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BRANQUEAMENTO
PRISÃO PREVENTIVA
Sumário
I.–O crime de branqueamento, p. e p. pelo artigo 368.º- A, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, punível com pena de prisão até 12 anos, admite prisão preventiva, nos termos do artigo 202.º, n.º 1, alínea a) e m) do CPP.
II.–Com n.º 12 do art.º 268-A do CP a moldura penal abstrata do crime de branqueamento não é alterada por via da sua conjugação com a moldura penal abstrata do crime precedente. III.–A interpretação de que o crime de branqueamento permite a sujeição do respetivo autor a prisão preventiva independentemente da moldura penal do crime precendente, não enferma de qualquer inconstitucionalidade, não constitui uma restrição desnecessária, inadequada e desproporcional ao direito fundamental à liberdade, e nessa medida não acarreta uma violação do disposto nos artigos 1º, 2º, 27º, 28º, n° 2, e 32.°, n.° 1e 18º, n° 1 e 2, da CRP.
(Sumário da responsabilidade da relatora)
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I–RELATÓRIO:
No processo nº 3603/18.3JFLSB-B.L1 do Juízo de Instrução Criminal de Loures (Juiz 1), do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, em 08.09.2023, foi o arguido AA sujeito a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, na sequência do qual foi determinada a sua sujeição à medida de coação de prisão preventiva.
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A 29-02-2024 foi proferido despacho judicial, que que integra fls. 3565 e 3566 e que indeferiu “a revogação da medida de coacção de prisão preventiva requerida pelo arguido, por tal pretensão carecer de suporte legal”. *
A 7.03.2024 foi proferido despacho judicial, que integra fls. 3877 e que, revendo tal medida de coação, determinou que o arguido deverá “aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, nos termos da interpretação conjugada dos artigos 191.°, 192.°, 193.°, 195.°, 202.°, n.° 1, al. a), 204.°, n.° 1, als. b) e c), 215.°, ns.° 1, al. a) e 2, al. e), a contrario, e 213.°, n.° 1, al. b), todos do Cód. Processo Penal.”
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-» Inconformado, veio o arguido recorrer dos referidos despachos que motivou, formulando as seguintes conclusões (transcrição): “A.–O Arguido está preso ilegalmente desde 8 de setembro de 2023. B.–Concretamente, a prisão preventiva foi aplicada ao Arguido sem que na sua base estivesse a imputação de qualquer crime que, nos termos do disposto no artigo 202.°, n.° 1, alínea a), do Código de Processo Penal, admita essa medida de coação. C.–O tribunal a quo, secundado pelo Ministério Público, entende que o crime que fundamenta a prisão preventiva nos termos daquela norma será o crime de branqueamento, por ser punível, nos termos do artigo 368.°-A, n.° 3, com pena máxima abstratamente aplicável até 12 anos. D.–No entanto, o crime de branqueamento tem como crime precedente o crime de fraude fiscal simples, punível com pena máxima até 3 anos, nos termos do disposto nos artigos 103.°, n.° 1, alínea a), n.os 2 e 3, e 7.° da Lei n.° 15/2001, de 5 de junho. E.–De acordo com o disposto no artigo 368.°-A, n.° 12, a pena máxima aplicada ao crime de branqueamento “não pode ser superior ao limite máximo da pena mais elevada de entre as previstas para os factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens”, o que significa que, neste caso, a pena máxima aplicável ao crime de branqueamento é de 3 anos. F.–O entendimento do Ministério Público, secundado tabelarmente pelo Tribunal a quo, assenta no argumento formalista de que a pena a que se refere o artigo 368.°- A, n.° 12, do Código Penal, seria uma pena concreta, ao passo que a letra do artigo 202.°, n.° 1, alínea a), fala em pena abstrata. G.–Portanto, apesar de todos - Arguido, Ministério Público e tribunal - saberem que não pode ser aplicada uma pena superior à do crime precedente, ou seja, que nunca poderá ser aplicada uma pena superior a 5 anos, foi aplicada a prisão preventiva ao Arguido com fundamento numa pena fictícia e inaplicável ao caso.
Objeto e estrutura do recurso
H.–O presente recurso tem por objeto dois despachos: o primeiro de 29.02.2024, com a Ref.a 8761743, que, em resposta ao requerimento do Arguido para revogação imediata da medida de coação com fundamento em ilegalidade, concluiu pelo seu indeferimento; o segundo de 07.03.2024, com a Ref.a 8771137, que concluiu pela renovação da medida de coação de prisão preventiva.
O despacho com a Ref.a 8761743 e a inexistência de crime que admita prisão preventiva
I.–O motivo pelo qual o Arguido se encontra em prisão preventiva desde 8 de setembro de 2023 é, essencialmente, de semântica. J.–E é assim porque, sublinha-se, ninguém discute, nem o Arguido, nem o Ministério Público, nem o tribunal a quo, que a pena máxima aplicável ao crime de branqueamento neste caso não é superior a 5 anos, sendo que, à data em que o Arguido foi colocado em prisão preventiva (com fundamentos que ainda hoje são repristinados), ninguém discutia sequer que seria superior a 3 anos. K.–No entanto, o tribunal a quo, na sua adesão tabelar à lese do Ministério Público, entende que o critério deverá ser, não o da pena máxima aplicável em concreto, mas sim o da pena máxima aplicável em abstrato ao crime de branqueamento, independentemente de qual seja o crime precedente. L.–São três os fundamentos com base nos quais o Tribunal a quo, remetendo a sua fundamentação para a promoção do Ministério Público, conclui pela aplicabilidade do artigo 202.°, n.° 1, alínea a), ao crime de branqueamento, todos improcedentes.
Primeiro:
M.–O primeiro fundamento, baseado no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 22.11.2023, assenta na interpretação de que o prazo a ter em conta para efeitos de cálculo da prescrição do crime de branqueamento deverá ser o do artigo 368.°-A, n.° 3, porque é aquele em que se prevê a moldura abstrata, e não o prazo que resultaria da aplicação do n.° 12. N.–Este argumento improcede, entre o mais, porque confunde prescrição e medidas de coação esquecendo que entre ambos existem diferenças incontornáveis de natureza, fundamento, finalidade e pressupostos. O.–Desde logo, a prescrição, de natureza também substantiva e com a virtualidade de pôr termo ao processo, assenta na erosão da necessidade punitiva por força do decurso do tempo, na diminuição das exigências de prevenção geral e especial, e no distanciamento temporal excessivo entre condenação e facto, ao passo que as medidas de coação, de natureza processual, têm como fundamento exigências cautelares, provisórias, materializadas em perigos concretos que têm por base crimes graves (sendo que a gravidade se mede pela pena concretamente aplicável). P.–Adicionalmente, em matéria de prescrição, o legislador oferece ao intérprete uma coordenada interpretativa relevante, no artigo 118.°, n.° 2, do Código Penal, que não são tomadas em conta circunstâncias agravantes ou atenuantes quanto à prescrição, o que não sucede quanto a medidas de coação. Q.–O que releva aqui é saber se o requisito mínimo de gravidade para aplicação da prisão preventiva está verificado, leia-se, se o crime imputado ao Arguido preenche, ou não, o requisito legal exigido pelo artigo 202.°, n.° 1, alínea a), do Código de Processo Penal, ou seja, se o crime em causa é punível com pena superior a 5 anos. R.–Por punível deve ler-se a pena máxima que pode ser aplicada ao Arguido neste caso, não releva a moldura penal, mas sim, reitera-se, a pena máxima aplicável, ou, na formulação do artigo 195.° do Código de Processo Penal, o “máximo da pena correspondente ao crime que justifica a medida”, leia-se, ao concreto crime que justifica a medida. S.–Só por puro exercício retórico se pode dizer que o intérprete caminha de olhos vendados durante todo o processo de aplicação da pena, como se não soubesse até ao final desse processo que tem como limite máximo da pena, o tecto da pena do crime precedente. Tem sempre presente esse limite e não pode ser de outro modo, desde logo porque ele resulta da lei. T.–Por outro lado, a alegação para que remete o despacho recorrido incorre numa contradição intrínseca, quando aí se diz, como fundamento para manter a medida de coação, que a norma do artigo 368.°-A, n.° 12, do Código Penal é “um travão para evitar injustiças materiais ao abrigo do princípio da proporcionalidade”. U.–É que a proporcionalidade é precisamente um dos principais requisitos para aplicação de medidas de coação, como resulta do artigo 193.° do Código Penal, pelo que, se é desproporcional punir com uma pena mais grave, claro está que será desproporcional ficcionar uma pena mais grave do que aquela em que o agente poderá ser punido, apenas para poder prendê-lo preventivamente. V.–Aliás, a interpretação do Tribunal a quo viola o artigo 193.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, que vincula o intérprete a uma análise, não das sanções em abstrato aplicáveis a outros casos, mas àquilo que “o caso requer” e sempre atendendo às concretas “sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas”. E as concretas sanções que possam vir a ser aplicadas quanto a este crime nunca excederão o limite dos 5 anos a que se refere o artigo 202.°, n.° 1, alínea a), do Código de Processo Penal - e certamente não excederiam sequer o de 3 anos quando foi aplicada a medida de coação. W.–Adicionalmente, importa acrescentar que a doutrina - aqui se incluindo, por exemplo, Maia Costa, António Gama, Paulo Pinto de Albuquerque e Odete Maria de Oliveira - admitem genericamente que mesmo a aplicação do artigo 16.°, n.° 3, do Código de Processo Penal, impede a aplicação do artigo 202.°, n.° 1, alínea a), já que, se em abstrato o crime teria pena máxima superior a 5 anos, em concreto não o terá. X.–Pelo que, se a aplicação, facultativa, do artigo 16.°, n.° 3, do Código de Processo Penal, que constitui a imposição de um limite à pena a aplicar ao Arguido, tem o condão de obstar à aplicação do artigo 202.°, n.° 1, alínea a), então ainda mais sentido fará que essa limitação resulte de uma imposição que resulta ope legis, como a do artigo 368.°-A, n.° 12, do Código Penal. Y.–Podemos igualmente convocar o lugar paralelo do artigo 28.°, alínea a), do Código de Processo Penal, quando convoca a análise comparativa de gravidade dos crimes para efeitos de determinação de competência. Z.–Quanto a este ponto, considera a doutrina e a jurisprudência, que a pena a ter em conta no caso do crime de branqueamento é a pena tal como delimitada pelo crime precedente, e não a pena máxima abstratamente aplicável a qualquer outro caso. AA.–Se os crimes têm igual gravidade porque têm igual pena, então é essa a pena que tem de ser tida em consideração para aplicação do artigo 202.°, n.° 1, alínea a), do Código de Processo Penal. BB.–Acresce que também não tem razão o Tribunal a quo quando considera que, na análise do conceito de “crime punível com pena superior a 5 anos”, não se deve atender a circunstâncias atenuantes ou agravantes. E não tem razão porque, quando se trata de atenuantes obrigatórias, como no caso da tentativa ou da cumplicidade, as mesmas terão sempre de ser tidas em conta, como impõe o artigo 195.° do Código de Processo Penal. CC.–É que dizer o contrário significa que se pode colocar em prisão preventiva o cúmplice na fraude fiscal simples, cuja pena máxima será até 2 anos, desde que lhe seja igualmente imputado o crime de branqueamento (que materialmente até poderia ser a título de cumplicidade, já que o legislador faz equiparar cumplicidade e autoria neste caso), apesar de a pena a aplicar quanto a este também não poder exceder os 2 anos DD.–Diga-se ainda que, se procedesse a tese do tribunal recorrido, então, em processos em que seja declarada a especial complexidade do processo - como foi requerido pelo Ministério Público neste processo, embora depois tenha desistido do pedido -, poderia o Arguido ficar em prisão preventiva durante 3 anos e 4 meses, nos termos do disposto no artigo 215.°, n.° 3, do Código de Processo Penal, com base num crime que não pode ser punido com pena superior a 3 anos.
Segundo:
EE.– O segundo fundamento invocado pelo tribunal a quo, na sua remissão tabelar para a promoção do Ministério Público, assenta na ideia de que, se o que releva for a pena resultante do artigo 368.°-A, n.° 12, e não do n.° 3, então a norma do n.° 3 ficaria esvaziada de sentido útil. FF.–Diga-se, antes de mais, que este ponto não releva para a decisão, já que o que interessa é que se a pena aplicada não pode ser superior a três anos, então a pena aplicável não é superior a três anos. Só isto. GG.–Mas ainda que assim não fosse, a existência de uma pena máxima para o crime de branqueamento continuaria a fazer sentido, seja para os casos em que o crime precedente tem uma pena mínima, uma vez que assim se permitiria aplicar uma pena inferior ao branqueamento da que se aplicaria ao crime precedente, o que se justificaria precisamente em razão do seu nexo de acessoriedade, seja para os casos em que o crime precedente tem uma pena mais elevada do que a pena máxima do branqueamento, como sucede nos casos dos artigos 175.°, n.° 2 e 177.°, n.° 4, por referência ao artigo 368.°-A, n.° 1, alínea a), 210.°, n.° 3; 223.°, n.° 3, alínea b), por referência ao artigo 368.°-A, alínea b), ou 160.°, n.os 2 e 4, por referência ao artigo 368.°-A, alínea h).
Terceiro:
HH.–Por fim, diz o Ministério Público, em argumento secundado pelo tribunal a quo, que na determinação da pena em concreto terá de se ter em conta esta agravação, em um terço, da moldura penal na pena a aplicar, atenta a alegada habitualidade verificada na prática do crime de branqueamento pelo Arguido, com base no artigo 368.°-A, n.° 6, do Código Penal. II.–Quanto a este ponto, importa começar por assinalar que o Ministério Público só se lembrou desta agravante depois de tomar conhecimento do requerimento do Arguido para revogação da prisão preventiva, e nunca o invocou até esta promoção (que nem foi vertida no despacho recorrido), pelo que, o que o Ministério Público poderia ter feito e o que o tribunal poderia ter ordenado não relevam. JJ.–No entanto, mesmo este argumento improcede, já que o n.° 6 do artigo 368.°-A, do Código Penal é um dos “números anteriores” a que se refere o n.° 12, o que significa que também está abrangido pela limitação da pena aplicável ao crime precedente. KK.–Assim, e em suma, improcede em absoluto a argumentação do Ministério Público, secundada pelo tribunal recorrido, de que a pena máxima a ter em conta para aplicação do disposto no artigo 202.°, n.° 1, alínea a), do Código de Processo Penal é a pena máxima abstratamente aplicável a qualquer crime de branqueamento, e não ao concreto crime em causa. LL.–Como se viu, se a pena máxima a ser aplicada neste caso está limitada à pena máxima aplicável ao crime precedente, então a pena máxima aplicável ao caso será esta, e não qualquer outra. E se, quando foi aplicada a prisão preventiva, bem como quando foi apresentado o requerimento que deu origem ao primeiro despacho recorrido, o crime precedente tinha como pena máxima 3 anos, então será essa a pena a ter em conta para aferição da ilegalidade daquelas decisões. MM.–De resto, a norma ínsita nos artigos 202.°, n.° 1, alínea a), e 195.° do Código de Processo Penal, interpretadas isoladamente ou de forma conjugada, no sentido de que a pena máxima do crime de branqueamento a ter em conta para aplicação da medida de coação de prisão preventiva é a do artigo 368.°-A, n.° 3, e não a do seu n.° 12, quando a aplicação do n.° 12 tenha por efeito a limitação da pena aplicada a um quantum inferior a 5 anos, é inconstitucional por violação do disposto nos artigos l.°, 2.°, 18.°, n.os 1 e 2, 27.°, n.os 1 e 3, alínea a) e 5, 28.°, n.° 2, e 32.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa.
O despacho com a Ref.a 877137 e a ilegalidade da prisão preventiva
NN.–Tendo em conta o que acabou de se referir, a conclusão que se impõe é, necessariamente, que o Arguido deve ser libertado imediatamente. No entanto, e apesar de pouco haver a acrescentar com o despacho de renovação da medida de coação, sempre se dirá, muito sucintamente, por que razão este despacho deverá igualmente ser revogado. OO.–Sobre este despacho, importa começar por referir que, volvidos 5 meses e 19 dias desde a aplicação da prisão preventiva ao Arguido, o Ministério Público decidiu imputar-lhe um crime de fraude fiscal agravada, punível com pena até 5 anos. PP.–Através do segundo despacho recorrido, o tribunal renovou a prisão preventiva “nos termos da interpretação conjugada dos artigos 191.°, 192.°, 193.°, 195.°, 202.°, n.° 1, al. a), 204.°, n.° 1, ais. b) e c), 215.°, nsf 1, al. a) e 2, al. e) a contrario, e 213.°, n.° 1, al. b), todos do Cód. De Processo Penal”. QQ.–Antes de mais, afigura-se existir um lapso na promoção do Ministério Público: onde se diz “202.° e 204.°, alíneas a) e c) do Código de Processo Penal”, parece querer dizer-se 202.°, n.° 1, alínea a), e 204.°, n.° 1, alínea c), do Código de Processo Penal, já que nunca se falou em perigo de fuga neste processo - tanto mais que o despacho recorrido nada diz sobre este ponto. RR.– Por outro lado, a menção à alínea b) do artigo 204.° no despacho judicial de renovação da medida de coação, aqui recorrido, parece configurar igualmente um lapso, já que em momento algum o Ministério Público o promove (refere-se apenas ao alegado “perigo de continuação da atividade criminosa”) e o juiz de instrução, que até poderia aplicar oficiosamente este requisito, não o fundamenta, como teria de fazer, perante a sua novidade. SS.–Portanto, quanto a este ponto, ou o recurso à alínea b) configura um lapso, ou configura uma nulidade, nos termos do disposto no artigo 194.°, n.° 6, alínea d), do Código de Processo Penal, por aí se ter tomado em consideração um novo perigo, que não é de perturbação do decurso do inquérito, sem fundamentação e fora do quadro legal. TT.–Em todo o caso, e quanto à aplicação do artigo 202.°, n.° 1, alínea a), importa assinalar que a renovação da medida de coação assenta, novamente, no erro que vem sendo assumido desde o início do processo, e que é o da existência de fortes indícios da prática de um crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos. Não existia antes e não existe agora. UU.–Sendo certo que, quanto ao crime imputado ex novo, decorridos 5 meses de prisão preventiva do Arguido, mesmo que o mesmo pudesse ser relevante, e, como se viu, não pode, já que não é punível com pena superior a 5 anos, a verdade é que não poderia o mesmo ser tido em consideração na renovação da medida de coação. VV.–Primeiro, porque sendo uma renovação que adere aos pressupostos da aplicação da medida de coação originária, não poderá ter em conta factos que só foram imputados muito depois da decisão para que se remete. WW.–Segundo, porque sendo um facto imputado ao Arguido já na constância da sua sujeição a prisão preventiva, em nada contribui para a aferição dos perigos de que depende a aplicação da medida de coação. XX.–Terceiro, porque a imputação de um novo crime não tem o condão de branquear a ilegalidade da prisão a que o Arguido foi submetido nos 5 meses anteriores, a qual deverá sempre ser declarada. YY.–Por fim, importa concluir que não se verifica qualquer perigo de continuação da atividade criminosa que possa ser renovado, desde logo porque os factos em que o mesmo assentava no despacho originário, e que foram repristinados no despacho de renovação, são factos atinentes ao inquérito, ao perigo para a recolha de prova e identificação dos bens, o que não se verifica nesta fase, em que o inquérito já terminou. ZZ.–Assim, e sem prejuízo de tudo o mais, também por aqui se impõe a revogação do despacho recorrido e, em consequência, a libertação imediata do arguido. Nestes termos, e pelos mais de Direito aplicáveis, deve o presente Recurso ser julgado procedente e, em consequência, serem revogados os despachos recorridos e serem os mesmos substituídos por outro que revogue a medida de prisão preventiva aplicada, libertando o Arguido.
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Os recursos foram admitidos, com subida imediata, em separado e com efeito devolutivo.
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-» O MINISTÉRIO PÚBLICO apresentou resposta, formulando as seguintes conclusões:
1.–No âmbito dos presentes autos, por despacho judicial proferido em 08/09/2023, em ato seguido à apresentação para primeiro interrogatório de arguido detido, conforme consta de fls. 2818 a 2819, foi aplicada ao arguido AA a medida de coacão de prisão preventiva, por se encontrar fortemente indiciado da prática de um crime de tráfico de substâncias e métodos proibidos, previsto e punido pelo artigo 44 °, da Lei n.° 38/2012, de 28 de agosto (pelos factos praticados até 15 de dezembro de 2021) e posteriormente previsto e punido pelo artigo 57.°, n.° 1 e 60°, da Lei n.° 81/2021, de 30 de novembro (pelos factos praticados a partir de 15 de dezembro de 2021), em conjugação com as Portarias n.° 324/2016, de 19 de dezembro, n.° 381/2017, de 19 de dezembro, n.° 329/2018, de 20 de dezembro, n.° 404/2019, de 10 de dezembro, n.° 306/2020, de 29 de dezembro, n.° 312/2021, de 21 de dezembro, e n.° 306/2022, de 23 de dezembro; quatro crimes de fraude fiscal, previstos e punidos pelo artigo 103.°, n.° 1, alínea a), n.° 2 e n 0 3 e 7.° do Regime Geral das Infrações Tributárias, um dos quais na forma agravada, nos termos do disposto no artigo 104.°, n.° 2, alínea b), do mesmo diploma legal; e um crime de branqueamento, na forma habitual. previsto e punido pelo artigo 368.°-A, n.° 1, alínea j), n.° 2, n 0 3 e n.° 8, do Código Penal. 2.–Não se conformando com o despacho que determinou e o despacho que renovou que aguardasse o decurso do processo sujeito à medida de coação de prisão preventiva, vem o recorrente deles interpor recurso, pedindo as suas revogações e as suas substituições por outros que devolvam o arguido à liberdade. 3.–O recorrente alega que inexiste crime que admita a medida de coação de prisão preventiva, não se verificando o pressuposto da sua aplicação nos termos do disposto no artigo 202.°, n.° 1, alínea a), do Código de Processo Penal, uma vez que, entende que a pena aplicada ao crime de branqueamento não pode ser superior ao limite máximo da pena do crime precedente (fraude fiscal), concluindo ser este de 3 (três) anos de prisão, nos termos do artigo 368.°-A, n.° 12, do Código Penal. 4.–E, ainda, que não se verificam nos autos exigências cautelares que justifiquem a adoção da medida de prisão preventiva, designadamente, por não se verificar o perigo de continuação da atividade criminosa a que se refere o artigo 204.°, n.° 1, alínea c), do Código de Processo Penal. 5.–Aquando da decisão judicial proferida em 08/09/2023, em ato seguido à apresentação para primeiro interrogatório de arguido detido, em aplicar a medida de coação de prisão preventiva ao ora recorrente, o mesmo nada veio dizer, isto é, conformando-se com a sujeição à referida medida. 6.–Causa estupefação ao Ministério Público o ora invocado pelo recorrente, nomeadamente, quando refere que não se encontram previstos os pressupostos para a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, uma vez que, após a aplicação da referida medida, se efetivamente considerasse que a mesma carecia de legalidade, poderia dela contestar e, inclusivamente, requerer a providência do “habeas corpus” no Tribunal competente, nos termos do artigo 31.°, da Constituição da República Portuguesa. 7.–Contrariamente, o ora recorrente nada requereu quanto a este assunto, considerando, entende o Ministério Público, que se encontravam preenchidos todos os seus pressupostos legais, dela se conformando. 8.–Os argumentos de recurso, agora apresentados, incorrem em interpretações erróneas dos preceitos legais, quer do disposto no artigo 202.°, n.° 1, alínea a), do Código de Processo Penal, quer no artigo 368 °-A, n.° 12, do Código Penal, e, ainda, do artigo 204 °, n.° 1, do Código de Processo Penal. 9.–O ora recorrente confunde os conceitos de pena aplicável e pena aplicada, isto é, confunde moldura penal abstratamente aplicável, com a pena concretamente aplicada. 10.–É precisamente a forte indiciação da prática de um crime de branqueamento, na forma habitual, previsto e punido pelo artigo 368 °-A, n.° 1, alínea j), n.° 2, n.° 3 e n.° 8, do Código Penal que preenche o pressuposto previsto no artigo 202.°, n.° 1, alínea a), do Código de Processo Penal, cuja moldura penal abstratamente aplicável, nos termos do n.° 3 do referido preceito legal é de pena de prisão até 12 (doze) anos, 11.–O que o legislador pretendeu e definiu no preceito da alínea a), do n.° 1, do artigo 202.°, do Código de Processo Penal, foi abranger os crimes cuja moldura penal abstratamente aplicável seja superior a 5 (cinco) anos de prisão. 12.–Isto é claro pela opção do legislador ao definir como situações passíveis de aplicação da medida de coação de prisão preventiva quando “houver fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos" (sublinhado nosso) e não a prática de crime doloso punido com pena de prisão de máximo superior a 5 anos. 13.–Esta posição tem assento doutrinário, nomeadamente, TIAGO CAIADO MILHEIRO refere que «a al. a) do n.° 1 estabelece que o seu requisito de admissibilidade apenas por referência à pena aplicável - “pena de prisão de máximo superior a 5 anos". Ao contrário das ai c) a e) do n.° 1 que associam a pena aplicada a uma determinada tipologia de criminalidade, a ai a) basta-se com a indicação da pena aplicável.Isto porque, por si, o estabelecimento de uma pena aplicável de máximo superior a 5 anos de prisão estabelece uma diretriz de proporcionalidade. A gravidade do crime revelada pela moldura abstrata máxima consagrada pelo legislador é, justamente. demonstrada pela possibilidade de aplicar uma pena de prisão superior a 5 anos de prisão. Nessa medida, revela-se proporcional a admissibilidade de uma medida privativa da liberdade (...)» (sublinhado nosso). 14.–Relativamente ao invocado pelo recorrente, quanto à previsão legal que limita a aplicação da pena do crime de branqueamento à da pena do crime precedente, nos termos do artigo 368.°-A, n 0 12, do Código Penal, também aqui incorre em erro interpretativo. 15.–O legislador refere expressamente em “pena aplicada’’ e já não em pena aplicável, ou seja, o legislador reporta a aplicação desta norma para o momento da pena concretamente aplicada ao crime de branqueamento, que não pode ser superior ao limite máximo da pena mais elevada do crime precedente, que in casu, se trata do crime de fraude fiscal, previsto e punido pelo artigo 103.°, n.° 1, alínea a), n.° 2 e n.° 3 e 7.° do Regime Geral das Infrações Tributárias, cuja moldura penal é de pena de prisão até 3 anos. 16.–A aplicação do disposto no artigo 368.°-A, n.° 12, do Código Penal, reporta ao juízo que o juiz (de julgamento) deverá atender no momento da determinação da pena concretamente aplicada ao crime de branqueamento e já não a da moldura abstratamente aplicável da pena. 17.–Esta posição, tem, igualmente, assento doutrinário quando PEDRO CAEIRO e PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE se referem que "a pena concreta aplicada ao crime de branqueamento não pode ser superior ao limite máximo da pena aplicável ao crime precedente (...). 18.–A possibilidade de se aplicar a medida de coação mais gravosa coincide com a gravidade do crime revelado pela própria moldura abstratamente aplicável ao crime. 19.–Assunto diverso trata-se de, no momento da determinação da concreta medida da pena do crime de branqueamento, esta não poder ser superior à pena aplicável ao crime precedente, ao abrigo do disposto no artigo 368.°-A, n.° 12, do Código Penal, por razões de equidade e proporcionalidade. 20.–Contrariamente ao que o recorrente pugna, o artigo 368 °-A, n.° 12, do Código Penal não prevê uma moldura penal, mas ante limita a pena que concretamente deva ser aplicada. 21.–Relativamente ao invocado pelo recorrente de que inexistem exigências cautelares que justifiquem a adoção da medida de prisão preventiva, o Tribunal a quo entendeu que os pressupostos para a aplicação da medida de prisão preventiva mantiveram-se “(...) inalterados ou até reforçados, atenta a acusação entretanto deduzida pelo Ministério Público, que integra fls. 3776 a 3685 dos autos, os pressupostos que lhe estiveram subjacentes 22.–Assim, os elementos de prova recolhidos durante o inquérito dão consistência aos indícios inicialmente existentes. 23.–O processo é de especial complexidade dado o caráter transnacional dos factos, a utilização de diversas contas bancárias utilizadas pelos arguidos, a quantidade de prova apreendida, tal como as substâncias ilícitas apreendidas e o acervo informático apreendido, bem como o elevado número de intervenientes processuais e sua interação criminosa, aproveitando as relações familiares, a fim de ocultar e movimentar as elevadas quantias monetárias ilicitamente obtidas. 24.–De notar que, face à recolha de informação patrimonial e financeira procedeu-se á liquidação do património incongruente e respetivo arresto dos bens do ora recorrente, nos termos e para os efeitos da Lei n 0 5/2002, de 11 de janeiro. 25.–Ora, encontrando-se o recorrente privado dos seus bens e das suas fontes de receita, mesmo que obtidas ilicitamente, bem como as dos seus familiares diretos, nomeadamente, os pertencentes a CP... sua companheira, e GA..., sua mãe, também arguidas e cujos bens foram, igualmente, arrestados, este circunstancialismo reforça, evidentemente, o perigo existente de continuação da atividade criminosa. a fim de obter rendimentos, caso o arguido fosse colocado em liberdade, enquanto aguarda julgamento. 26.–Em consonância com os princípios da adequação, proporcionalidade e suficiência que presidem à aplicação das medidas de coação, a prisão preventiva continua a ser a única medida coativa que satisfaz as exigências processuais de natureza cautelar que o caso concreto requer. 27.–Assim, as decisões de determinar e renovar a sujeição à medida de coação de prisão preventiva ao recorrente AA não violaram quaisquer disposições legais, designadamente, as indicadas pelo recorrente. 28.–Ante fizeram a correta apreciação dos factos e aplicam o direito em conformidade. 29.–Devendo o recorrente AA aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coação de prisão preventiva. *
O M.º P.º apôs o “visto”.
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Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II–OBJETO DO RECURSO
Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal Henriques, Recursos Penais, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007, Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412º, nº 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)
Considerando os termos em que o recorrente estruturou o respetivo recurso – e relevando-se que, num mesmo recurso e sem qualquer individualização nas conclusões apresentadas, vem impugnar o despacho que determinou a sua sujeição à medida de coação de prisão preventiva e o despacho que, menos de 15 dias depois, manteve tal medida, por inalteração dos respetivos pressupostos – as questões a apreciar são:
- relativamente ao recurso do despacho de 29-02-2024 que integra fls. 3565 e 3566:
Saber se a prisão preventiva deve ser revogada, por ser ilegal
- relativamente ao recurso de 7.03.2024, que integra fls. 3877
A verificação (e subsistência) dos pressupostos da prisão preventiva.
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III.–TRANSCRIÇÃO DAS DECISÕES RECORRIDAS E DEMAIS PEÇAS PROCESSUAIS RELEVANTES PARA A DECISÃO DO RECURSO:
-» Na sequência da sujeição do arguido a 1º interrogatório judicial de arguido detido, 8/09/2023, foi proferido um despacho oral, relativamente ao qual foi consignado em ata: “ TIPO DE CRIME: ➢ Um crime de tráfico de substâncias e métodos proibidos, previsto e punido pelo artigo 44.º da Lei n.º 38/2012, de 28 de agosto (factos praticados até 15 de dezembro de 2021) e posteriormente previsto e punido pelo artigo 57.º, nº 1 e 60.º da Lei n.º 81/2021, de 30 de novembro (factos praticados a partir de 15 de dezembro de 2021), e ➢ Quatro crimes de fraude fiscal, previstos e punidos pelo artigo 103.º, nº 1, al. a), nºs 2 e 3 e 7.º do Regime Geral das Infracções Tributárias. ➢ Mostra-se ainda indiciada a prática pelo arguido AA de um crime de branqueamento, previsto e punido pelo artigo 368.º-A, nº 1, al. j), nºs 2 e 3 do Código Penal. PERIGOS: ➢ Perigo de perturbação do decurso do inquérito. ➢ Perigo de continuação da actividade criminosa. MEDIDA DE COAÇÃO ARGUIDO AA: ➢ TIR, já prestado ➢ Prisão preventiva. MEDIDA DE COAÇÃO ARGUIDO BB: ➢ TIR, já prestado ➢ Obrigação de se apresentar 2 vezes por semana no OPC da sua área de residência. ➢ Proibição de contactar com o coarguido AA, bem como com a cônjuge, mãe e filha desse arguido e ainda com os referidos clientes nos autos Tudo cfr. artºs 191º a 196º, 198.º, 200.º nº 1 al. d), 202º, n.º 1, al. a) e 204.º al.s b) e c), todos do Código de Processo Penal.”
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-» A 29/2/2024, e na sequência de requerimento do arguido aqui recorrente (este datado de 28/2/2024) foi proferido o seguinte despacho, de que o arguido recorre:
“Requerimento de fls. 3554 a 3557: O arguido AA veio requerer a revogação da medida de coacção de prisão preventiva que lhe foi aplicada no dia 8 de Setembro de 2023, alegando, para o efeito, em síntese, que os crimes imputados ao arguido na indiciação não admitem a aplicação desta medida de coacção, isto por nenhum dos crimes imputados ser punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos. O Ministério Público pronunciou-se, por requerimento que integra fls. 3558 a 3562, concluindo no sentido de dever ser indeferido o requerido por falta de fundamento legal. Cumpre apreciar e decidir. Dispõe o art. 212.°, n.° 1 do Cód. Processo Penal, que “1 - As medidas de coacção são imediatamente revogadas, por despacho do juiz, sempre que se verificar: a) Terem sido aplicadas fora das hipóteses ou das condições previstas na lei (...)”. No âmbito dos presentes autos, por despacho judicial proferido em 08/09/2023, em acto seguido ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido, que integra fls. 2818 e 2819, transitado em julgado, foi aplicada, ao arguido AA, a medida de coacção de prisão preventiva, tendo-se considerado encontrar-se fortemente indiciada a prática, por este arguido, de um crime de tráfico de substâncias e métodos proibidos, de quatro crimes de fraude fiscal e de um crime de branqueamento, p.p. pelo art. 368.°-A, n.°s 1, al. j), 2 e 3 do Cód. Penal, crime este a que corresponde a moldura abstracta de 1 mês até 12 anos de prisão, e, por conseguinte, punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos. No que respeita à questão suscitada é manifesta a sem razão do arguido, como, aliás, com total acerto, enfatiza o Ministério Público na promoção que antecede, promoção esta que merece a nossa inteira concordância, e cujo teor, por uma questão de economia processual, aqui damos por inteiramente reproduzida. Indefere-se, assim, a revogação da medida de coacção de prisão preventiva requerida pelo arguido, por tal pretensão carecer de suporte legal. Notifique, enviando cópia da promoção do Ministério Público de fls. 3558 a 3562.” *
A promoção do MP de fls. 3558 a 3562, para a qual remete o despacho recorrido, tem o seguinte teor: “Atento o requerimento apresentado, está em causa apreciar se os crimes imputados ao arguido AA admitem a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, defendendo, o mesmo, que não se verificam preenchidos os pressupostos e requisitos legais de que depende a aplicação de tal medida uma vez que, nos termos do n.° 12 do artigo 368.°-A do Código Penal, a pena aplicada ao crime de branqueamento não pode ser superior ao limite máximo da pena do crime precedente, que, conclui, é de 3 anos de prisão. Vejamos, Está em causa saber se a previsão ínsita no n.° 12 do artigo 368.°-A do Código Penal, quando estejamos perante crime de branqueamento que tenha como antecedente crime de fraude fiscal, impede a verificação da alínea a) do artigo 202.° do Código de Processo Penal. Para tanto, não se pode ignorar toda a construção do artigo 368.°-A do Código Penal e a necessária conjugação, para a análise ora em causa, com a alínea a) do artigo 202.° do Código de Processo Penal. Constata-se, desde logo, que os elementos do tipo legal do crime de branqueamento estão previstos nos n.°s 1 a 5. Já o seu n.° 12 estipula que "a pena aplicada nos termos dos números anteriores não pode ser superior ao limite máximo da pena mais elevada de entre as previstas para os factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens", ou seja, não tem referido a propósito dos elementos do tipo. Em regra, a constituição de uma nova moldura abstracta está associada à criação de um outro tipo de ilícito, o que não sucede no caso do ora apreciado n.° 12. Acresce que,analisando os n.°s 8 a 11 do artigo em questão, onde se prevê a agravação e a atenuação do crime de branqueamento, verifica-se que os mesmos incidem sobre a moldura abstrata do n.° 3, prevista para o branqueamento. O n.° 12 refere "a pena aplicada nos termos dos números anteriores", ou seja, a pena concreta que resulta da aplicação de eventuais agravações ou atenuações que geraram uma outra moldura, donde resulta que neste número do artigo 368.°-A do Código Penal o legislador não se refere a uma moldura abstrata, mas à pena concreta que se vai aplicar, a qual não poderá ultrapassar o limite máximo da pena mais elevada do crime precedente. Por seu turno, o artigo 202.° prevê que só pode ser aplicada a prisão preventiva, no que ora importa: "a)-Houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos; (...) c)-Houver fortes indícios de prática de crime doloso de terrorismo ou que corresponda a criminalidade altamente organizada punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos; (...)" Acompanhando de perto o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22/11/2023, no processo 137/09.0TELSB-D.P1, disponível em www.dgsi.pt1, ali se considera que "A limitação estabelecida no n° 12 incide pois sobre a pena concreta que se apure depois de percorridos todos os passos anteriores que funcionaram com base na moldura abstrata do seu n° 3. O legislador ao afirmar que a pena aplicada depois de aplicados todos os passos anteriores não pode ser superior ao limite máximo da pena mais elevada de entre as previstas para os facos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens, aplica um critério de proporcionalidade, criando uma limitação, um travão, à pena concreta por razões de justiça material, de proporcionalidade por forma a que não se puna mais gravemente do que o crime que esteve na base do branqueamento. Tal norma funciona com uma espécie de travão que pode ou não ser aplicado tudo dependendo da conclusão a que chegue o julgador ao operar sobre a única moldura abstrata que o tipo legal possui, a do seu n° 3. Pois se a pena concreta a que se chegue dentro daquela moldura de 30 dias (2 anos, anterior redação) a 12 anos de prisão for inferior ao limite máximo punível para o crime precedente, o n°12 não chega a entrar em acção. Os limites na pena só operam após se encontrar a pena concreta nos termos dos n°s anteriores e só quando se sabe qual é o crime precedente e a pena encontrada nos termos anteriores for superior ao limite máximo do crime precedente. Tratar-se-á de uma operação residual e se se justificar ao caso concreto. Isto é, se o julgador entender dentro daquela outra moldura que a pena concreta é superior à do crime precedente, então aciona-se o n° 12. A única moldura abstrata que existe é a do n° 3 e é sobre esta que se deverá elaborar o raciocínio sobre a prescrição, sendo que atendendo ao disposto no n° 2 do 118°, as circunstâncias atenuantes não entram para os cálculos do prazo da prescrição. Com o n° 12 protegem-se os valores de ordem constitucional associados ao princípio da proporcionalidade na fixação da pena concreta, mas salvaguardam-se os princípios associados à prescrição, na medida em que o n° 12, não configura uma outra moldura, mas um limite. Ora, se para efeitos de contagem de prescrição não se contam as circunstâncias modificativa agravantes e atenuantes, por maioria de razão não se pode ter em consideração a limitação que no n°12 opera sobre a pena concreta. Mas ainda que se configurasse o n° 12 como uma espécie de sub moldura abstrata, o que não se aceita, pois não mexe nem tem por base qualquer novo tipo de crime, aquela limitação da pena concreta ao limite máximo aplicável ao crime precedente seria materialmente uma espécie de circunstância atenuante atípica," uma circunstância modificativa especial privilegiante" como se refere no parecer junto, pelo que se incluiria no disposto e na ratio do art. 118°, n ° 2 do C.P., não podendo ser considerada para efeitos de determinação do máximo da pena aplicável no que à prescrição diz respeito. Aceitando-se como nova moldura abstrata, o que não se aceita, existe apenas por razões de justiça, de proporcionalidade, sendo materialmente uma variante atenuada da moldura original." A tudo isto acresce o facto de nunca ser tida em conta, na análise do artigo 202.° do Código Penal ou, diga-se, de qualquer outro preceito legal que preveja os requisitos para a aplicação de medidas de coação, qualquer circunstância atenuante (desde logo a possibilidade de atenuação especial da pena) ou agravante. Se tal fosse a intenção do legislador, expressamente se encontraria prevista essa possibilidade nas normas que definem os pressupostos de aplicação de medidas de coação. Assim, permitimo-nos concluir, como no Acórdão supra referido, que "não se pode considerar esta "circunstância modificativa especial privilegiante" enquanto uma mera limitação da pena ao limite máximo da pena prevista para o crime precedente. Em nosso entender o citado n° 12, (antigo n ° 10) à primeira vista parece estar a criar uma moldura diferente para a punição daquele crime, mas o que está a fazer é a restringir a pena concreta ao limite máximo. Mas não é uma moldura abstrata porque não foi sequer criado um novo tipo de crime. O legislador não quis uma moldura especial mas antes estabelecer um travão para evitar injustiças materiais ao abrigo do princípio da proporcionalidade. Não sendo um crime diverso, nem uma moldura autónoma sustentada num novo tipo, funcionando com efeito atenuativo, não tem repercussões sobre os pressupostos de aplicação de medidas de coação, os quais incidem sobre a moldura do branqueamento prevista no n ° 3, antigo n° 2. Acresce ainda como se justificaria o disposto no número 8 do art. 368°-A do C. P. " A pena prevista nos n°s 3 a 5 é agravada em um terço se o agente praticar as condutas de forma habitual ou se for uma das entidades referidas no art. 3° ou no art.4° da Lei n ° 83/2017, de 18 de agosto, e a infração tiver sido cometida no exercício das suas atividades profissionais." Só teria aplicação nestes casos ficando de fora a situação do n° 12 que nunca poderia ser agravada? E como se explica também o disposto no art. 16°, n ° 3 do CPP e já agora o art. 28°, al.a) do CPP. Trata-se de normas de fixação de competência. É entendimento unânime que a limitações ali consideradas não têm implicações ao nível dos prazos prescricionais que laboram sobre as molduras abstratas dos crimes em questão ainda que o juiz do julgamento fique limitado na fixação da pena concreta. Ali não é estipulada uma submoldura abstrata. Posto isto, a moldura a que se atenderá é a do n° 3, todas as demais são as que resultam de alterações posteriores nos números seguintes, mas que são laboradas sobre a prevista no número 3. O ora defendido não põe em causa os critérios estabelecidos no art. 71° do C.P na medida em que para se chegar à pena concreta que depois pode ser reduzida sem outro tipo de valoração serão sempre considerados todos os elementos e circunstâncias reais e pessoais dos crimes subjacentes, inexistindo dupla valoração. Por outro lado, não há afastamento das regras legais comuns de determinação da pena concreta pois que na fixação da medida da pena deve partir dos limites definidos na lei para a pena aplicável ao crime no seu n° 3. A determinação concreta da pena aplicável ao agente do branqueamento deve ser feita com base na moldura aplicável ao crime de branqueamento, mas não há qualquer limitação à partida, da parte superior da moldura aplicável ao crime antecedente, quando este for menos gravemente punido. O crime de branqueamento não comporta duas molduras penais abstratas." Por fim, não se pode deixar de referir que, se fosse essa a intenção do legislador, não faria sentido criar uma moldura penal abstracta para o crime de branqueamento, bastando-se, para tanto, em referir, no n.° 2 do artigo 368.°-A do Código Penal e de forma clara e directa, que a moldura deste crime era a correspondente à do crime precedente (mais grave), nunca sendo, por isso, superior a qualquer um dos crimes precedentes que, no caso, se verificassem. Assim se alcançaria o efeito pretendido pelos requerentes, Ora, não é isso que resulta do n.° 2 do artigo 368.°-A do Código Penal, pelo que não se pode atribuir tal efeito à norma em causa. Uma nota final para chamar à colação o referido no n.° 6 do artigo em análise, onde se refere que a pena prevista é agravada de um terço se o agente praticar as condutas de forma habitual. Ora, se não se pode recolher o melhor de dois mundos, sempre se dirá que, se a pena em concreto não pode ser superior ao limite máximo da pena mais elevada para os crimes precedentes, também na determinação da pena em concreto terá de se ter em conta esta agravação, em um terço, da moldura penal na pena a aplicar, atenta a habitualidade verificada na prática do crime de branqueamento pelo arguido. E, neste caso, sempre se poderia chegar à conclusão que se ultrapassaria o limite previsto no n.° 12 deste artigo. E, mesmo assim, estaríamos a falar em moldura penal a aplicar em concreto. Tal como no Acórdão que acompanhamos, também aqui estão em causa "a prática de factos que configuram uma situação de branqueamento, que como atrás se referiu estão na ordem das exigências de política criminal pelo tipo de bem jurídico que se pretende proteger face à avidez de agentes, que não hesitam em praticar condutas criminosas para obter vantagens desmesuradas." Nos termos expostos, entende o Ministério Público que deve ser indeferido o requerido, por falta de fundamento legal.” *
-» A 6/3/2024 foi deduzida acusação contra o arguido AA, imputando-lhe “a prática, como autor material, na forma consumada e em concurso efectivo, de: - Um crime de tráfico de substâncias e métodos proibidos, previsto e punido pelo artigo 44.º da Lei n.º 38/2012, de 28 de Agosto (pelos factos praticados até 15 de dezembro de 2021) e posteriormente previsto e punido pelo artigo 57.º, nº 1 e 60.º da Lei n.º 81/2021, de 30 de Novembro (pelos factos praticados a partir de 15 de dezembro de 2021), em conjugação com as Portarias n.ºs 324/2016, de 19 de Dezembro, 381/2017, de 19 de Dezembro, 329/2018, de 20 de Dezembro, 404/2019, de 10 de Dezembro, 306/2020, de 29 de Dezembro, 312/2021, de 21 de Dezembro, e 306/2022, de 23 de Dezembro, - Cinco crimes de fraude fiscal, previstos e punidos pelo artigo 103.º, nº 1, al. a), nºs 2 e 3 e 7.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, um dos quais na forma agravada, nos termos do disposto no artigo 104.º, n.º 2, alínea b), do mesmo diploma legal, e - Um crime de branqueamento, na forma habitual, previsto e punido pelo artigo 368.º-A, nº 1, al. j), nºs 2, 3 e 8 do Código Penal.”
Na parte final da acusação, promove o MP: O arguido AA está privado da liberdade, à ordem deste processo, ininterruptamente, desde o dia 7 de Setembro de 2023 (cfr. fls. 2620). Foi submetido a primeiro interrogatório judicial, no âmbito do qual se determinou que aguardasse os ulteriores termos do processo submetido a medida de coação de prisão preventiva, considerando-se estarem verificados os perigos de perturbação do decurso do inquérito e de continuação de atividade criminosa (cfr. fls. 2775-2821). A gravidade dos crimes praticado está patente, desde logo e, por um lado, na moldura penal abstrata que lhes corresponde. Por oluro lado, tratam-se de crimes que vêm sendo cometidos num lapso temporal alargado, pelo menos desde o ano de 2018, sem que os seus autores evidenciassem quaisquer sentimentos de autocensura para com o seu comportamento. De notar que, dos crimes praticados, o arguido auferiu avultadas vantagens patrimoniais, o que denota um forte perigo de continuação da atividade criminosa. Deste modo, continua a fazer-se sentir o perigo de continuação da actividade criminosa. Tal perigo e respectivos pressupostos não só se mantêm, como estão reforçados pela dedução de acusação. Assim, face aos elementos constantes do processo, entende-se que a medida de prisão preventiva é a única adequada a dar resposta às exigências cautelares que se fazem sentir, não tendo ocorrido uma atenuação das mesmas. Requer-se, assim, que o arguido AA aguarde os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coação que lhe foi aplicada, a de prisão preventiva, uma vez que nenhuma outra se nos afigura eficaz à salvaguarda dos perigos que o caso requer - çfr. artigos 191.°, 192.°, 193.°, 195.°, 202.°e 204.°, alíneas a) e c) do Código de Processo Penal. Remeta o processo, de imediato, ao Mmo. Juiz de Instrução, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 213.°, n.° 1, alínea b), do Código de Processo Penal.” *
-» A 7/3/2024 foi proferido o seguinte despacho, de que o arguido recorre: -» V- Atenta a fase processual em que os presentes autos se encontram, não se afigura necessário proceder à audição do arguido. Na diligência de 1.º Interrogatório Judicial de arguido detido, que teve lugar em 08/09/2023, cujo auto de interrogatório integra fls. 2775 a 2820, foi aplicada ao arguido AA a medida de coacção de prisão preventiva, medida de coacção esta que foi reapreciada e mantida, pela última vez, por despacho proferido em 07/12/2023, que integra fls. 3248. Não resulta dos autos que a medida de coacção de prisão preventiva, aplicada ao arguido, o tenha sido fora das condições legais, mantendo-se inalterados, ou até reforçados, atenta a acusação entretanto deduzida pelo Ministério Público, que integra fls. 3776 a 3865 dos autos, os pressupostos que lhe estiveram subjacentes, pelo que, não se mostrando esgotado o prazo máximo da prisão preventiva, deverá o arguido aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, nos termos da interpretação conjugada dos artigos 191.º, 192.º, 193.º, 195.º, 202.º, n.º 1, al. a), 204.º, n.º 1, als. b) e c), 215.º, ns.º 1, al. a) e 2, al. e), a contrario, e 213.º, n.º 1, al. b), todos do Cód. Processo Penal. Comunique imediatamente a presente decisão ao Estabelecimento Prisional competente. Notifique nos termos do disposto no artigo 114.º, n.º 1 do Cód. Processo Penal.
*
IV–FUNDAMENTAÇÃO
Como acima se notou, no presente recurso estão em causa duas decisões: uma que, na sequência de requerimento do arguido, indeferiu a revogação da prisão preventiva e outra que, procedendo à revisão dos pressupostos da prisão preventiva aquando da dedução de acusação, determinou a manutenção da sujeição do arguido à medida de coação de prisão preventiva, por inalteração dos respetivos pressupostos .
O arguido esgrime, quanto a ambas as decisões, a inexistência dos pressupostos de aplicação de tal medida de coação, sustentando que os crimes imputados ao arguido não permitem tal medida de coação e, ainda, quanto à decisão de revisão da medida de coação, que não há indícios fortes dos factos que lhe são imputados nem se verificam os perigos previstos no artigo 204º do Código de Processo Penal.
Começaremos pela primeira questão.
4.1-RECURSO DO DESPACHO DE 29/2: DA REVOGAÇÃO DA PRISÃO PREVENTIVA POR ILEGALIDADE:
Dispõe o art. 212.°, n.° 1 do Cód. Processo Penal, que “1-As medidas de coacção são imediatamente revogadas, por despacho do juiz, sempre que se verificar: a) Terem sido aplicadas fora das hipóteses ou das condições previstas na lei (...)”.
A revogação das medidas de coacção, prevista no artº 212º, nº1, al.a), do CPP, não depende de uma alteração das circunstâncias, ao contrário do que se verifica nas hipóteses do nº1, al. b) e nº3 desse artigo, mas sim da ilegalidade da sua aplicação (neste sentido, Ac. da RL de 12-01-2010, CJ, 2010, T1, pág.131).
Por conseguinte, o juiz está obrigado a apreciar um requerimento feito pelo arguido, ao abrigo do artº 212º, nº1, al.a), do CPP, mesmo que feito sem invocação de qualquer alteração de circunstâncias e não obstante tenha transitado em julgado o despacho de aplicação da medida.
Vejamos então se assiste razão ao recorrente na afirmação de que a prisão preventiva ocorreu por crime pelo qual a lei a não permite, sendo por isso ilegal.
Ora, a medida de coação de prisão preventiva foi aplicada ao arguido com fundamento na existência de fortes indícios de ter praticado um crime de branqueamento, p. e p. pelo artigo 368.º- A, n.ºs 1 e 3, do Código Penal.
Sendo o crime de branqueamento punível com pena de prisão até 12 anos, não nos oferece dúvidas de que admite prisão preventiva, nos termos do artigo 202.º, n.º 1, alínea a) e m) do CPP.
É certo que, referindo-se à pena aplicada, que não à moldura abstrata, o n.º 12 do artigo 368.º- A, estabelece: “A pena aplicada nos termos dos números anteriores não pode ser superior ao limite máximo da pena mais elevada de entre as previstas para os factos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens.”
A este respeito, esclareceu o Ac. do STJ de 24-04-2024, Processo: 2367/23.3GBABF-A.S1, Relator: JORGE GONÇALVES, in www.dgsi.pt: “Em nosso entender, no citado n° 12 ( antigo n ° 10) não se trata aqui da fixação de uma moldura abstrata, mas antes do estabelecimento de um travão à pena concreta para evitar injustiças materiais ao abrigo do princípio da proporcionalidade. A prisão preventiva, como se viu, foi aplicada com fundamento, além do mais, na existência de fortes indícios de a peticionária haver praticado um crime de branqueamento, p. e p. pelo artigo 368.º- A, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, a que corresponde pena de prisão até 12 anos.”
A limitação estabelecida no nº 12 incide, pois, sobre a pena concreta.
Analisando os n.°s 8 a 11 do artigo em questão, onde se prevê a agravação e a atenuação do crime de branqueamento, verifica-se que os mesmos incidem sobre a moldura abstrata do n.° 3, prevista para o branqueamento.
O n.° 12 refere "a pena aplicada nos termos dos números anteriores", ou seja, a pena concreta que resulta da aplicação de eventuais agravações ou atenuações que geraram uma outra moldura e refere-se à pena concreta a aplicar.
Ou seja, esta norma funciona com uma espécie de travão que pode ou não ser aplicado tudo dependendo da conclusão a que chegue o julgador ao operar sobre a única moldura abstrata que o tipo legal possui, a do seu nº 3.
Assim, se a pena concreta a que se chegue dentro daquela moldura de 1 mês a 12 anos de prisão for inferior ao limite máximo punível para o crime precedente, o nº12 não chega a entrar em ação.
Os limites à pena só operam após se encontrar a pena concreta nos termos dos nºs anteriores e só quando se sabe qual é o crime precedente e a pena encontrada nos termos anteriores for superior ao limite máximo do crime precedente. Tratar-se-á de uma operação residual e se se justificar ao caso concreto.
Isto é, se o julgador entender dentro daquela outra moldura que a pena concreta é superior à do crime precedente, então aciona-se o nº 12.
Em suma: com n.º 12 do art.º 268-A do CP a moldura penal abstrata do crime de branqueamento não é alterada por via da sua conjugação com a moldura penal abstrata do crime precedente.
Neste sentido se pronunciou o Ac. da RP de 22-11-2023, Processo:137/09.0TELSB-D.P1, Relator: PAULO COSTA:
“O legislador, ao afirmar que a pena aplicada depois de aplicados todos os passos anteriores não pode ser superior ao limite máximo da pena mais elevada de entre as previstas para os facos ilícitos típicos de onde provêm as vantagens, aplica um critério de proporcionalidade, criando uma limitação, um travão, à pena concreta por razões de justiça material, de proporcionalidade por forma a que não se puna mais gravemente do que o crime que esteve na base do branqueamento. Os limites na pena só operam após se encontrar a pena concreta nos termos dos nºs anteriores e só quando se sabe qual é o crime precedente e a pena encontrada nos termos anteriores for superior ao limite máximo do crime precedente. Tratar-se-á de uma operação residual e se se justificar ao caso concreto. Isto é, se o julgador entender dentro daquela outra moldura que a pena concreta é superior à do crime precedente, então aciona-se o nº 12. A única moldura abstrata que existe é a do nº 3 e é sobre esta que se deverá elaborar o raciocínio sobre a prescrição, sendo que atendendo ao disposto no nº 2 do 118º, as circunstâncias atenuantes não entram para os cálculos do prazo da prescrição.”
Aliás, e como já referido, o crime de branqueamento e a respectiva reacção penal são autónomos em relação ao facto ilícito típico subjacente. Assim, não importa que este último não tenha sido efectivamente punido, por exemplo, por inimputabilidade penal do agente, morte deste, prescrição, ou simplesmente, impossibilidade de determinar quem o praticou e em que circunstâncias.
O tipo do branqueamento exige apenas que as vantagens provenham de um facto ilícito-típico, não de um crime, donde a punição do branqueamento não depende de efectiva punição pelo facto precedente.
Quer isto dizer que a prisão preventiva foi motivada por facto pelo qual a lei a permite, porquanto o crime fortemente indiciado, de branqueamento, sendo punível com pena de prisão até 12 anos, admite prisão preventiva, nos termos do artigo 202.º, n.º 1, alínea a), do CPP.
Entende o recorrente que a norma ínsita nos artigos 202.°, n.° 1, alínea a), e 195.° do Código de Processo Penal, interpretadas isoladamente ou de forma conjugada, no sentido de que a pena máxima do crime de branqueamento a ter em conta para aplicação da medida de coação de prisão preventiva é a do artigo 368.°-A, n.° 3, e não a do seu n.° 12, quando a aplicação do n.° 12 tenha por efeito a limitação da pena aplicada a um quantum inferior a 5 anos, é inconstitucional por violação do disposto nos artigos l.°, 2.°, 18.°, n.os 1 e 2, 27.°, n.os 1 e 3, alínea a) e 5, 28.°, n.° 2, e 32.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa.
Ora, o direito a não ser detido, preso ou total ou parcialmente privado da liberdade não é um direito absoluto e, à semelhança da CEDH, a Constituição da República, no art. 27º n.º 2 e 3, admite expressamente que o direito à liberdade pessoal possa sofrer restrições.
Das providências cautelares de natureza pessoal processualmente previstas, a prisão preventiva é a medida coativa mais restritiva da liberdade individual. Exige a concorrência em cada caso dos requisitos comuns às demais medidas de coação – sejam positivos (art. 191º n.º 1, 192º n.º 1, 193º n.ºs 1 e 2, 204º), sejam negativos (art. 192º n.º 6) -, e dos pressupostos específicos - positivos (art. 202º) e negativos (art. 193º n.º 3 e 194º n.º 3, todas as normas citadas do CPP). Ademais da reserva de lei, está também submetida à reserva de juiz (só pode ser aplicada em decisão judicial). A drástica restrição ao direito fundamental à liberdade ambulatória que encerra, não permite que seja aplicada se não se revelar a única adequada a acautelar o normal desenvolvimento do procedimento (a finalidade primordial desta e de qualquer outra medida coativa) ou a obstar a que o arguido se exima à execução da fortemente previsível condenação.
Constituindo as restrições ao direito à liberdade restrições a um direito fundamental integrante da categoria de direitos, liberdades e garantias, estão sujeitas às regras do artigo 18º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, o que quer dizer que «só podem ser estabelecidas para proteger direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, devendo limitar-se ao necessário para os proteger» (nestes precisos termos, GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição revista, I vol., Coimbra, pág. 479).
Ora, o crime de branquamento insere-se no conceito de criminalidade altamente organizada, na definição da al. m), do art. 1.º, do CPP e, considerando a moldura penal cominada, admite prisão preventiva, independentemente da moldura penal cominada para o crime precedente.
Trata-se de um tipo de crime derivado ou de segundo grau, uma vez que pressupõe a prévia concretização de um facto típico ilícito.
Diz-se no Ac da RG de 23/5/2023, Processo: 1391/20.2T9BRG.G1, Relator:CRUZ BUCHO:
“Mas o branqueamento não é o mero aproveitamento do crime base, rectius do facto ilícito típico anterior, e por ele consumido, constituindo antes “uma infracção autónoma, violadora de um bem jurídico diverso da infracção subjacente”(Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, Lisboa, 2009, pág. 268), um crime “autónomo e dotado de intencionalidade própria”, “distinta da dos ilícitos antecedentes”(André Lamas Leite, O crime de branqueamento na recção da lei n.º 83/2007, de 18/8: a importância de ver para além das aparências, in Cândido da Agra e Fernando Torrão (coord.), Criminalidade Organizada e Económica, Universidade Lusíada Editora, Porto, 2018, págs. 68 e 74, respectivamente). Como se salientou no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 11-06-2014 proc. 14/07.0TRLSB.S1, rel. Cons.º Raul Borges "[o] crime de branqueamento de capitais é estruturalmente autónomo da criminalidade subjacente", que "[desde] que se tenha verificado a prática do crime base e sejam praticados atos subsumíveis ao tipo de branqueamento, este ganha autonomia, no sentido de que o respetivo agente será penalmente perseguido mesmo nos casos em que por exemplo, o autor do crime base seja penalmente inimputável, morra, ou o procedimento criminal por tal crime se encontre prescrito" e que «[pode] haver "crime de branqueamento", mesmo que os fatos subjacentes não sejam criminalmente puníveis».
Portugal pune o crime de branqueamento de capitais como um crime de acção autónomo em relação ao crime subjacente
Sobre a identificação dos bens jurídicos tutelados pelo crime de branqueamento, é maioritária a tese de que se tutela o interesse do Estado na realização ou administração da justiça, na sua particular vertente da perseguição e do confisco pelos tribunais dos proventos da actividade criminosa, como se salienta no Acórdão acima referido, elencando de forma exaustiva a doutrina e a jurisprudência que se pronuncia nesse sentido: “cf.na doutrina Jorge Alexandre Fernandes Godinho Do crime de Branqueamento» de Capitais: Introdução e Tipicidade, Coimbra, 2001, págs. 140-148, Pedro Caeiro, A Decisão-Quadro do Conselho de 26 de Junho de 2001 e a relação entre a punição de branqueamento e o facto precedente: necessidade e oportunidade de uma reforma legislativa in Costa Andrade e outros, “Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias”, Coimbra 2003, págs. 1086-1087 e 1096, Paulo Sousa Mendes, Sónia Reis e António Miranda, A Dissimulação dos pagamentos na corrupção será punível também como branqueamento de capitais?, cit, pág. 779, Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, cit, págs. 255, 256 e 268, Germano Marques da Silva, “Notas sobre branqueamento de capitais em especial das vantagens provenientes da fraude fiscal” in Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles: 90 anos /Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa, Coimbra, 2007, pág. 459, Patrícia Teixeira Lopes, O Regime Jurídico do Branqueamento de capitais- contributo para alteração do direito positivo português, Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas, n.º 13, 2008, pág. 175, Pedro Caeiro, “Contra uma política criminal ‘à flor da pele’: a autonomia do branqueamento punível em face do branqueamento proibido”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade, vol. I, Coimbra, 2017, págs. 287 e 301, André Lamas Leite, O crime de branqueamento na recção da lei n.º 83/2007, de 18/8: a importância de ver para além das aparências, in Cândido da Agra e Fernando Torrão (coord.), Criminalidade Organizada e Económica, Universidade Lusíada Editora, Porto, 2018, págs. 70-74, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 5ª ed. atualizada, Lisboa, 2022. págs. 1255 e 1261 e Anabela Miranda Rodrigues, “O crime de branqueamento sob o signo da expansão (as modalidades de ação típica resultantes da Lei n.º 58/2020, de 31/8”, in Prof. Doutor Augusto Silva Dias In Memoriam, vol. I, Lisboa, 2022, págs.529-530; e na jurisprudência v.g. os Acs do STJ de 27-4-2022, proc.º n.º 248/11.2TAGLG.S1, rel. Cons.ª Conceição Gomes, de 11-6-2014, proc.º n.º 14/07.0TRLSB.S1, rel. Cons.º Raul Borges, de 8-1-2014, proc.º n.º 7/10.0TELSB.L1.S1, rel. Cons.º Armindo Monteiro, da Relação de Guimarães de 27-5-2019, proc.º n.º 85/08.1TAMCD.G2, rel. Isabel Cerqueira, da Relação do Porto de 16-3-2022, proc.º n.º109/19.7TELSB-G.P1, rel. Paulo Costa, de 7-2-2007, proc.º n.º 0616509, rel. Maria do Carmo Silva Dias, da Relação de Lisboa de 14-12-2021, proc.º n.º 324/14.0TELSB-DM.L1-5, rel. Fernando Ventura, de 30-10-2019, proc.º n.º 405/14.0TELSB.L1-3, rel. Cristina Almeida e Sousa, de 16-10-2019, proc.º n.º 4910/08.9TDLSB.L1-3-1ªPARTE, rel. Margarida Ramos de Almeida, de 6-6-2017, proc.º n.º 208/13.9TELSB.G.L1-5, rel. Ricardo Cardoso, de 24-9-2014, proc.º n.º 142/12.0TELSB.L1-3, rel. Nuno Coelho e de 18-7-2013, proc.º n.º 07/18/2013, rel. Rui Gonçalves, todos disponíveis em www.dgsi.pt”.
De qualquer modo, o fim visado com a prática do crime de branqueamento é sempre a dissimulação da origem ilícita dos bens a branquear, ou evitar que os autores ou participantes dos crimes-base sejam criminalmente perseguidos e submetidos a uma sanção penal.
É consensual que o branqueamento é uma conduta altamente desvaliosa que lesa indiscriminadamente todos os membros da comunidade económica.
Nesta medida, dada a relevância do bem jurídico tutelado, a interpretação perfilhada neste acórdão, de que o crime de branqueamento, dada a sua moldura penal abstrata, permite a sujeição do respetivo autor a prisão preventiva independentemente da moldura penal do crime precendente, não enferma de qualquer inconstitucionalidade, não constitui uma restrição desnecessária, inadequada e desproporcional ao direito fundamental à liberdade, e nessa medida não acarreta uma violação do disposto nos artigos 1º, 2º, 27º, 28º, n° 2, e 32.°, n.° 1e 18º, n° 1 e 2, da CRP.
Em razão do exposto, não merece censura o despacho recorrido.
Termos em que improcede o recurso neste segmento.
4.2.-Recurso do despacho de 7/3/2024: da existência/subsistência dos pressupostos da prisão preventiva:
Não questionando o recorrente a existência de fortes indícios dos factos imputados alega, por um lado, que os crimes de que se mostra acusado não permitem a aplicação da medida de coação de prisão preventiva e, por outro lado, que o perigo de continuação da actividade criminosa, em cuja existência se fundamentou o despacho recorrido, já não subsiste. Mais salienta que a menção à alínea b) do artigo 204.° no despacho judicial de renovação da medida de coação, configura igualmente um lapso, já que em momento algum o Ministério Público o promove (refere-se apenas ao alegado “perigo de continuação da atividade criminosa”), e o juiz de instrução, que até poderia aplicar oficiosamente este requisito, não o fundamenta, como teria de fazer, perante a sua novidade
Vejamos.
A Constituição da República, no art. 28º n.º 2 consagra a excecionalidade, subsidiariedade e precaridade da prisão preventiva, estabelecendo que “tem natureza excecional, não sendo decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei”.
Dando expressão ao comando constitucional citado, os pressupostos legais da prisão preventiva estão explicitados no CPP.
Para além dos requisitos gerais de qualquer medida coativa - enunciados nos artigos 191º (legalidade), 192º (constituição de arguido; não haver de fundados motivos para crer na existência de causas de isenção da responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal), 193º (necessidade e adequação às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionalidade à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas) e 204º (fuga ou perigo de fuga; perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas) a aplicação da prisão preventiva exige também a verificação de pressupostos específicos elencados nos arts. 193º n.º 2 (só pode aplicar-se como medida de último recurso, quando outra medida coativa legalmente prevista se revelar inadequada ou insuficiente) e no art. 202º (haver fortes indícios da prática dos crimes aí referidos).
A decisão que impuser a prisão preventiva deve estar motivada – art. 205º n.º 1 da CRP - com a indicação da factualidade fortemente indiciada, a enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime a respetiva qualificação jurídica, as razões de facto que justificam as exigências cautelares (máxime: os perigos de fuga, de continuação da atividade criminosa, de perturbação da investigação ou de perturbação da ordem e da tranquilidade pública) e das razões da inadequação e insuficiências das restantes medidas coativas.
Para encurtar a privação da liberdade, ao mínimo indispensável a assegurar as finalidades do procedimento penal, impõe-se controlar periodicamente se subsistem ou se, ao invés, se atenuaram ou cessaram as exigências cautelares que determinaram a sua aplicação, devendo ser revogada ou substituída por outra medida de coação logo que as circunstâncias que motivaram deixaram de subsistir ou simplesmente enfraqueceram ou se atenuaram de tal modo que já não a justifiquem.
Assim, e no que ao caso dos autos interessa, estabelece o art.º 213º n.º 1 do CPP que o juiz procede ao reexame dos pressupostos da prisão preventiva quando no processo for deduzida acusação.
Salienta-se que a decisão que determina a prisão preventiva, se não for objecto de recurso ou, tendo-o sido, for mantida nos seus precisos termos, adquire força de caso julgado, sem prejuízo do princípio “rebus sic stantibus” a que estão sujeitas às medidas de coacção.
Tal significa que: «enquanto não ocorrerem alterações fundamentais na situação existente à data em que foi determinada a prisão preventiva, não pode o tribunal reformar essa decisão, sob pena de instabilidade jurídica decorrente de julgados contraditórios» - neste sentido se tem pronunciado abundantemente a jurisprudência, de que são exemplo os Acórdãos da RL de 11-04-2019, Process:233/18.3PDVFX-A.L1-9, Relator: MARIA DO CARMO FERREIRA e de 20 Novembro 2019, Processo: 44/19.9PKLRS-B.L1-3 Relator: ALFREDO COSTA e da RE de 08-03-2018, Processo:110/13.4 PEBRR-E.E, Relator: ANTÓNIO CONDESSO.
Desta forma, e ao contrário do que sucede com a decisão que aplica a medida de coação, quando procede ao reexame não cabe ao juiz sindicar a decisão que aplicou a medida de coação, mas apenas verificar se entretanto ocorreu, ou não, uma atenuação das exigências cautelares que justificaram a imposição de tal medida de coação.
Assim, quer nas circunstâncias tidas em vista no artigo 212º do Código de Processo Penal, quer no âmbito do reexame ex officio imposto pelo artigo 213º do mesmo diploma legal (só aplicável às medidas de coação privativas da liberdade), a lei pressupõe sempre que algo mudou entre a primeira e a segunda decisão. Em caso algum pode o juiz, sem alteração dos dados de facto ou de direito, rever o despacho anterior ou, simplesmente, revogar a anterior decisão.
É do despacho de reexame proferido aquando da dedução da acusação, que o arguido recorre.
Reitera-se que não está em causa o despacho que aplicou a medida de coacção, que se encontra transitado em julgado, mas apenas aquele que efectuou o reexame dos pressupostos da aplicação daquela medida.
Lembramos também que é entendimento deste Tribunal que o crime de branqueamento (aqui, na forma habitual), previsto e punido pelo artigo 368.º-A, nº 1, al. j), nºs 2, 3 e 8 do Código Penal, de que o arguido está acusado permite a aplicação da medida de coação de prisão preventiva nos termos do disposto no art.º 202 n.º 1 al. a) e c) do CPP.
E não podemos deixar de salientar que um dos crimes precedentes de que o arguido é acusado – o crime de fraude qualificada, previsto e punido pelo artigo 103.º, nº 1, al. a), nºs 2 e 3 e 7.º 104.º, n.º 2, alínea b), do Regime Geral das Infracções Tributárias, é punido com prisão de um a cinco anos pelo que, mesmo que perfilhássemos a tese do recorrente explanada no recurso, seria admissível a prisão preventiva pelo crime de branqueamento.
Posto isto, naturalmente que só a verificação da alteração factual dos pressupostos que fundaram a fixação daquela medida poderiam fazer diminuir as exigências cautelares e alterar os pressupostos da medida de prisão preventiva fixada: no caso, o perigo de perturbação do decurso do inquérito ou o perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa.
O Ministério Público requereu a manutenção do estatuto coativo do arguido considerando apenas a existência de perigo de continuação da atividade criminosa, sem que tenha feito qualquer referência ao perigo de perturbação do inquérito, certamente considerando que este perigo deixou de subsistir com a dedução da acusação.
E com razão, dir-se-á, pois o perigo assinalado na ata do primeiro interrogatório judicial de arguido detido foi precisamente o perigo de perturbação do decurso do inquérito e cessou já o inquérito.
Temos então, a fundamentar a sujeição do arguido a prisão preventiva, a subsistência do perigo de continuação da atividade criminosa.
Na sua alegação, o recorrente, não pondo em causa o substrato indiciário que fundamentou a aplicação da medida de coação a que se encontra sujeito, sustenta ter ocorrido uma alteração dos respetivos pressupostos, referindo, designadamente, que a prova foi recolhida, os bens foram identificados, o que tinha de ser apreendido já foi, pelo que deixaram de se verificar os pressupostos com base nos quais foi decretada a prisão preventiva”
Trata-se de uma circunstância factual nova, concreta, que o Tribunal tem de avaliar para consequentemente decidir pela alteração da medida de coacção anteriormente aplicada.
Ora, como é sabido, o perigo de continuação da actividade criminosa decorre da natureza e circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido e respeita apenas à continuação da actividade criminosa que se mostra indiciada no processo, o que se verificará com a execução do mesmo ilícito e bem assim com outros análogos ou da mesma natureza.
In casu, lidos os factos descritos na acusação deduzida, cuja forte indiciação não é questionada, vemos que a conduta criminosa do arguido se desenvolveu durante um largo período de tempo, salientando-se a facilidade com que o arguido movimenta o dinheiro proveniente de crimes graves. Não estamos, de forma alguma, perante uma pessoa que praticou uma conduta isolada, mas antes perante alguém que se dedica de forma assídua, continuada, ao branqueamento de capitais, socorrendo-se da família próxima nesta sua atividade e movimentando quantias avultadas de dinheiro.
Ao praticar estes factos, o arguido demostrou possuir uma personalidade temerária, ávida, indiferente ao dever ser jurídico penal, pelo que, habituando-se aos lucros que advêm desta atividade, tendo os conhecimentos, os contactos, a experiência, certamente que não terá pejo em reatar esta sua atividade, logo que se depare com a ausência dos rendimentos a que se habituara e se sinta psicologicamente pressionado para fazer lucros de uma forma rápida.
A personalidade do arguido, materializada nos factos que acima se descreveu, a sofisticação da sua atuação, os elevados proventos económicos que esta atuação gerou para si, o período de tempo alargado em que actuou, de modo organizado e reiterado, envolvendo familiares diretos, revelando domínio dos factos, fazem com que o tribunal esteja convicto que sem a aplicação de uma medida de coação idónea, o arguido reiterará a atividade criminosa.
Não será certamente a circunstância de ter sido deduzida acusação, de terem sido apreendidos bens e de ter sido identificado património do arguido, que irá alterar ou atenuar este perigo.
Face à especial intensidade do perigo a que acabou de se aludir, considera pois este Tribunal que apenas uma medida de coação privativa da liberdade será idónea a pôr cobro ao mesmo.
A prisão preventiva, sendo proporcional à pena que previsivelmente pode vir a ser aplicada ao recorrente, é também adequada a prevenir a concretização dos assinalados perigos, não se mostrando por isso que tenham sido violados os princípios da adequação e proporcionalidade.
Importa apreciar (dada a natureza subsidiária e excepcional da prisão preventiva) se a medida de coação de permanência na habitação - à qual deve ser dada preferência, quando couber ao caso medida de coacção privativa da liberdade, nos termos do n°3 do art.° 193° do CPP - responderia de uma forma suficientemente eficaz aos perigos verificados.
Ora, não podemos deixar de subscrever a opção feita pelo Sr. Juiz a quo.
Perante uma tão profusa e prolongada actividade delituosa que os factos evidenciam, realizada de forma tão organizada e lucrativa, existe manifestamente um risco sério de, não obstante as limitações da liberdade ambulatória, se permitir a continuação dos factos delituosos a partir da residência, sem qualquer possibilidade de controlo das autoridades.
Concluímos assim que o despacho recorrido mostra-se suficientemente fundamentado e encontram-se preenchidos os pressupostos, quer os de carácter geral, quer os de carácter específico, legalmente exigidos para que reexaminando a medida de coação, se tivesse mantido a sujeição do arguido recorrente a prisão preventiva, medida essa que, de entre o elenco das medidas de coação que a lei prevê, é a única que, por ora, se mostra capaz de satisfazer de forma adequada e suficiente as exigências cautelares que o caso requer, concretamente o perigo de continuação da atividade criminosa.
Uma última nota: os lapsos de escrita apontados na promoção e no despacho recorrido deverão ser invocados na primeira instância.
Improcede por conseguinte o recurso neste segmento.
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Tudo visto, improcede integralmente o recurso, confirmando-se os despachos recorridos e mantendo-se o recorrente em prisão preventiva.
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V–Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, confirmando os despachos recorridos, que se mantêm, nos seus precisos termos.
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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
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Comunique-se de imediato à 1ª instância, com cópia.
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Lisboa, 21 de maio de 2024
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)
Sara Reis Marques (Juíza Desembargadora Relatora)
Luísa Oliveira Alvoeiro (Juíza Desembargadora Adjunta)
Maria José Machado (Juíza Desembargadora Adjunta)