ADMINISTRAÇÃO DA HERANÇA
CABEÇA DE CASAL
DIREITO DE HABITAÇÃO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
Sumário


I - A utilização de um imóvel da herança pelo cabeça-de-casal para sua habitação não integra um ato de administração da herança.
II - Conforme decorre do preceituado no artigo 2103º-A do Código Civil o momento em que ocorre a atribuição dos direitos de habitação da casa de morada de família e de uso do respetivo recheio, ao cônjuge sobrevivo, é o momento da partilha.
III - O encabeçamento do cônjuge nesses direitos pressupõe que na partilha a titularidade da propriedade desses bens venha a caber a outros herdeiros, pois se a casa de morada de família e o recheio forem bens próprios do cônjuge sobrevivo ou vierem a caber na partilha a este, não há lugar a atribuições preferenciais.
IV - O lesado, na defesa dos seus direitos de personalidade, pode optar ou pela instauração de uma ação comum, ou pelas providências urgentes de tutela da personalidade a que corresponde a forma de processo especial (artigos 878º e seguintes).

Texto Integral


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. RELATÓRIO

O Autor AA intentou a presente ação contra o Réu PAULO BB (seu filho), formulando os seguintes pedidos:

“a) Declarar-se o direito do uso exclusivo do imóvel para habitação melhor identificado no artigo 4º da petição a favor do Autor;
b) Ser condenado o Réu a reconhecer o direito do uso exclusivo do imóvel para habitação melhor identificado no artigo 4º da petição a favor do Autor;
c) Ser condenando o Réu a entregar ao Autor o imóvel melhor identificado artigo 4º da petição, no prazo de 15 dias;
d) Ser o Réu condenado na quantia de 500 euros por dia em que não proceda à referida entrega, a título de sanção pecuniária compulsória.
e) Ser condenado o Réu nas custas”.

Para o efeito e em síntese alega o seguinte:

- O Autor era casado no regime da comunhão de adquiridos com CC, progenitora do seu filho, o aqui Réu, que faleceu a ../../2020, com última residência em ....
- A referida CC deixou como seus únicos herdeiros, o seu cônjuge, o aqui autor, o seu filho, o aqui Réu e duas filhas.
- Do acervo de bens que compõe a herança aberta por óbito da falecida CC, do qual é cabeça de casal o Autor, faz parte a casa de morada de família, a fração autónoma ..., sita Estrada ..., ..., ... freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...30... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...66, fração ... da mencionada freguesia.
- Na qual habitava o Autor e a sua falecida mulher e o Réu desde o seu divórcio.
- Sucede, que há algum tempo que a relação do Autor e do Réu começou a degradar-se. O Réu começou a assumir para com o seu pai, o Autor, um comportamento desrespeitoso e agressivo. O Réu não respeita o seu pai e comporta-se como se a casa onde habitam seja exclusivamente sua, aproveitando-se da idade avançada do Autor. O Réu não ajuda em casa, não contribuiu para nenhuma das despesas da habitação e, tende a ter comportamento, que limitam a paz e a comodidade do Autor.
- É o Autor que sustenta a casa sozinho, com os seus rendimentos e economias. Quem tem de providenciar pela limpeza, alimentação e todos os demais encargos.
- Além de não ajudar, o Réu faz uso da habitação como se fosse o único residente. O Réu todos os dias saí à noite, retornando à habitação onde coabita com o Autor, de madrugada. Quando chega à casa o Réu, que por norma vem embriagado, provoca um imenso ruído e desordem.
- O Autor vê-se constantemente perturbado no seu sono e com a sua casa virada do avesso pelo Réu. Quando confrontado pelo Autor sobre o seu comportamento, o Réu torna-se insolente, descortês e violento. O Réu ameaça recorrentemente o Autor. Ameaçando já o A. de morte com uma faca. O Autor tem medo do Réu e que ele venha a concretizar as ameaças que profere. O Réu é jovem, forte e chega a casa sempre sobre considerável influência de álcool, ficando extramente agressivo e imprevisível, partindo, pontapeando e esmurrando objetos.
- Um dia em que chegou de madrugada embriagado e o A. tinha a porta fechada, o Réu não aguardou que o A. lhe abrisse a porta, partiu a persiana e arrombou a porta.
- O Réu causa desordem na habitação e vários transtornos ao Autor.
- A habitação faz parte do acervo de bens da herança aberta por óbito da CC em que o A., duas filhas e o Réu são os únicos herdeiros.

O Réu veio contestar invocando a exceção de ineptidão da petição inicial e de ilegitimidade ativa, e impugnando os factos alegados pelo Autor.
Pelo Tribunal a quo foi proferida decisão a absolver o Réu da instância pela verificação da exceção dilatória atípica insuprível de formulação de pedidos sem sustentação legal.

Inconformado, veio o Autor recorrer, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

“1. A casa de morada de família encontra proteção em diversas normas de direito substantivo ao contrário do que vem afirmado na decisão recorrida
2. Decorre desde logo do artigo 1.º da Constituição e do direito de cada pessoa ter para si e para a sua família uma habitação de dimensão adequada em condições de higiene e conforto, consagrado no n.º 1 do seu artigo 65.º.
3. E é o caso dos artigos 1793.º e 1105.º, ambos do CC no plano substantivo e no plano adjetivo o artigo 990.º do CPC.
4. A casa de morada da família também encontra proteção no artigo 1682.º-A, n.º 2 do CC ao impor sempre o consentimento de ambos os cônjuges para a sua alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre a mesma, ainda que seja um bem próprio de um dos cônjuges.
5. Igual proteção se verifica no artigo 1682.º-B do CC, ao dispor que relativamente à casa de morada da família, carecem do consentimento de ambos os cônjuges, a resolução, a oposição à renovação ou à denúncia do contrato de arrendamento pelo arrendatário, a revogação do arrendamento por mútuo consentimento, a cessão da posição de arrendatário, o subarrendamento ou o empréstimo, total ou parcial.
6. A mesma proteção no artigo 1673.º do CC ao impor aos cônjuges a escolha, por comum acordo, da residência da família.
7. Quanto aos unidos de facto dispõem os artigos 4.º e 5.º da Lei n.º 7/2001, de 11/05.
8. Em caso de morte de um dos membros da família, verifica-se a proteção da casa de morada da família no artigo 1106.º e artigos 2103.º- A a 2103.º-C, todos do CC.
9. O cônjuge sobrevivo tem o direito potestativo a usufruir da casa de morada de família que pode exercer em qualquer momento.
10.Seria de todo incompreensível uma interpretação restritiva do direito positivo e das normas vertidas no artigo 1106.º e artigos 2103.º- A a 2103.º-C que exclua, em caso de morte, esse direito ao cônjuge sobrevivo (pelo menos) nas mesmas condições que aos unidos de facto ou aos casos de divórcio ou separação.
11.Ou, dito de outra forma, seria de todo incompreensível uma resposta do direito positivo (ou ausência dela) em que o cônjuge sobrevivo ficasse em piores condições do que os unidos de facto e os divorciados ou separados (quando ocupa ainda uma posição em que é meeiro e herdeiro).
12.Pelo que, cremos, a interpretação correta do direito positivo não afasta o cônjuge sobrevivo de poder usufruir da casa de morada de família sendo indiferente que haja ou não partilha (e seria também incongruente que passasse a ter um direito na partilha que não tem antes dessa mesma partilha ou que nascesse apenas e só no momento da partilha).
13.E mesmo que se viesse a ter esse entendimento teria de ser reportada uma “vacatio legis” - entre a morte de um dos cônjuges e o momento da partilha – ou seja, uma ausência de proteção legal da casa de morada de família nesse período de tempo, que deveria e pode ser integrada por analogia, nomeadamente, através da norma dos unidos de facto ou por um interpretação teleológicas das normas atrás citadas,
14.A interpretação teleológica das normas constantes dos artigo 1106.º e artigos 2103.º- A a 2103.º-C, todos do CC face ao direito constituído tem de ser a da salvaguarda do direito do cônjuge sobrevivo a ocupar e usufruir da casa de morada de família.
15. Tal direito potestativo terá de ser exercido até à partilha, pretendendo a expressão “até à partilha” salvaguardar os herdeiros pois não é indiferente licitar ou vir a herdar um prédio onerado com o usufruto ou um prédio livre.
16. Pelo que a referida norma não pretende disciplinar o momento em que o cônjuge sobrevivo pode ou não exercer o seu direito potestativo mas apenas e tão só o limite temporal a partir do qual já o não pode exercer.
17. Como se escreve no no Ac. STJ, 2ª Secção, Proc. 3136/20.8T8FNC.L1.S1: “o legislador quis inquestionavelmente proteger o cônjuge sobrevivo e garantir que, as mais das  vezes já na sua velhice não terá de se ver constrangido pela partilha da herança a uma adicional perda do seu espaço, das suas rotinas, e pretendeu garantir-lhe que possa continuar a conviver com as memórias mais significativas da sua vida. Foi a clara opção do legislador na sequência da aprovação da primeira constituição em regime democrático.
18. A tutela sucessória do cônjuge sobrevivo projeta-se ainda de outro modo: reconhecendo-lhe o direito de exigir, em partilhas, que lhe seja atribuído o direito de habitação da casa de morada da família e, bem assim, o direito de uso do respetivo recheio (artigos 2103.º-A a 2103.º-C).
19.O legislador em 1977 fez uma clara opção de valorização da posição sucessória do cônjuge sobrevivo e, desde então sempre consagrou o direito de exigir, em partilhas, que lhe seja atribuído o direito de habitação da casa de morada da família e, bem assim, o direito de uso do respetivo recheio priorizando a família sobre a linhagem de sangue.
20.Até que esteja concretizada a partilha tem o cônjuge sobrevivo direito de ser encabeçado no direito potestativo que lhe confere o art.º 2103-A do código civil. Não está definido um momento preciso para tornar claro que quer exercer o seu direito ou qualquer formalidade que deva seguir.
21.Em conclusão, no caso concreto fazendo saber com a sua posição sobre a forma a partilha que vem exercer esse direito potestativo, fá-lo dentro do período legalmente estabelecido para o efeito, de forma juridicamente eficaz.
22.A ação deverá prosseguir de forma a poder ser reconhecido ao Recorrente o seu direito potestativo a usufruir da casa de habitação que constituía a casa de morada de família.
23.E o direito a usufruir a referida morada em exclusividade (por todos Ac. TRL de 14/09/2023, Proc. 3080/22.4T8CSC.L1-2.) pois estão em causa a sua dignidade e os seus direitos de personalidade conforme vem alegado na petição inicial.
24.O tribunal “a quo” violo, além do mais, o disposto no art. 1º e 65º da CRP e os artigos artigo 1106.º e artigos 2103.º- A a 2103.º-C, todos do CC.”

Pugna o Recorrente pela procedência do recurso e pela revogação da decisão recorrida, e pela sua substituição por acórdão que julgue improcedente as exceções invocadas pelo Réu e determine o prosseguimento dos autos.
O Réu apresentou contra-alegações pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

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II. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do Código de Processo Civil, de ora em diante designado apenas por CPC).
A questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo Recorrente, é a de saber se se verifica a exceção dilatória atípica insuprível de formulação de pedidos sem sustentação legal.
***
III. FUNDAMENTAÇÃO

Inconformado com a decisão proferida pelo Tribunal a quo que julgou verificada a exceção dilatória atípica insuprível de formulação de pedidos sem sustentação legal e absolveu o Réu da instância, veio o Autor interpor o presente recurso pugnando pelo prosseguimento dos autos.
As incidências fáctico-processuais a considerar são as descritas no relatório e na decisão recorrida.

Relembramos o teor deste último, que transcrevemos na parte que aqui releva:
“(…) É certo e concorda-se com a ilegitimidade activa do Autor, porquanto se encontra desacompanhado dos restantes herdeiros e arroga um direito sobre um bem que se inclui no acervo hereditário da herança de CC.
Mas para além da verificação da ilegitimidade activa, que poderia ser eventualmente suprida importa considerar que o Autor fundamenta o seu pedido igualmente no comportamento do Réu.
Desde já, resulta que eventualmente o comportamento descrito necessariamente deveria ser analisado em processo de diferente natureza, nomeadamente criminal. E que o Autor admite que o mesmo reside na habitação desde o seu divórcio.
No entanto, acrescenta-se que os pedidos formulados pelo Autor não assentam na sua alegada função de cabeça-de-casal, mas antes no comportamento imputado ao Réu.
O Autor enquanto cabeça-de-casal tem o dever de administrar os bens próprios da falecida e os bens comuns do casal, de acordo com o referido no art. 2087º do CC. Contudo, essa função não lhe dá o direito de uso exclusivo do único imóvel da herança, porquanto nele já habitava o Réu. Ou seja, de acordo com os factos invocados.
Nestes termos, o alegado direito de uso exclusivo não pode ser considerado nos termos habituais, como sucede aquando do falecimento de um dos cônjuges e habitando estes em exclusivo a casa de morada de família, como se prevê no art. 2103ºA nº 1 do CC. Nos termos do qual o cônjuge sobrevivo tem direito a ser encabeçado, no momento da partilha, no direto de habitação da casa de morada de família e no direito de uso do respetivo recheio.
E como bem refere o Réu no articulado apresentado, como resulta do próprio texto da lei só “no momento da partilha” é que esse direito pode ser exercido. Ora, dos autos e conforme exposto pelo Autor não se procedeu ainda à partilha do bem em causa.
Portanto, é manifesto que o direito que o Autor pretende ver reconhecido carece de fundamento legal para ser invocado, face ao próprio contexto da habitação e de quem lá reside, salvo melhor entendimento.
E entende-se que a exceção em causa transcende um caso de ineptidão, porquanto se considera que configura uma exceção atípica, como se irá expor em seguida, pois nem sequer será possível sanar a mesma devido à falta de fundamento legal para o peticionado.
Na verdade, nos termos do art° 552° n° 1 al. d) do CPC.P.C. na petição com que propõe a acção o Autor deve expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção.
Por outro lado nos termos da alínea e) do citado artigo ao Autor compete ainda formular o pedido, que deve, em princípio ser certo e determinado, admitindo-se nas situações taxativamente elencadas no art. 556º, nº1 do CPC.
No caso dos autos, o Autor na petição inicial expôs e elencou factos que entendeu por suficientes para o reconhecimento do direito que sustentava todo os seus pedidos e cuja titularidade se arroga.
Salvo melhor opinião ao proceder desse modo, o Autor formula efectivamente pedidos sem fundamento legal na nossa legislação, atendendo ao actual estado da partilha.
 Ora, a formulação de pedidos nos termos realizados de reconhecimento de uso exclusivo da habitação, carece de causa de pedir, pois não há enquadramento legal para o peticionado. E nem se consiera que pode existir um eventual erro na forma do processo, pois os factos invocados, não permitem o raciocionio em causa, nomeadamente para um possível processo de inventário, ou até numa acção declarativa, mas desde que habitasse em exclusivo a habitação, ou até em cumulação com eventuais outros pedidos, nomeadamente o de alimentos, ao qual faz referência, mas não sustenta com qualquer facto.
Confrontadas as situações elencadas com os pedidos formulados na presente acção impõe-se a conclusão e sem necessidade de dar o contraditório às partes, que os pedidos formulados carecem de fundamento legal e não se enquadra em nenhum dos argumentos jurídicos invocados no articulado inicial.
Conclui-se inclusive, que no actual estado da herança, que não será esta a forma processual adequada para eventuais efeitos que possam derivar desta e que possam dar solução adequada a todos os interessados na herança.
A lei não determina expressamente qual a consequência para a formulação sem fundamento legal destes pedidos, no caso em concreto, sendo diversas as soluções que tem vindo a ser apontadas pela doutrina e pela jurisprudência.
No entanto, face ao regime atualmente vigente, ressalvando-se opinião contrária, entendemos que a formulação de pedidos sem sustentação legal constitui uma exceção dilatória atípica insuprível, razão pela qual se absolve da instancia o Réu. (cfr. artigos 576º, 577º, 578º e 278º, nº1, al. e) do CPC.
Notifique e registe.
Valor: € 5000,01 (cinco mil euros e um cêntimo – art. 306º do CPC)
Sem custas – face à fase processual dos autos”.
Pelo Tribunal a quo foi julgada verificada uma exceção dilatória atípica insuprível consistente na formulação de pedidos sem sustentação legal tendo, por isso, absolvido o Réu da instância.
É contra este entendimento que se insurge o Recorrente sustentando a sua pretensão em diversos normativos que em seu entender visam a proteção da casa de morada de família.
Vejamos então se lhe assiste razão.
É inquestionável, tal como afirma o Recorrente, que a família e o direito à habitação encontram proteção constitucional.
Decorre do n.º 1 do artigo 65º da Constituição da República Portuguesa citado pelo Recorrente que: “1. Todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”.
A Constituição reconhece efetivamente a todos o direito a uma habitação condigna onde cada um possa viver com a sua família; porém, a consagração deste direito não compreende no seu âmbito de proteção todas as pretensões que, por vezes, lhe pretendem atribuir: o direito constitucionalmente consagrado a uma habitação condigna não é suscetível de possibilitar, sem mais, a atribuição ao Recorrente do direito do uso exclusivo do imóvel para habitação nos termos por si pretendidos.
Na verdade, este direito à habitação, comporta duas vertentes: uma de natureza positiva e outra de natureza negativa.
Na sua vertente positiva, conforme ensinam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 2007, 4ª Edição, p. 835) e como direito social “o direito à habitação não confere um direito imediato a uma prestação efetiva dos poderes públicos, mediante a disponibilização de uma habitação; mas, para além das obrigações públicas tendentes a assegurar a oferta de habitações, o direito à habitação garante critérios objetivos e imparciais no acesso dos interessados às habitações oferecidas pelo sector público.”
Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, p. 1328) afirmam também que o artigo 65º configura “o direito à habitação, enquanto direito a ter uma morada decente e condigna, como um direito de natureza social” pelo que, enquanto direito fundamental de natureza social, pressupõe a mediação do legislador ordinário destinada a concretizar o respetivo conteúdo e dele não se retira “um direito imediato a uma prestação efetiva, porquanto não é diretamente aplicável ou exequível, exigindo uma atuação do legislador que permita concretizar tal direito, pelo que o seu cumprimento só pode ser exigido nas condições e nos termos definidos na lei” (Acórdão n.º 280/93 – cfr. ainda Acórdãos n.ºs 130/92 e 374/02, disponíveis para consulta em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19930280.html)”.
A este propósito José Carlos Vieira de Andrade (Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 2012, 5ª Edição, p. 359 a 363) considera que na Constituição portuguesa, as normas que preveem os direitos (sociais) a prestações, contêm diretivas para o legislador, são normas impositivas de legislação que não conferem aos seus titulares verdadeiros poderes de exigir, mas visam, em primeira linha, indicar ou impor ao Estado que tome medidas para uma maior satisfação ou realização concreta dos bens protegidos, e, para que se tornem direitos subjetivos certos, mostra-se necessária uma atuação legislativa que defina o seu conteúdo concreto e só quando emitida legislação destinada a executar os preceitos constitucionais em causa é que os direitos sociais se consolidarão como direitos subjetivos plenos, mas, então, não valem, nessa medida conformada, como direitos fundamentais constitucionais, senão enquanto direitos criados por lei.
E na sua vertente negativa, conforme também ensinam J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (ob. cit. p. 834) o direito à habitação consiste no direito de não ser arbitrariamente privado da habitação ou de não ser impedido de conseguir uma; e neste sentido, o direito à habitação reveste a forma de “direito negativo”, ou seja, de direito de defesa, determinando um dever de abstenção do Estado e de terceiros, apresentando-se, nessa medida, como um direito análogo aos “direitos, liberdades e garantias”.
Também neste sentido referem Jorge Miranda e Rui Medeiros (ob. cit. p. 1332) que “a consagração do direito fundamental à habitação não se compadece com soluções que admitam a privação arbitrária, sem fundamento razoável, do direito a uma morada digna.”
Assim, o Recorrente não pode, sem mais, basear a sua pretensão no direito à habitação constitucionalmente consagrado no artigo 65º uma vez que tal direito está dependente de concretização legal, não sendo diretamente aplicável, nem exequível por si mesmo e não conferindo um direito imediato a uma prestação efetiva; o seu cumprimento só pode ser exigido nas condições e nos termos definidos pelo legislador.
Vejamos então o que se mostra consagrado pelo legislador, analisando se os demais normativos citados pelo Recorrente permitem concluir que os pedidos por si formulados neles encontram sustentação legal.
Importa começar por referir que, não obstante a inerente proteção da casa de morada de família, os artigos 1682º-A n.º 2 e 1682-B do Código Civil (de ora em diante designado apenas por CC), respeitantes à alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre a casa de morada da família e à disposição do direito ao arrendamento quanto à casa de morada de família, 1673º do CC, referente à escolha da residência da família, os artigos 1105º e 1106º do CC, respetivamente quanto à comunicabilidade e transmissão do arrendamento que incida sobre a casa de morada de família em vida para o cônjuge e quanto à transmissão por morte do arrendamento para habitação, o artigo 1793º, também do CC, relativamente à possibilidade do tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer esta seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal, bem como os artigos 4º e 5º da Lei n.º 7/2001 respeitantes à união de facto, invocados pelo Recorrente em nada relevam para o caso concreto, pois a situação descrita pelo Autor, nos moldes em que a configura, não tem enquadramento nas referidas normas legais. O mesmo se diga quanto ao artigo 990º do CPC, referente ao processo para atribuição da casa de morada de família, nos casos a que se referem os já citados artigos 1793º e 1105º do CC.
Na verdade, no caso dos autos o Autor veio alegar ter sido casado no regime da comunhão de adquiridos com CC, progenitora do seu filho, aqui Réu, a qual faleceu a ../../2020, e que do acervo de bens que compõe a herança aberta por óbito da falecida CC, faz parte a casa de morada de família, na qual habitava o Autor e a sua falecida mulher e o Réu desde o seu divórcio.
Alega ainda que, sendo o cabeça-de-casal, nos termos do disposto no artigo 2079º do CC, a administração da herança até à sua liquidação e partilha lhe pertence, estabelecendo ainda o n.º 1 do artigo 2088º do CC, que “o cabeça-de-casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiro a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles de ações possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído”.
Se efetivamente o referido n.º 1 do artigo 2088º surge para tornar efetiva a administração, dai não decorre, ao contrário do que sustenta o Recorrente, que tal normativo, bem como a administração da herança, lhe atribuam o direito de usufruir e habitar em exclusividade a casa pertencente à herança, conforme pretensão que formula nos presentes autos. Vejam-se a este propósito os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21/04/2022 (Processo n.º 2691/16.1T8CSC.L1.S1, Relator João Cura Mariano) e desta Relação de Guimarães de 18/05/2023 (Processo n.º 6700/20.1T8VNF-A.G1, Relator             José Cravo, ambos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt)  em cujo sumário se pode ler que a utilização de um imóvel da herança pelo cabeça de casal para sua habitação não integra um ato de administração da herança.
Como se afirma no citado acórdão de 21/04/2022 “a competência do cabeça de casal para administrar os bens da herança atribui-lhe os poderes necessários para a prática de atos e de negócios jurídicos de conservação e frutificação normal dos bens administrados, neles não se incluindo, seguramente, a utilização dos bens da herança para seu exclusivo proveito, designadamente a utilização de um imóvel da herança para nele habitar com a sua família. Nesta situação, o cabeça de casal não administra (bem ou mal) aquele imóvel, mas serve-se dele em seu exclusivo benefício”.
Por último, e quanto ao preceituado no artigo 2103º-A do CC, prevê o n.º 1 que, em caso de morte de um dos cônjuges, o cônjuge sobrevivo tem direito a ser encabeçado, no momento da partilha, no direito de habitação da casa de morada de família e no direito de uso do respetivo recheio, devendo tornas aos co-herdeiros se o valor recebido exceder o da sua parte sucessória e meação, se a houver.
Conforme decorre de forma linear do citado preceito, o momento em que ocorre a atribuição do direito de habitação da casa de morada de família, ao cônjuge sobrevivo, é o momento da partilha; o que bem se compreende uma vez que, se pela partilha o cônjuge sobrevivo já ficar com esse imóvel, carece de qualquer sentido falar-se da atribuição do direito de habitação.
A referida norma não atribui ao cônjuge a propriedade da casa de morada de família, mas tão só um direito real de habitação da casa de morada de família e de uso do respetivo recheio; o encabeçamento do cônjuge nesses direitos pressupõe que na partilha a titularidade da propriedade desses bens venha a caber a outros herdeiros, pois se a casa de morada de família e o recheio forem bens próprios do cônjuge sobrevivo ou vierem a caber na partilha a este, não há lugar a atribuições preferenciais (v. Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, Vol. II, Coimbra Editora, 3ª Edição Renovada, p. 159 e 160).
É certo, como alega o Recorrente, que o legislador em 1977 fez uma clara opção de valorização da posição sucessória do cônjuge sobrevivo e, desde então, que se encontra consagrado o direito de exigir, em partilhas, que lhe seja atribuído o direito de habitação da casa de morada da família e, bem assim, o direito de uso do respetivo recheio.
Ora, não é essa a situação no caso concreto pois o Recorrente parece pretender fazer valer esse direito em ação autónoma (a presente ação) sem que tenha sequer diligenciado (pelo menos não se mostra alegado nos autos) por essa partilha com a instauração do competente processo de inventário.
Como o próprio Recorrente alega, citando Capelo de Sousa (ob. cit. p. 156), dados os termos da lei ao exigir que tal encabeçamento se faça no “momento da partilha”, tal retira a possibilidade de ações declarativa e executiva com o pedido específico de encabeçamento nos direitos em causa (sublinhado nosso).
Não pode, por isso, o citado artigo 2103º-A do CC servir, por si só, de fundamento à pretensão do Recorrente.
Assim, quer se perfilhe o entendimento de que “este direito potestativo pode ser exercido até ao momento da partilha” e que este “não ocorre na conferência preparatória quando não foi obtido acordo por unanimidade” e que “até que esteja concretizada a partilha tem o cônjuge sobrevivo direito de ser encabeçado no direito potestativo que lhe confere o art.º 2103-A” (v. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de10/11/2022, Processo n.º 3136/20.8T8FNC.L1.S1, Relatora Ana Paula Lobo, disponível para consulta em www.dgsi.pt), ou se entenda que  “[a] vontade/pretensão do cônjuge sobrevivo de ser encabeçado do direito de habitação da casa de morada de família (nos termos previstos no art.º 2103.º-A do CC) tem que ser manifestada/exercida até à conferência de interessados ou, pelo menos, no âmbito dessa conferência, mas sempre antes da realização de qualquer acordo de composição de quinhões ou de licitações” (v. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/10/2023, Processo n.º 1274/20.6T8CLD.C1, Relatora Maria Catarina Gonçalves, também disponível para consulta em www.dgsi.pt), não se suscitam dúvidas de que o direito deve ser exercido no momento da partilha, seja extrajudicial, seja no processo de inventário, mas não em ação declarativa autónoma que vise o exercício de tal direito.
Tal não retira, tal como alega o Recorrente, novamente citando Capelo de Sousa (ob. cit. p. 157), posição que também perfilhamos, a possibilidade de, até esse momento da partilha, o cônjuge sobrevivo poder lançar mão, como preliminar ou na pendência de processo de inventário, de providências cautelares adequadas a assegurar o seu direito ao encabeçamento e correlativos direitos de habitação e de uso, desde que cumprindo os necessários requisitos, designadamente alegando e demonstrando o fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável desses direitos (cfr. artigo 362º do CPC).
Não foi essa, contudo, a opção do aqui Recorrente que instaurou a presente ação declarativa comum, em vez de lançar mão de providência cautelar ou sequer de providências de tutela da personalidade a que corresponde a forma de processo especial previsto nos artigos 878º e seguintes do CPC.
Entendemos, por isso, que não pode o Recorrente fundamentar a pretensão formulada na presente ação no exercício do direito previsto no artigo 2103º-A do CC, pois este apenas pode ser exercido no momento da partilha.
Tal não significa, contudo, e salvo melhor opinião, que a presente ação não deva ser considerada neste momento adequada à tutela da relação material controvertida tal como configurada pelo Autor, e nem que os pedidos que formula devam ser considerados sem sustentação legal, sendo certo que o juiz não está sujeito às alegações no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (cfr. artigo 5º n.º 5 do CPC).
Vejamos então.
Como escreve Capelo de Sousa (ob. cit. p. 156 e 157) “[q]uanto à situação da casa de morada de família entre o momento da abertura da sucessão e o da partilha, valem as regras gerais relativas à administração da herança (arts. 2079º e segs. Do CCivil), parecendo-nos porém que o cônjuge e demais partilhantes têm em relação à utilização da casa os mesmos direitos e obrigações que tinham em vida do falecido, à exceção dos que se extingam por efeito da morte deste (art. 2074º, nº 1, do CCivil, por analogia)”; é este também o sentido da alegação do Recorrente.
Independentemente da possibilidade do Recorrente poder vir a tornar-se titular, pela partilha, do direito de propriedade sobre a casa de morada de família ou, se assim não for, do direito de habitação do imóvel a exercer nos termos do já referido artigo 2103º-A do CC, a situação no período entre o momento da abertura da sucessão e a partilha, será o da manutenção do statu quo ante, ou seja, da situação em que as coisas se encontravam antes do falecimento da inventariada, inexistindo, desde logo, qualquer obrigação para o cônjuge sobrevivo de ter de abandonar a casa de morada da família.
No mesmo sentido sustenta Cristina Pimenta Coelho (Código Civil Anotado, Ana Prata (Coord.), vol. II, Almedina, p. 1026) que “nas situações em que a casa de morada de família era propriedade do autor da sucessão ou constituía bem comum, o cônjuge sobrevivo tem o direito de habitação da casa de morada de família e de uso do respetivo recheio, sem limitação de prazo. Quer isto dizer que pode continuar a habitar a casa de morada de família e a usar o respetivo recheio até à data da sua morte”.
Entendemos, por isso, que o cônjuge sobrevivo não pode ser compelido a abandonar a casa de morada de família, sobretudo quando era um bem comum do ex-casal; pelo contrário, tem o direito de continuar a habitar a casa de morada de família entre o momento da abertura da sucessão e o da partilha, sendo um direito que nenhuma alteração sofre pelo facto de um dos cônjuges falecer, subsistindo e mantendo-se até à partilha, momento em que o cônjuge sobrevivo poderá exercer o direito à atribuição preferencial que lhe é conferido pelo referido artigo 2103º-A do CC (v. neste sentido o acórdão desta Relação de 26/05/2022, Processo n.º 4489/21.6T8GMR-A.G1, Relator Joaquim Boavida, também disponível para consulta em www.dgsi.pt).
No caso concreto, à data do falecimento de CC, habitavam na casa de morada de família o Autor e a sua falecida mulher, mas também o Réu e, na sequência do falecimento, estes continuaram a habitar na casa de morada de família.
Estamos, pois, perante uma situação de uso de bens de uma herança, em proveito próprio, sendo que ao Autor, cônjuge sobrevivo, lhe assiste o direito de continuar a habitar a casa de morada de família entre o momento da abertura da sucessão e o da partilha e de exercer, no momento da partilha, o direito à habitação da casa de morada de família que lhe é atribuído pelo artigo 2103º-A do CC.
Por outro lado, e não obstante esta situação concreta poder suceder na vida corrente com alguma frequência, a verdade é que não se mostra especificamente prevista e regulada pelas regras do direito sucessório.
Contudo, o artigo 1404º do CC (aplicação das regras da compropriedade a outras formas de comunhão) estabelece, contudo, que as regras da compropriedade são aplicáveis, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos, sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles.
E o artigo 1406º do CC prevê que, na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito.
Veja-se, no entanto, que a sua utilização por um dos herdeiros só determinará uma privação do uso pelos outros consortes, para os efeitos do referido artigo 1406º, se ela contrariar a vontade manifestada de algum deles lhe dar outra utilização (v. o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/04/2022), não sendo de concluir que esse uso tenha sido excludente do direito de uso dos demais herdeiros enquanto estes não manifestarem uma vontade de utilização do bem incompatível com o uso exclusivo que seja feito pelo co-herdeiro em seu proveito; neste sentido afirma-se também no sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/02/2022 (Processo n.º 929/14, Relatora Maria João Tomé, disponível em www.dgsi.pt) que “III. A utilização de um determinado bem da herança por um dos herdeiros só determina uma privação do uso pelos outros consortes, para os efeitos do artigo 1406º do Código Civil, se ela contrariar a vontade manifestada de algum deles lhe dar outra utilização”.
No caso concreto não consta dos autos qualquer manifestação de vontade das duas irmãs do Réu em oposição ao uso do Autor e nem ao seu possível uso exclusivo (não obstante ter sido suscitada a exceção de ilegitimidade ativa e o tribunal a quo afirmar concordar com a mesma, não veio a ser conhecida por ter sido julgada verificada a exceção dilatória atípica insuprível de formulação de pedidos sem sustentação legal).
E, quanto à posição do Réu, resulta do seu articulado de contestação, que o mesmo também não questiona que o Autor continue a habitar na casa de morada de família, o que sustenta é que a mesma, tendo dois espaços habitáveis autónomos, o ... ocupado pelo Autor e o ... andar onde o Réu habita (artigo 55 da contestação) poderá ser habitada pelos dois, em conformidade com o que já sucedia em vida de sua falecida mãe.
Ora, a utilização de um imóvel destinado a habitação, atenta a privacidade inerente a tal uso, nem sempre permite a sua utilização, em simultâneo, por diferentes herdeiros e respetivos agregados familiares.
No caso concreto, está apenas em causa a utilização simultânea da habitação pelo Autor e pelo Réu e é exatamente essa utilização que o Autor vem colocar em causa em face da alegada conduta do Réu, violadora dos seus direitos de personalidade.
Conforme alega o Autor (e neste momento é em face dos factos alegados pelo Autor que se deve apreciar a exceção dilatória atípica em causa) o Réu começou a assumir para com o Autor, um comportamento desrespeitoso e agressivo.
Mais alega que o Réu se comporta como se a casa onde habitam seja exclusivamente sua, aproveitando-se da idade avançada do Autor, tendo um comportamento que limita a paz e a comodidade do Autor pois, além de não ajudar, o Réu sai todos os dias saí à noite, retornando à habitação de madrugada, por norma embriagado, provocando um imenso ruído e desordem, vendo-se o Autor constantemente perturbado no seu sono e com a sua casa virada do avesso pelo Réu.
Alega ainda que o Réu ameaça recorrentemente o Autor, tendo-o já ameaçado de morte com uma faca, que o Réu chega a casa sempre sobre considerável influência de álcool, ficando extramente agressivo e imprevisível, partindo, pontapeando e esmurrando objetos, causando desordem na habitação e vários transtornos ao Autor.
Assim, o direito que o Autor pretende fazer valer de, não só habitar a casa de morada de família, mas de o fazer em exclusividade, está diretamente ligado à defesa e tutela dos seus direitos de personalidade.
Decorre do preceituado no artigo 70º do CC (tutela geral da personalidade) que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral (n.º 1) e que independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida (n.º 2).
A defesa dos direitos de personalidade, pode ser concretizada não só pelo processo especial a que já nos referimos, mas também pela interposição de uma ação comum que vise fazer cessar a ofensa daqueles.
Ora, em face dos factos alegados pelo Autor, está em causa o seu direito de habitar a casa de morada de família em exclusividade como forma de fazer cessar a ofensa dos seus direitos de personalidade (designadamente o direito ao descanso, sossego, saúde, intimidade da vida privada e segurança no seu lar) tutelados pelo referido artigo 70º do CC; a questão a solucionar prende-se com uso exclusivo pelo Autor da casa de morada de família porque aqueles seus direitos alegadamente se encontram a ser violados pelo Réu.
E, ainda que o Réu possa pretender ter também direito, enquanto herdeiro, a usar o imóvel para nele habitar até ao momento da partilha, e que a habitação simultânea é possível, a verdade é que sempre o deveria fazer de molde a respeitar o direito ao descanso, ao sossego, à intimidade da vida privada, à segurança e saúde do Autor, seu pai, sendo que estes direitos são hierarquicamente superiores ao da quota hereditária, decorrente da sua qualidade de herdeiro, esta de natureza patrimonial. É o que resulta do disposto no artigo 335º do CC: Colisão de direitos: “1. Havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes. 2. Se os direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior”.
Em face da alegação do Autor, é a violação destes direitos que também fundamenta a presente ação e o pedido formulado no sentido de excluir o direito do Réu de também habitar a casa de morada de família, enquanto co-herdeiro, e de a habitar o Autor em exclusividade até ao momento da partilha, onde será definido se aquela lhe ficará a caber ou se será encabeçado no direito de habitação da casa de morada da família e no direito de uso do respetivo recheio (devendo tornas aos co-herdeiros se o valor recebido exceder o da sua parte sucessória e meação, se a houver) nos termos do disposto no artigo 2103º-A do CC. Veja-se que de forma a solucionar a questão de forma definitiva sempre poderão os demais herdeiros (se o Autor o não fizer) instaurar o competente processo de inventário.
Daí que, e independentemente de o comportamento descrito na petição inicial poder ser analisado em processo de diferente natureza, nomeadamente criminal, entendemos que também deve merecer a tutela do direito civil, não se podendo concluir que os pedidos formulados carecem de fundamento legal de forma a julgar verificada uma exceção dilatória atípica consistente na formulação de pedidos sem sustentação legal.
Em face do exposto, impõe-se, por isso, determinar que o processo prossiga para conhecimento das demais questões suscitadas, designadamente da exceção de ilegitimidade ativa.
As custas do recurso são da responsabilidade do Recorrido atento o seu decaimento (artigo 527º do CPC).
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IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogam a decisão recorrida e determinam o prosseguimento dos autos.
Custas pelo Recorrido.
Guimarães, 09 de maio de 2024
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Raquel Baptista Tavares (Relatora)
Maria Luísa Ramos (1ª Adjunta)
Ana Cristina Duarte (2º Adjunta)