PROCURAÇÃO IRREVOGÁVEL
FORMALIDADES AD SUBSTANTIAM
INSTRUMENTO NOTARIAL
NULIDADE
Sumário


I. Para que uma determinada procuração seja irrevogável, impõe-se a demonstração de uma relação subjacente à outorga daquela no interesse próprio do mandatário que sustente essa irrevogabilidade;
II. A formalidade prevista no nº 2 do art. 116º do Código do Notariado é “ad substantiam”.

Texto Integral

Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:


*


AA, com domicílio profissional na Avenida ..., ... ;

EUROBRASIL - ADMINISTRAÇÃO de PROPRIEDADES, S.A., com sede na Avenida ..., em ... ;

TARQUINUS, LDA., com sede na Avenida ..., ..., vieram instaurar acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra[ seguindo-se o relatório do acórdão do Tribunal da Relação]:

BB e mulher CC, residentes na Rua ..., em ... ;

DD e mulher EE, residentes na ... 37, ... ;

EUROALFRAGIDE - SOCIEDADE de CONSTRUÇÕES, LDA., com sede na Avenida ... , ... ;

Q..., LDA., com sede na Avenida ..., ... ;

G..., Lda., com sede na Rua ... , em ... ;

P..., LDA., com sede na Avenida ..., em ... ;

C..., Lda., com sede em ... ; ...

S..., S.A., com sede na Avenida ..., em ...,

pedindo que:

“a) Seja declarada a nulidade e sem qualquer efeito do negócio jurídico celebrado entre os Réus BB e DD e as suas mulheres Rés CC e EE, em 30 de Julho de 2018, correspondente à cessão, por doação, da nua propriedade das quotas que compõem o capital social da sociedade Ré EUROALFRAGIDE - Sociedade de Construções, Lda.;

b) Seja declarada a nulidade e sem qualquer efeito do negócio jurídico celebrado entre os Réus BB e DD e as suas mulheres Rés CC e EE, em 30 de Julho de 2018, correspondente à cessão, por doação, da nua propriedade das quotas que compõem o capital social da sociedade Ré Q..., Lda.;

c) Seja declarada a nulidade e sem qualquer efeito do negócio jurídico celebrado entre a sociedade Ré S..., S.A., representada pelo Réu BB, na qualidade de seu administrador, e os Réus BB e DD, em 30 de Julho de 2018, correspondente à divisão e cessão das quotas que aquela detinha no capital social da sociedade Ré G..., Lda.;

d) Seja declarada a nulidade e sem qualquer efeito do negócio jurídico celebrado entre os Réus BB e DD e as suas mulheres Rés CC e EE, em 30 de Julho de 2018, correspondente à cessão, por doação, da nua propriedade das quotas que compõem o capital social da sociedade Ré G..., Lda.;

e) Seja declarada a nulidade e sem qualquer efeito do negócio jurídico celebrado entre os Réus BB e DD e as suas mulheres Rés CC e EE, em 30 de Julho de 2018, correspondente à cessão, por doação, da nua propriedade das quotas que compõem o capital social da sociedade Ré P..., Lda.;

f) Seja declarada a nulidade e sem qualquer efeito do negócio jurídico celebrado entre a sociedade Autora TARQUINUS, Lda., representada pelo Réu BB, na qualidade de seu gerente, e os Réus BB e DD, em 11 de Julho de 2018, correspondente à cessão das quotas que aquela detinha no capital social da sociedade Ré C..., Lda.;

g) Seja declarada a nulidade e sem qualquer efeito do negócio jurídico celebrado entre os Réus BB e DD e as suas mulheres Rés CC e EE, em 11 de Julho de 2018, correspondente à cessão, por doação, da nua propriedade das quotas que compõem o capital social da sociedade Ré C..., Lda.;

Cumulativamente, requer-se que:

h) Seja ordenado o registo da sentença que vier a ser proferida nos presentes autos junto das entidades e autoridades competentes, nomeadamente junto da Conservatória do Registo Comercial;

i) Seja ordenado o cancelamento dos registos sobre as transmissões das mencionadas quotas nas sociedades Rés E..., Lda., correspondentes às Menções de Depósito nºs ...35 e ...36, ambas de 2018-08-01; Q..., Lda., correspondentes às Menções de Depósito nºs ...33 e ...34, ambas de 2018- 08-01; G..., Lda., correspondentes às Menções de Depósito nºs ...01, ...02, ...03,...04, ...05 e ...06, todas de 2018-08-01; P..., Lda., correspondentes às Menções de Depósito nºs ...31 e ...32, ambas de 2018-08-01 e C..., Lda., correspondentes às Menções de Depósito nºs ...07, ...08, ...09 e ...10, todas de 2018-08-01; bem como de todos os registos que hajam sido feitos após as referidas transmissões de quotas a favor de terceiros;

j) Sejam os Autores dispensados do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos e para os efeitos do disposto no nº 7 do artigo 6º do Regulamento das Custas Processuais;

k) Sejam os Réus pessoas singulares condenados no pagamento das custas judiciais, incluindo as custas de parte que vierem a ser suportadas pelos Autores”.

Invocam três razões conducentes ao deduzido pedido de nulidade, nomeadamente:

-as doações são inválidas por violação do disposto no art.1714, nº2, do Cód. Civil que possui natureza imperativa, na medida em que os primeiros Réus são casados no regime de separação de bens e aquelas cessões importaram uma alteração da qualificação dos bens ;

- a cessão a terceiro, por doação, não foi autorizada pelas sociedades cujas quotas foram objecto dos negócios, gozando estas de direito de preferência, sendo as deliberações respectivas inválidas por existência de conflito de interesses na pessoa dos RR BB e DD, pois figuram naqueles negócios como parte, estando por isso impedidos de votar - cf., art.251º, nº 1 do CSC;

-os negócios são inválidos por o seu fim ser contrário à lei e ofensivo aos bons costumes, porquanto foram realizados por doação com reserva de usufruto a favor dos cedentes, tendo como único fim afastar a possibilidade do Autor AA, através das procurações que lhe haviam sido outorgadas pelos RR DD e BB, transmitir a titularidade das quotas daqueles, tal como o fizera relativamente a outras sociedades.

Alegaram, em súmula, o seguinte:

- o Autor AA é pai dos Réus DD e BB, sendo também o actual administrador único da sociedade comercial Autora EUROBRASIL - Administração de Propriedades, S.A. e gerente único da sociedade comercial Autora TARQUINUS, Lda. ;

-no decurso da sua vida empresarial, o Autor AA construiu um verdadeiro grupo familiar de empresas, conhecido e reconhecido na Banca, entre outras entidades públicas e privadas, como “Grupo Económico ...”, as quais gozavam de enorme prestígio, confiança e crédito;

-os seus filhos DD e BB, ora Réus, sempre estiveram formalmente ligados às empresas do denominado “Grupo Económico ...”, com excepção de uma breve passagem do Réu DD, no início da sua vida profissional, entre 1997/99, como funcionário bancário, nunca tendo tido, qualquer deles, outra actividade;

-as sociedades comerciais Rés EUROALFRAGIDE - Sociedade de Construções, Lda. e Q..., Lda., que haviam sido constituídas, em 29 de Julho de 1997, por cisão, mediante destaque patrimonial da sociedade comercial “M...& Cª., Lda.”, foram adquiridas pelo Autor AA, em 16 de Maio de 2000, mediante cessões das respectivas quotas, na proporção de metade do capital social, a favor de cada uma das sociedades comerciais Sociedade ..., Lda. e EUROBRASIL- Administração de Propriedades, Lda., ao tempo ambas detidas maioritariamente e representadas pelo seu gerente, ora Autor, AA;

-para além de ter passado a ser gerente das sociedades comerciais Rés E..., Lda. e Q..., Lda., era também o Autor AA quem sempre representava as respectivas sócias destas, as sociedades comerciais Sociedade ..., Lda. e EUROBRASIL nas respectivas assembleias gerais, aí tomando todas as decisões, até ao ano de 2004 ;e

-em virtude da notoriedade que lhe veio a ser reconhecida enquanto famoso sócio e adepto benfiquista, tendo apoiado pública e financeiramente o clube, tornou-se alvo de “invejas” e “perseguições”, passando a figurar como alvo, a partir dessa altura, entre outras, de várias inspecções promovidas pela Autoridade Tributária, que redundaram em diversos processos tributários, graciosos e judiciais, envolvendo quer a sua pessoa, quer algumas das suas empresas, implicando a contingência do pagamento de elevadas quantias ;

-motivo pelo qual, em 04 de Março de 2004, o Autor AA, na altura ... do Conselho de Administração daquelas sociedades, celebrou, em nome e representação das mesmas, duas Cessões de Quotas a favor dos seus filhos, os ora Réus BB e DD, transferindo para a titularidade destes, na proporção de metade para cada um, a totalidade das quotas que as sociedades Sociedade ..., Lda. E EUROBRASIL - ADMINISTRAÇÃO de PROPRIEDADES, LDA. detinham nas sociedades comerciais Rés E..., Lda. e Q..., Lda., como forma de proteção patrimonial;

tendo sido igualmente a situação da existência de vários processos tributários, graciosos e judiciais, envolvendo directamente a pessoa do Autor AA, que motivou que este fosse colocando progressivamente os seus filhos, os ora Réus BB e DD, na titularidade formal de todas as participações sociais (quotas e/ou ações) das diversas sociedades comerciais por aquele detidas, bem como passassem, também progressivamente, a ocupar os cargos estatutários de gerentes e/ou administradores dessas sociedades comerciais do denominado “Grupo Económico ...” ;

-tendo tal ocorrido, atendendo, naturalmente, ao elevado grau de proximidade familiar e extrema confiança que o Autor AA depositava nos filhos, ora Réus BB e DD, bem como ao facto de estes se encontrarem ambos casados sob o regime da separação de bens, como forma de protecção do seu património e sem o recebimento de qualquer contrapartida financeira por parte destes;

-sempre tendo o Autor AA mantido, todavia, a administração de facto e a gestão corrente de todas essas empresas, entre as quais as sociedades Rés, sendo ele quem lidava com os principais responsáveis dos Bancos, das Câmaras Municipais, arquitectos, engenheiros, fornecedores e clientes diversos, entre os quais os inquilinos de certos imóveis pertencentes àquelas sociedades, entre muitas outras pessoas e/ou entidades públicas e privadas ;

-a situação pessoal do Autor AA foi entretanto agravada pela circunstância de, em 2013, ter sofrido um problema de saúde grave, do foro oncológico, suficientemente motivador para manter o “status quo” criado ;

-todavia, a partir do momento em que adoeceu com “cancro”, o Autor AA começou a andar desconfiado sobre o comportamento dos seus referidos filhos, ora 8 Réus BB e DD, quanto à gestão do património, motivo pelo qual estes outorgaram a favor daquele, em Cartório Notarial, duas Procurações, datadas de 05 de Fevereiro de 2014, quer a título pessoal, quer em representação das quatro sociedades comerciais com maior movimentação e actividade imobiliária na altura, entre as quais a sociedade Autora EUROBRASIL, com os mais amplos poderes e para sua salvaguarda ;

-sendo que tais instrumentos jurídicos de representação voluntária pretendiam conferir ao Autor AA todos os poderes necessários para continuar a administrar e a dispor de todo o património imobiliária e mobiliário como se fosse seu, isto é, em igualdade de condições como se estivesse na sua titularidade formal ;

-porém, na sequência de desentendimentos ocorridos, em final de Junho de 2018, entre o Autor AA e os seus filhos, os ora Réus BB e DD, quanto à titularidade das participações sociais (quotas e ações) de diversas sociedades comerciais, que estavam, como se disse, nominalmente em nome destes, os referidos Réus outorgaram juntamente com as suas respectivas mulheres, as ora Rés CC e EE, os seguintes “Títulos de Cessão de Quotas Com Reserva de Usufruto”, referentes às cinco sociedades comerciais Rés: a) Em 30 de Julho de 2018, o Réu BB cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré CC, a nua propriedade da quota no valor nominal de € 68.509,89, que tinha em seu nome, na sociedade Ré E..., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota e o Réu DD cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré EE, a nua propriedade da quota no valor nominal de € 68.509,89, que tinha em seu nome, na mesma sociedade Ré E..., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota, tendo ambos declarado, em representação da Sociedade, que esta autorizava a referida cessão com reserva de usufruto, mais declarando não exercer qualquer direito de preferência. Estes atos foram inscritos no Registo Comercial da sociedade Ré E..., Lda. sob as Menções de Depósito nºs ...35 e ...36, ambas de 2018-08-01; - Cf. Documentos nºs 17 e 56; b) Na mesma data de 30 de Julho de 2018, o Réu BB cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré CC, a nua propriedade da quota no valor nominal de € 47.884,60, que tinha em seu nome, na sociedade Ré Q..., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota e o Réu DD cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré EE, a nua propriedade da quota no valor nominal de € 47.884,60, que tinha em seu nome, na mesma sociedade Ré Q..., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota, tendo ambos declarado, em representação da Sociedade, que esta autorizava a referida cessão com reserva de usufruto, mais declarando não exercer qualquer direito de preferência. Estes atos foram inscritos no Registo Comercial da sociedade Ré Q..., Lda. sob as Menções de Depósito nºs...33 e ...34, ambas de 2018-08-01; - Cf. Documentos nºs 18 e 57. c) Também a 30 de Julho de 2018, o Réu BB cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré CC, a nua propriedade da quota no valor nominal de € 25.000,00, que tinha em seu nome, na sociedade Ré G..., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota e o Réu DD cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré EE, a nua propriedade da quota no valor nominal de € 25.000,00, que tinha em seu nome, na mesma sociedade Ré G..., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota, tendo ambos declarado, em representação da Sociedade, que esta autorizava a referida cessão com reserva de usufruto, mais declarando não exercer qualquer direito de preferência. Para o efeito de lograrem realizar a mencionada cessão de quotas, o Réu BB, no mesmo documento, na qualidade de administrador e em representação da sociedade Ré S..., S.A., igualmente sócia da 10 sociedade Ré G..., Lda., operou previamente a divisão da quota que aquela sociedade detinha nesta, no valor nominal de € 48.000,00, em duas novas quotas, no valor nominal de € 24.000,00 cada, que transmitiu a cada um dos outros dois sócios, os Réus BB e DD, pelo respetivo valor nominal, postergando o pagamento dos respetivos preços. Estes atos foram inscritos no Registo Comercial da sociedade Ré G..., Lda. sob as Menções de Depósito nºs 4501, 4502, 4503, 4504, 4505 e 4506, todas de 2018-08-01; - Cf. Documentos nºs 42 e 58; d) Ainda em 30 de Julho de 2018, o Réu BB cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré CC, a nua propriedade da quota no valor nominal de € 10.000,00, que tinha em seu nome, na sociedade Ré P..., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota e o Réu DD cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré EE, a nua propriedade da quota no valor nominal de € 10.000,00, que tinha em seu nome, na mesma sociedade Ré P..., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota, tendo ambos declarado, em representação da Sociedade, que esta autorizava a referida cessão com reserva de usufruto, mais declarando não exercer qualquer direito de preferência. Estes atos foram inscritos no Registo Comercial da sociedade Ré P..., Lda. sob as Menções de Depósito nºs ...31 e ...32, ambas de 2018-08- 01; - Cf. Documentos nºs 44 e 59. e) E, em 11 de Julho de 2018, o Réu BB cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré CC, a nua propriedade da quota no valor nominal de € 2.500,00, que tinha em seu nome, na sociedade Ré C..., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota e o Réu DD cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré EE, a nua propriedade da quota no valor nominal de € 2.500,00, que tinha em seu nome, na mesma sociedade Ré C..., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota, tendo ambos declarado, em representação da Sociedade, que esta autorizava a referida cessão com reserva de usufruto, mais declarando não exercer qualquer direito de preferência.

Para o efeito de lograrem realizar a mencionada cessão de quotas, o Réu BB, no mesmo documento, na qualidade de gerente e em representação da sociedade Autora TARQUINUS, Lda., que era a sócia única da sociedade Ré C..., Lda., transmitiu previamente as duas quotas que aquela sociedade detinha nesta, no valor nominal de € 2.500,00 cada, a favor de cada um dos Réus BB e DD, pelo respetivo valor nominal, postergando o pagamento dos respectivos preços

Estes actos foram inscritos no Registo Comercial da sociedade Ré C..., Lda. sob as Menções de Depósito nºs ...07, ...08, ...09 e ...10, todas de 2018- 08-01; - Cf. Documentos nºs 46 e 60 ;

- Todas as cessões de quotas realizadas pelos Réus BB e DD, primeiramente a favor de si próprios, no caso das sociedades Rés G..., Lda. e C..., Lda., bem como a favor das respectivas mulheres, as ora Rés CC e EE, no caso de todas as sociedades Rés, não obtiveram o consentimento válido das sociedades comerciais em causa, nem lhes foi dado a exercer validamente o seu respectivo direito de preferência nessas cessões de quotas ;

-tendo as mesmas visado, única e exclusivamente, de forma concertada entre todos os Réus, prejudicar o pai dos Réus maridos, o Autor AA, pretendendo afastá-lo da possibilidade de agir sobre o património mobiliário e imobiliário que foi construído e angariado por este ao longo de muitos anos de trabalho e que, pelos motivos acima explicados, se encontrava apenas, fiduciariamente, na titularidade dos filhos ;

-bem sabendo os Réus BB e DD que as respectivas mulheres, ora Rés CC e EE, não têm a mínima capacidade profissional, em termos de formação ou experiência, para administrar ou gerir as mencionadas sociedades comerciais, no exercício da actividade corrente destas, de promoção, construção e gestão imobiliária, com activos no valor de vários milhões de euros. Juntaram vários documentos, tendo a acção sido proposta em 24/09/2019.

Citados os Réus, vieram os demais apresentar contestação, fazendo-o, em resumo, nos seguintes termos:

-procederam à revogação da procuração que havia sido outorgada a favor do Autor AA por quebra de confiança, tendo o mesmo tido conhecimento dessa revogação a 20 de Julho de 2018;

-pelo que, a partir dessa data, estava impedido de celebrar negócios em representação dos RR, dissipando o seu património. ;

-tal revogação é válida e o facto de o A ficar sem poderes de representação não constitui qualquer ilícito, nem os negócios efectuados pelos RR visaram qualquer fim contrário à lei ou ofensivo aos bons costumes ;

- por outro lado, a cessão, por doação, aos cônjuges de quotas que constituíam bens próprios dos cedentes, é permitida, não depende de consentimento da sociedade, e não visou qualquer fim contrário à lei ou ofensivo aos bons costumes ;

-em termos de excepção, enunciam, ainda, a falta de interesse em agir dos Autores, o que consideram ser gritante relativamente às Autoras Eurobrasil e Tarquinus ;

-não possuindo os Autores legitimidade processual activa na presente demanda, o que deve determinar a verificação da correspondente excepção dilatória, conducente à absolvição dos Réus da instância.

Concluem no sentido de que:

“a) Seja julgada procedente, por provada, a exceção de falta de legitimidade dos Autores e de revogação das procurações e, consequentemente, sejam os Réus absolvidos do pedido;

b) Sejam julgadas procedentes, por provadas, as excepções deduzidas de falta de interesse em agir dos Autores e de Ilegitimidade processual dos Autores e, consequentemente, sejam absolvidos os Réus da instância;

Caso assim não se entenda,

c) Seja a ação julgada totalmente improcedente, por não provada, e, por conseguinte, sejam os Réus absolvidos dos pedidos formulados, com todas as consequências legais”.

Por despacho de 19/02/2020 - cf., fls. 279 -, determinou-se a notificação dos Autores para, querendo, responderem à matéria de excepção invocada na contestação.

O que os Autores vieram fazer a fls. 281 e 282, concluindo no sentido de serem julgadas totalmente improcedentes, por não provadas, as excepções de “falta de legitimidade processual e material dos AA., falta de interesse em agir dos AA. e de revogação das procurações, invocadas pelos RR. na contestação”.

Designada data para a realização de audiência prévia, e após várias tentativas, veio esta a efectivar-se, conforme acta de fls. 597 e 598 - em 26/04/2021 -, no âmbito da qual veio a ser proferido o seguinte DESPACHO:

“Convido os AA a esclarecerem melhor, aperfeiçoando a sua petição inicial, os fundamentos de facto que são pressuposto da invocação da nulidade dos negócios jurídicos em questão por o seu fim ser contrários à lei e ofensivo aos bons costumes, porquanto não resulta claro daquela peça processual qual a disposição legal em causa e quais os bons costumes que os AA consideram que foram ofendidos pelo fim do negócio”.

Em resposta, os Autores, através do seu Ilustre Mandatário, referenciaram o seguinte:

"Relativamente à invocação dos negócios jurídicos que estão em causa nestes autos serem contrários à lei a mesma baseia-se nos factos alegados nos artº 43º a 47º e, tem como justificação a circunstância de as cessões de quotas, cuja nulidade é peticionada não terem visado colocar as cessionárias na posição de sócias de pleno direito, isto é; com a possibilidade de exercerem todos os direitos sociais inerentes às quotas, mas apenas a de provocar um alteração formal da titularidade sobre as quotas visando impedir que o Autor AA pudesse alterar essa titularidade através da Procuração que lhe tinha outorgado em 5 de Fevereiro de 2014 a título pessoal pelos 1º e 2º réus homens, seus filhos, à semelhança do que em Junho de 2018 se verificara quanto a outras sociedades do mesmo grupo empresarial, designadamente, Quinta ..., Lda.; So..., Lda.; Pe..., Lda. e Tarquinus, Lda. . Esta situação decorre de, conforme também alegado na petição, a detenção das quotas pelos RR referidos, ser dentro do quadro factual apresentado pelos Autores meramente fiduciário em relação ao 1º Autor, pai daqueles e de se entender que a referida Procuração foi conferida no interesse do Procurador, não podendo assim ser revogada sem o acordo do interessado nos termos do artº 265º nº 3 do Código Civil, pelo que não deve proceder o argumento de que a revogação daquela Procuração operada em 28.06.2018 e comunicada a 20.07.2018, naquilo que foi exposição dos réus, obstaculizar à possível conduta do Autor, independentemente das cessões de quotas em causa terem sido celebradas em 30 de Julho de 2018, com excepção da cessão de quotas da Tarquinus, para o 1º e 2º Réus homens, a qual foi celebrada em 11.07.2018 e por isso anterior à alegada comunicação de revogação da Procuração. Atendendo ao exposto e à circunstância de as cessionárias, serem as esposas dos cedentes, conhecerem toda a situação relativa à constituição, aquisição e detenção das referidas participações sociais ou das referidas quotas por estes, bem como ao litígio, já à data existente entre aqueles e o 1º Autor, entende-se que se trata de uma ilicitude do fim dos negócios jurídicos comum aos intervenientes no mesmo e, por isso, este fundamento de direito, deve ser, com todo o respeito por diferente e superior decisão, pelo menos contemplado na apreciação jurídica da causa. Relativamente à ofensa aos bons costumes, a mesma decorre da base legal do artº 281º do Código Civil, não só como tópico argumentativo jurídico, mas na senda da doutrina maioritária da qual se respiga o entendimento exposto pelo Professor Doutor António Meneses Cordeiro, no seu Tratado de Direito Civil Português (Vol.II) - Tomo sobre os negócios jurídicos - a noção de bons costumes, em ou assume um conteúdo específico de papel moderador no plano dos negócios jurídicos de que é exemplo, precisamente, as liberalidades com fim contrário, aos costumes, neste caso enquanto prática comercial, societária, uma vez que se trata de negócios sobre participações sociais e porque as cessões de quotas em causa foram todas elas celebradas por doação, com reserva de usufruto a favor dos cedentes e entre cônjuges, casados sob o regime da separação de bens, motivo pelo qual, com todo o respeito por diferente e superior decisão, se entende que também este fundamento jurídico, deve ser contemplado no julgamento da causa e decisão a proferir.".

Após exercício do contraditório por parte dos Réus, através da sua Ilustre Mandatária, foi proferido DESPACHO com o seguinte teor:

"Tendo os AA respondido ao convite formulado, exercido o contraditório quanto a este e já tendo as partes nos seus articulados se pronunciado sobre as excepções invocadas, considero que - ponderados os argumentos apresentados naqueles articulados e os expostos nesta audiência - será mais adequado proferir decisão por escrito sobre os pressupostos processuais. Mais considero que, compulsados os documentos que constam dos autos e ponderados os argumentos expostos pelas partes nesta audiência, o Tribunal poderá estar apto a proferir decisão sobre o mérito da causa”.

De acordo com fls. 599 a 609:

“foi fixado o valor da causa ;

foram declaradas parte ilegítima na presente causa as Rés “E..., Lda. (5), Q..., Lda. (6), G..., Lda. (7), P..., Lda. (8), C..., Lda.” e, consequentemente, foram absolvidas da instância ;

foi declarada parte ilegítima a Autora EUROBRASIL, S.A. ;

no âmbito do saneamento efectuado, foi apreciada a (não) verificação dos demais pressupostos processuais ;

conheceu-se acerca do mérito da acção, concluindo-se com a prolação do seguinte DISPOSITIVO:

“Destarte, o Tribunal decide:

Absolver da instância, por ilegitimidade, as RR E..., Lda.(5), Q..., Lda.(6), G..., Lda. (7), P..., Lda. (8), C..., Lda. (9).

Julgar a presente acção totalmente improcedente por não provada e consequentemente, absolver os restantes RR do pedido.

Custas pelos AA.

Registe.

Notifique”.

Inconformados com o decidido, os Autores interpuseram recurso de apelação, por referência ao saneador-sentença.

Concluem requerendo que o recurso seja julgado totalmente procedente, por provado, com consequente revogação da sentença recorrida.

As Apeladas/Recorridas Rés apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso, com consequente confirmação do saneador-sentença.

O recurso foi admitido, como apelação, com subida nos próprios autos, de imediato e com efeito meramente devolutivo.

Apreciando o recurso, a Relação decidiu o seguinte:

“I) julgar totalmente improcedente a presente apelação, em que figuram como Recorrentes/Apelantes os Autores AA, EUROBRASIL – ADMINISTRAÇÃO de PROPRIEDADES, S.A. e TARQUINUS, LDA., e como Recorridos/Apelados os Réus BB, CC, DD, EE, E..., Lda., Q..., Lda., G..., Lda., P..., Lda., C..., Lda. e S..., S.A., confirmando-se o saneador sentença apelado/recorrido ;

II) nos quadros do arts. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, as custas devidas pelo presente recurso são suportadas pelos Recorrentes/Apelantes Autores.”

Não se conformaram os Autores que agora interpõem recurso de revista excepcional, que rematam com as seguintes conclusões:

“A) Vem o presente recurso de revista excecional interposto sobre o acórdão recorrido, que confirmou a decisão da 1ª instância, porquanto, de acordo com o disposto no artigo 672º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Civil, se encontra em manifesta contradição com o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 04 de Fevereiro de 2016, no processo nº 2977/14.0TBMAI.P1, relator FREITAS VIEIRA, transitado em julgado, publicado em www.dgsi.pt, (acórdão-fundamento).

B) O acórdão recorrido considerou válida uma cessão de quotas, por doação, entre cônjuges casados no regime (não imperativo) de separação de bens, não violando o princípio de imutabilidade dos regimes de bens e das convenções antenupciais consagrado em termos gerais no nº 1 do referido art.º 1714º do Cód. Civil (e concretizado no nº 2, do mesmo normativo); ao passo que, o acórdão-fundamento apenas considerou válida a cessão de quotas, por doação, entre cônjuges casados num dos regimes de comunhão, sendo inválida fora dessas situações, porque em violação do referido princípio de imutabilidade dos regimes de bens e das convenções antenupciais.

C) Desta forma, quer o acórdão recorrido quer o acórdão-fundamento incidem sobre a mesma questão fundamental de direito – qual seja, a da (in)validade de uma cessão de quotas, por doação, entre cônjuges casados no regime (não imperativo) de separação de bens, em violação (ou não) do princípio de imutabilidade dos regimes de bens e das convenções antenupciais, consagrado em termos gerais no nº 1 do referido art.º 1714º do Código Civil – com manifesta contradição de decisões entre um e outro acórdão, ou seja, com soluções diametral e frontalmente opostas.

D) A questão de direito sobre a qual se verifica a controvérsia entre a decisão dada pelo acórdão recorrido e a decisão dada pelo acórdão-fundamento é essencial para determinar o resultado numa e noutra das decisões, uma vez que a conclusão lógico-jurídica sobre a (in)validade dos negócios jurídicos praticados determina a procedência ou improcedência do pleito.

E) Por outro lado, a divergência verifica-se no âmbito do mesmo quadro normativo e inexiste acórdão de uniformização de jurisprudência sobre a questão jurídica em causa, a que o acórdão recorrido tenha aderido, tendo o acórdão-fundamento transitado em julgado anteriormente à prolação do acórdão recorrido.

F) Estando provado nos autos que os RR./Recorridos BB e DD são casados sob o regime da separação de bens, é claro que as cessões de quotas em causa, feitas por doação, a favor das suas respetivas mulheres, importaram uma alteração da qualificação dos bens, nomeadamente das quotas, enquanto participações sociais nas sociedades RR. E..., Lda., Q..., Lda., G..., Lda., P..., Lda. e C..., Lda., que antes integravam os patrimónios próprios daqueles RR./Recorridos, e passaram a integrar os patrimónios próprios das respectivas mulheres.

G) Não obstante as cessões de quotas feitas por doação entre cônjuges possam ser livremente revogadas pelo doador (artigo 1765º, nº 1 do Código Civil) e possam caducar com a morte do donatário antes do doador (artigo 1766º, nº 1, alínea a) do Código Civil) ou ocorrendo divórcio ou separação judicial de pessoas e bens (artigo 1766º, nº 1, alínea c) do Código Civil), a verdade é que aquelas não caducam se o doador falecer antes do donatário e tendo os bens doados passado a integrar o património próprio do donatário, os mesmos não farão parte do acervo patrimonial hereditário para os sucessores do doador.

H) Acresce, ainda, que o donatário é livre de transmitir em vida os bens doados (vg. as quotas das sociedades E..., Lda., Q..., Lda., G..., Lda., P..., Lda. e C..., Lda.) a quem muito bem entender, sem necessidade do consentimento do cônjuge doador, porque casados sob o regime da separação de bens, podendo dessa forma frustrar, a todo o momento, as salvaguardas acima referidas previstas nos mencionados artigos 1765º, nº 1 (livre revogação da doação) e 1766º, nº 1, alíneas a) e c) do Código Civil (caducidade da doação).

I) O princípio da imutabilidade previsto no artigo 1714º, nºs 1 e 2 do Código Civil assume um sentido amplo, podendo, assim, considerar-se proibidos todos os negócios que “impliquem uma modificação na composição das massas patrimoniais, pertencentes ao casal”. Desta feita, inclui “não só as cláusulas constantes da convenção ou as normas do regime legalmente fixado, relativas à administração ou disposição de bens, mas também, como se conclui da leitura do nº 2 do artigo 1714º, a situação concreta dos bens dos cônjuges que interessa às relações entre estes” – Cf. RITA LOBO XAVIER, em Contrato-promessa de partilha de bens do casal celebrado na pendência da acção de divórcio, Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XXXVI, 1994 (Janeiro-Setembro), nºs 1, 2 e 3, p. 155.

J) Assim, os cônjuges não podem celebrar entre si contratos que impliquem transferências de bens de uma das massas patrimoniais para a outra, dado que “o regime matrimonial inclui soluções relativamente à composição dos patrimónios de cada cônjuge que têm incidência sobretudo quanto ao destino dos bens no momento da dissolução do regime. As alterações que os cônjuges introduzam na repartição dos bens pelas várias massas patrimoniais envolvem obviamente a modificação do regime inicialmente aplicável”. – Cf. RITA LOBO XAVIER, em obra cita.

K) Pese embora alguns autores defendam que a proibição do artigo 1714º, nº 2 do Código Civil foi derrogada pelo artigo 228ºdo Código das Sociedades Comerciais, que admite a cessão de quotas entre cônjuges; no entanto, a melhor doutrina e jurisprudência será a que entende que a norma contida no nº 2 do mencionado artigo 228º do CSC deve ser interpretada como reportada apenas às situações em que, de acordo como previsto nas normas do Código Civil, a cessão de quotas entre cônjuges deve ter-se como válida, como acontecerá se os cônjuges estiverem separados judicialmente de pessoas e bens (situação jurídica diferente de os cônjuges estarem casados sob o regime da separação de bens); fora destes casos, a cessão de quotas entre os cônjuges terá de considerar-se nula porque viola o princípio da imutabilidade.

L) Pelo que, todas as cessões de quotas realizadas pelos RR./Recorridos BB e DD a favor das respetivas mulheres, em causa nestes autos, violaram o disposto no artigo1714º,nºs1e2,doCódigoCivil, norma de natureza imperativa, que consagra o princípio da imutabilidade das convenções antenupciais e do regime de bens resultantes da lei.

M) Desta forma, os negócios jurídicos celebrados contra disposição legal de carácter imperativo, como é o caso do artigo 1714º, nºs 1 e 2 do Código Civil, são nulos, segundo o estatuído no artigo 294º do Código Civil, consequência que deve ser aplicável às cessões de quotas realizadas pelos RR./Recorridos BB e DD a favor das respetivas mulheres, de quem não estavam separados judicialmente de pessoas e bens, em causa nestes autos.

N) Devendo, por conseguinte, para a obtenção de uma certeza na aplicação do direito relativamente à questão jurídica em causa, dar-se razão e prevalecer o entendimento jurídico expresso no acórdão-fundamento, com a conseguinte revogação do acórdão recorrido neste caso, com todas as consequências legais.

O) O presente recurso de revista excecional é ainda interposto sobre o acórdão recorrido, porquanto, de acordo com o disposto no artigo 672º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Civil, verifica-se uma manifesta necessidade de apreciação da questão, dada a sua relevância jurídica, sobre a interpretação e aplicação do nº 2 do artigo 116º do Código do Notariado, quanto a saber se o arquivamento da procuração irrevogável no cartório notarial constitui uma formalidade constitutiva (ad substantiam) ou se apenas tem tal natureza a exigência de tal ato ser praticado por instrumento público, para uma melhor aplicação do direito no tocante à validade desse instrumento jurídico e todas as consequências legais daí advenientes.

P) A questão jurídica em causa e que ora se suscita à apreciação desse Colendo Tribunal tem um caráter paradigmático e exemplar, transponível para outras situações, assumindo relevância autónoma e independente em relação às partes envolvidas, conforme defendido por ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, em Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3ª Edição, Almedina, 2016, pp. 334 e MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, em Reflexões Sobre o Regime dos Recursos em Processo Civil, Cadernos de Direito Privado, nº 20, p. 10.

Q) O acórdão recorrido, na senda, aliás, do douto Acórdão desse STJ de 29 de Setembro de 2020, 1ª Secção, proferido no processo nº 97/17.4T8STC.E1.S1, relator JORGE DIAS (publicado em www.dgsi.pt), subscreveu que a forma exigida pela norma do nº 2 do artigo 116º do Código do Notariado, o qual dispõe que “as procurações conferidas também no interesse de procurador ou de terceiro devem ser lavradas por instrumento público cujo original é arquivado no cartório notarial”, constitui um único comando, que não é cindível quanto aos seus efeitos, devendo assim concluir-se que as exigências de forma que resultam da referida norma, devem se qualificadas “in totum” de ad substantiam.

R) Com todo o devido respeito, que é muito, não podemos concordar com tal entendimento, o qual não tem razão de ser quer por questões de técnica e semântica jurídicas, quer por motivos de ratio legis

S) Em primeiro lugar, cumpre referir que a questão jurídica em causa se situa no domínio da forma da declaração negocial, enquanto modo de exteriorização da declaração, o modo por que a vontade se revela ou o aspeto exterior que a declaração assume (CASTRO MENDES, em Direito Civil, Teoria Geral, III, 1979, p. 93 e LUÍS CARVALHO FERNANDES, em Teoria Geral do Direito Civil, II, 5ª ed., UCP, pp. 289-291);o modo como o negócio existe, ou seja, se apresenta frente aos outros, na vida em relação, isto é, uma certa e determinada figuração exterior prescrita para a declaração (RUI DE ALARCÃO, em A Confirmação dos Negócios Anuláveis, I, Atlântida Editora, 1971, pp. 171 e 188 e PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, em Teoria Geral doDireitoCivil,7ªed.,Almedina,p.601);o modo utilizado para exteriorizar a vontade (ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, em Tratado de Direito Civil, II, Parte Geral, Negócio Jurídico, 4ª ed., Almedina, pp. 164 e 169), entre outros.

T) Sendo muito importante realçar que da norma do nº 2 do artigo 116º do Código do Notariado resulta um agravamento do regime formal da procuração irrevogável, em relação ao regime geral, precisamente quanto à intervenção do notário que, ao lavrar aquela por “instrumento público”, garante a finalidade de tutela da liberdade e discernimento do dominus na outorga da procuração, de certeza quanto ao seu conteúdo e regime, como também a tutela de terceiros, que venham a contratar com o procurador.

U) Da forma da declaração negocial deve distinguir-se as formalidades, que correspondem a atos ou factos complementares cuja satisfação ou verificação são exigidos para a prática do ato ou para a celebração do negócio, e que podem ser anteriores, concomitantes ou posteriores à própria declaração ou celebração do negócio. (PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, em Teoria Geral do Direito Civil, 7ª ed., Almedina, p.604 e ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, em Tratado de Direito Civil, II, Parte Geral, Negócio Jurídico, 4ª ed., Almedina, p. 169).

V) Embora haja na prática jurídica uma tendência para identificar ou mesmo confundir as formalidades com a forma, para inserir a forma no âmbito de um conceito amplo de formalidade, ou para incluir as formalidades num conceito alargado de forma; é útil distinguir: “A forma é o modo como o ato e o negócio se manifestam ou exteriorizam. As formalidades são atos acessórios, que estão funcionalmente ligados ao negócio mas que dele não fazem parte. Acompanham-no mas não se identificam com ele, nem são por ele englobados. As regras jurídicas sobre a forma não devem ser aplicadas, sem mais, às formalidades.” – PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, em Teoria Geral do Direito Civil, 7ª ed., Almedina, p. 604.

W) As formalidades não exprimem, nem revelam, a vontade negocial em si, pelo que não pode valer em relação a elas a mesma ratio legis que se encontra presente quanto às exigências de forma, mormente quanto a uma determinada forma legal mais solene como seja um documento autêntico, lavrado por notário.

X) Em segundo lugar, a finalidade de tutela da liberdade e discernimento do dominus na outorga da procuração, de certeza quanto ao seu conteúdo e regime, como também a tutela de terceiros, que venham a contratar com o procurador, que justificam a intervenção notarial e a exigência de “instrumento público” para a (forma da) procuração irrevogável, não podem ser igualmente aplicáveis como razões que estão na base e ditaram o “arquivamento da procuração no cartório notarial”, o qual se trata, a nosso ver, de uma mera formalidade legal posterior à prática do ato, que acarretando inegáveis vantagens para a publicidade e segurança do ato, correspondem, todavia, estas vantagens a um diferente propósito face àquelas outras enunciadas finalidades.

Y) Neste sentido, PEDRO LEITÃO PAIS DE VASCONCELOS, em A Procuração Irrevogável, 2ª ed., Almedina, p. 245: “E, finalmente, permite ainda guardar no arquivo, no cartório notarial, o original do instrumento que titula a procuração, o que acarreta inegáveis vantagens de publicidade e segurança.” (sublinhado nosso).

Z) Quanto muito, o “arquivamento da procuração no cartório notarial” poderá consubstanciar uma formalidade ad probationem, quando é apenas necessária à prova de certo ato ou somente é exigida para aprova da declaração, sendo que a sua inobservância não acarreta a nulidade do ato e/ou declaração, nos termos dispostos no artigo 364º do Código Civil.

AA) Podemos, assim, concluir, que apenas a exigência de outorga da procuração irrevogável por instrumento público corresponde à forma legal solene para o modo de exteriorização da vontade, cuja preterição impõe a nulidade do ato, por força do disposto no artigo 220º do Código Civil.

BB) Já o arquivamento da procuração no cartório notarial corresponde uma mera formalidade legal imposta ao notário, sem qualquer intervenção do outorgante da procuração e efetuada sem a presença deste, cuja inobservância, até para tutela do mesmo (confiança do outorgante da procuração no modo de exercício da atividade notarial pelo próprio notário) não pode importar a nulidade do ato, por alegada “falta de forma”.

CC) No caso dos presentes autos, temos que decorre linearmente do teor dos instrumentos de representação voluntária – Procurações – outorgadas pelos RR./Recorridos BB e DD a favor do A./Recorrente AA, em 05 de Fevereiro de 2014, no Cartório Notarial em ... de FF, a que correspondem os documentos nºs 54 e 55 juntos com a petição inicial, tal como se encontra assente na alínea f) da decisão de facto, que aquelas Procurações foram lavradas por instrumento público notarial, observando assim a primeira parte do nº 2 do artigo 116º do Código do Notariado quanto à forma legal prescrita para as procurações conferidas também no interesse de procurador e, por conseguinte, não violando o disposto nos artigos 220º e 364º do Código Civil, contrariamente ao decidido na sentença recorrida.

DD) A segunda parte do nº 2 do artigo 116º do Código do Notariado, quando dispõe que o original da procuração conferida também no interesse de procurador deve ser arquivado no cartório notarial, respeita a uma mera formalidade legal e não à forma legal propriamente dita, enquanto modo mais solene de exteriorização da vontade (através de documento escrito autêntico, artigo 363º, nº 2 do Código Civil), pelo que a inobservância dessa mera formalidade legal, tal como sucedeu no caso “sub judice”, não pode afetar a validade e eficácia das ditas Procurações conferidas também no interesse de procurador em face dos citados artigos 220º e 364º do Código Civil, não sendo, portanto, aquelas Procurações livremente revogáveis, sem o acordo do interessado, segundo o previsto no artigo 265º, nº 3 do Código Civil.

EE) Face ao exposto, parecer curial concluir que os RR./Recorridos BB e DD e respetivas mulheres tiveram como único fim comum, com a celebração das mencionadas cessões de quotas, afastar a possibilidade do A./Recorrente AA, através dos instrumentos de representação voluntária (procurações) que lhe tinham sido outorgados pelos RR./Recorridos BB e DD, em 05 de Fevereiro de 2014, agir sobre o património mobiliário e imobiliário afeto à esfera jurídica das sociedades E..., Lda., Q..., Lda., G..., Lda., P..., Lda. e C..., Lda., revestindo-se aquelas cessões de quotas de uma ilicitude do fim, porque contrário à lei, o qual por ser comum a ambas as partes (cedentes e cessionárias) conduz à nulidade destes negócios jurídicos, atendendo ao previsto no artigo 281º do Código Civil.

FF) As referidas cessões de quotas padecem igualmente de ofensa aos bons costumes, porquanto a mesma decorre da base legal do artigo 281º do Código Civil, na senda da doutrina maioritária, da qual se respiga o entendimento exposto por ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, em Tratado de Direito Civil, II, Parte Geral – Negócio Jurídico, Almedina, 2014, pp. 599-602, não só como tópico argumentativo jurídico, destinado a reforçar decisões apoiadas noutros lugares normativos, mas porquanto a noção dos bons costumes assume um conteúdo específico de papel moderador no plano dos negócios jurídicos de que são exemplo, precisamente, as liberalidades com fim contrário aos costumes, neste caso enquanto prática comercial societária, uma vez que se trata de negócios sobre participações sociais (compra e venda comercial prevista no artigo 463º, nº 5 do Código Comercial como ato de comércio objetivo absoluto nos termos do artigo 2º - 1ª parte do mesmo Código) e porque as cessões de quotas em causa foram todas elas celebradas por doação, com reserva de usufruto a favor dos cedentes, e entre cônjuges casados sob o regime da separação de bens.”

Pedem, a final, que o presente recurso de revista excepcional ser admitido e julgado totalmente procedente sendo, por conseguinte, o acórdão recorrido totalmente revogado.

Contra-alegaram os Autores que formularam as seguintes conclusões:

1. Decidiu o Digníssimo Tribunal de 1ª Instância absolver da instância, por ilegitimidade, as Rés Euroalfragide – Sociedade de Construções, Lda., Q..., Lda., G..., Lda. e P..., Lda., C..., Lda. declarar a Autora Eurobrasil – Administração de Propriedades, S.A parte ilegítima; e finalmente, julgar a ação totalmente improcedente por não provada e, consequentemente, absolver os restantes Rés do pedido.

2. Por sua vez, considerou o Digníssimo Tribunal a quo – e bem! – julgar totalmente improcedente a apelação dos Recorrentes, confirmando o despacho saneador de sentença apelado.

3. Vêm agora os Recorrentes, inconformados com o julgado nas prévias instâncias, apresentar o presente Recurso de Revista Excecional onde peticionam que o Acórdão Recorrido seja totalmente revogado, com todas as consequências legais

4. Fazem-no com base no artigo 672.º n.º 1 alíneas a) e c) do Código de Processo Civil, arguindo que está aqui em causa uma questão cuja apreciação é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, pela sua relevância jurídica (alínea a) e que o Acórdão Recorrido está em contradição com outro no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito (alínea c) – o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 04 de Fevereiro de 2016, no âmbito do Processo n.º 2977/14.0TBMAI.P1, disponível para consulta em www.dgsi.pt.

5. Contudo, e em primeiro lugar, para os termos e efeitos, exigidos no artigo 672.º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Civil, é necessário que “c) O acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.” e ainda, nos termos da alínea c) do n.º 2 do mesmo artigo, “c) Os aspetos de identidade que determinam a contradição alegada, juntando cópia do acórdão-fundamento com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição.”

6. Sendo que, segundo a interpretação realizada pela jurisprudência acerca deste preceito, a contradição exigida pela alínea c) requer uma identidade fáctico- normativa dos Acórdãos em causa, que deverá ainda ser não implícita ou pressuposta, nem sustentada em argumentação acessória ou lateral. Impõe-se ainda que, deverá tal contradição recair sobre o núcleo das decisões em confronto e não apenas entre uma decisão e a fundamentação de outra, ainda que esta se manifeste pertinente para o caso.

7. A este propósito vejam-se os seguintes Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 22-02-2022, Processo n.º 3180/06.8TBVLG.P1.S2, de 26-05-2021, Processo n.º 597/20.9T8BRR-A.L1.S1 e de 24-11-2016, Processo n.º 3686/05.6TBBRG-A.G1.S1, todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.

8. Como tal, a divergência em questão terá de integrar, necessariamente, a ratio decidendi no âmbito dos acórdãos em colação.

9. Nestes termos, e sendo que a questão fundamental do Acórdão Recorrido era evidentemente a validade da cessão de quotas por meio de doação entre cônjuges casados no regime de separação de bens, é indiscutível que tal não corresponde à questão fundamental em causa no Acórdão-fundamento que, por sua vez, incide sobre a validade da cessão de quotas por meio de contrato de compra e venda.

10. Não se poderá, portanto, concluir que está cumprindo o requisito exigido pelo 672.º n.º 1 alínea c) do Código de Processo Civil respeitante à convergência de um núcleo fundamental idêntico.

11. Ou ainda, sequer que o Acórdão-fundamento dispõe de decisão autónoma ou explícita sobre a questão em mãos no Acórdão Recorrido respeitante à validade da cessão de quotas por meio de doação entre cônjuges casados no regime de separação de bens.

12. E mesmo que assim não se considere, e se entenda que, de facto, o núcleo factual em causa se releva como coincidente em ambos os Acórdãos, sempre se terá de ajuizar que não existe aqui qualquer contradição entre o Acórdão Recorrido e o Acórdão-fundamento.

13. Isto porque, o Acórdão-fundamento em momento algum decidiu que a cessão de quotas por meio de doação entre cônjuges casados no regime de separação de bens era inválida ou sequer que a doação para esse efeito só poderia ser tida como válida nos regimes de comunhão!

14. Não existindo, portanto, qualquer argumento do Acórdão-fundamento nesse sentido, só referindo este, em termos gerais e não discriminatórios, que a cessão de quotas feita por doação não coloca em causa o princípio da imutabilidade.

15. Neste sentido, não existe no caso dos autos qualquer contradição com o Acórdão-fundamento invocado e, como tal, deverá ser considerado como inadmissível o presente Recurso de Revista Excecional por não cumprir com os requisitos exigidos pelo artigo 672.º n.º 1 alínea c) e n.º 2 alínea c).

16. Alegam ainda os Recorrentes que cabe provimento Recurso de Revista Excecional nos termos do artigo 672.º n.º 1 alínea a) do Código de Processo Civil, afirmando que estamos perante uma questão cuja apreciação é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, dada a sua relevância jurídica.

17. Trata-se aqui, então, de questão relativa à interpretação e aplicação do n.º 2 do artigo 118.º do Código de Notariado quanto ao arquivamento da procuração irrevogável no cartório notarial e quanto a saber se tal constitui uma formalidade constitutiva (ad substantiam), sem relevância jurídica para o efeito.

18. Ora, deveriam os Recorrente ter identificado de modo preciso qual a questão em que é indispensável a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça e ainda as razões pelas quais a apreciação de tal questão é necessária, nos termos exigidos pela alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º e ainda da alínea c) do n.º 2 do mesmo.

19. Não obstante, das alegações dos Recorrentes não se extrai qualquer necessidade clara de apreciação da questão que é apresentada por estes.

20. Sendo que, segundo a jurisprudência do Digníssimo Tribunal de Justiça, devem tais razões ser concretas e objetivas e ainda suscetíveis de revelar a alegada relevância jurídica, quer pela controvérsia que tal questão tenha gerado na doutrina ou jurisprudência, quer pela suscetibilidade que tenha de provocar decisões divergentes ou até contraditórias.

21. Poderá ainda surgir relevância jurídica suscetível a exigir a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça quando o tema em questão revista uma especial complexidade ou novidade, sendo necessário que a questão em causa careça de uma clarificação normativa de modo a que a decisão do Supremo Tribunal de Justiça sirva como critério decisório jurisprudencial para futuros casos.

22. Neste sentido, vejam-se os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-11- 2020, Processo n.º 2496/19.8T8STB.E1.S1 e de 01-06-2022, Processo n.º 7375/20.3T8ALM.L1.S2, ambos todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.

23. Face a tal entendimento, só se poderá concluir que a questão aqui levantada pelos Recorrentes não reveste o exigido relevo jurídico, pois não existe qualquer controvérsia na doutrina ou jurisprudência, a questão não é de carácter complexo e, de igual modo, não se reveste de novidade, pelo que não justifica a intervenção e apreciação do Supremo Tribunal de Justiça.

24. Refira-se ainda que já existe orientação jurisprudencial uniformizada quanto a esta questão como observável pelos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25-10-2011, Processo n.º 1961/09.0TBSTB.E1.S1 e de 29-09-2020, Processo n.º 97/17.4T8STC.E1.S1, disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.

25. Como tal, não se demonstra necessária qualquer clarificação do n.º 2 do artigo 116.º do Código de Notariado pelo Digníssimo Supremo Tribunal de Justiça.

26. Assim sendo, e face ao facto de os Recorrentes não terem invocado os fundamentos pelos quais entendem ser o recurso admissível ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil deverá o presente Recurso de Revista Excecional julgado improcedente por falta de observância dos ónus adjetivos da alínea a).

27. Mesmo que assim não se entenda, sempre se teria de considerar que, de igual modo, o presente Recurso de Revista excecional também não teria provimento por não estarmos perante uma questão relevante para os termos e efeitos necessários para a alínea a) do n.º 1 do artigo 672.º, pelos motivos invocados.

28. Sem prejuízo do já exposto, e aferindo o objeto do presente recurso, refira-se ainda, em primeiro lugar, que entendeu o Digníssimo Tribunal a quo – e bem!

– que as cessões de quotas em causa eram válidas por terem sido realizadas por doação entre casados, nos termos do artigo 1761.º do Código Civil, e ainda que tais cessões de quotas não introduziram qualquer alteração no regime de bens em vigor dos Recorridos.

29. Como tal, concluiu então o Digníssimo Tribunal no Acórdão Recorrido que não foi violada nenhuma disposição legal de natureza imperativa, como o princípio da imutabilidade dos regimes de bens e das convenções antenupciais do artigo 1714.º n.º 1 e 2 do Código Civil.

30. Em oposição, sustentam os Recorrentes que as cessões de quotas importaram uma alteração da qualificação dos bens por passarem a integrar os patrimónios próprios das Recorridas esposas, quando previamente integravam o património próprio dos Recorridos BB e DD.

31. Contudo, refira-se, desde já, que o princípio da imutabilidade das convenções antenupciais e dos regimes de bens resultantes da lei resulta, em primeiro lugar, do n.º 1 do artigo 1714.º do Código Civil, que proíbe a alteração depois da celebração do casamento, mas, no presente caso, não foi celebrado entre os cônjuges qualquer contrato de compra e venda, mas antes uma doação e, tais doações entre casados são permitidas dentro de determinados condicionalismos, nos termos do artigo 1761.º e seguintes do Código Civil.

32. De facto, as doações entre casados constituem, pois, uma exceção ao regime imposto pelo artigo 1714.º n.º 1 e n.º 2 do Código Civil, e, portanto, desde que constituam bens próprios do doador e passem a ser bens próprios do donatário, estão na sua livre disponibilidade para doar nos termos que este entender.

33. Sendo que não será admissível estender à doação a proibição efetuada ao contrato de compra e venda para o efeito de cessão de quotas, uma vez que ao celebrarem a cessão de quota os cônjuges não alteram os critérios pelos quais resulta a qualificação de um bem como próprio de um ou do outro cônjuge.

34. Não havendo, de igual modo, qualquer sentido em realizar uma discriminação entre regimes de bens, permitindo a doação em alguns casos e vedando noutros, uma vez que a própria lei não faz qualquer destrinça entre os dois.

35. Nesse sentido, não podem os Recorrentes fazer uma extensão completamente abusiva do disposto no artigo 1714.º n.º 2 às cessões de quota realizadas por meio de doação entre casados em separação de bens de forma não imperativa.

36. Não se podendo concluir de qualquer forma que exista violação do princípio da imutabilidade dos regimes de bens e convenções antenupciais disposto no artigo 1714.º n.º 1 do Código Civil ou de qualquer outra disposição imperativa.

37. De igual modo, pretendem os Recorrentes que se afira da alegada questão respeitante à previsão do artigo 116.º n.º 2 do Código do Notariado e à natureza do requisito de forma do arquivamento da procuração irrevogável em cartório notarial enquanto formalidade constitutiva (ad substantiam).

38. Ora, é por mais evidente, que o preceito tem como finalidade a tutela da liberdade de discernimento do dominus na outorga da procuração e da certeza quanto ao seu conteúdo, e enquanto tal, as exigências de forma serão necessariamente consideradas como ad substantiam.

39. Tal exigência de forma ad substantiam deverá ser aplicada in totum, aplicando- se a todo o preceito que constitui um único comando, sendo que não será legítimo realizar a discriminação que os Recorrentes propõem aqui de subsumir o arquivamento da procuração em cartório notarial a um mero formalismo que não tem qualquer relevância jurídica.

40. Deste modo, a falta de observância do devido arquivamento no cartório notarial implicará necessariamente a nulidade da procuração nos termos do artigo 116.º n.º 2.

41. E como tal, não cabe qualquer provimento à questão colocada pelos Recorrentes que já se demonstra suficientemente assente no nosso ordenamento jurídico.”

Pede que :a) Seja julgado processualmente inadmissível o presente recurso de revista excepcional interposto do Acórdão recorrido, dado o mesmo não versar sobre a mesma questão fundamental de direito que a decidida no Acórdão-fundamento, não havendo, assim, oposição de julgados; Caso assim não se entenda, b) seja o presente recurso de revista excepcional julgado totalmente improcedente e, consequentemente, seja confirmado na integra o Acórdão recorrido, que, confirmando a decisão de 1ª instância, julgou a ação totalmente improcedente por não provada, com a consequente absolvição dos Recorridos dos pedidos contra si formulados.

Relativamente ao recurso excepcional, a Formação proferiu acórdão que rematou com a seguinte decisão:

“Pelo exposto, admite-se a revista excecional, com fundamento em relevância jurídica, no que concerne em saber se a formalidade exigida pelo art.º 116º do Código do Notariado deve considerar-se uma formalidade ad substantiam ou se apenas tem tal natureza a exigência de tal ato ser praticado por instrumento público, não se admitindo a revista excecional quanto à questão de saber se a doação entre cônjuges, casados no regime de separação de bens, deve ser considerada válida (…)”

Cumpre decidir.

Pelo Tribunal da Relação foram considerados provados os seguintes factos:

a) O Autor AA é pai dos Réus DD e BB, sendo também o actual administrador único da sociedade comercial Autora EUROBRASIL - Administração de Propriedades, S.A. e gerente único da sociedade comercial Autora TARQUINUS, Lda.

b) A sociedade comercial Ré G..., Lda. foi constituída, em 18 de Abril de 2007, entre a sociedade Ré S..., S.A., devidamente representada pelo Autor AA, na qualidade de ... do Conselho de Administração, e os ora Réus BB e DD, com o capital social de 50.000,00 euros, na proporção de 96 % do capital social para a primeira e de 2 % do capital social para cada um dos segundos.

c) A sociedade comercial Ré P..., Lda. foi constituída, em 05 de Julho de 2010, tendo como sócios nominalmente os ora Réus BB e DD, com o capital social de 20.000,00 euros, na proporção de metade para cada um destes.

d) Em relação à sociedade comercial Ré C..., Lda., que havia sido constituída em 1987, sob a anterior firma “A..., Lda.”, as respectivas quotas foram inicialmente adquiridas, em 15 de Dezembro de 1994, pela sociedade I..., S.A., a qual posteriormente as cedeu, em 21 de Dezembro de 2005, à sociedade Tarquinus Trust Reg., correspondente à atual sociedade Autora TARQUINUS.

e)A sociedade Autora TARQUINUS, Lda. foi constituída em 2014, tendo como sócios iniciais, nominalmente, os ora Réus BB e DD, com o capital social de 439.603,00 euros, e corresponde à redomiciliação da sociedade Tarquinus Limited, com sede em ..., com representação permanente sob a firma Tarquinus Trust Reg., NIPC ...89, com sede no ..., com o capital de 500.000 francos ....

f) Os RR BB e DD outorgaram a favor do A AA, em Cartório Notarial, duas Procurações, datadas de 05 de Fevereiro de 2014, quer a título pessoal (procuração de fls.173 a 175, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido), quer em representação de quatros sociedades de quem eram administradores ou únicos sócios e gerentes (C..., SA., EUROBRASIL - ADMINISTRAÇÃO DE PROPRIEDADES, SA, Quinta ..., Lda., So..., Lda. - procuração de fls.176 a 179, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido), pelas quais constituem seu procurador o A.

g) Os Réus BB e DD outorgaram juntamente com as suas respetivas mulheres, as ora Rés CC e EE, os seguintes “Títulos de Cessão de Quotas Com Reserva de Usufruto”, referentes às cinco sociedades comerciais Rés:

i) Em 30 de Julho de 2018, o Réu BB cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré CC, a nua propriedade da quota no valor nominal de € 68.509,89, que tinha em seu nome, na sociedade Ré EUROALFRAGIDE - Sociedade de Construções, Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota e o Réu DD cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré EE, a nua propriedade da quota no valor nominal de € 68.509,89, que tinha em seu nome, na mesma sociedade Ré EUROALFRAGIDE -Sociedade de Construções, Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota, tendo ambos declarado, em representação da Sociedade, que esta autorizava a referida cessão com reserva de usufruto, mais declarando não exercer qualquer direito de preferência.

ii) Na mesma data de 30 de Julho de 2018, o Réu BB cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré CC, a nua propriedade da quota no valor nominal de € 47.884,60, que tinha em seu nome, na sociedade Ré Q..., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota e o Réu DD cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré EE, a nua propriedade da quota no valor nominal de € 47.884,60, que tinha em seu nome, na mesma sociedade Ré Q..., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota, tendo ambos declarado, em representação da Sociedade, que esta autorizava a referida cessão com reserva de usufruto, mais declarando não exercer qualquer direito de preferência.

iii) Também a 30 de Julho de 2018, o Réu BB cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré CC, a nua propriedade da quota no valor nominal de € 25.000,00, que tinha em seu nome, na sociedade Ré G..., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota e o Réu DD cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré EE, a nua propriedade da quota no valor nominal de € 25.000,00, que tinha em seu nome, na mesma sociedade Ré G..., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota, tendo ambos declarado, em representação da Sociedade, que esta autorizava a referida cessão com reserva de usufruto, mais declarando não exercer qualquer direito de preferência.

O Réu BB, no mesmo documento, na qualidade de administrador e em representação da sociedade Ré S..., S.A., igualmente sócia da sociedade Ré G..., Lda., operou previamente a divisão da quota que aquela sociedade detinha nesta, no valor nominal de € 48.000,00, em duas novas quotas, no valor nominal de € 24.000,00 cada, que transmitiu a cada um dos outros dois sócios, os Réus BB e DD, pelo respetivo valor nominal, postergando o pagamento dos respetivos preços.

iv) Ainda em 30 de Julho de 2018, o Réu BB cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré CC, a nua propriedade da quota no valor nominal de € 10.000,00, que tinha em seu nome, na sociedade Ré P..., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota e o Réu DD cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré EE, a nua propriedade da quota no valor nominal de € 10.000,00, que tinha em seu nome, na mesma sociedade Ré P..., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota, tendo ambos declarado, em representação da Sociedade, que esta autorizava a referida cessão com reserva de usufruto, mais declarando não exercer qualquer direito de preferência.

v) E, em 11 de Julho de 2018, o Réu BB cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré CC, a nua propriedade da quota no valor nominal de € 2.500,00, que tinha em seu nome, na sociedade Ré C..., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota e o Réu DD cedeu, por doação, à sua mulher, a Ré EE, a nua propriedade da quota no valor nominal de € 2.500,00, que tinha em seu nome, na mesma sociedade Ré C..., Lda., mantendo o direito de usufruto vitalício sobre aquela quota, tendo ambos declarado, em representação da Sociedade, que esta autorizava a referida cessão com reserva de usufruto, mais declarando não exercer qualquer direito de preferência.

h) Todos estes actos foram inscritos:

-no Registo Comercial da sociedade Ré E..., Lda. sob as Menções de Depósito nºs ...35 e ...36, ambas de 2018-08-01; - no Registo Comercial da sociedade Ré Q..., Lda. sob as Menções de Depósito nºs ...33 e ...34, ambas de 2018-08-01;

-no Registo Comercial da sociedade Ré G..., Lda. sob as Menções de Depósito nºs ...01, ...02, ...03, ...04, ...05 e ...06, todas de 2018-08-01;

-no Registo Comercial da sociedade Ré P..., Lda. sob as Menções de Depósito nºs ...31 e ...32, ambas de 2018-08-01;

- no Registo Comercial da sociedade Ré C..., Lda. sob as Menções de Depósito nºs ...07, ...08, ...09 e ...10, todas de 2018- 08-01;

i) O Pacto Social da sociedade Ré E..., Lda. estipulava no seu artigo 8º que: “A cessão e divisão de quotas, no todo ou em parte, entre sócios, é livremente permitida e não carece de autorização da sociedade.” e constava do § 1º que: “Porém, não poderá ser efectuada a cessão a estranhos sem que previamente tenha sido oferecida à sociedade, indicando preço e condições de pagamento e identificação do interessado, ficando eventual e seguidamente os sócios com o direito de exercer o seu direito de preferência, se a sociedade o não pretender.”

j) O Pacto Social da sociedade Ré Q..., Lda. estipulava no seu artigo 8º que: “A cessão e divisão de quotas, no todo ou em parte, entre sócios, é livremente permitida e não carece de autorização da sociedade.” e constava do § 1º que: “Porém, não poderá ser efectuada a cessão a estranhos sem que previamente tenha sido oferecida à sociedade, indicando preço e condições de pagamento e identificação do interessado, ficando eventual e seguidamente os sócios com o direito de exercer o seu direito de preferência, se a sociedade o não pretender.”

l) O Pacto Social da sociedade Ré G..., Lda. estipulava no seu artigo 11º, nº 1 que: “É livremente consentida a cessão, total ou parcial, de quotas entre os sócios, seja qual for a forma de que se revista.” e constava do nº 2 que: “A cessão a terceiros depende de prévio consentimento da sociedade, dado dentro do prazo de trinta dias a contar da recepção de carta registada com aviso de recepção dirigida à sede social da qual conste o preço e condições da transacção; a sociedade primeiro e os sócios depois gozam do direito de preferência na cessão de qualquer quota.”

m) O Pacto Social da sociedade Ré P..., Lda. estipulava no seu artigo 6º, nº 1 que: “A cessão de quotas é livre entre os actuais sócios e destes para os seus ascendentes ou descendentes.” e constava do nº 2 que: “Em todos os demais casos a cessão de quotas carecerá sempre do consentimento prévio da sociedade, a conceder nos termos da legislação aplicável.”

n) O Pacto Social da sociedade Ré C..., Lda. estipulava no seu artigo 5º que: “A sociedade e os sócios, por esta ordem, gozam do direito de preferência na aquisição de quotas alienadas a estranhos.”

Da contestação:

o) Em 28 de Junho de 2018, os Réus BB e DD procederam à revogação da procuração pessoal que haviam outorgado no dia 5 de Fevereiro.

p) No dia 20 de Julho de 2018 os Réus BB e DD comunicaram ao Autor AA, por carta registada com aviso de recepção e por mensagem de correio electrónico, a revogação da Procuração “

O Direito:

Como se viu, por acórdão proferido pela Formação de apreciação preliminar foi admitida, ao abrigo da alínea a) do nº 1 do art. 672º do CPC, a revista excepcional interposta para apreciação da questão de saber se a formalidade exigida pelo art. 116º, nº 2 do Código do Notariado deve considerar-se uma formalidade “ad substantiam” ou se apenas tem tal natureza a exigência de tal acto ser praticado por instrumento público.

Assim, e não obstante os recorrentes terem suscitado outras questões nas conclusões, o objecto do presente recurso encontra-se circunscrito ao fundamento de admissibilidade da revista excepcional interposta, isto é, à apreciação da questão delimitada na decisão de admissão da revista (assim como à análise das questões que com a mesma apresentam ligação incindível), à qual foi atribuída relevância jurídica, justificativa da concessão de um regime excepcional de superação do obstáculo à admissão da revista adveniente da dupla conforme.

Tal questão reconduz-se, precisamente, em determinar se a exigência, prevista no n.º 2 do art. 116.º do Notariado, que exige que o original do instrumento público que titula as procurações conferidas também no interesse de procurador ou de terceiro seja arquivado no cartório notarial, reveste, ou não, a natureza de formalidade “ad substantiam”

Ficou provado que os réus BB e DD outorgaram a favor do autor AA, em Cartório Notarial, duas Procurações, datadas de 05 de Fevereiro de 2014, quer a título pessoal, quer em representação de quatro sociedades de que eram administradores ou únicos sócios e gerentes (ponto f). Entre estas, conta-se a procuração - que os réus outorgaram a favor do autor AA e que veio a ser por estes revogada (ponto o) da factualidade provada) - que atribuiu ao demandante os poderes de representar aqueles e de “(…) adquirir ou ceder participações sociais em sociedades comerciais por quotas ou acções, civis por quotas ou acções, pelos preços e condições que entender por convenientes (…)”.

Todavia, a análise do acórdão recorrido permite concluir que a questão elencada foi analisada a título de “obter dictum”, não integrando a “ratio decidendi” da decisão impugnada

Com efeito, o Tribunal da Relação considerou que as procurações em causa não haviam sido outorgadas no interesse do procurador AA, não assumindo a natureza de procurações irrevogáveis – entendimento que nega a verificação do pressuposto aplicativo da norma constante do n.º 2 do art. 116.º do Código do Notariado. Apenas em sede de argumentação subsidiária, o acórdão recorrido considerou que “se considerasse que as procurações (especificamente a de natureza pessoal, com relevância para a controvérsia em equação) haviam sido igualmente outorgadas no interesse do procurador/representante AA e, como tal, irrevogáveis, apesar da sua outorga mediante instrumento público notarial adequado, não resulta que as mesmas tenham sido objecto do devido arquivamento no cartório notarial ; o que, constituindo uma formalidade ad substantiam, determina, pela sua preterição, a nulidade de tal declaração negocial, isto é, a nulidade da própria procuração.”

Aliás, os recorrentes não se insurgem, substancialmente, contra o entendimento do acórdão recorrido que afasta a qualificação das procurações em causa como procurações conferidas também no interesse do procurador e, como tal, irrevogáveis – sendo que tal questão também não foi elencada pelo acórdão da Formação como susceptível de apreciação no âmbito da presente revista excepcional.

Todavia, ainda que o entendimento que negou a qualificação como irrevogáveis às procurações em análise se mostre insusceptível de modificação no âmbito do presente recurso, a circunstância de a interpretação da norma prevista no nº 2 do art. 116º do Código do Notariado (que, como vimos, pressupõe a outorga de tal subtipo de procurações) ter determinado, pelo seu relevo jurídico, a admissibilidade da presente revista excepcional justifica que se dedique à matéria alguma atenção (ainda que,, pelas razões descritas, a matéria, repete,-se se não revele idónea a repercutir-se na decisão dada pelo acórdão recorrido).

Segundo o que dispõe o art. 262.º do CC, “1. Diz-se procuração o ato pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos. 2. Salvo disposição legal em contrário, a procuração revestirá a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar.”

Nas palavras de Calvão da Silva, a procuração “é um negócio jurídico unilateral receptício, cujo destinatário, de acordo com a melhor doutrina, é o terceiro com quem o representante contrata em nome do representado, e não o representante ou o público. Deste modo, no plano da interpretação negocial (cfr. artigo 236.° do CC), impera o entendimento de Ferrer Correia: “nós ponderamos que os principais interessados (no caso da procuração) são aqui o constituinte e o terceiro; consideramos, depois, que o constituinte, querendo contratar com o terceiro por intermédio do procurador, não pode deixar de querer comunicar-lhe a autorização representativa de que o último está munido: e logo concluímos ser o terceiro quem mormente carece das atenções que, na teoria geral da interpretação, se dispensam ao destinatário da declaração de vontade, á contraparte – e quem principalmente as merece.”(“Procuração (artigo 116.º do Código do Notariado e artigo 38.º do Decreto-Lei n.º 76- A/2006, de 29 de Março”, Revista da Ordem dos Advogados, em https://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idc=30777&idsc=64444&ida=64453).

Em termos formais, e como se depreende da leitura do nº 2 do art. 262º do CC, a regra é a da igualdade de forma entre a procuração e o negócio jurídico representativo. Trata-se de uma formalidade “per relationem” ( Raul Guichard/ Catarina Brandão Proença/ Ana Teresa Ribeiro, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2014, pág. 639). Na base desta previsão legal parece estar o pensamento de Vaz Serra no sentido de que “se a procuração não é parte do negócio a realizar pelo representante, não estando por isso, como tal, sujeita às formalidades prescritas para este, pode a razão dessas formalidades compreender o acto pelo qual o interessado atribui poderes de representação a terceiro. (…) Se, por exemplo, com a exigência de formalidades, se pretende assegurar a ponderação do interessado, evitando que levianamente realize o negócio em questão, essa finalidade abrange a procuração, que é o único acto em que se manifesta a vontade do interessado.”(Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.5.1960, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 94, 1961-1962, pág. 184, nota 1).

No entanto, o princípio da simetria formal entre a procuração e o negócio jurídico representativo não é absoluto, comportando, por razões de praticabilidade e de custos (Raul Guichard/ Catarina Brandão Proença/ Ana Teresa Ribeiro, loc. cit.), excepções, expressamente consentidas pela ressalva constante da primeira parte do nº 2 do art. 262º do CC ( “salva disposição legal em contrário”).

Ora, uma excepção à enunciada regra é a do art. 116.º do Código do Notariado, que estabelece, na redacção em vigor, o seguinte: “1 - As procurações que exijam intervenção notarial podem ser lavradas por instrumento público, por documento escrito e assinado pelo representado com reconhecimento presencial da letra e assinatura ou por documento autenticado. 2 - As procurações conferidas também no interesse de procurador ou de terceiro devem ser lavradas por instrumento público cujo original é arquivado no cartório notarial. 3 - Os substabelecimentos revestem a forma exigida para as procurações. “ Pires de Lima e Antunes Varela esclarecem, precisamente, que o nº 2 do art. 262º do CC “contém uma regra que, em face dos princípios expressos no artigo 127.° do Código do Notariado [actual artigo 116.° do CN], será seguramente de aplicação pouco frequente quanto a actos em que deva haver intervenção notarial. É, no entanto, uma regra geral de aplicação certa nos casos em que se exija para o acto apenas a forma escrita. Quando assim seja, a procuração deve igualmente ser passada por escrito. Em relação a actos para os quais se não exija sequer a forma escrita valerá a procuração verbal.” ( Código Civil anotado, Volume I, 4ª edição, pág. 244). Como refere Calvão da Silva “a procuração pode ser verbal ou escrita, consoante os negócios a concluir sejam consensuais ou requeiram forma escrita; quando para estes se exija escritura pública, aquela pode assumir a forma de instrumento público, documento escrito e assinado pelo representado com reconhecimento presencial da letra e assinatura ou por documento autenticado.” ( cfr. artigo supracitado)

Verifica-se, pois, um regime de forma legal não unitário, dependente da circunstância de a procuração ter sido outorgada no interesse exclusivo do “dominus” ou também no interesse do procurador ou de terceiro.

E se a procuração tiver sido conferida também no interesse do procurador ou de terceiro, estamos perante a figura da procuração irrevogável, prevista no nº 3 do art. 265º do CC, que se reconduz à procuração conferida também no interesse próprio, específico, objectivo e directo do procurador na conclusão e execução do negócio que constitui a relação subjacente. Como acentua Pedro Pais de Vasconcelos, “a irrevogabilidade da procuração vigora independentemente de estipulação na procuração. Desde que exista um interesse relevante do curador na procuração e que este interesse seja emergente da relação subjacente, a procuração é irrevogável, nos termos do artigo 265/3 do Código Civil. Não trata de uma questão de poder ou não irrevogável de se poder ou não estipular a irrevogabilidade. Verificando-se a existência de um interesse relevante do procurador emergente da relação subjacente a procuração, em si mesma, é naturalmente irrevogável.” (Teoria Geral de Direito Civil, volume II, Coimbra, Almedina, 2002, págs. 99-105)

Assim, na ausência de menção no normativo sobre a necessidade de constar do instrumento público a declaração relativa ao interesse do procurador, tem-se entendido que “a existência ou não do interesse do mandatário ou de terceiro, que deva ter-se por relevante para efeitos da irrevogabilidade do mandato, não decorre pura e simplesmente de uma tal declaração constar ou não da procuração, antes havendo que apreciar, designadamente por via interpretativa, se concreta e efectivamente ela foi conferida no interesse do mandatário (ou de terceiro), pois que “a concessão da representação voluntária tem de ter um fundamento, uma relação que lhe subjaz, mas com ele não se confunde” (acórdão do STJ de 25.10.2011).

Ou seja: “para que uma determinada procuração seja irrevogável, não basta que isso se proclame no respectivo instrumento ou tão pouco que se declare que é outorgada no interesse próprio do mandatário, impondo-se, isso sim, a demonstração de uma relação subjacente àquela outorga que sustente essa irrevogabilidade, conforme decorre da lei substantiva civil - art.º 265º do Código Civil (…)” (acórdão do STJ de 13.12.2018).

No entanto, a forma da procuração irrevogável mostra-se disciplinada pelo nº 2 do art. 116º do Código do Notariado, que preceitua que “2 - As procurações conferidas também no interesse de procurador ou de terceiro devem ser lavradas por instrumento público cujo original é arquivado no cartório notarial.”

Ora, a jurisprudência do STJ tem afirmado recorrentemente que a formalidade prevista no nº 2 do art. 116º do Código do Notariado assume a natureza de formalidade substancial (cfr. acórdãos de 25.10.2011, proc. nº 1961/09.0TBSTB.E1.S1, de 3.12.2015, proc. nº 8210/04.5TBVNG.P2.S1 e de 13.12.2018, proc. nº 2450/14.6T8FNC-A.L1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

No entanto, apenas o acórdão de 29.9.2020, proc. nº 97/17.4T8STC.E1.S1, cuja argumentação foi seguida pelo acórdão recorrido, se pronuncia concretamente no sentido de que as exigências de forma que resultam da referida norma devem ser qualificadas “in totum” de “ad substantiam”. O mencionado acórdão do STJ de 29.9.2020 sustenta, em abono da adoptada posição, que a forma utilizada pela norma do nº 2 do art. 116º do Código do Notariado - “(...) instrumento público cujo original é arquivado no cartório notarial”- constitui um único comando, não cindível quanto aos seus efeitos, tendo tido por base as mesmas razões que ditaram a exigência de “instrumento público” para a procuração irrevogável, relacionadas com a tutela da liberdade e discernimento do “dominus” na outorga da procuração e com a tutela de terceiros que venham a contratar com o procurador.

Considera o aresto que, à luz do disposto no art. 364 º do CC, e não resultando que a exigência de arquivamento do original do instrumento público prevista no normativo em análise seja configurada apenas para efeitos de prova da declaração, se deverá entender que as exigências formais exigidas pelo preceito, na sua integralidade, são “ad substantiam”, conduzindo a sua preterição à nulidade do negócio jurídico unilateral de procuração, nos termos do art. 220º do CC.

Não vemos razões para nos afastarmos deste entendimento.

Se é verdade que a validade da declaração negocial não se encontra, em regra, dependente de forma especial, não é menos exacto que a lei pode exigir tal forma, sendo, nesse caso, e em regra, nula a declaração que da careça dessa forma (arts. 219º e 220º do CC).

Na síntese interpretativa do art. 364º do CC, Lebre de Freitas realça que “quando a lei exija documento autêntico, autenticado ou particular como forma da declaração negocial, não pode a prova da declaração ser estabelecida por outro meio que não seja um documento com força probatória superior, isto é, um documento autêntico ou autenticado quando a lei exige documento particular.” Estas formalidades são impostas como condições de validade do negócio a que respeita, “só com estas o negócio se constitui validamente, só por meio delas o acto se pode formar.” (CC anotado, coordenação Ana Prata, Volume I, ed. 2022, pág. 448). Já quando a lei exija um documento como mera prova da declaração negocial, “não se tratando já de requisito formal da declaração, é admissível que, posteriormente a esta, quando ela não tenha revestido a forma do documento exigido, o declarante emita uma nova declaração, desta vez de ciência (e já não de vontade), em que reconheça que fez a declaração anterior, desde que essa nova declaração seja feita judicialmente ou, se extrajudicialmente, em documento de igual ou superior valor probatório. Esta nova declaração pode revestir a natureza de confissão: o declarante confessa ter feito a declaração anterior, que, sem prejuízo do princípio da indivisibilidade (art. 361.º), fica provada na medida em que seja desfavorável.” ( ob. cit., pág. 488)

A forma legal é, em regra, “ad substantiam.” Esta conclusão é assinalada frequentemente pela doutrina: Carvalho Fernandes destaca que “A formulação do art. 220.° do C. Civ. sugere que a forma legal é em regra estabelecida ad substantiam” (Teoria Geral do Direito Civil, volume IUI, 3ª edição, pág. 235), assinalando Pais de Vasconcelos que: “Em regra as exigências legais de forma são ad substantiam. Esta conclusão retira-se do artigo 220° do Código Civil que comina, em princípio, com nulidade o desrespeito pela forma exigida por lei.” Já Carlos Mota Pinto, analisando o art. 364.º do CC, conclui: “Donde se infere que quaisquer documentos (autênticos ou particulares) serão formalidades «ad probationem», nos casos excepcionais em que resultar claramente da lei que a finalidade tida em vista ao ser formulada certa exigência de forma foi apenas a de obter prova segura acerca do acto e não qualquer das outras finalidades possíveis do formalismo negocial (obrigar as partes a reflexão sobre as consequências do acto, assegurar a reconhecibilidade do acto por terceiros ou o seu controlo no interesse da comunidade, etc.).”

A fixação do sentido e alcance da finalidade de cada exigência legal de forma dependerá, naturalmente, dos resultados da actividade interpretativa desenvolvida a respeito da norma em causa, convocando os factores hermenêuticos previstos no art. 9º do CC para determinar o sentido da norma consagrada no nº 2 do art. 116º do Código do Notariado: elementos gramatical, racional (consistente no fim visado pelo legislador ao elaborar a norma), sistemático (que compreende a consideração das outras disposições que formam o complexo normativo em que se integra a norma interpretanda) e histórico (que abrange elementos relativos à história do preceito, desde logo a história evolutiva do regime em causa) .

Ora, em primeiro lugar, importa notar que nada na letra da norma prevista no nº 2 do art. 116º do Código do Notariado aponta para qualquer cindibilidade, ao nível da exigência formal, entre a outorga do instrumento público e o seu arquivo no cartório. Pelo contrário: a utilização do determinante relativo “cujo” coaduna-se mal com uma ideia, defendida pelos recorrentes, de dissociação, em termos de efeitos, entre a outorga do instrumento público e o seu particular modo de arquivamento. O elemento gramatical ou literal também não indica que a formalidade consistente no arquivamento do documento autêntico vise apenas a prova da declaração.

Em termos de elemento racional do preceito, atentemos, por sua vez, nas palavras de Pais de Vasconcelos: “Com o Decreto-Lei n.º 67/90 foi introduzido no artigo 116 um novo n.º 3, exigindo que as procurações conferidas também no interesse de procurador ou de terceiro sejam lavradas por instrumento público, ficando o original arquivado no Notário. Este diploma pretendeu antecipar algumas das reformas urgentes que vieram depois a constar do novo Código do Notariado aprovado pelo Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de agosto. De facto, a nova regra relativa à forma das procurações conferidas também no interesse de procurador ou de terceiro transitou sem alterações para o texto do novo diploma, constando o atual art. 116.º, n.º 2.”

E o mesmo autor esclarece: “a procuração irrevogável tinha-se revelado de algum perigo, reclamando cautelas acrescidas. A ratio do nº 2 do art. 116.º do Código do Notariado e o seu sentido jurídico traduzem-se num agravamento do regime formal da procuração irrevogável, em relação ao regime geral. Este agravamento tem uma finalidade de tutela da liberdade e discernimento do dominus na outorga da procuração, de certeza quanto ao conteúdo e regime da procuração e de publicidade no interesse dos terceiros, designadamente aqueles com quem o procurador venha a contratar no uso da procuração. A intervenção do Notário, agora exigida, permite que o dominus, ao outorgar a procuração irrevogável, o faça com suficiente ponderação e consciência do que está a fazer, e tanto quanto possível livre de pressões e de precipitações. A intervenção notarial promove a clarificação da situação, de modo a tornar claro que se trata de uma procuração irrevogável, que a mesma é outorgada no interesse do procurador ou de terceiro e não de uma típica procuração no interesse exclusivo do dominus e, finalmente, permite ainda guardar em arquivo, no cartório notarial, o original do instrumento que titula a procuração, o que acarreta inegáveis vantagens de publicidade e segurança.”

Visando a intervenção notarial na outorga de uma procuração irrevogável, em primeira linha, promover a ponderação do “dominus”, a exigência de que o instrumento público que titula tal procuração seja arquivado no cartório notarial cumpre, pois, paralelamente, interesses de ordem pública, relacionados com a segurança de prova e a publicidade do ato perante terceiros, nomeadamente aqueles com quem o procurador venha a contratar no uso da procuração.

Como assim, os elementos literal/gramatical, racional e histórico da interpretação da norma prevista no nº 2 do art. 116º do Código do Notariado contrariam a tese da cindibilidade da mesma quanto à natureza da formalidade exigida.

Ao invés, depõem no sentido de que o arquivamento do instrumento público - por ter procedido das mesmas razões que determinaram a necessidade de a outorga da procuração irrevogável se fazer por instrumento público e por cumprir interesses de ordem pública - se deverá entender como teleologicamente compreendido no âmbito da formalidade “ad substantiam” prevista na norma em causa.

Noutra perspectiva, não se descortina qualquer argumento teleologicamente fundado que permita excluir do âmbito da forma legal “ad substantiam” (insubstituível por qualquer outro meio de prova ou mesmo por confissão) prevista no nº 2 do art. 116º do Código do Notariado o arquivamento no cartório notarial do título público, fazendo-o equivaler a um acto de mero depósito, desprovido de relevância jurídica ou, como sustentam os recorrentes, de mera formalidade “ad probationem”;

Por conseguinte e rematando:

Ainda que fosse de equacionar as procurações em discussão como procurações irrevogáveis, outorgadas também no interesse do autor AA, sempre se acompanharia o Tribunal da Relação na conclusão de que, não resultando que as mesmas tenham sido objecto do devido arquivo no cartório notarial, as mesmas se encontrariam feridas de nulidade, por preterição de formalidade substancial (art. 220º do CC).

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.


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Lisboa, 7 de Maio de 2024

António Magalhães (Relator)

Jorge Arcanjo

Manuel Aguiar Pereira