RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
PRESSUPOSTOS
IDENTIDADE DE FACTOS
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
ACORDÃO FUNDAMENTO
ACÓRDÃO RECORRIDO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
OBSCURIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
DIREITO AO RECURSO
PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA
REJEIÇÃO DE RECURSO
Sumário


A interpretação do artigo 688º n.º 1 do CPC efetuada pelo acórdão reclamado em que se considera que para se verificar uma relação de identidade entre a questão de direito apreciada no acórdão recorrido e no acórdão-fundamento, é necessário que os elementos de facto relevantes para a ratio da regra jurídica sejam coincidentes ou equivalentes e que só há uma verdadeira contradição entre os acórdãos, quando a questão essencial, que constituiu a razão de ser e objeto da decisão, foi resolvida de forma frontalmente oposta nas decisões em confronto, não configura uma situação de negação de acesso à justiça que afronte os princípios basilares de um Estado de Direito e os invocados artigos 2.º, 13.º, 18.º e 20.º, n.º 4 da Constituição da República.

Texto Integral



Processo n.º 3158/11.0TJVNF.N.G1.A.S1-A


Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça ( 6ª secção)


Relatório


AA e mulher BB vieram interpor recurso para uniformização de jurisprudência, ao abrigo do disposto nos artigos 688º, 689º, 690º e 693º do CPC, considerando que o acórdão proferido neste processo, em 11.07.2023, está em contradição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2017, proferido no Processo n.º 1565/15.8VFR-A.S1.


Por decisão da Ex.ma Sr.ª Juíza Conselheira Relatora de 29.01.2024, foi rejeitado liminarmente o recurso interposto, por falta de oposição exigível.


Os Recorrentes/ reclamantes discordando dessa decisão reclamaram, nos termos do artigo 692º n.º 2 do CPC.


Por acórdão proferido em 19.03.2024, foi decidido confirmar a decisão reclamada, tendo por inverificado o pressuposto essencial do recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência interposto pelos Reclamantes, não se admitindo, nos termos do artigo 692º, nº3, do CPC, o presente recurso.


Os Reclamantes vieram arguir as nulidades previstas nas alíneas b) e c) do artigo 615.º do Código de Processo Civil, sustentando não se justificar a interpretação restritiva daquelas normas ( artigos 580º e 581º do CPC) e por ocorrer ambiguidade que torna a decisão menos compreensível. Pedem ainda se julgue inconstitucional a interpretação dada às normas citadas e em consequência se profira nova decisão, recebendo o recurso extraordinário de revisão.


A fundamentar esta arguição de nulidades e inconstitucionalidade adiantam, em resumo, a seguinte alegação:


“A douta decisão assim produzida tem como consequência manter-se um erro de direito grave, que haveria oportunidade de reparar, fazendo-o por forma a limitar o objeto da reclamação à questão de saber se há contradição jurisprudencial entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido que justifique a admissibilidade do recurso de uniformização de jurisprudência, não cabendo na decisão apreciar se no acórdão recorrido foi ou não indevidamente decidido não se verificar a exceção do caso julgado.


Manteve-se nessa douta decisão que o pressuposto da identidade da questão fundamental de direito não se verifica, com o que não se pode concordar, embora aceitando-se o princípio, por correto e rigoroso, segundo qual é exigível que em ambos os acórdãos se discuta a mesma questão fundamental de direito.


Efetivamente se o acórdão recorrido sustenta que os fundamentos da sentença não adquirem o valor de caso julgado quando autonomizados da mesma sentença, e o acórdão fundamento sustenta que a eficácia do caso julgado material incide sobre todos os preliminares que constituam antecedente lógico indispensável da parte dispositiva do julgado, não passa de uma questão semântica sustentar que não é da mesma realidade que se trata quando num caso se fala em fundamentos autonomizados e noutro se fala em preliminares da sentença, para num caso julgar verificado o caso julgado e no outro o excluir.


Os artigos 580.º e 581.º do Código de Processo Civil não permitem estabelecer semelhante distinção artificial, exigindo tão somente que a mesma questão seja julgada duas vezes, no mesmo ou noutro processo, ocorrendo identidade de sujeitos, de pedidos e de causas de pedir.


A decisão do douto acórdão recorrido, interpretando essas normas no sentido de que só pode ser interposto recurso de uniformização de jurisprudência se a questão fundamental de direito assumir caráter determinante para a solução do caso, bem como que não há contradição jurisprudencial entre os dois acórdãos citados, apesar de estarmos perante uma e só questão de direito – a necessidade de respeitar o caso julgado - ofende o disposto nos artigos 580.º e 581.º do Código de Processo Civil e ao violá-los ofende os artigos 2.º, 13.º, 18.º e 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa (princípios do respeito e garantia da efetivação dos direitos e liberdades fundamentais, principio da igualdade, a obrigação de obediência às regras constitucionais por parte das entidades públicas e privadas e ainda os princípios do processo equitativo, da segurança jurídica, e da proteção da confiança).”


Não foram apresentadas respostas.


Cumpre decidir


Se o acórdão padece das nulidades previstas nas alíneas b) e c), do n.º 1 do artigo 615º CPC.


Os Reclamantes começam por defender que se verifica a nulidade a que se refere a alínea b) do artigo 615º do CPC, que ocorre quando a sentença ou acórdão não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.


Como sempre foi entendimento pacífico só é causa de nulidade da sentença a falta absoluta de fundamentação, a ausência de toda a fundamentação necessária, situação que não ocorre quando existe fundamentação, mas a mesma é débil, escassa, insuficiente.


Desse modo, uma errada, insuficiente ou incompleta fundamentação de facto ou de direito não acarreta nulidade da sentença ( cf. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. 5, pág. 140; Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 1984, 669; Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, pág. 141 e Lebre de Freitas e outros, Código de Processo Civil Anotado, 2001, vol. II, 669).


No acórdão em causa foi discriminada, com rigor, a factualidade relevante julgada provada no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, atendendo a que os Reclamantes sustentavam não ter apoio legal, o entendimento que a admissibilidade do recurso de uniformização de jurisprudência depende da identidade do núcleo factual essencial.


Relativamente à fundamentação de direito, o acórdão recorrido indica os fundamentos jurídicos da decisão, que justificaram não ser admissível o recurso extraordinário, sem se ter efetuado qualquer interpretação restritiva dos artigos 580º e 581º do CPC.


No caso, importa recordar, que os núcleos fácticos relevantes para o alegado conflito jurisprudencial são distintos.


Por outro lado, como se conclui na fundamentação, apesar de acórdão recorrido e o acórdão fundamento decidirem questões relativas à exceção do caso julgado, no acórdão fundamento a exceção foi julgada procedente, com fundamento na identidade de pedidos entre a anterior e a posterior ação e no acórdão recorrido, foi julgada não verificada a exceção por se ter decidido que os factos considerados provados nos fundamentos da sentença proferida em primeiro lugar não podiam isoladamente considerar-se cobertos pela eficácia do caso julgado, por isso, não se verifica, o pressuposto da identidade da questão fundamental de direito, dirimida nos acórdãos recorrido e fundamento.


É, pois, infundada a arguida nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do artigo 615º do CPC.


A Recorrente imputa também ao acórdão recorrido a nulidade prevista na al. c) do n.º 1 do artigo 615º do CPC, que comina com a nulidade a sentença em que os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que a torne ininteligível.


Como é entendimento pacífico o vicio da contradição entre os fundamentos e a decisão apenas ocorre quando da fundamentação da sentença segue uma determinada linha de raciocínio, apontando numa determinada conclusão e depois, decide em sentido oposto ou divergente. ( cf. neste sentido Lebre de Freitas e outros CPC Anotado, 2001, vol. 2º, pág. 670, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, e Luís Filipe Sires de Sousa (no CPC anotado, Vol. I, 2ª edição, pág. 763 e os acórdãos do STJ de 24.01. 2019 processo n.º 668/15.9T8PVZ.P1.S1e de 22.06.2023, processo n.º 1603/19.5T8EVR.E1.S1)


Ora, no caso, a argumentação do acórdão seguiu uma linha de raciocínio coerente, julgando em conformidade.


Os Reclamantes imputam obscuridade ao acórdão, mas a fundamentação de direito do acórdão não suscita duvidas de interpretação, sendo perfeitamente compreensível a linha de raciocínio e não padece de qualquer ambiguidade, como se constata da síntese da decisão atrás referida.


Ao contrário do que sustentam os Recorrentes não é suficiente para haver contradição de julgados terem os acórdãos decidido em sentido divergentes questões relativas à exceção/ autoridade do caso julgado


Não se verifica, pois, a arguida nulidade prevista na al. c) do n.º 1 do artigo 615º do CPC.


Os Reclamantes defendem que o acórdão recorrido adota uma interpretação que ofende o disposto nos artigos 580.º e 581.º do Código de Processo Civil e ao violá-los ofende os artigos 2.º, 13.º, 18.º e 20.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.


Em primeiro lugar, importa reafirmar que a questão objeto do acórdão em causa é apenas a de saber se existe contradição jurisprudencial entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, que justifique a admissibilidade do recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência, nada tendo decidido sobre a exceção do caso julgado, limitando-se a interpretar como as questões tinham sido decididas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento.


Não se descortina, pois, que o acórdão reclamado tenha interpretado restritivamente os artigos 580º e 581º do CPC ou interpretado estes normativos em violação dos artigos constitucionais que os Reclamantes genericamente indicam, sem adiantar qualquer argumentação que concretize em que se traduz essa pretensa inconstitucionalidade.


Os Reclamantes parecem pretender que com fundamento nos artigos que invocam da Constituição da República se interprete o artigo 688.º n.º 1 do CPC, que estabelece os requisitos da admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência, de forma a admitir-se o recurso extraordinário desde que houvesse uma oposição sobre a interpretação abstrata dos artigos 580º e 581º do CPC, entre os acórdãos em confronto.


Ora, como é entendimento pacifico, o direito ao recurso não é um direito absoluto ou irrestrito, sendo objeto de diversas restrições justificadas.


É o que recorrentemente têm decidido o próprio Tribunal Constitucional, como é exemplo, o acórdão nº 261/02, de 18.02.2002, (Proc. nº 38/02) relator Sousa e Brito, onde consta da fundamentação:


“Desde logo porque, como este Tribunal tem repetidamente afirmado, fora do Direito Penal não resulta da Constituição, em geral, nenhuma garantia genérica de direito ao recurso de decisões judiciais; nem tal direito faz parte integrante e necessária do princípio constitucional do acesso ao direito e à justiça, expressamente consagrado no citado artigo 20º da Constituição.


Como se ponderou, mais recentemente, no Acórdão nº 415/01 (Diário da República, II Série, de 30 de Novembro de 2001), reiterando anterior jurisprudência deste Tribunal, designadamente a constante do Acórdão nº 202/99, aprovado em plenário (Diário da República, II Série, de 6 de Fevereiro de 2001):


(...)


A Constituição não contém preceito expresso que consagre o direito ao recurso para um outro tribunal, nem em processo administrativo, nem em processo civil; e, em processo penal, só após a última revisão constitucional (constante da Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de Setembro), passou a incluir, no artigo 32º, a menção expressa ao recurso, incluído nas garantias de defesa, assim consagrando, aliás, a jurisprudência constitucional anterior a esta revisão, e segundo a qual a Constituição consagra o duplo grau de jurisdição em matéria penal, na medida (mas só na medida) em que o direito ao recurso integra esse núcleo essencial das garantias de defesa previstas naquele artigo 32º. Para além disso, algumas vozes têm considerado como constitucionalmente incluído no princípio do Estado de direito democrático o direito ao recurso de decisões que afectem direitos, liberdades e garantias constitucionalmente garantidos, mesmo fora do âmbito penal (ver, a este respeito, as declarações de voto dos Conselheiros Vital Moreira e António Vitorino, respectivamente no Acórdão nº 65/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11, pág. 653, e no Acórdão nº 202/90, id., vol. 16, pág. 505).


Em relação aos restantes casos, todavia, o legislador apenas não poderá suprimir ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer". Na verdade, este Tribunal tem entendido, e continua a entender, com A. Ribeiro Mendes (Direito Processual Civil, III - Recursos, AAFDL, Lisboa, 1982, p. 126), que, impondo a Constituição uma hierarquia dos tribunais judiciais (com o Supremo Tribunal de Justiça no topo, sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional - artigo 210º), terá de admitir-se que ‘o legislador ordinário não poderá suprimir em bloco os tribunais de recurso e os próprios recursos’ (cfr., a este propósito, Acórdãos nº 31/87, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 9, pág. 463, e nº 340/90, id., vol. 17, pág. 349).”


Este tem sido o entendimento do STJ, por exemplo, no acórdão de 24.05.2022, relatora Catarina Serra, proc. nº20464/95.1TVLSB.L1-A. S1).


Assim, nada impede o legislador ordinário de aprovar um regime restritivo de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, obstando a que muitos dos litígios tenham um terceiro grau de jurisdição e, por maioria de razão, estabeleça um regime ainda mais restritivo para se admitir o recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência.


Como se referiu é a Constituição que faculta ao legislador um grande espaço de definição dos requisitos que os interessados têm de cumprir para ter acesso aos recursos para o STJ, em especial para os recursos extraordinários, sob pena de frustração dos interesses dos cidadãos em geral, atenta a admissibilidade do direito de recorrer numa globalidade sistemática e racional.


Os Reclamante invocam a violação do princípio da confiança e da segurança jurídica, mas tal pressupunha que as normas aplicadas tivessem sido interpretadas afetando de forma inadmissível, arbitrária ou demasiado onerosa de direitos ou expectativas legitimamente fundadas dos Recorrentes.


Ora, no caso o acórdão recorrido acompanha o entendimento da jurisprudência do STJ, como consta dos acórdãos nele citados, nem os Recorrentes indicam jurisprudência recente do STJ ou do TC, que justifique tivessem expetativas legítimas e justificadas na admissibilidade do recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência que interpuseram.


Os Reclamantes invocam ainda a violação do princípio da igualdade, consagrado no artigo 13.º da Constituição da República que impede que uma dada solução normativa confira tratamento substancialmente diferente a situações no essencial semelhantes. No plano formal, a igualdade impõe um princípio de ação segundo o qual as situações pertencentes à mesma categoria essencial devem ser tratadas da mesma maneira. ( cf. neste sentido acórdão do Tribunal Constitucional n.º 134/2019, publicado no DR n.º 66/2019, Série I de 2019.04.03).


No caso, em que está em causa a inadmissibilidade do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, manifestamente não está a ser violado o princípio da igualdade, considerando que não se vislumbra, nem os Reclamantes invocam qualquer tratamento desigual.


Em resumo e conclusão: A interpretação do artigo 688º n.º1 do CPC efetuada pelo acórdão reclamado em que se considera que para se verificar uma relação de identidade entre a questão de direito apreciada no acórdão recorrido e no acórdão-fundamento, é necessário que os elementos de facto relevantes para a ratio da regra jurídica sejam coincidentes ou equivalentes e que só há uma verdadeira contradição entre os acórdãos, quando a questão essencial, que constituiu a razão de ser e objeto da decisão, foi resolvida de forma frontalmente oposta nas decisões em confronto, não configura uma situação de negação de acesso à justiça que afronte os princípios basilares de um Estado de Direito e os invocados artigos 2.º, 13.º, 18.º e 20.º, n.º 4 da Constituição da República.


Decisão


Pelo exposto, julgam-se improcedentes as arguidas nulidades e inconstitucionalidades.


Custas pelos Reclamantes fixando-se em 3 UCS a taxa de justiça


Lisboa, 14.05.2024


Leonel Serôdio ( Relator)

Graça Amaral ( 1ª adjunta)

Maria Amélia Ribeiro (2ª adjunta)