DIREITO À HONRA E CONSIDERAÇÃO
TEXTO SATÍRICO
DIGNIDADE PENAL
Sumário

I–Apesar de a Constituição da República Portuguesa consagrar no seu artigo 26º o direito do cidadão à sua integridade moral, bom nome e reputação, nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos artigos 180.º e 181.º do Código Penal, que tutelam esses bens jurídicos.

II–A protecção penal dada à honra e consideração e a punição dos factos lesivos desses bens jurídicos, só se justifica em situações em que objectivamente as palavras proferidas não têm outro conteúdo ou sentido que não a ofensa, ou em situações em que, uma vez ultrapassada a mera susceptibilidade pessoal, as palavras dirigidas à pessoa a quem o foram, são indubitavelmente lesivas da honra e da consideração do lesado.
III–Os textos escritos pelo arguido de modo satírico, em que critica a postura de alguns médicos que se assumiram publicamente como negacionistas, entre eles a assistente, sobre a relevante questão da Covid e das políticas adotadas quanto a ela, numa altura de grave epidemia (Covid 19) que o país e o mundo viviam, ainda que podendo conter expressões de sentido depreciativo relativamente à pessoa da assistente, não alcançam o patamar de gravidade social, que lhes poderia conferir dignidade penal, não se inscrevendo por isso no âmbito do tipo incriminador objectivo do artigo 180.º do Código Penal.
(Sumário da responsabilidade da relatora)

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


I–Relatório


1.No âmbito do processo comum singular supra identificado, em que é arguido AA, melhor identificado nos autos, foi proferida sentença, a 14 de Setembro de 2023, mediante a qual foi aquele absolvido da prática de um crime de difamação p. e p. pelos artigos 180ºe 183º nº1, alínea a) do Código Penal, pelo qual se encontrava pronunciado.

2.Inconformada com a decisão, a assistente BB interpôs recurso nos termos da motivação que juntou aos autos, da qual extraiu as seguintes conclusões (transcrição):
1.- A sentença ora em crise incorre no vício ínsito no art. 410º n. 2 alínea c) CPP, erro notório na apreciação da prova, na medida em que face aos factos dados como provados, face à experiência comum e à logica normal da vida, de modo ostensivo decide contra a factualidade provada; Também não clarifica qual/quais os elementos do tipo de ilícito que considera em falta na acção do arguido.
2.- Na medida em que faz uma interpretação desconforme dos arts.180º e 183ºn.1 alínea a) CP com o ínsito nos arts. 26º n.1 e 37ºn.1 CRP, o direito ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação, direitos com dignidade constitucional bem como a liberdade de expressão, a sentença ora em crise é também inconstitucional.

3.O Ministério Público junto da 1.ª instância respondeu ao recurso pedindo a sua improcedência, tendo para tanto apresentado as seguintes conclusões: (transcrição)
1ª-O presente recurso vem interposto pela assistente da douta sentença proferida e depositada 14/09/23 que absolveu o arguido AA da prática do crime de difamação, p. e p. pelos artigos 180º e 183º n.º 1 do Cód. Penal.
2ª-Tendo em conta o âmbito do recurso fixado pelas conclusões apresentadas, pretende a recorrente incorreu em erro notório na apreciação da prova e interpretou incorretamente os artigos os artigos180º e 183º n.º 1 alínea a) CP conjugado com os artigos 26º, n.º 1 e 37º, n.º1 da CRP.
3ª-Desde logo, não se verifica qualquer erro notório na apreciação da prova, já que, do texto da douta sentença sub judice, não resulta que se tenha apreciado de forma descabida a prova, nem que se constata uma irrealidade patente aos olhos de qualquer observador comum, oposta à normalidade dos comportamentos e às regras da experiência comum.
4ª-De facto, o que resulta da motivação do recorrente é efetivamente a discordância quanto ao modo como o Tribunal avaliou e apreciou em concreto a prova produzida, o que, não se confunde com o vício invocado.
5ª-Deste ponto de vista, a honra é concebida como o direito que cada cidadão tem de reclamar o respeito dos outros e a não receber deles juízos ou imputações vilipendiosos e degradantes ou, mais subjetivamente, equivale à representação psicológica que cada um tem de si próprio, ao apreço ou autoestima, a qual poderá corresponder, ou não, à consideração ou à reputação social de que goza.
6ª-Na situação dos autos, verifica-se o confronto de dois direitos com consagração constitucional e hierarquicamente equiparados: por um lado, o direito ao bom nome e à reputação (artigo 26º) e, por outro, a liberdade de expressão (artigo 37º), pelo que a respetiva compressão terá de ser efetuada mediante um juízo de proporcionalidade (artigo 18º da CRP).
7ª-Tudo ponderado, resulta que a liberdade de expressão constitui um dos pilares fundamentais do Estado democrático e uma das condições primordiais do seu progresso e, bem assim, do desenvolvimento de cada pessoa. As figuras públicas, quer pela sua exposição, quer pela discutibilidade das ideias que professam, quer ainda pelo controle a que devem ser sujeitos, seja pela comunicação social, seja pelo cidadão comum devem ser mais tolerantes a críticas do que os particulares, devendo ser, concomitantemente, admissível maior grau de intensidade destas (neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 4-11-2020, processo n.º 2294/17.3T9VFR.P1, disponível em dgsi.pt).
8ª-De acordo com a factualidade assente na douta sentença condenatória, o arguido colocou publicações nas redes sociais em que, a propósito das posições da assistente quanto à pandemia COVID, apelida aquela de “burra; maluca; tontinha; maria chalupa; maluquinha de arroios”.
9ª-Assim sendo, por tudo o que resulta exposto, considerando que, durante a pandemia mundial, a assistente, médica de profissão, colocava nas redes sociais informações diversas do consenso científico, a atuação do arguido, visando uma crítica contundente a tais posições, não pode ser enquadrada num atentado ao direito à honra, sob pena de restrição inadmissível à liberdade de expressão.
10ª-Deste modo, a restrição operada ao direito à reputação da assistente revela-se adequada e proporcional, respeitadora dos princípios da necessidade, adequação e proibição do excesso consagrados no artigo 18º, n.º 2 da CRP.
11ª-Nestes termos, ao ponderar todos estes elementos em face da prova produzida, a Mmª Juiz atuou no respeito de todos os critérios legais explanados, pelo que a douta sentença não merece censura.

4.O arguido também respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência e finalizando a sua resposta com as seguintes conclusões: (transcrição)
1- O recurso interposto pela Assistente nos autos tem por objecto a sentença proferida no âmbito do processo n.º 965/21.9 T9LSB que absolveu o arguido da prática do crime de difamação p. e p. pelo art. 180º.e 183º nº1 do C. Penal.
2- Do recurso interposto pela Assistente resulta que a mesma entende que a sentença incorreu: (i) em erro notório na apreciação da prova e (ii) em erro de julgamento por incorrecta interpretação dos arts. 180.º e 183.º, n.º 1, alínea b), com violação dos arts. 26.º e 37.º da CRP.
3- A Recorrente invoca o suposto "erro notório da apreciação da prova" por a sentença recorrida ter dado como provados os factos descritos nos pontos 3. a 14. da matéria de facto dada como provada para depois ter dado como não provado que o arguido tivesse pretendido atingir a honra e consideração da assistente, o que conseguiu e que o mesmo agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida por lei.
4- A sentença recorrida, a partir da prova produzida, traçou um percurso coerente e racional e, com o indispensável apelo ao contexto de crise sanitária em que as afirmações em causa foram produzidas, concluiu pela atipicidade da conduta, motivo pelo qual, logicamente, não deu como provados os elementos subjectivos do crime.
5- Nenhuma contradição lógica existe entre o teor das afirmações da autoria pelo arguido das publicações em causa e a decisão de dar como não provado que o mesmo tenha agido com o propósito de atingir a honra e consideração da assistente, sendo de concluir pela não verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.
6- Contrariamente ao defendido pela Recorrente, não se verifica erro de julgamento, tendo o Tribunal a quo procedido a uma correcta interpretação do tipo legal do crime de difamação, de acordo com os princípios da fragmentariedade, da intervenção mínima e da proporcionalidade do direito penal.
7- Conforme vem sendo entendido pela nossa jurisprudência, relevante para o preenchimento do crime de difamação é o meio onde se verifica a ofensa à honra ou consideração, a qualidade das pessoas entre quem ocorre, a forma como tal ocorre, o que tem como consequência que, só em face do caso concreto se pode afirmar se a conduta em presença é ou não ofensiva e preenche o tipo objectivo do crime de difamação.
8- No caso dos autos, as expressões em causa não tiveram por alvo a pessoa da Assistente, mas sim as ideias, teses e opiniões que pela mesma foram publica e exacerbadamente expostas e divulgadas, no contexto da pandemia Covid 19, declarada pela OMS.
9- Tais opiniões redundavam na desvalorização da doença causada pelo vírus SARS Cov2, no apelo ao incumprimento das regras sanitárias em vigor e na divulgação de “receitas” para o falseamento de resultados de testes Covid.
10- A defesa pela Assistente (médica de profissão) de teses contrárias à ciência e às instruções das autoridades de saúde indignaram o Arguido pela ameaça que tal tipo de conduta constituía para a salvaguarda da saúde pública, tendo sido esse o motivo que o levou a publicar os textos aqui em causa, na rede social facebook.
11- Deste modo, tal como bem decidiu a sentença recorrida, revela-se manifesto que não se encontram preenchidos os elementos do tipo de ilícito do crime de difamação.
12- Não se verifica, pois, a invocada errada interpretação dos arts. 180.º e 183.º, n.º 1 do CP, nem do disposto no art. 26.º e 37.º da CRP, nada havendo a censurar à sentença recorrida, devendo ser mantida nos seus precisos termos.

5.Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), acompanhou a resposta do Ministério Público junto da 1.ª instância.

6.–Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do C.P.P., veio a recorrente responder àquele parecer, pugnando pela revogação da sentença recorrida.

7.–Procedeu-se a exame preliminar e, após vistos legais, foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, alínea c) do mesmo diploma.

II–Fundamentação

1.–Objecto do recurso

Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso.

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência com a decisão impugnada, verifica-se que são suscitadas, pela recorrente, as seguintes questões:
a)-A existência na decisão do vício do erro notório na apreciação da prova previsto na alínea c) do n.º2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal,
b)-Se a interpretação que a sentença recorrida faz quanto ao crime de difamação é desconforme ao disposto nos artigos 180º e 183º n.º 1 alínea a) do Código Penal e ao disposto nos artigos 26º n.º 1 e 37º n.º 1 da Constituição.

2.–Da decisão recorrida

O tribunal recorrido pronunciou-se quanto à matéria de facto nos seguintes) termos: (transcrição)

«Matéria de facto provada
1.–A assistente é … tendo exercido as suas funções em hospitais públicos e clinicas privadas.
2.–O arguido tem um perfil de Facebook, identificando-se como AA.
3.–No dia 9 de Junho de 2020 o denunciado publicou no seu perfil da rede social Facebook com o seguinte teor:
Duas Burras e um BURRO com ESTETOSCÓPIOS AO PESCOÇO
O Observador tem vindo a mover uma cerrada campanha contra tudo o que tenha a ver com as medidas de prevenção e combate a essa "gripezinha” chamada COVID-19, na defesa da denominada corrente negacionista da pandemia. Para tal convidou alguns médicos para escrevinharem sobre a matéria, dado que na opinião de CC expressa na ... (“O Rei vai nu"), tratam-se de profissionais de saúde que “andam” no terreno, e, portanto sabem do que falam.
Como não cabe num post do FB rebater esses artigos de opinião, deixo-vos aqui algumas pérolas dos textos das Drª CC (“Mas o que é que andamos a fazer, 8/6”, “O embuste, 3/6”’) e BB (“A propósito dos números de ...", 2/6), e do Dr. DD (”Recuso ser testado para o SARS-Co-2, 8/6”). Entre parêntesis alguns curtos comentários que não resisti a acrescentar.
(...)
BB
O facto de as horas de sol estarem paulatinamente a aumentar e de o vírus não sobreviver integro e portanto potencialmente infectante e na própria comunidade porque sensível aos raios UV..." (bem disse o Trump, as radiações UV no body fazem milagres, e então complementados com lixivia...)
"A imunidade é um músculo" (vou já pró ginásio desenvolver os meus bícepes)”.
(...)
FUJAM DESTES MÉDICOS, conforme consta de fls. 10, 11 e 12 que aqui se dá por integralmente reproduzido, estando este texto acompanhado de uma imagem de um burro em desenho animado com uniforme de médico-cirurgião e com um balão de texto onde se lê “não se preocupe, é só uma gripezinha...”.

4.–A publicação deste texto contava à data da denúncia com 103 gostos, 37 comentários e 40 partilhas.

5.–No dia 11 de Setembro de 2020, o arguido escreveu um texto e publicou-o no seu perfil de Facebook, conforme consta de fls. 12 a 15 dos autos que aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta designadamente o seguinte:
"A GAIOLA DAS MALUCAS"
A … vai festejar este fim de semana os seus 15 dias de existência. Tem 9 membros, mais uns dias e já podem formar uma equipa de futebol. Para quem ainda não visitou o site aqui ficam as apresentações.
(. ") BB, não confundir com BB, a EE, mulher do famoso cangaceiro FF. Diz que se meteu nisto pela Verdade, pela Ciência, pela Liberdade e por Amor.
Afirma não ser negacionista! É … e estudou epidemiologia pelo Facebook de GG. Diz estar desolada com os colegas que já abandonaram o barco. Ontem mudou a sua foto no site por uma outra cheia de glamour."

No dia 28 de Setembro de 2020, o arguido partilhou, a público, no seu perfil da rede social Facebook, um vídeo do YouTube onde a assistente aparece em destaque e escreveu o seguinte comentário e com letras maiúsculas: "DIZ-ME ESPELHO MEU, HÁ ALGUÉM MAIS TONTINHA DO QUE EU?", conforme consta de fls. 16 dos autos que aqui se dá por integralmente reproduzido.

A publicação deste texto contava à data da denúncia com 13 gostos, 3 comentários e 1 partilha.

No dia 25 de Outubro de 2020, o arguido, no seu perfil na rede social Facebook, fez uma publicação com a imagem da assistente em anexo, conforme consta de fls. 17 dos autos que aqui se dá por integralmente reproduzido, com o seguinte teor:
"O CRIME DE PROPAGAÇÃO DE DOENÇA NÃO PODE FICAR IMPUNE
A queixa contra a médica da seita ... que participou na manifestação dos negacionistas e cujas declarações estão no vídeo que coloquei em post anterior, podem ser devidamente identificadas para o mail do ... ... com
A médica é a Dra. BB
…, Cédula Profissional Nº …
Desconheço se outros médicos estiveram na manifestação".

6.–A publicação deste texto contava à data da denuncia com 79 gostos, 33 comentários e 32 partilha.

7.–Nesse mesmo dia, 25-10-2020, o arguido partilhou um vídeo no seu perfil do Facebook, a público, das declarações da assistente numa reportagem da ... no dia anterior, na qual a assistente tece algumas considerações sobre o uso da máscara facial na via pública e sobre o impacto da doença Covid.

8.–Na secção de comentários desta publicação, o arguido escreve “A OM está a identificar os médicos que participaram na manifestação DENUNCIEM ESTA GENTE, A COMEÇAR POR ESTA”, conforme consta de fls. 19 dos autos que aqui se dá por integralmente reproduzido.

9.–No dia 16-10-2020, o arguido faz uma publicação na rede social Facebook, a público, com o título “CONSULTÓRIO MÉDICO (PELA VERDADE CLARO)”, conforme consta de fls. 20 e 21 dos que aqui se dá por integralmente reproduzido, com o seguinte teor:
Se os meus amigos tiverem algum probleminha de saúde podem agora recorrer ao consultório médico digital da ..., disponível numa rede social perto de si. Este é o extracto de uma consulta”.
"Esposa do senhor que continua com febre:"
"Dra. BB, o meu marido seguiu os seus conselhos, a febre não baixou, foi ao médico, e o Sr. Doutor disse que ele tem de fazer o teste PCR".
Dra. BB:
"Minha querida fique calma. Para a febre, alternar aspirina (se na for alérgico ou não sofrer do estomago) com paracetamol;
Vitamina C- Cecrisina 1cp efervescente de 12 em 12 horas;
Bioactivo Selénio + Zinco – 1 cp por dia.
Se tiver dor de garganta e/ou falta de paladar:
Strepfen – chupar 1 pastilha de 12 em 12 horas;
Gargejo com Kemphor ou Oratol 1 tampa/para 3 de agua de manhã e à noite.
Se tiver tosse:
Bisolvon ou Mucossolvan 1 medida de 8 em 8 horas;
Muitos líquidos;
Chá com mel e limão;
Frutas e legumes com fartura;
Ovos;
Repouso.
Se a febre não ceder aos antipiréticos e/ou se tiver falta de ar DEVE CONSULTAR UM MÉDICO”.
Esposa do senhor que continua com febre.
“Dra BB o meu marido seguiu os seus conselhos, a febre não baixou, foi ao médico, e o Sr. Doutor disse que ele tem de fazer o teste PCR”.
Dra BB:
“Minha querida fique calma. É importante limpar as fossas nasais e a orofaringe de todos os restos virais. Até ao teste ele que faça o seguinte:
1- Selénio ACE 1 cp por dia vende-se em farmácias sem receita médica) que pode manter até acabar a caixa;
2- gargarejo de 12 em 12 horas com Kemphor ou Oratol em ambos os casos após diluir uma tampinha do elixir em duas de água"
3- lavar as fossas nasais com soro fisiológico ou água do mar também de manhã e á noite.
Se o fizer regularmente e depois imediatamente antes de ir fazer a zaragatoa verá que TESTARÁ NEGATIVO"
Esposa do Senhor que vai fazer o PCR:
"Dra. BB, mas não é crime estar a divulgar truques para falsificar o resultado do teste PCR?"
Dra. BB:
"CRIMINOSA É A SUA TIA! ESTÁ BLOQUEADA".

10.–Esta publicação, à data da denúncia, contava com 45 gostos e 12 partilhas.

11.–No dia 29 de Dezembro de 2020, o arguido no seu perfil de Facebook, publicou um texto da sua autoria que vinha acompanhado por duas fotos, conforme consta de fls. 23 e 24 dos autos que aqui se dá por integralmente reproduzido.

12.–Uma dessas fotos é a imagem da ofendida com uma lâmpada por cima da sua cabeça, com uma captura de ecrã de uma declaração feita pela ora assistente.

13.–Em outra imagem, junto a esta, aparece um burro com um balão de diálogo onde se lê: "cool".

14.–O texto referido em 14. tem como título "ATÉ ONDE CHEGA A ESTUPIDEZ E LOUCURA DA SEITA ..." a negrito e com letras maiúsculas, e o seguinte teor:
"Julgava eu que a BB Chalupa, estrela maior da seita …, já tinha sido presa ou internada. Enganei-me. Para acabar o ano em beleza, vem anunciar que os ... querem lançar uma petição para obrigar o governo a provar que o Sars-CoV-2 existe mesmo!!! Como toda a gente sabe que o vírus não existe, presumo que iremos ter eleições antecipadas, pois HH não resistirá à vergonha de ter andado todo este tempo a mentir aos portugueses.
Ainda me enchi de paciência e fui pesquisar de onde é que a maluquinha de ... foi buscar esta ideia de que ninguém isolou o vírus. Podem ver no primeiro link que aqui incluo que isto vem de uma negacionista de extrema­direita … que pediu às autoridades de Saúde … que lhe enviassem toda a documentação sobre o isolamento do Sars-CoV-2 na .... Ai não tem documentos comprovativos? Aí está, não há vírus nem pandemia. O segundo link é um estudo de um hospital de ... que inclui ... o isolamento do vírus de pacientes internados!
Mas que corja!".

15.–A publicação deste texto contava à data da denúncia com 60 gostos, 7 comentários e 7 partilhas.
16.–A assistente vivenciou sentimentos de vergonha e de tristeza pela actuação do arguido.
17.–Do certificado do registo criminal do arguido nada consta.

Matéria de facto não provada
1.–Com estas afirmações o arguido pretendeu atingir a honra e consideração da assistente, o que conseguiu.
2.–Agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta é punida por lei.

Fundamentação da matéria de facto
O Tribunal formou a sua convicção na ponderação, à luz das regras da experiência comum e na livre convicção do julgador, da análise crítica e conjugada do conjunto da prova produzida, declarações do arguido e da assistente e depoimentos das testemunhas, nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
A livre apreciação da prova não se confunde com apreciação arbitrária da prova, pois que tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios de experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica.
O arguido prestou declarações admitindo a autoria das publicações, na rede social, Facebook, em causa nos presentes autos. Por estar em profundo desacordo com as posições que a assistente assumiu publicamente na altura da pandemia da doença COVID-19, o que pretendeu, através das publicações em causa nos autos, foi demonstrar esse desacordo por considerar que a pandemia foi um acontecimento trágico.
“Chalupa” foi a denominação que foi utilizada pela comunicação social ao referir-se aos membros do movimento ....
A sua intenção ao fazer as publicações em causa foi através de abordagem, caustica ou satírica, “gozar”, “fazer humor” (sic). O objectivo foi criticar a mensagem que era veiculada pela assistente, nunca tendo intenção de lhe provocar sofrimento. As publicações tinham por base declarações feitas pela assistente.
A assistente prestou declarações dizendo que em altura que situa em ..., na sua página da rede social Facebook, por via da sua experiência profissional, começou a manifestar as suas opiniões a respeito dos testes PCR. O arguido inicia então uma atitude que qualifica de persecutória que levou a que o tivesse “bloqueado”.
Formou um movimento denominado “médicos pela verdade”, que tinha uma “página” na rede social Facebook
Relatou o seu estado de espírito por via da actuação do arguido, dizendo que se sentiu triste, enxovalhada e ofendida.
Considera que o arguido ultrapassou a crítica social “Eu expressei uma opinião, nunca me impus a ninguém”, disse.
Testemunha II, marido da assistente relatou os sentimentos vivenciados por aquela com as publicações em causa nos autos, em termos coincidentes com o que por aquela foi feito.
As demais testemunhas que prestaram o seu depoimento em sede de audiência de julgamento, tinham conhecimento das publicações e pronunciaram-se, no essencial, quanto à sua opinião e posição, quanto ao teor das mesmas, relacionada com existência à data de uma pandemia, não se revelando, como tal, o seu depoimento essencial para a formação da convicção do Tribunal quanto à matéria de facto provada, não obstante terem permitido compreender o enquadramento da actuação do arguido.
Do conjunto da prova produzida, analisada à luz das regras da experiência comum, o Tribunal considerou não provados os factos que supra enunciou, na medida em que, como melhor se analisará, as expressões utilizadas apresentando-se manifestamente grosseiras, rudes e descorteses, não chegam a ofender aquele mínimo de respeito a todos devido e tutelado penalmente.

De facto, como se decidiu no Ac TRL de 04-12-2019 proferido no proc.4477/14.0TDLSB.L1-3 a acção típica de um crime contra a honra consistirá numa manifestação (verbal ou escrita, por acção ou omissão) de menosprezo que seja idónea a afetar tal honra. Para aferir se uma expressão ou um acto são objectivamente idóneos para afetar a honra de uma determinada pessoa, é indispensável inseri-los no contexto e na situação em que foram proferidos ou praticados.

Ora, a este propósito, importa ter em conta que os factos em causa nos autos foram praticados num contexto temporal em que se vivia mundialmente uma situação verdadeiramente excepcional em que um vírus, que provocou uma pandemia, tal como declarado pela OMS, condicionava e condicionou a vida dos cidadãos tal como estes habitualmente a viviam. Essa circunstância, provocou, necessariamente, estados de espírito de actuações diferenciadas do que até aquele momento as pessoas estavam habituadas.

E essa circunstância levou também a um exacerbar de actuações pessoais, designadamente, ao nível das opiniões e das formas que as exprimir.

E ainda naquele aresto se decidiu, Sabem os tribunais que não se deve considerar ofensivo da honra e consideração de outrem, tudo aquilo que o ofendido entende que o atinge, de certos pontos de vista, mas sim apenas aquilo que razoavelmente, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores, tendo por base o contexto e ambiência em que se passaram os factos. (...), o Direito é algo de vivo e tem de se adaptar às alterações, evoluções e mesmo involuções do dia a dia das vivências e condições humanas.

As expressões da autoria do arguido publicadas na rede social Facebook, configuram expressões grosseiras, descorteses, mas que não têm a virtualidade de pôr em causa o carácter, o bom nome ou a reputação da ora assistente. São somente reveladoras da falta de educação em que o ora arguido incorreu, pela utilização de um palavreado rude, mas incapaz de pôr em causa o carácter, o bom-nome ou a reputação da assistente. Traduzem sim um comportamento revelador de falta de educação e de sã convivência social.
Quanto à inexistência de antecedentes criminais teve-se em conta o certificado do registo criminal do arguido junto aos autos.»

3.–Apreciação

Os poderes de cognição dos tribunais da relação abrangem a matéria de facto e a matéria de direito (artigo 428.º do Código de Processo Penal), podendo o recurso, sempre que a lei não restrinja a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida (n.º 1 do artigo 410.º do mesmo diploma).

Por isso, poderia a recorrente, se considerasse ter existido qualquer erro na apreciação da matéria de facto, impugnar esse segmento da decisão, nos termos previstos no artigo 412.º, n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal.

A recorrente não impugnou a matéria de facto, designadamente a não provada, apesar de na sua motivação (que não nas suas conclusões) revelar a sua discordância quanto a tais factos, e opta por invocar a existência de erro notório na apreciação da prova por entender que o tribunal decidiu contra a factualidade provada e não clarifica qual/quais os elementos do tipo de ilícito que considera em falta na acção do arguido.

É evidente que a recorrente confunde o vício do erro notório na apreciação da prova com o erro na apreciação da qualificação jurídica dos factos provados pretendendo que o tribunal de recurso reverta a sentença recorrida em condenação, sem ter contudo impugnado os factos não provados respeitantes ao elemento subjectivo do crime em causa.

De todo o modo sempre se dirá que, ainda que se considere que o alegado vício respeita à decisão quanto à matéria de facto não provada (o que não resulta minimamente das conclusões) sempre é improcedente essa pretensão.

O vício do erro notório na apreciação da prova, tal como os demais vícios previstos no n.º2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, respeita à matéria de facto e não à decisão de direito tomada pelo tribunal com base na matéria de facto provada.

Trata-se de um vício intrínseco à própria decisão de facto (factos e sua fundamentação) que é aferido em face do texto da sentença, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso a elementos externos como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, nem às provas nele produzidas (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª ed., p. 339) que se traduz num vício de raciocínio na apreciação das provas evidenciado pela simples leitura da decisão, que não passa despercebido aos olhos de uma pessoa comum, não dotada de conhecimentos específicos, resultando claro, em face do texto da decisão, das regras da experiência e da lógica, que a conclusão a extrair dos elementos probatórios deveria ter sido outra que não aquela que o tribunal retirou. Tem de ser um erro ostensivo e evidente.

Como se escreveu no acórdão do STJ de 10/02/2005, Proc. 3207/04-5ª «o erro notório na apreciação da prova tem lugar quando, nos termos da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência, sem recurso a outros elementos externos, ainda que constantes do processo, se deva concluir que se teve como provado algo que notoriamente não se poderia como tal considerar, o que logo é perceptível ao observador comum, ou seja, é de concluir pelo erro notório na apreciação da prova sempre que, para a generalidade das pessoas, seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal.»

A verificar-se o vício do erro notório na apreciação da prova, o tribunal de recurso deve determinar o reenvio do processo para um novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo, ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio, nos termos do art.º 426º, nº1 do CPP.

Da simples leitura da sentença recorrida, designadamente dos factos provados e não provados e da sua fundamentação não se vislumbra qualquer erro na apreciação da prova, muito menos evidente.

O tribunal teve o cuidado de fundamentar a razão pela qual concluiu quanto aos factos não provados, que o recorrente não impugna, e fê-lo de forma racional, a partir da análise das provas que examinou, designadamente do teor dos textos em causa e do contexto de facto temporal em que os mesmos foram escritos. Sem deixar de qualificar as expressões usadas pelo arguido de “grosseiras”, “rudes” e “descorteses”, resulta da fundamentação a razão para o tribunal as não ter considerado atentatórias da honra da recorrente e daí as razões para ter concluído como concluiu quanto aos factos não provados.

Em função do que consta da decisão quanto ao teor dos textos publicados pelo arguido e do contexto epidemiológico que então se vivia, não se vislumbra que o tribunal tenha concluído em sentido contrário àquele que, para o homem médio, em termos de razoabilidade e de experiência comum, resulta da análise de tais textos.

Não existe, pois, na decisão recorrida, qualquer erro notório na apreciação da prova relativamente aos factos não provados, sendo por isso improcedente esse segmento do recurso.

Quanto à decisão ser desconforme ao disposto nos artigos 180.º e 183.º, n.º1,alínea a) do Código Penal e aos preceitos constitucionais, é manifesta a falta de razão da recorrente em face dos fundamentos da decisão impugnada para a qual se remete, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 425.º n.º5 do Código de Processo Penal.

Embora a decisão recorrida o não diga expressamente, está subjacente à mesma, a ausência do elemento subjectivo ou dolo no elenco dos factos provados, além do facto de o tribunal ter considerado como não ofensivo da honra e consideração da assistente o teor das expressões usadas pelo arguido nos textos por ele escritos no seu facebook, nem as imagens aos mesmos associadas.

O primeiro argumento é incontornável uma vez que o crime de difamação é necessariamente doloso e por isso a conduta típica não se consuma sem o preenchimento do elemento subjectivo, que, no caso, foi dado como não provado.

Já quanto à potencialidade “desonrosa” das expressões ou imagens usadas pelo arguido nos seus escritos, que o tribunal recorrido considerou não existir, importa realçar que apesar de a Constituição da República Portuguesa consagrar no seu artigo 26º o direito do cidadão à sua integridade moral, bom nome e reputação, nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos artigos 180.º e 181.º do Código Penal, que tutelam esses bens jurídicos. Tudo depende da «intensidade» da ofensa ou perigo de ofensa, havendo que reconhecer «existir uma linha demarcativa, mais ou menos nítida, através da qual se podem excluir da tutela penal certos comportamentos” (Oliveira Mendes, O direito à honra e a sua tutela penal, 1996, p. 37).

A protecção penal dada à honra e consideração e a punição dos factos lesivos desses bens jurídicos, só se justifica em situações em que objectivamente as palavras proferidas não têm outro conteúdo ou sentido que não a ofensa, ou em situações em que, uma vez ultrapassada a mera susceptibilidade pessoal, as palavras dirigidas à pessoa a quem o foram, são indubitavelmente lesivas da honra e da consideração do lesado (acórdão da Relação de Lisboa, de 20/03/2006, processo: 4290/2006-5, in www.dgsi.pt).

Não pode, pois, considerar-se ofensivo da honra tudo aquilo que a assistente entende que a atinge, mas tão só o que na opinião da generalidade das pessoas, deve considerar-se ofensivo dos valores sociais e individuais de respeito.

Como refere Faria Costa, “o significado das palavras, para mais quando nos movemos no mundo da razão prática, tem um valor de uso. Valor que se aprecia, justamente, no contexto situacional e que ao deixar intocado o significante ganha ou adquire intencionalidades bem diversas no momento em que apreciamos o significado”, o que não significa que não haja palavras “cujo sentido primeiro e último é tido, por toda a comunidade falante, como ofensivo da honra e consideração” (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, p. 630).
Para aferir se as palavras escritas pelo arguido, ao referir-se à assistente como “BB Chalupa” e “maluquinha de arroios”, bem como as imagens colocadas ao lado de alguns dos textos escritos pelo arguido (que subentendem a comparação daquilo que é defendido pela assistente e outros médicos quanto à Covid como “asnático” e daí a imagem do burro) são ofensivas da sua honra e consideração importa, pois, em primeiro lugar, ter presente o contexto situacional de vivência humana, em que as mesmas foram escritas ou publicadas.

Ora, tal como resulta da decisão recorrida os textos do arguido ocorrem na sequência de uma grave epidemia (Covid 19) que o país e o mundo viviam, em que o arguido, professor de química aposentado (como consta dos autos), de modo satírico, critica a postura de alguns médicos que se assumiram publicamente como negacionistas, entre eles a assistente, sobre a relevante questão da Covid e das políticas adotadas quanto a ela. A linguagem utilizada pelo arguido, sendo o tom dos textos satírico, visa atingir e denunciar essas teorias negacionistas e quem as publicita e não a honra ou consideração das pessoas cujos nomes refere, defensoras dessas teorias.

Ainda que os vocábulos usados possam ter um sentido depreciativo, os textos e bem assim as imagens a ele associadas, de carácter satírico, no contexto em que foram escritos e que resulta do conjunto dos factos provados, não alcançam o patamar de gravidade social, que lhes poderia conferir dignidade penal, não se inscrevendo por isso no âmbito do tipo incriminador objectivo do artigo 180.º do Código Penal, tal como considerou o tribunal recorrido.

De todo o modo, ainda que assim se não considerasse, sempre a pretensão do recorrente estaria votada ao insucesso porquanto, conforme já referimos, não consta dos factos provados a descrição do elemento subjectivo, sendo certo que a recorrente não impugnou a matéria de facto.

A interpretação dada pelo tribunal recorrido ao sentido dos textos do arguido e às expressões neles utilizadas quanto à pessoa da assistente, ainda que “grosseiras” ou “descorteses”, não viola, assim, o disposto naquelas disposições penais nem atenta, de modo algum, contra os bens jurídicos protegidos por tais normas na Constituição da República Portuguesa.

IIIDispositivo

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pela assistente, mantendo, em consequência, a decisão da 1ª instância de absolvição do arguido
Custas a cargo da recorrente, fixando-se em 3 (três) UC a taxa de justiça (artigos 515.º, n.º1, alínea b) do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e tabela III a ele anexa).


Lisboa, 7 de Maio de 2024


(Texto processado e revisto pela relatora – art.º 94.º, n.º 2 do C.P.P.)


Maria José Costa Machado
Alda Tomé Casimiro
Rui Coelho
(assinaturas digitais certificadas)