, incluindo este, ou seja, é necessário o conhecimento e vontade, por parte do agente, de que as palavras ameaçadoras cheguem ao conhecimento do ameaçado, ainda que por interposta pessoa ou meio, ou que tal seja viável, previsível e que o agente com tal se conforme.
Ora, no caso, como se viu, as expressões em causa foram proferidas em diálogo privado mantido com terceiro através da aplicação Messenger, limitando-se a sentença a referir factualmente, a este propósito, a expressão comum de o arguido ter agido de forma “livre, voluntária e consciente”, com tais expressões (“Foi se o meu filho for preso vou fazer lhe a cama bem feita vou o porto falar com 3 amigos que tiveram presos comigo metem lhe em coma”) pretendendo significar que pediria ajuda a terceiros e atentaria contra a saúde ou mesmo contra a vida do ofendido BB, o que fez com foros de seriedade, deixando-o com receio e medo da concretização de tais intentos, limitando a sua liberdade de autodeterminação pessoal e de movimentos, o que pretendeu e logrou.
Contudo nada refere quanto à forma como poderia o agente ter configurado a hipótese ou a intenção de que o conteúdo da sua conversa privada, mantida com terceiro, chegasse ao conhecimento do visado.
No caso, atentas as especiais circunstâncias em que as expressões de conteúdo intimidatório terão sido proferidas e perante terceiro, a afirmação genérica de uma ação voluntária e consciente que, na generalidade dos casos, permitem a afirmação mínima do dolo do tipo, aqui não logra produzir o mesmo efeito. Efetivamente, não cabe no significado linguístico da forma mais tabelar utilizada a afirmação de que o agente sabia ou previu que, ao produzir tais expressões, as mesmas iriam chegar ao conhecimento do visado, que este teria acesso às suas palavras ou, pelo menos, que admitiu tal possibilidade, com isso se conformando.
Assim, mais do que um erro notório na apreciação da prova ou contradição na respetiva fundamentação - pois não é evidente que o conteúdo de uma conversa pretensamente privada não possa chegar ao conhecimento do sujeito versado na conversa – temos aqui uma insuficiência factual, um hiato nas premissas subsuntivas que já era notado na acusação e que este Tribunal não pode suprir, ante a jurisprudência firmada no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 1/2015 [Rel. Rodrigues da Costa, D.R. DR 18 SÉRIE I de 27.01.2015]: - “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.».
Em síntese, não constando dos factos provados que o arguido, ao proferir as expressões mencionadas em 5, perante terceiro e em meio de comunicação privado, sabia, ou pelo menos admitiu como possível, que o ofendido iria tomar conhecimento das mesmas, agindo com o propósito de que assim sucedesse ou conformando-se com a referida possibilidade, não é já possível o suprimento da omissão em julgamento, tornando inviável o reenvio para o respetivo apuramento.
Destarte, não constando da sentença recorrida todos os elementos subjetivos do ilícito típico doloso e perante tal insuficiência, impõe-se, nesta parte, a absolvição do arguido, o que se decide, embora com argumentação distinta.
*

III.4
Do erro de julgamento
Invoca ainda o recorrente a existência de erro de julgamento quanto à matéria de facto, tendo a Mm.ª Juiz efetuado uma incorreta valoração da prova produzida.
Em traços muito gerais, no entender do impetrante, a prova produzida, se devidamente valorada e de acordo com as regras da experiência, não poderia defluir na afirmação, como provados, dos factos atinentes à comissão dos crimes, considerando incorretamente julgados os pontos 1, 3, 4, 5 e 7 a 10.
Vejamos, então, começando por estabelecer os parâmetros da sindicância a que se procede retendo que, em consonância com o que acima se assinalou, perdeu acuidade a impugnação dos factos atinentes à prática do crime de ameaça.
Assim, como é consabido, o julgamento da matéria de facto, em primeira instância, é efetuado segundo o princípio da imediação – possibilitando o contacto direto e pessoal entre o julgador e a prova, tangível ao (e próprio do) juiz a quo – sendo “(…) as provas apreciadas por quem assistiu à sua produção, sob a impressão viva colhida nesse momento e formada através de certos elementos ou coeficientes imponderáveis, mas altamente valiosos, que não podem conservar-se num relato escrito das mesmas provas” [Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português – Do Procedimento, Univ. Católica Ed., pág. 212]. Além disso, o julgamento da matéria de facto far-se-á segundo o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.º 127.º do C.P.P., interpretado, não num sentido que desonere o julgador de justificar o seu raciocínio e percurso interior para chegar à afirmação do facto ou à sua desconsideração – caso em que falaríamos de arbítrio - mas, apenas, no sentido de que o valor a atribuir a determinado meio de prova não é tarifado ou vinculado (salvo as exceções consignadas na lei), orientando-se o julgador de acordo com os ditames da lógica e da experiência, podendo, por exemplo, atribuir relevância a um depoimento em detrimento de vários e mais numerosos de sinal contrário, desde que o justifique.
A convicção do Tribunal é, reforça-se, formada livremente, de acordo com as regras da experiência, enquanto postulados decorrentes da observação social e dos conhecimentos da técnica e da ciência. A afirmação positiva dos factos deverá fazer-se, não por razões ou argumentos puramente subjetivos e insindicáveis, mas sim concluindo-se através de uma “(…) valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, permitindo “objetivar a apreciação” [Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, Verbo 1993, pág. 111 a propósito da definição do conceito de livre apreciação da prova.].
Destarte, se a decisão do Tribunal recorrido se ancorar numa fundamentação compreensível, com as naturais opções próprias efetuadas com permissão da razão e das regras da experiência comum e a coberto da caraterizada livre apreciação, cumprir-se-á o necessário dever de fundamentação e afirmar-se-á a correção do decidido.
Neste percurso, note-se, não raras vezes louvar-se-á o julgador em elementos indiciários/probatórios obtidos por via indireta, consequentemente envolvendo presunções obtidas por via judicial sendo até, amiúde, o único meio de chegar ao esclarecimento de um facto criminoso e à descoberta dos seus autores.
Como se escreve no acórdão desta Relação de 18.03.2015 [proc. n.º 400/13.6PDPRT.P1, Rel. Neto de Moura, acedido em www.dgsi.pt], a propósito do papel preponderante, da atendibilidade e da valoração da prova indireta, “I – Quer a prova direta, quer a prova indireta são modos, igualmente legítimos, de chegar ao conhecimento da realidade (ou verdade) do factum probandum. II – Em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º do Cód. Proc. Penal), pelo que não pode ser excluída a prova por presunções (art. 349.º do Cód. Civil), em que se parte de um facto conhecido (o facto base ou facto indiciante) para afirmar um facto desconhecido (o factum probandum) recorrendo a um juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado em regras da experiência comum que permite chegar, sem necessidade de uma averiguação casuística, a um resultado verdadeiro. III – O sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo) e, para certos factos, como sejam os relativos aos elementos subjetivos do tipo (doloso ou negligente), não havendo confissão, a sua comprovação não poderá fazer-se senão por meio de prova indireta. IV – A prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos-base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova direta (requisito de ordem material), os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, devem estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência.”.
Em síntese, neste capítulo, a prova indireta, que contém momentos de presunção ou inferência, pode igualmente justificar certeza bastante para fundar uma convicção positiva do Tribunal, desde que se assegure, na formação dessa convicção, uma valoração conjugada e coerente dos vários elementos indiciários a considerar, de forma motivada, objetivável e numa leitura que se afigure consentânea com as regras da experiência.
Naturalmente, qualquer dos sujeitos processuais destinatários da decisão poderá discordar do juízo valorativo assim firmado. Ou porque entende que outro meio de prova se sobreporia, ou porque outro, que foi valorado, seria, para si, de credibilidade questionável mas, lembre-se, o poder de valorar a prova e de se determinar de acordo com essa avaliação pertence ao ente imparcial e constitucionalmente designado para a função de julgar - o Tribunal – porque descomprometido com o interesse dos sujeitos processuais.
Aqui chegados, a decisão da matéria de facto – com a qual o recorrente não se conforma – só pode ser sindicada, em sede de recurso, por duas vias distintas:
- Por verificação, ainda que oficiosa, dos vícios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do C.P.P., a denominada revista alargada que, a proceder, deflui na realização de um novo julgamento, total ou parcial, apenas excecionalmente o podendo fazer o próprio tribunal superior (art.ºs 426.º, n.º 1, 430.º, n.º 1, e 431.º, als. a) e c), do C.P.P.), que analisamos supra;
- Através da impugnação ampla, prevista no art.º 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do C.P.P., com eventual correção do decidido pelo tribunal superior (cfr. art.º 431.º, al. b), do C.P.P.).
No segundo caso, que agora nos ocupa – impugnação ampla – a sindicância pode envolver o próprio processo e resultado da formação da convicção do julgador sobre a prova produzida, designadamente a suficiência ou insuficiência desta para justificar a materialidade considerada, a capacidade e a segurança do convencimento que emerge dos meios de prova a valorar, seja à luz dos critérios legais da avaliação (art.º 127.º do C.P.P.), seja sob o espectro das disposições sobre prova vinculada.
Porém, importa ainda reter que mesmo abrangendo o próprio juízo decisório revidendo, a sua verosimilhança e consistência, no cotejo com a prova produzida, o processo de (re)apreciação não envolve um novo julgamento, sobreposto ao realizado em primeira instância e que usufruiu do aporte irrepetível oferecido pela oralidade e imediação. A impugnação, ainda que alargada, constitui, tão só, o remédio jurídico apropriado para a deteção de eventuais erros in judicando ou in procedendo, considerando o exame crítico da prova efetuado na primeira instância que está, naturalmente, vinculado a critérios objetivos, jurídicos e racionais e sustentado nas regras da lógica, da ciência e da experiência comum, sendo por isso mister para o sucesso do recurso que se demonstre a impossibilidade lógica e probatória da valoração seguida e a imperatividade de uma diferente convicção.
Mais.
No caso da impugnação alargada, - em que a atividade do Tribunal de recurso não se restringe ao texto da decisão, expandindo-se à análise da prova concretamente produzida em audiência de julgamento e devidamente registada – o juízo de apreciação e conformidade far-se-á de acordo com os limites fornecidos pelo recorrente e decorrentes do cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art.º 412.º do C.P.P.. Ou seja, sempre que o recorrente vise impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto deve especificar (i) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; (ii) As concretas provas [ou falta delas] que impõem decisão diversa da recorrida; (iii) As provas que devem ser renovadas, ao que acresce que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas (…) fazem-se por referência ao consignado na ata (…) devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. Em epítome e em tese geral, não bastará ao recorrente configurar hipóteses decisórias alternativas, da sua conveniência ou modo de ver, mais ou menos compagináveis com a prova produzida, sendo ainda necessário que a eventual insuficiência da prova para a decisão da matéria de facto que foi tomada, ou, na proposta de apreciação alternativa, a prova que foi produzida, imponham, como conclusão lógica, uma decisão distinta e, em concreto, aquela que na argumentação de recurso se defende.
Neste último aspeto referido importa reforçar que não basta a afirmação do dissídio, a apreciação crítica ou depreciativa do decidido ou a asseveração de considerandos ou propostas de decisão alternativa. Se assim fosse, a sindicância, a este nível, traduzir-se-ia na realização de novo julgamento já que ver-se-ia a segunda instância na contingência de revisitar toda a prova produzida para, ante aquelas manifestações gerais de subjetividade, sobrepor ou não a sua.
Por tudo isto, impõe-se ao recorrente um dever de fundamentação que torne evidente que as provas indicadas impõem decisão diferente, com o mesmo grau de argumentação e convencimento que é exigível ao julgador para fundamentar os factos provados e não provados, só assim se percebendo qual o raciocínio seguido pelo impetrante para se poder concluir que o mesmo impõe decisão diversa da recorrida [cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica, 2ª Edição, fls. 1131, notas 7 a 9, em anotação ao artigo 412º, do Código de Processo Penal].
Dito isto e avançando.
Depreende-se do teor da argumentação expendida que o recorrente considera incorretamente julgados os pontos assinalados retendo as provas apreciadas pelo Tribunal, ou seja, a seu ver e como defluência da sua subjetividade, aquelas provas, consideradas pelo Tribunal, não permitiriam a afirmação positiva dos factos como provados, designadamente quanto à autoria das expressões tidas por difamatórias e que, na procedência das suas objeções, deverão transitar para os factos não provados.
Para tanto e fazendo uma recensão do argumentário seguido pelo recorrente:
(i) Não ficou provado (porquê?) que o telemóvel onde constavam as expressões difamatórias fosse do arguido ou estivesse na posse do mesmo;
(ii) Não ficou demonstrada (porquê?) que tenha sido o arguido a redigir e remeter as ditas mensagens;
(iii) As declarações do ofendido, “incompatíveis com o contexto sócio-económico do arguido” (?), de per si, “não são passíveis de fundamentar uma condenação” sem que se mostrem demonstradas com base em outros elementos probatórios.
Vejamos.
Em estimação geral, no essencial, o recorrente glosa criticamente o decidido, quanto à “qualidade” ou “suficiência” da prova produzida, numa dessintonia com a matéria de facto fixada de cariz adjetival, essencialmente centrada na inexistência de confissão ou prova direta de que tenha sido o arguido a redigir os termos das mensagens tidas por difamatórias pretendendo, do mesmo passo, afastar a possibilidade de valoração das declarações do próprio ofendido na ausência de elementos corroborantes numa argumentação que não cumpre, a nosso ver, o ónus acima assinalado, colocando o enfoque das questões suscitadas sob o prisma da “credibilidade” o que é património próprio da imediação e da livre apreciação que assiste à primeira instância.
Ainda assim e quanto a uma pretensa insuficiência congénita das declarações do ofendido, em tese geral, como referia Enrico Altavilla [Psicologia Judiciária II – Personagens do Processo Penal, pág. 146 e 147.], “Ele [o ofendido] é, todavia, demasiadamente interessado para que, abstratamente, não deva parecer uma prova bastante suspeita. (…) Na verdade, nos casos em que o ofendido haja sido testemunha do acontecimento que ofendeu os seus direitos, acentuam-se todas as razões que (…) alteram os processos psicológicos das testemunhas e principalmente as emoções”. Não obstante, o facto de as declarações em causa partirem do ofendido não as torna insuscetíveis de valoração, nem a qualidade de ofendido constitui uma espécie de capitis diminutio na contribuição para a descoberta da verdade (o mesmo se podendo dizer, em abstrato, da qualidade de arguido, embora aqui a não conformidade com a verdade, ao contrário do que sucede com o ofendido, não seja cominada criminalmente).
Assim, o repontado interesse que pode, em abstrato, identificar-se e que, no caso, se atenua pela inexistência de formulação de pretensão indemnizatória, não constitui escolho inultrapassável para o aproveitamento do depoimento em causa no arrimo valorativo considerado pelo Tribunal que, para mais, não se decidiu com base exclusiva neste meio de prova – como é facilmente percetível numa leitura atenta da fundamentação – mas na concatenação de todos os meios disponíveis e que corroboraram a verosimilhança do afirmado. O identificado interesse na causa deverá, apenas, impor cautelas acrescidas ao julgador na atividade valorativa considerando, precisamente, o proveito próprio do ofendido no desfecho da causa.
Ora, na análise crítica dos meios de prova disponíveis o Tribunal valorou o depoimento do ofendido e concluiu pela autoria do arguido, não apenas com base naquelas declarações mas também porque, como resulta do texto da decisão posta em crise:
“(…) o telemóvel apreendido e objeto de perícia tinha várias fotos do arguido com dinheiro, armas e droga e inúmeras mensagens da sua autoria trocadas com amigos e clientes.
Além do mais, no âmbito de buscas domiciliárias, foi apreendido em casa dos pais do arguido, onde ele vivia, no seu quarto, não pertencendo, nem à mãe, nem ao pai, sendo que, apenas os três viviam nessa residência.
No que respeita à propriedade ou utilização do telemóvel pelo arguido, as testemunhas arroladas pela defesa, a mãe do arguido e duas amigas, antigas vizinhas, EE e FF, quiseram fazer crer ao tribunal que o arguido nem sequer tinha telemóvel, que era toxicodependente e nem dinheiro tinha, e que várias vezes pediu às vizinhas para lhe emprestarem o telemóvel para contactar a mãe. A testemunha GG, mãe do arguido, confirmou que o filho vivia em sua casa, onde tem um quarto só para ele.
Confirmou que esteve presente nas buscas domiciliárias, mas que não sabe onde estava o telemóvel apreendido, nem de quem era; apenas sabe, com certeza, que não é do seu filho AA, ora arguido, o que revela a conveniência e parcialidade do seu depoimento. Ainda acrescentou que o seu
telemóvel e do marido não foram apreendidos, sem saber explicar o motivo da
apreensão do terceiro aparelho. Estas testemunhas prestaram depoimentos comprometidos, parciais, incoerentes e totalmente inverosímeis, sem qualquer
correspondência com a realidade, pelo que, o tribunal não lhes atribuiu credibilidade.
Acresce que, em face das regras da experiência e da normalidade do acontecer, não pode o tribunal acreditar que o arguido, com pouco mais de 40 anos, na actualidade, em pleno século XXI, não tinha telemóvel para utilizar no seu dia a dia, quando qualquer pessoa o tem.
Além do mais, a prova documental constante dos autos, aliado ao depoimento da testemunha Agente BB, contraria a versão da defesa, a qual não encontra sustentação fáctica e legal.
O tribunal valorou, ainda, a prova documental junta aos autos: as transcrições das conversações tidas pelo arguido, o auto de apreensão do telemóvel em causa nos autos, a certidão judicial emitido pelo processo nº 849/18.8PAESP quanto à autorização das buscas domiciliárias na residência e anexos utilizados pelo arguido e do auto de busca e apreensão dos objectos que estavam no interior da residência onde o arguido AA residia ou frequentava, a certidão de fls. 2 e ss. e 35 e ss..
Desta prova, analisada conjuntamente, resulta que o arguido era detentor ou utilizador do telemóvel apreendido no âmbito das buscas domiciliárias autorizadas no processo nº 849/18.8PAESP, que utilizou o mesmo para enviar as mensagens que constam dos autos e acerca do ofendido, a um terceiro, através do chat do Facebook, o Messenger (fls. 24 dos autos), apreensão essa que é legítima, conforme resulta das certidões juntas aos autos em 11.10.2023.
Acresce, como já se disse, o amplo conhecimento desta situação do ofendido BB, que constatou a utilização deste telemóvel pelo arguido durante o tempo que a investigação durou, informando que o mesmo continha dados pessoais do arguido, incluindo fotos suas, conversas com clientes e amigos, o que, tudo conjugado, evidencia claramente que o arguido, se não era o proprietário do telemóvel em causa, pelo menos, era o seu detentor e utilizador diário, estando o mesmo na sua posse.
Face ao exposto, o tribunal não teve dúvidas em considerar provados os factos vertidos na acusação pública.”.
Ou, como refere o Ministério Público em sede de resposta:
“Em suma, tendo o telemóvel do arguido sido:
1. objeto de escutas telefónicas no processo n.º 849/18.8PAESP em que ele era investigado e onde nas comunicações áudio sempre apareceu o arguido como sendo a pessoa que utilizava o referido número;
2. apreendido no quarto do arguido no decurso de uma busca domiciliária efetuada no processo n.º 849/18.8PAESP;
3. objeto de exame pericial no processo n.º 849/18.8PAESP onde foi possível constatar a existência das conversações no chat da rede social facebook que foram transcritas bem como outros elementos pessoais do arguido (fotos, etc…), o Tribunal “a quo” não teve dúvidas em confirmar que a pessoa que redigiu e enviou as mensagens foi o arguido.
Assistida a prova pessoal em audiência de julgamento conjugada com a prova documental e, depois de efetuada a leitura da sentença que se debruçou sobre ela na fundamentação da matéria de facto, não se pode concluir que o Tribunal “a quo” tenha apreciado arbitrariamente a prova e que se impunha uma decisão diversa”.
Pensamos, efetivamente, que está tudo dito e com meridiana clareza.
Como já tivemos ocasião de referir, sendo amiúde a inexistência de prova direta que permita o estabelecimento de ligação óbvia entre os sinais objetivos da ocorrência de um crime e o seu autor (ou autores), muitas vezes a tarefa de reconstituição da verdade recorre a elementos circunstanciais e indiretos, interpretados de acordo com a lógica e as regras da experiência, emergindo a afirmação do facto da concatenação de vários elementos concordantes que viabilizam a inferência.
Neste enfoque, visto o teor da motivação da decisão de facto e analisado o iter seguido pelo Tribunal, a afirmação da autoria surge, quanto a nós e concatenada toda a prova, como inferência lógica dos sobreditos elementos, sustentada naqueles componentes corroborantes e, por isso, legítima.
À validade da inferência não se contrapõem quaisquer contraindícios razoáveis que infirmem o juízo estribado em prova indireta ou a impossibilidade de afirmação de uma regra de sentido comum. O Tribunal não terá, ele próprio, que gerar dúvidas que não tenham sido trazidas ao objeto do processo ou que não decorram, naturalmente, das regras da experiência. Ora, inexiste qualquer elemento gerador de escolho na afirmação do decidido porquanto não há qualquer razão minimamente plausível para pressupor que não tenha sido o arguido, possuidor do telemóvel apreendido, a redigir as expressões em causa.
Em conclusão, o iter seguido pelo Tribunal a quo é legítimo, lógico, encadeado, sustentado nas regras da experiência, não fazendo qualquer interpretação destas in pejus ou em violação do princípio in dubio pro reo pelo que, em alinhamento com o já referido e tendo em conta o teor da prova indicada pelo recorrente, o juízo revidendo sufragado pelo Tribunal a quo não se surpreende desprovido de consistência argumentativa ou oferece contrariedade às regras da experiência, ao que acresce o facto de o tribunal a quo ter beneficiado do património único da oralidade e da imediação.
Por fim e quanto aos elementos de ordem interna e à consequente afirmação do dolo, porque não confessados, já mencionamos supra, foram extraídos da objetividade dos factos em moldes que se nos afiguram sem mácula.
Improcede, pois, a impugnação da matéria de facto que se considera, assim, definitivamente fixada, com a desconsideração correspondente ao crime de ameaça.
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III.5
Da violação do princípio in dubio pro reo
Complementa o recorrente a sua argumentação afirmando que o Tribunal, ou decidir como decidiu, nos segmentos supra analisados e ante a “insuficiência” da prova, violou o princípio em referência.
Apreciando.
O princípio in dubio pro reo é um princípio estruturante do processo penal, decorrência da presunção de inocência, consagrada constitucionalmente e que, na aplicação prática, constitui limite exógeno à liberdade de apreciação da prova.
Com efeito, o princípio da presunção de inocência destina-se a proteger as pessoas que são objeto de uma acusação, garantindo que não serão condenadas enquanto não se demonstrarem os factos da imputação, através de uma atividade probatória inequívoca. Significa tal princípio constitucional que toda a decisão condenatória deve ser sempre precedida de uma mínima e suficiente atividade probatória, impedindo a condenação sem provas seguras.
Sendo esse princípio uma norma diretamente vinculante e constituindo um direito fundamental dos cidadãos (cfr. art.ºs 32.º, n.º 2 e 18º, n.º 1 da C.R.P.), reconhecido no direito internacional (cfr. art.º 11º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e art.º 6º, n.º 2 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos), impõe-se que quando não for demonstrada e provada a culpabilidade do arguido, a sua absolvição.
Embora frequente, a dúvida não pode obstar ao ato de julgar. Sendo proibido o non liquet fundado na insuficiência de provas, em caso de dúvida insanável o facto deve resolver-se em desfavor da acusação, porquanto o arguido se presume inocente. Se o Tribunal não lograr obter a certeza dos factos, permanecendo em dúvida razoável, deve absolver o arguido por falta de provas.
Como bem sustentou Cavaleiro Ferreira, “Em processo penal, a justiça perante a impossibilidade de uma certeza, encontra-se na alternativa de aceitar, com base em uma probabilidade ou possibilidade, o risco de absolver um culpado e o risco de condenar um inocente. A solução jurídica e moral só pode ser uma: deve aceitar-se o risco de absolvição de um culpado e nunca o de condenação de um inocente” [Cfr. Curso de Processo Penal, Vol. I, Lisboa, 1986, pág. 216.].
Concluindo e utilizando uma fórmula consagrada, da autoria do Professor Figueiredo Dias, pode dizer-se que “(...) um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz que omita a decisão (...) tem de ser sempre valorado a favor do arguido” [Cfr. Direito Processual Penal, Vol. I, Coimbra, 1974] – pois a dúvida sobre os factos resolve-se em função do princípio da presunção de inocência.
Note-se, em todo o caso, que a dúvida que legitima a invocação do princípio in dubio pro reo deve ser, além do mais, insanável, pressupondo que houve, a montante, todo o empenho e diligência no esclarecimento dos factos, sem que tenha sido possível, a final, ultrapassar o estado de incerteza que funda a ativação do princípio.
Revertendo ao caso em apreço e entroncando na improcedência, já decidida, da parte atinente à impugnação alargada, também aqui e em confluência lógica com o decidido, não se verifica qualquer violação do proclamado princípio.
Efetivamente e lida a fundamentação exarada pelo Tribunal a quo, não foi a entidade decisora assaltada, no percurso, por qualquer dúvida e, muito menos, que esta fosse razoável ou insanável. O Tribunal obteve a certeza dos factos que afirmou, em raciocínio motivado, pelo que não subsistindo quaisquer dúvidas, inexistia, outrossim, qualquer razão, porque desprovida de objeto, para resolvê-las a favor do arguido. O que na prática se verifica é que o recorrente, em face da valoração que subjetivamente fez da prova, entende que, ante o seu próprio convencimento, o Tribunal deveria ter tido dúvidas (resolvendo-as a favor do arguido ou, não o tendo feito, violando o proclamado princípio). Mas não teve, nem se notaram supra razões para que se questionasse a valoração que efetuou.
É certo que não basta afirmar que o tribunal não teve dúvidas para afastar o predito princípio se, perante os elementos de prova, objetivamente, devesse tê-las. Só que, como vimos e ante a análise dos meios de prova oferecidos, aquele estado de dúvida não se justifica.
O princípio in dubio pro reo, decorrente da presunção de inocência, “parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador.” [Cfr. Cristina Líbano Monteiro, In Dúbio Pro Reo, Coimbra, 1997], dúvida positiva que, in casu, não existe.
É certo que o Tribunal deve partir da dúvida – como tradução da abertura de espírito e da ausência de preconceito sobre o objeto do processo - para a certeza, percurso que seguiu e que concluiu nos moldes já referidos. No percurso não se exige, porém, a criação de uma espécie de dúvida metódica, equacionando todas as hipóteses possíveis para um determinado evento. Deve apenas questionar-se se e quando, no âmbito da produção de prova e face a pluralidade de caminhos ou soluções possíveis, aquela abrangência – porque todas verosímeis – seja incapacitante da tomada segura de opção. No caso e na falta de qualquer narrativa alternativa credível que o Tribunal tenha considerado (ou tivesse forçosamente que considerar), o iter seguido transcorreu na ausência de incertezas que convoquem o funcionamento do predito princípio e sem qualquer mácula à integridade e conformidade constitucional do decidido.

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IV.
Decisão:
Por todo o exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto, em:
1. Não conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido AA da decisão proferida em 15.02.2023 e que indeferiu o requerimento de prova apresentado;
2. Conceder parcial provimento ao recurso da sentença e, consequentemente, decidem absolve-lo da prática de um crime de ameaça agravado, p. e p. pelos art.ºs 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. a) do C.P. e pelo qual foi condenado na pena parcial de 8 meses de prisão;
3. Manter a condenação na pena de 3 meses de prisão pela prática, em autoria material, de um crime de difamação agravado, p. e p. pelos art.ºs 180.º, n.º 1, 184.º e 188.º, n.º 1, al. a), todos do C.P..
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Custas da responsabilidade do arguido/recorrente na parte atinente ao recurso interlocutório, fixando-se em 3 (três) UC´s a taxa de justiça (cfr. art.ºs 513º do C.P.P. e 8º/9 do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último), não sendo devidas custas no recurso principal.


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Porto, 24 de abril de 2024

José Quaresma (Relator)
Lígia Trovão (1.ª Adjunta)
Pedro M. Menezes (2.º Adjunto)