HABEAS CORPUS
PRISÃO ILEGAL
INTERNAMENTO COMPULSIVO
TRATAMENTO INVOLUNTÁRIO EM INTERNAMENTO
INDEFERIMENTO
Sumário


I - O direito à liberdade consagrado nos arts. 27.º e 31.º da Constituição é o direito à liberdade física, de “ir e vir”, à liberdade ambulatória ou de locomoção, à liberdade de movimentos, o direito de não ser detido, aprisionado ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço; visando proteger a liberdade física da pessoa, confere o direito de não ser detido ou preso pelas autoridades públicas, salvo nos casos expressa e excecionalmente previstos na lei e de acordo com os procedimentos e prazos legalmente previstos.

II - O Habeas corpus abrange qualquer forma de privação da liberdade não admitida pelo art. 27.º da Constituição, aqui se incluindo «o internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente» [n.º 3, al. h)], o que, lido em conjugação com o art. 64.º, n.º 1, que consagra o direito à proteção na saúde, impõe a observância dos requisitos impostos pelo n.º 2 do art. 18.º quanto à restrição de direitos fundamentais, a qual que se encontra assegurada pela Lei n.º 35/2023, de 21/07, que aprova a nova lei de saúde mental, disciplinando o processo de tratamento involuntário da doença mental.

III - A admissibilidade da privação da liberdade de portador de anomalia psíquica encontra-se prevista na al. e) do n.º 1 do art. 5.º da CEDH que a admite, «de acordo com o procedimento legal» que ofereça as necessárias garantias contra a arbitrariedade, «se se tratar da detenção legal de um alienado mental, de um alcoólico, de um toxicómano», com respeito por critérios de necessidade, adequação e proporcionalidade, na apreciação da gravidade da doença que deva justificar o internamento para fins terapêuticos e proteção dos interesses da pessoa em causa e com sujeição à reserva de uma decisão judicial.

IV - O âmbito de proteção do art. 27.º da Constituição e do art. 5.º da CEDH, abrange a privação total e parcial da liberdade, por autoridade pública, que não se confunde com restrições ou limitações ao direito de deslocação garantido pelo art. 44.º da Constituição (art. 2.º do Protocolo n.º 4 à CEDH).

V - A Lei 35/2023 prevê que a pessoa privada da liberdade possa requerer a providência de Habeas corpus em caso de detenção ilegal com os fundamentos previstos no n.º 1 do art. 45.º, sendo competente para conhecer do pedido de libertação o tribunal da área onde a pessoa detida se encontrar.

VI - Ordenada judicialmente a privação da liberdade para tratamento involuntário com internamento, nos termos da Lei n.º 35/2023, pode o STJ conhecer de um pedido de Habeas corpus, nos termos e com os fundamentos previstos nos arts. 222.º a 224.º do CPP, por remissão do art. 37.º da Lei n.º 35/2023, que, nos casos omissos, manda aplicar subsidiariamente o CPP, e na coerência do sistema, por aplicação direta do art. 31.º da Constituição (art. 18.º, n.º 1, da Constituição).

VII -O requerente encontra-se, por decisão judicial, em tratamento involuntário em ambulatório, isto é, em liberdade; não se encontra sujeito a tratamento involuntário em internamento, ou seja, em privação da liberdade. A caraterização do tratamento como «involuntário» resulta apenas do facto de ser decretado pelo tribunal, na definição da al. b) do art. 2.º da Lei n.º 35/2023.

VIII -Não se verificando que o requerente se encontra em «prisão», na aceção do art. 222.º do CPP, carece o pedido manifestamente de fundamento, sendo, por esse motivo, indeferido.

Texto Integral

Proc. n.º 2683/22.1T8LRA-A.S1

Habeas Corpus

ACÓRDÃO

Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. AA, com a identificação dos autos, vem requerer a providência de habeas corpus, em petição por si subscrita, nos seguintes termos (transcrição):

“Venho por este meio entregar mais uma vez outro pedido de Habeas Corpus, desta vez entregue na secretaria do tribunal, para pedir este meu direito que tem sigo ignorado no verdadeiro sentido da palavra, tenho ficado sempre sem resposta aos mesmos (como se não existissem). Espero uma resposta escrita a este. Relembro que os Habeas Corpus são pedidos especiais urgentes com um objectivo claro e especificado na lei. Obrigado.

Cumprimentos,

AA

AA (AA(5)gmail.com) | CC#: ... ZX4

Venho desde já requer o Habeas Corpus que defendo de seguida com os seguintes pontos:

1. Não existem factos nem referências a distúrbios ou de perigosidade iminente para bens jurídicos em todo o processo. Só este facto deve levar à nulidade do mesmo segundo a lei.

Mesmo que existisse de facto, não há provas no processo de tal.

2. Existe uma penalização negativa à minha pessoa por uma razão a que sou alheio e que me debilita fisicamente e psicologicamente. Inibe-me a própria defesa. Deve ser contudo procurada a razão do porquê desta penalização, mas penso que isso já será caso de polícia.

3. Continuaremos em processo a discutir todos os detalhes, sem as penalizações impostas. O que importa é a resolução do mesmo e não a minha obrigação de tomar seja o que for, certo? O apuramento da verdade é mais prático se eu deixar de ser penalizado e continuarmos a discutir. Se precisam de provas, evidências ou qualquer outra coisa poderão procurar de futuro, visto o passado estar para trás.

4. A existência ou não de histórias que achem estranhas ou delirantes, talvez por se encontrarem fora de contexto, mas insistentemente as quererem negar cegamente, de pouco avalia uma esquizofrenia, segundo a Classificação Internacional de Doenças (CID-11).

Discurso lógico, comportamento correcto, sintomatologia positiva, etc, entre outras frases que se ouvem por aí. Embora me possam achar agressivo a esta hora já lá vão 10 anos de conversa calma sempre a tentar esclarecer o assunto.

5. O julgamento por parte da Juíza em relação a foro mental está fora da sua competência, e deve ser idónea, justa e apenas regida pela lei. A detenção foi ilegal, a meu ver, visto a juíza não se ter provido de provas concretas, nem ter exigido tal para efectuarem o mandato de captura.

Espero resposta urgente a este pedido.

... 2024”

2. Da informação prestada pela Senhora Juiz do processo, a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), sobre as condições em que foi efectuada e se mantém a alegada privação da liberdade, consta o seguinte (transcrição):

«Vi que o presente Apenso foi criado e instruído conforme determinado em Despacho proferido nos autos principais, pelo que passo a prestar informação nos termos e para os efeitos previstos no artigo 223.º, n.º1 do C.P.P., ex vi artigo 37.º da Lei n.º 35/2023, de 21 de Julho, a respeito dos fundamentos fácticos e jurídicos pelos quais determinei que requerido AA se mantivesse em tratamento involuntário ambulatório, no ..., sem prejuízo dos prazos e eventuais situações de revisão, por Decisão última proferida em ........2024.

O Requerido apresentou o pedido de habeas corpus que antecede, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, alegando, além do mais, a ausência de factos quanto à perigosidade, a falta de provas concretas e à incompetência da presente Juíza.

Nos termos do artigo 222.º, n.º2 do Código de Processo Penal, a «petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de: a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial».

Nos termos do artigo 15.º da Lei de Saúde Mental, «são pressupostos cumulativos do tratamento involuntário: a) A existência de doença mental; b) A recusa do tratamento medicamente prescrito, necessário para prevenir ou eliminar o perigo previsto na alínea seguinte; c) A existência de perigo para bens jurídicos pessoais ou patrimoniais: i) De terceiros, em razão da doença mental e da recusa de tratamento; ou ii) Do próprio, em razão da doença mental e da recusa de tratamento, quando a pessoa não possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento; d) A finalidade do tratamento, conforme previsto no artigo anterior. 2 - O tratamento involuntário só pode ter lugar se for: a) A única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito; b) Adequado para prevenir ou eliminar uma das situações de perigo previstas na alínea c) do número anterior; e c) Proporcional à gravidade da doença mental, ao grau do perigo e à relevância do bem jurídico. 3 - O tratamento involuntário tem lugar em ambulatório, assegurado por equipas comunitárias de saúde mental, exceto se o internamento for a única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito, cessando logo que o tratamento possa ser retomado em ambulatório».

In casu, por Decisão proferida em sede de sessão conjunta, realizada em ........2022, e ao abrigo do disposto nos artigos 6.º, n.º 1, 7.º, alínea a), 8.º, 12.º, n.º 1, 20.º, 27.º e 33.º todos da Lei de Saúde Mental então vigente – a Lei n.º 36/98, de ..., determinou-se que o Requerido se mantivesse em tratamento compulsivo em ambulatório, no .... As revisões obrigatórias, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 35.º da Lei n.º 36/98, de ... foram tendo lugar, a última delas já ao abrigo da Nova Lei de Saúde Mental, aprovada pela Lei n.º 35/2023, de ..., por Decisão proferida em sede de audição para revisão, realizada ........2024, pelo qual se determinou a manutenção da medida de tratamento involuntário em ambulatório.

Tendo presente o supra exposto, a área de residência do Requerido e o disposto no artigo 34.º, n.º 1, a) da Lei de Saúde Mental, não se suscitam dúvidas em torno da competência do presente Tribunal e deste Juízo local criminal de ... para a apreciação e decisão em torno da revisão, designadamente para a prolação da sobredita Decisão proferida em ........2024, de manutenção da medida de tratamento involuntário em ambulatório em curso.

Outrossim, ora quanto ao prazo fixado pela lei para a revisão daquela medida, não há dúvidas em torno da estrita observância do prazo de dois meses previsto no artigo 25.º, n.º 2 da Lei de Saúde Mental, visto que não decorreram, ainda, dois meses sobre a sobredita Decisão que, em ........2024, determinou a manutenção da medida de tratamento involuntário em ambulatório, encontrando-se, ademais, agendada para o próximo dia ... de ... de 2024 a audição dos Sujeitos Processuais com vista à próxima revisão, nos termos e para os efeitos do artigo 25.º, n.ºs5 e 6 da Lei de Saúde Mental.

Por fim, a sobredita Decisão de Revisão proferida em ........2024 – conforme, de resto, todas as que a antecederam –, foi motivada por facto pelo qual a Lei de Saúde Mental não só o permite, como, e sobretudo, o impõe, senão veja-se pelo que se explicita infra em síntese.

O Requerido foi conduzido ao Serviço de Urgência no dia ... de ... de 2022, por descompensação psicótica na sequência de incumprimento terapêutico, com antecedentes de esquizofrenia desde há longa data e um internamento compulsivo em ... por episódio psicótico, bem como consumo regular de cannabis, tendo, por isso, entre os dias ........2022 e ........2022, sido internado compulsivamente no .... O Requerido, durante aquele internamento, evidenciou momentos bizarros e solilóquios, delírio persecutório sistematizado e atividade alucinatória auditivo-verbal.

O Requerido, na sua última consulta com vista à sua avaliação clínico-psiquiátrica, realizada em ........2024, voltou a questionar o diagnóstico médico.

O Requerido mantém, segundo o Próprio, o consumo de canabinóides, o que agudiza a sintomatologia associada à sua doença.

O Requerido mantém total ausência de insight para a sua doença, para o seu estado mórbido e para a necessidade de medicação, o que é ostensivo quer em consulta com os Senhores Médicos, quer em tribunal, diante dos Sujeitos Processuais, incluindo da presente Subscritora.

Em termos psicopatológicos, o Requerido apresenta-se vígil, pouco colaborante, tenso, confrontativo e com agressividade latente, chegando a ameaçar os entrevistadores, com discurso espontâneo e lógico, com períodos de aumento do volume e uso de vernáculo.

O Requerido apresenta humor irritável.

O Requerido esboça atividade delirante de prejuízo.

Há um risco significativo de abandono da terapêutica.

A uma eventual ausência de tratamento associa-se a elevada probabilidade de descompensação da sua doença, com consequências médico/sociais/legais graves para o Próprio e para terceiros. A doença do Requerido, se não tratada, confere um aumento significativo do risco de agravamento/recorrência da sintomatologia psicótica com consequente aumento da probabilidade de alterações de comportamento imprevisíveis, nomeadamente atos auto e heteroagressivos, podendo, ainda, verificar-se deterioração do seu estado de saúde, com alterações nos domínios psicótico, afetivo, cognitivo e/ou comportamental, incluindo a possibilidade de deterioração cognitiva irreversível.

O requerido AA foi diagnosticado com doença mental grave, em concreto, esquizofrenia, cujos sintomas persistem e agudizam diante do consumo de cannabis que mantém, não obstante os conselhos médicos em sentido diverso; continua a revelar – senão mesmo tem vindo a intensificar – uma total falta de insight para esta sua doença mental grave, assim como para as necessidades de tratamento associadas, que se reconduz, de forma clara, a uma recusa de tratamento; que, por seu turno, se apresenta de particular relevo pois que aquela doença, na ausência ou abandono da respetiva medicação e tratamento, determina o Requerido a alterações do seu comportamento com perigo para bens pessoais e/ou patrimoniais próprios e/ou de terceiros; o que, de resto, esteve na génese do tratamento involuntário em internamento de urgência, ponto de partida dos presentes autos, outrossim à manutenção da medida de tratamento compulsivo ambulatório, então e sempre orientado para a recuperação integral do Requerido, mediante intervenção terapêutica e reabilitação psicossocial.

O tratamento involuntário em ambulatório continuava, à data daquela Decisão em ........20, a apresentar-se como a única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito, sendo, ademais, adequado para prevenir a existência de perigo para bens jurídicos pessoais ou patrimoniais do Próprio e/ou de terceiros, assim como proporcional à gravidade da psicose diagnosticada, ao grau do perigo e à relevância do bem jurídico.

Por todo o exposto, e salvo o devido respeito por Opinião diversa, afigura-se-me que o presente habeas corpus é manifestamente infundado e que a privação da liberdade do Requerido, resultante da medida de tratamento involuntário em ambulatório, aplicada, revista e mantida por Decisão proferida em ........2024, não foi motivada fora das condições previstas na Lei de Saúde Mental, não sendo, por isso, ilegal.

Notifique e, após, envie imediatamente ao Exmo. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça nos termos e para os efeitos previstos no artigo 223.º, n.º1 do C.P.P..»

3. Posteriormente a esta informação, foi comunicada ao Supremo Tribunal de Justiça a decisão de revisão da decisão sobre o tratamento involuntário nos termos do artigo 25.º da Lei n.º 35/2023, de 21 de julho, proferida no passado dia 2 do corrente mês de maio, a qual, julgando presentes os pressupostos que a justificaram, não permitindo a passagem a um regime de tratamento voluntário, determinou que o requerido, ora peticionante, AA «se mantenha em tratamento involuntário ambulatório, no ..., sem prejuízo dos prazos e eventuais situações de revisão».

4. O processo encontra-se instruído com a documentação pertinente.

5. Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o defensor, realizou-se audiência, em conformidade com o disposto nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 223.º do CPP.

Terminada a audiência, a secção reuniu para deliberar (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP), fazendo-o nos termos que se seguem.

II. Fundamentação

6. O artigo 31.º, n.º 1, da Constituição da República consagra o direito à providência de habeas corpus como direito fundamental contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegais, privativas do direito à liberdade.

O habeas corpus consiste numa providência expedita e urgente de garantia do direito à liberdade consagrado nos artigos 27.º e 28.º da Constituição, em caso de detenção ou prisão «contrários aos princípios da constitucionalidade e da legalidade das medidas restritivas da liberdade», «em que não haja outro meio legal de fazer cessar a ofensa ao direito à liberdade», sendo, por isso, uma garantia privilegiada deste direito, por motivos penais ou outros (assim, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, p. 508, e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2005, p. 303, 343-344).

Nos termos do artigo 27.º da Constituição, todos têm direito à liberdade e ninguém pode ser privado dela, total ou parcialmente, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena ou de aplicação judicial de medida de segurança privativas da liberdade. Exceptua-se a privação da liberdade, no tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos previstos no n.º 3 do mesmo preceito constitucional, em que se inclui o internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente [n.º 3, al. h)].

A prisão ou detenção é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos neste preceito constitucional (como notam Gomes Canotilho/Vital Moreira, loc. cit.).

7. O artigo 27.º da Constituição inspira-se no artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos («CEDH») e em outros textos internacionais, incluindo o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (artigo 9.º), que vinculam Portugal ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos e conferem força normativa à Declaração Universal dos Direitos Humanos, a que a Constituição submete a interpretação e integração dos preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais (artigo 16.º, n.º 2).

O direito à liberdade consagrado e garantido no artigo 27.º da Constituição é o direito à liberdade física, à liberdade de movimentos, isto é, o direito de não ser detido, aprisionado, ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço, ou impedido de se movimentar (Gomes Canotilho/Vital Moreira, loc. cit., p. 478 e acórdão do Tribunal Constitucional n.º 471/2001, DR II, n.º 163, de 17.07.2002), o direito à liberdade de movimentos, de “ir e vir”, à liberdade ambulatória ou de locomoção (Jorge Miranda/Rui Medeiros, loc. cit. p. 300).

O direito à liberdade visa proteger a pessoa contra a detenção e contra a prisão arbitrária ou abusiva, ocupando um lugar central nos direitos fundamentais que protegem a segurança física de uma pessoa numa sociedade democrática [conforme jurisprudência estabelecida pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos («TEDH») desde o acórdão Engel e outros c. Países Baixos, de 8.6.1976, § 58; por todos, o acórdão MacKay c. Reino Unido, 3.10.2016, § 30]; confere o direito de não ser detido ou preso pelas autoridades públicas, salvo nos casos expressa e excecionalmente previstos na lei, que deve reunir os necessários requisitos de certeza e previsibilidade, e com os procedimentos legalmente previstos, nomeadamente quanto à garantia de apreciação e controlo judicial e aos prazos de duração (por todos, do TEDH, o acórdão Del Río Prada c. Espanha, de 21.10.2013, § 125).

O artigo 5.º, n.º 4, da CEDH, segundo o qual “qualquer pessoa privada da sua liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal” constitui a disposição de habeas corpus da Convenção (Guide on Article 5 of the European Convention on Human Rights, European Court of Human Rights, www.echr.coe.int/documents/guide_art_5_eng.pdf), oferecendo uma garantia fundamental, que, na sua essência, se traduz no direito de revisão judicial da detenção (TEDH, acórdão Rakevich c. Rússia, 28.10.2003, § 43).

8. A tutela constitucional do direito à liberdade resulta também do artigo 28.º, bem como do artigo 31.º da Constituição que garante o habeas corpus como meio de tutela que abrange qualquer forma de privação ilegal da liberdade, isto é, qualquer forma de privação da liberdade não admitida pelo artigo 27.º, aqui se incluindo, como anteriormente se referiu, «o internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente» [n.º 3, al. h)], que, lido em conjugação com o artigo 64.º, n.º 1, que consagra o direito à proteção na saúde, impõe a observância dos requisitos impostos pelo n.º 2 do artigo 18.º quanto à restrição de direitos fundamentais que, neste domínio, se encontra assegurada pela Lei n.º 35/2023, de 21 de julho, que aprova a nova lei de saúde mental, disciplinando o processo de tratamento involuntário da doença mental.

A admissibilidade da privação da liberdade de portador de anomalia psíquica encontra-se prevista na al. e) do n.º 1 do artigo 5.º da CEDH (direito à liberdade e à ...) que a admite, «de acordo com o procedimento legal», que ofereça as necessárias garantias contra a arbitrariedade, «se se tratar da detenção legal de (…) um alienado mental, de um alcoólico, de um toxicómano (…)», o que impõe a observância de exigentes critérios de necessidade, adequação e proporcionalidade, face à gravidade da doença que deva justificar o internamento para fins terapêuticos e proteção dos interesses da pessoa em causa e com recurso e sujeição à reserva de uma decisão judicial (cfr. Guide on Article 5 of the European Convention on Human Rights, TEDH, 2022, pp. 26-29).

9. Como se tem observado (acórdão de 24.1.2024, Proc. n.º 348/23.6T8OHP-B.S1), o âmbito de proteção do artigo 27.º da Constituição, tal como o do artigo 5.º da CEDH, abrange a privação total e a privação parcial da liberdade, por autoridade pública, que não se confunde com as restrições ou limitações ao direito de deslocação, garantido pelo artigo 44.º, que comporta a liberdade de movimento da pessoa de um lugar para outro, enquanto corolário do direito à liberdade (artigo 27.º) (Gomes Canotilho/Vital Moreira, loc. cit., p. 632) e pelo artigo 2.º do Protocolo n.º 4 à CEDH. Sublinha a jurisprudência do TEDH, a este propósito, que o artigo 5.º da CEDH contempla a liberdade física da pessoa, com a finalidade de assegurar que ninguém pode ser arbitrariamente privado dessa liberdade, não as meras restrições de liberdade de movimento, pela autoridade pública, autorizadas pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 2.º do Protocolo n.º 4 (por todos, o acórdão Tommaso c. Itália, de 23.2.2017, § 80).

Pronunciando-se sobre a necessidade de distinção entre limitação e privação da liberdade, o Tribunal Constitucional, usou a seguinte formulação: “A mera limitação de liberdade (Freiheitsbeschränkung) existe quando alguém é impedido, contra a sua vontade, de aceder a um certo local que lhe seria jurídica e facticamente acessível ou de permanecer num certo espaço. A liberdade de movimentação não é, assim, em contraposição à privação da liberdade, subtraída, mas apenas limitada numa certa direcção (cfr. Grundgesetz, Kommentar, § 104, 6 e 12). A privação da liberdade traduz-se numa perturbação do âmago do direito à liberdade física, à liberdade de alguém se movimentar e circular sem estar confinado a um determinado local, sendo a essência do direito atingida por um determinado tempo (que pode ser, aliás, de duração muito reduzida). A limitação ou restrição da liberdade (que não implique a sua privação) concretiza-se através de uma perturbação periférica daquele direito mantendo-se, no entanto, a possibilidade de exercício das faculdades fundamentais que o integram.” (acórdãos n.º 479/94, DR I-A, n.º 195, de 24.08.1994, 185/96, DR I-A, n.º 75, de 28.03.1996, e 83/01, de 05.03.2001).

9. Convocando as disposições relevantes da Lei n.º 35/2023, de 21 de julho, relativas ao tratamento involuntário:

Artigo 2.º (Definições)

Para efeitos da presente lei, entende-se por:

(…)

b) «Tratamento involuntário», o tratamento decretado ou confirmado por autoridade judicial, em ambulatório ou em internamento;

(…)

Artigo 14.º (Finalidade do tratamento involuntário)

O tratamento involuntário é orientado para a recuperação integral da pessoa, mediante intervenção terapêutica e reabilitação psicossocial.

Artigo 15.º (Pressupostos e princípios gerais)

1 - São pressupostos cumulativos do tratamento involuntário:

a) A existência de doença mental;

b) A recusa do tratamento medicamente prescrito, necessário para prevenir ou eliminar o perigo previsto na alínea seguinte;

c) A existência de perigo para bens jurídicos pessoais ou patrimoniais:

i) De terceiros, em razão da doença mental e da recusa de tratamento; ou

ii) Do próprio, em razão da doença mental e da recusa de tratamento, quando a pessoa não possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento;

d) A finalidade do tratamento, conforme previsto no artigo anterior.

2 - O tratamento involuntário só pode ter lugar se for:

a) A única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito;

b) Adequado para prevenir ou eliminar uma das situações de perigo previstas na alínea c) do número anterior; e

c) Proporcional à gravidade da doença mental, ao grau do perigo e à relevância do bem jurídico.

3 - O tratamento involuntário tem lugar em ambulatório, assegurado por equipas comunitárias de saúde mental, exceto se o internamento for a única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito, cessando logo que o tratamento possa ser retomado

Artigo 23.º (Decisão)

1 - A decisão sobre o tratamento involuntário é sempre fundamentada.

2 - Sob pena de nulidade, a decisão:

a) Identifica a pessoa a submeter a tratamento involuntário;

b) Indica as razões do tratamento involuntário, por referência ao disposto no artigo 15.º;

c) Especifica se o tratamento involuntário tem lugar em ambulatório ou em internamento;

d) Indica as razões da opção pelo tratamento involuntário em internamento, bem como as razões da não opção pelo tratamento em ambulatório.

3 - O juiz determina:

a) O tratamento ambulatório do requerido no serviço local ou regional de saúde mental responsável pela área de residência; ou

b) A apresentação do requerido no serviço local ou regional de saúde mental responsável pela área de residência, para efeitos de internamento imediato.

(…)

Artigo 24.º (Cumprimento da decisão de internamento)

1 - O juiz emite mandado de condução com identificação da pessoa a internar, o qual é cumprido, sempre que possível, pelo serviço local ou regional de saúde mental responsável pelo internamento, que, quando necessário, solicita a coadjuvação das forças de segurança.

(…)

Artigo 25.º (Revisão da decisão)

1 - Se for invocada a existência de causa justificativa da cessação do tratamento involuntário, o tribunal competente aprecia a questão a todo o tempo.

2 - A revisão da decisão é obrigatória, independentemente de requerimento, decorridos dois meses sobre o início do tratamento ou sobre a decisão que o tiver mantido.

(…)

6 - É correspondentemente aplicável à audição prevista no número anterior o disposto no n.º 2 do artigo 22.º, e à decisão de revisão o disposto no artigo 23.º

Artigo 27.º (Substituição do internamento)

1 - O tratamento involuntário em internamento é substituído por tratamento em ambulatório logo que aquele deixe de ser a única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito, sem prejuízo do disposto nos artigos 25.º e 26.º

(…)

3 - O tratamento involuntário em internamento é retomado sempre que seja de concluir que é a única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito, designadamente por terem deixado de ser cumpridas as condições estabelecidas para o tratamento em ambulatório.

(…)

Artigo 34.º (Regras de competência)

1 - Sem prejuízo dos números seguintes, (…) é competente:

a) O juízo local criminal com competência na área de residência do requerido, ou o juízo de competência genérica, se a área referida não for abrangida por juízo local criminal;

b) O tribunal de execução das penas quando o requerido estiver em prisão ou internamento preventivos ou em cumprimento de pena ou medida de segurança privativas da liberdade.

(…)

Artigo 35.º (Recorribilidade da decisão)

1 - Da decisão tomada nos termos dos artigos 23.º e 25.º, do n.º 4 do artigo 27.º, do n.º 2 do artigo 32.º, e do n.º 3 do artigo 33.º cabe recurso para o Tribunal da Relação competente.

2 - Tem legitimidade para recorrer:

a) A pessoa cujo tratamento involuntário foi decretado ou confirmado, por si ou em conjunto com a pessoa de confiança;

b) O defensor ou mandatário constituído;

c) Quem tiver legitimidade para requerer o internamento involuntário nos termos do artigo 16.º

(…)

Artigo 37.º (Legislação subsidiária)

Nos casos omissos aplica-se, com as necessárias adaptações, o disposto no Código de Processo Penal.

Artigo 45.º (Habeas corpus em virtude de privação ilegal da liberdade)

1 - Quem seja privado da liberdade pode requerer ao tribunal da área onde se encontrar a sua imediata libertação, com qualquer dos seguintes fundamentos:

a) Estar excedido o prazo previsto no n.º 2 do artigo 32.º;

b) Ter sido a privação da liberdade efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

c) Ser a privação da liberdade motivada fora das condições ou dos casos previstos na presente lei.

2 - O requerimento previsto no número anterior pode igualmente ser apresentado por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.

3 - Recebido o requerimento, o juiz, se o não considerar manifestamente infundado, ordena, se necessário por via telefónica, a apresentação imediata da pessoa privada da liberdade.

4 - Juntamente com a ordem referida no número anterior, o juiz manda notificar a entidade que tiver a pessoa à sua guarda, ou quem puder representá-la, para se apresentar no mesmo ato munida das informações e esclarecimentos necessários à decisão sobre o requerimento.

5 - O juiz decide, ouvidos o Ministério Público e o defensor nomeado ou o mandatário constituído para o efeito.

10. Das disposições transcritas extrai-se, em síntese, que: verificados os pressupostos enumerados no artigo 15.º, a pessoa com doença mental pode ser sujeita a tratamento involuntário decretado pelo tribunal competente (art.º 34.º); o tratamento involuntário, com a finalidade de recuperação e reabilitação da pessoa (art.º 14.º), pode ter lugar em ambulatório ou em internamento (art.º 2.º), devendo a decisão especificar se tem lugar em ambulatório ou em internamento [art.º 23.º, n.º 2, al. c)], devendo o juiz indicar a razão da opção pelo tratamento involuntário em internamento, bem como da não opção pelo tratamento em ambulatório [art.º 23.º, n.º 2, al. d)]; determinado o tratamento ambulatório, o juiz determina que este tenha lugar no serviço local ou regional de saúde mental responsável pela área de residência [art.º 23.º, n.º 3, al. a)]; se for determinado o tratamento em internamento, o juiz determina a apresentação do requerido no serviço local ou regional de saúde mental responsável pela área de residência [art.º 23.º, n.º 3, al. b)], emitindo, para o efeito, mandado de detenção da pessoa, a cumprir pelo serviço de saúde mental responsável pelo internamento, que, quando necessário, solicita a coadjuvação das forças de segurança (art.º 24.º, n.º 1).

A revisão da decisão de tratamento involuntário é obrigatória, independentemente de requerimento, decorridos dois meses sobre o início do tratamento ou sobre a decisão que o tiver mantido (art.º 25.º, n.º 2), devendo o tratamento involuntário em internamento ser substituído por tratamento em ambulatório logo que aquele deixe de ser a única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito (art.º 27.º, n.º 1), podendo ser retomado sempre que seja de concluir que é a única forma de garantir o tratamento medicamente prescrito (art.º 27.º, n.º 2).

11. A Lei 35/2023 prevê que a pessoa privada da liberdade possa requerer a providência de habeas corpus em caso de detenção ilegal com os fundamentos previstos no n.º 1 do art.º 45.º, isto é,

(a) por estar excedido o prazo de 48 horas a contar da privação da liberdade para o juiz proferir decisão de manutenção ou não do internamento, em caso de internamento de urgência precedido de detenção policial da pessoa e condução a serviço de urgência hospitalar com valência de psiquiatria seguida de avaliação clínica que verifique a necessidade de internamento [artigos 29.º, 30.º, 31.º e 32.º, n.º 2, al. a)];

(b) por a privação da liberdade ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

(c) por a privação da liberdade ser motivada fora das condições ou dos casos previstos na presente lei.

12. Nestes casos, é competente para conhecer do pedido de libertação o tribunal da área onde a pessoa detida se encontrar (art.º 45.º, n.º 1, da Lei 35/2023).

Nenhuma destas situações está em causa neste caso concreto, sendo que, se tal acontecesse, não seria da competência do Supremo Tribunal de Justiça apreciar da legalidade da prisão.

13. O que não significa que, ordenada judicialmente a privação da liberdade, para tratamento involuntário, nos termos da Lei n.º 35/2023, anteriormente descritos, este Supremo Tribunal não possa conhecer de um pedido de habeas corpus por ilegalidade da prisão, nos termos e com os fundamentos previstos nos artigos 222.º a 224.º do Código de Processo Penal («CPP»).

Solução que resulta da remissão do artigo 37.º da Lei n.º 35/2023 (supra), que, nos casos omissos, manda aplicar subsidiariamente o CPP, e da coerência do sistema por aplicação direta do artigo 31.º da Constituição, segundo o qual «Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente» (artigo 18.º, n.º 1, da Constituição).

14. O regime do habeas corpus encontra-se estabelecido nos artigos 220.º a 224.º do CPP, no capítulo referente aos “modos de impugnação” das medidas de coação.

Uma interpretação conforme à Constituição obriga, porém, a conferir-lhe um âmbito de proteção que extravasa o âmbito das medidas de coação – que, na sistemática do CPP, se limitariam à prisão preventiva (artigo 202.º do CPP) e à obrigação de permanência na habitação (artigo 210.º do CPP) –, de modo a abranger todos os casos que se inscrevem no artigo 27.º da Constituição, nomeadamente o internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico.

É assim que, pressupondo e conferindo à «prisão» (artigos 222.º a 224.º do CPP) um sentido próprio – que, para efeitos de habeas corpus, não se pode limitar à pena de prisão e à medida de coação de prisão preventiva –, este Supremo Tribunal vem assumindo competência para apreciação de petições de habeas corpus quando a privação da liberdade é imposta por decisão judicial. Incluem-se aqui casos de execução da pena acessória de expulsão logo que cumpridos dois terços da pena de prisão (acórdão de 6.7.2019, Proc. n.º 299/17.3TXEVR-G.S1), de permanência, por decisão judicial, em centro de instalação temporária para execução da medida de expulsão (acórdão de 23.05.2018, Proc. n.º 965/18.6T8FAR.S1), de internamento compulsivo (acórdão de 27.6.2019, Proc. 376/19.6T8EPS-A.S1) e de aplicação de medidas de promoção e proteção de crianças e jovens em perigo, em particular da medida de acolhimento residencial (por todos, os acórdãos de 06.07.2022, Proc. 561-11-9T2SNS-D-S1, e de 4.1.2024, Proc. 348/23.6T8OHP-B.S1)

15. Dispõe o artigo 222.º do CPP que:

“1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.”

16. Em jurisprudência constante, tem vindo este Supremo Tribunal de Justiça a considerar que a providência de habeas corpus corresponde a uma medida extraordinária ou excepcional de urgência – no sentido de acrescer a outras formas processualmente previstas de reagir contra a prisão ou detenção ilegais – perante as ofensas graves à liberdade, com abuso de poder, sem lei ou contra a lei, referidas nas alíneas a) a c) do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

A providência de habeas corpus não constitui um recurso de uma decisão judicial, um meio de reacção tendo por objecto actos do processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade ou atos que lhes digam respeito, ou um «sucedâneo» dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais. A providência não se destina a apreciar alegados erros de direito nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade. «Os fundamentos da providência [de habeas corpus] revelam que a ilegalidade da prisão que lhes está pressuposta se deve configurar como violação directa e substancial e em contrariedade imediata e patente da lei: quer seja a incompetência para ordenar a prisão, a inadmissibilidade substantiva (facto que não admita a privação de liberdade), ou a directa, manifesta e autodeterminável insubsistência de pressupostos, produto de simples e clara verificação material (excesso de prazo)» [acórdão de 04.01.2017, Proc. n.º 109/16.9GBMDR-B.S1; assim também, entre outros, os acórdãos de 02.11.2018, Proc. n.º 78/16.5PWLSB-B.S1, e de 16-05-2019, Proc. n.º 1206/17.9S6LSB-C.S1, em www.dgsi.pt].

Como se tem sublinhado, «[n]o âmbito da decisão sobre uma petição de habeas corpus, não cabe julgar e decidir sobre a discussão que [os actos processuais] possam suscitar no lugar e momento apropriado (isto é, no processo)»; na providência de habeas corpus «não [se] pode decidir sobre actos do processo com dimensão e efeitos processuais específicos, não constituindo um recurso dos actos de um processo em que foi determinada a prisão do requerente, nem um sucedâneo dos recursos ou dos modos processualmente disponíveis e admissíveis de impugnação, pois que «a medida não pode ser utilizada para conhecer da bondade de decisões judiciais, que têm o processo ou o recurso como modo e lugar próprios para a sua reapreciação» (acórdãos de 05.05.2009, Proc. n.º 665/08.5JAPRT-A.S1, e de 26.07.2019, Proc. n.º 2290/10.1TXPRT-M.S1. Assim também, refletindo jurisprudência de há muito uniforme, entre muitos outros, os acórdãos de 21.09.2011, Proc. n.º 96/11.0YFLSB, de 09.02.2012, Proc. n.º 927/1999.0JDLSB-X.S1; de 06.02.2013, Proc. n.º 109/11.5SVLSB.S1; de 15.02.2017, Proc. 6/17.0YFLSB.S1, de 31.10.2018, Proc. 663/09.1JAPRT-B.S1, em www.dgsi.pt).

A providência de habeas corpus não interfere nem é incompatível com o recurso ordinário de decisões sobre questões de natureza processual que possam afectar a situação de privação da liberdade, sendo diferentes os seus pressupostos (assim, Canotilho/Vital Moreira e Jorge Miranda/Rui Medeiros, loc. cit., e Maia Costa, comentário ao artigo 222.º, Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, 2.ª ed., Almedina, 2016). A diversidade do âmbito de protecção do habeas corpus e do recurso ordinário configuram diferentes níveis de garantia do direito à liberdade, numa relação de complementaridade, em que aquela providência permite preencher um espaço de protecção imediata perante a inadmissibilidade legal da prisão.

17. O pedido de habeas corpus pressupõe que a pessoa se encontre em prisão (privada da liberdade por decisão judicial) e a atualidade da ilegalidade da prisão, reportada ao momento em que este é apreciado, como também tem sido reiteradamente sublinhado (acórdão 4.1.2024, Proc. 348/23.6T8OHP-B.S1, citado).

18. Os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se, necessariamente, à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP, de enumeração taxativa.

Como se tem afirmado, o Supremo Tribunal de Justiça apenas tem de verificar (a) se a prisão, em que o peticionante actualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível, (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto por qua a lei a admite e (c) se estão respeitados os respectivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial.

19. Da petição, da informação a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, do CPP, e dos documentos juntos resulta esclarecido, em síntese, com relevância para a apreciação e decisão, que:

• O requerente, AA, foi conduzido ao serviço de urgência no dia ........2022, por descompensação psicótica na sequência de incumprimento terapêutico, com antecedentes de esquizofrenia desde há longa data e um internamento compulsivo em ... por episódio psicótico, bem como consumo regular de cannabis.

• Entre os dias ........2022 e ........2022, foi internado compulsivamente no Serviço de Psiquiatria.

• Em ........2022, e ao abrigo do disposto nos artigos 6.º, n.º 1, 7.º, alínea a), 8.º, 12.º, n.º 1, 20.º, 27.º e 33.º todos da Lei de Saúde Mental então vigente (Lei n.º 36/98, de ...), foi determinado que o requerente AA se mantivesse em tratamento compulsivo em ambulatório, no Centro Hospitalar de ....

• As revisões obrigatórias, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 35.º da Lei n.º 36/98, de ... foram tendo lugar, a última delas (antes da apresentação do pedido de habeas corpus destes autos) já ao abrigo da Nova Lei de Saúde Mental (aprovada pela Lei n.º 35/2023, de ..., pela qual aquela Lei n.º 36/98, de ... foi revogada), por decisão proferida em sede de audição para revisão, realizada em ........2024, pelo qual se determinou a manutenção da medida de tratamento involuntário em ambulatório.

• Por decisão judicial de ........2024, verificada a manutenção dos pressupostos do internamento voluntário, foi determinado que requerente AA se mantenha em tratamento involuntário ambulatório, no Centro Hospitalar ..., sem prejuízo dos prazos e eventuais situações de revisão.

• Considerando os prazos legalmente previstos para a sua revisão obrigatória, e sem prejuízo de circunstância que sobrevenha impor a sua antecipação, foi, nesse mesmo despacho, designado o dia ........2024, às 14:00, para a audição com vista à próxima revisão.

16. Na petição que apresenta, a requerente alega, em síntese, que «não existem factos nem referências a distúrbios ou de perigosidade iminente para bens jurídicos», e que «mesmo que existisse de facto, não há provas no processo de tal», concluindo que «a detenção foi ilegal, a meu ver, visto a juíza não se ter provido de provas concretas, nem ter exigido tal para efectuarem o mandato de captura».

17. Ou seja, em substância funda-se o pedido na discordância dos fundamentos da decisão que manteve o tratamento involuntário, o que, como se referiu, é matéria que, subtraída aos fundamentos da providência de habeas corpus, deve ser apreciada em recurso, que a lei coloca à disposição do requerente, a apresentar perante o tribunal da relação (art.º 35.º da Lei n.º 35/2023, supra).

18. Como se afirmou, o Supremo Tribunal de Justiça, apenas tem de verificar, nos termos do disposto no artigo 222.º do CPP, se ocorre atualmente uma situação de «prisão» ilegal, por abuso de poder da autoridade que a determinou, e se essa ilegalidade resulta de qualquer das situações taxativamente enumeradas no n.º 2 do artigo 222.º do CPP.

19. Ora, como decorre dos factos apurados, o requerente encontra-se sujeito, por decisão judicial, a tratamento involuntário em ambulatório, isto é, em liberdade. Não se encontra sujeito a tratamento involuntário em internamento, ou seja, em privação da liberdade. Esta distinção é fundamental.

A caraterização do tratamento como «involuntário» resulta apenas do facto de ser decretado pelo tribunal, na definição da alínea b) do artigo 2.º da Lei n.º 35/2023.

20. Pelo exposto, não se verificando que o requerente se encontra em «prisão», carece o pedido manifestamente de fundamento, devendo, por esse motivo, ser indeferido (artigo 223.º, n.º 6, do CPP).

III. Decisão

21. Pelo exposto, deliberando nos termos dos n.ºs 3, 4, al. a), e 6, do artigo 223.º do CPP, acorda-se na Secção Criminal em indeferir o pedido por manifesta falta de fundamento.

Custas pelo peticionante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, nos termos do artigo 8.º, n.º 9, e da Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.

Nos termos do disposto no artigo 223.º, n.º 6, do CPP, vai o peticionante condenado ao pagamento da soma de 6 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 4 de maio de 2024.

José Luís Lopes da Mota (relator)

Maria Teresa Féria de Almeida

Ana Maria Barata de Brito

Nuno António Gonçalves