DIVÓRCIO
INVENTÁRIO
BENS COMUNS DO CASAL
APENSO
Sumário


I - O processo de inventário para partilha de bens comuns do casal, subsequente ao decretamento do divórcio, deve ser tramitado por apenso ao processo de divórcio, nos termos dos arts. 122.º, n.º 2, da LOSJ e 206.º, n.º 2, do CPC.
II - Se a questão prejudicial respeita apenas à determinação de bens que integram o acervo hereditário ou ao passivo, a regra é a de que o juiz deve dirimir todas as questões suscitadas e convertidas que se revelem indispensáveis para alcançar o fim do processo.
III - Apenas tem justificação a remessa dos interessados para os meios comuns quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão controvertida tornar inconveniente a decisão incidental no processo de inventário, por implicar redução das garantias das partes (art. 1093º, n.º 1, do CPC).
IV - As questões relacionadas com a responsabilidade civil por administração de bens do outro cônjuge envolvem, por regra, a alegação de factos complexos, com a correspondente produção de prova, não compaginável com a prova incidental a produzir no âmbito do processo de inventário.
V - Deve ser remetida para os meios comuns a questão atinente ao crédito de que um cônjuge se arroga sobre o outro com fundamento no disposto no art. 1681º, n.º 1, parte final do Cód. Civil, se tal envolver larga, extensa e complexa indagação fáctica e da sua apreciação em sede de inventário advir uma redução das normais garantias das partes.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

AA instaurou, em 14/04/2023, no Juízo de Família e Menores de Braga - Juiz ... - do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, contra BB, processo especial de inventário para partilhas dos bens comuns do casal, após a dissolução do casamento por divórcio (art. 1133º do CPC) (Ref.ª ...45).

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Foi designado como cabeça de casal o interessado BB (Ref.ª ...17).
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O cabeça de casal juntou a relação de bens (ref.ª ...97), na qual indicou, sob a Verba nº. 6 do Passivo, um crédito sobre a ex-cônjuge, nos termos seguintes:

Valor das quantias monetárias retiradas pela interessada CC, da conta de depósitos à ordem do casal, identificada na Verba nº. 1 do Ativo, no período compreendido entre os anos de 2012 e de 2021, através de sucessivos levantamentos em dinheiro e transferências bancárias realizadas para contas exclusivamente tituladas pela interessada, bem como para contas bancárias tituladas por terceiros e, ainda, através da não realização da transferência do valor mensal dos seus rendimentos do trabalho, ali domiciliados, sem qualquer justificação e sem o conhecimento e autorização do interessado BB, que do mesmo apenas tomou conhecimento após a data da separação do casal, num total de cento e vinte e três mil duzentos e sessenta e sete euros e quarenta cêntimos….123.267,40 Euros”.
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A 22/06/2023, a requerente apresentou reclamação à relação de bens (ref.ª ...83) nos termos e fundamentos seguintes (na parte que ora releva):
«(…)
PASSIVO
(…)
5. Verba n.º 6
5.1. Relaciona o cabeça de casal o quantitativo de € 123 267,40 alegando tal montante ter sido retirado pela aqui Interessada da conta de depósitos à ordem do casal identificada sob a Verba n.º 1 do Activo, entre os anos de 2021 e 2021, portanto, na constância do matrimónio, sem conhecimento e/ou autorização do cabeça de casal.
Ora, a aqui Requerente impugna expressamente tal verba e todo o alegado pelo cabeça de casal, por não corresponder à verdade.
Sendo certo que, quaisquer movimentações de dinheiro realizados pela Requerente na referida conta conjunta na constância do matrimónio sempre se presume terem sido feitas em benefício do então casal, pelo que releva exaltar que os efeitos patrimoniais do divórcio se retrotraem à data da propositura da acção de divórcio (cfr. n.º 1 do artigo 1789.º do Código Civil); devendo assim, a referida verba ser excluída da relação de bens, o que requer.
Sem prescindir, a aceitar-se que o cabeça de casal relacionasse qualquer crédito sobre quanto alega, o que não se aceita face ao expendido, sempre teria que o fazer por metade do valor e não a sua totalidade!
(…)».
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A 23/06/2023, o Banco 1..., S.A., interessado nos autos, requereu a correcção da relação de bens - da relação do passivo, apresentada pelo cabeça-de-casal (ref.ª ...76).

A 11/09/2023, o cabeça de casal apresentou resposta à reclamação contra a relação de bens da requerente [ref.ª ...58], na qual retificou o valor da verba n.º 6 do Passivo, passando a ser de 168.375,09 Euros e situando o início da conduta imputada à interessada ao ano de 2007.
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Datado de 26/10/2023, a Ex.ma Juíza “a quo” proferiu o seguinte despacho (refª ...11):

«Não se determina a apensação dos presentes autos aos autos de divórcio, porquanto, não se desconhecendo o entendimento jurisprudencial invocado pelo cabeça-de-casal, inexiste, actualmente, norma expressa que determine a apensação solicitada.
(…)
Da reclamação à relação de bens.
(…)
No que respeita à verba n.º 6 do passivo, a interessada defende a sua exclusão, na medida em que quaisquer quantias por si utilizadas através de movimentos de dinheiro da conta conjunta do casal, na constância do matrimónio, presumem-se feitas em benefício do então casal, salientando que os efeitos patrimoniais do divórcio se retrotraem à data da propositura da acção de divórcio (cfr. n.º 1 do artigo 1789.º do Código Civil).
Vejamos.
Os aqui interessados, BB e AA, contraíram casamento católico, sem convenção antenupcial, em 11 de Novembro de 1989.
Assim, à luz do disposto pelo artigo 1721.º do Código Civil (CC), casaram sob o regime da comunhão de adquiridos. O que significa que integram a comunhão os bens adquiridos na constância do casamento (que não sejam exceptuados por lei) e o produto do trabalho dos cônjuges.
Ambos os cônjuges têm a legitimidade para a prática de actos de administração ordinária dos bens que integram o produto da comunhão (cfr. n.º 3 do artigo 1678.º, do CC).   
Segundo a posição adoptada pelo cabeça-de-casal, o produto da conta bancária em questão era comum, pelo que, a interessada podia fazer movimentos a débito, sem prestar contas, apenas respondendo por actos intencionalmente praticados em detrimento do casal ou do outro cônjuge (cfr. artigo 1681.º, n.º 1, do CC).
Nessa medida, atendendo à natureza e extensão matéria em causa e dos meios probatórios envolvidos, deverá o cabeça-de-casal recorrer aos meios comuns, alegando e demonstrando, querendo, que a ex-cônjuge actuou, intencionalmente, ao longo de nove anos, em seu detrimento e prejuízo, levantando quantias em dinheiro comuns do casal.
Notifique.
Aguardam os autos a junção dos documentos relativos ao pagamento de IMI, no prazo de 10 dias.
(…)».
*
Inconformado com esta decisão dela recorre o cabeça de casal, BB (ref.ª ...46), formulando, a terminar as respetivas alegações, as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1 - O inventário para separação de meações é dependente do processo de divórcio judicial, constituindo uma consequência do que nele foi decidido, dado que é da sentença de divórcio que emerge o direito à partilha dos bens comuns do casal;
2 - O processo de inventário para partilha de bens comuns do ex-casal, requerido subsequentemente ao divórcio decretado em processo judicial, deve ser autuado e tramitado por apenso a este último, justificando-se essa apensação face ao disposto no nº. 2 do artº. 206º. do Código de Processo Civil e às inúmeras e maioritárias decisões jurisprudenciais proferidas sobre a matéria;
3 – Desse modo, deverá ser determinado que os presentes autos de inventário tramitem por apenso aos autos de divórcio dos aqui recorrente e recorrida, ordenando-se a respetiva remessa ao Juízo competente;
4 – O Despacho recorrido não fundamenta o motivo do não acolhimento do entendimento dominante nos Tribunais superiores, quanto à competência do Tribunal para a tramitação do processo de inventário após o divórcio, tal como não indica a base jurídica que lhe atribui competência para apreciar e decidir os presentes autos de inventário;
5 - Pelo que, deverá a primeira parte do Despacho recorrido considerar-se ferida de nulidade nos termos consignados na alínea b) do nº. 1 do artº. 615º. do Código do Processo Civil, ou seja, por falta de fundamentação jurídica quanto à ali reconhecida competência do Mmº. Juiz “a quo” para apreciar e dirimir a causa;
6 -Apurando-se, como é o caso presente, que antes de ser instaurada a ação de divórcio a interessada, ora apelada, subtraiu ao património comum do casal, sem que a tal tivesse qualquer direito, o valor indicado na Verba nº. 6 do Passivo, sempre terá a mesma de a restituir, constituindo meio próprio para o efeito, a sua relacionação no processo de inventário, uma vez que o cônjuge devedor deve compensar nesta sede aquele património;
7 - Caso assim não fosse, existiria um enriquecimento injusto e ilegítimo de um dos cônjuges à custa do património comum;
8 – Pelo que haverá sempre a necessidade da relacionação do invocado crédito do ora recorrente no ato processual próprio para esse efeito, devendo, oportunamente no inventário, cada um dos cônjuges conferir ao património comum tudo o que lhe deve. O cônjuge devedor deverá compensar nesse momento o património comum pelo enriquecimento obtido no seu património próprio à custa do património comum;
9 - O art.º 1730º do Código Civil tem em vista evitar que, na partilha e pelos mais diversos motivos, a atribuição de bens a um dos cônjuges exceda, de forma manifestamente desproporcional, a quota que lhe cabe ou, dito de outra forma, tem-se em vista “vedar distribuições desigualitárias do património comum”;
10 – O Despacho recorrido obsta a que se realize no processo de inventário subsequente ao divórcio, a compensação do seu crédito sobre a Interessada, designadamente, numa eventual e hipotética situação de tornas que haveria de pagar, em de face do resultado de umas supostas licitações;
11 - A questão a apreciar e dirimir e que constitui objeto do presente recurso, tem natureza fulcral e é suscetível de afetar os ulteriores termos do processo de inventário;
12 - As diligências requeridas pelo cabeça de casal, em complemento à prova documental já produzida, não revestem especial complexidade ou morosidade;
13 - A remessa da apreciação de tal matéria para os meios comuns implicaria, além de tudo o mais que supra se deixou alegado, a necessidade de propositura de uma ação autónoma, com todos os incómodos e elevados encargos que tal acarretaria ao cabeça-de-casal, ora recorrente;
14 - O Mmº. Juiz recorrido dispunha ainda e sempre da possibilidade conferida pelo artº 1109º. do Código de Processo Civil, no sentido de convocar uma audiência prévia para tratamento, entre outras, de questões controvertidas a decidir na partilha, sendo também facultado determinar a audição das partes, o que não ocorreu;
15 – Face aos normativos invocados e ao suporte jurisprudencial existente, deverá manter-se na Relação de Bens apresentada pelo cabeça de casal, na sua plenitude, a Verba nº. 6 do Passivo, devidamente retificada, por corresponder a uma dívida da interessada ao património comum do ex casal, com todas as legais consequências daí decorrentes em sede de partilha da comunhão conjugal;
16 - Por mera hipótese e sem conceder, entendendo-se que a questão em apreço – crédito detido pelo cabeça de casal - deverá ser remetida para apreciação através dos meios comuns, sempre o Mmº. Juiz recorrido deveria ordenar a suspensão da Instância até decisão a proferir em ação autónoma, sobre a matéria controvertida e que, em si, é fulcral no âmbito da partilha em presença e, como tal, configura uma questão prejudicial, tudo nos termos fixados no artº. 1092º. do Código do Processo Civil;
17 – O Despacho recorrido violou, por erro de interpretação e de aplicação, entre outros, os arts 206º., 1083º. 1109º., 1092º. e 1133º. do Código de Processo Civil e os arts 1689º., 1697º. e 1730º. do Código Civil devendo, em consequência, ser revogado.
Nestes termos e nos mais de Direito, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, revogado o Despacho recorrido,
com todas as legais consequências.
Para que seja feita JUSTIÇA!».
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Não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir em separado, com efeito meramente devolutivo, “por não existir fundamento legal de suspensão nem apresentação de caução para o efeito” (cfr. arts. 644.º, n.º 2, al. 1), 645.º, n.º 2, e 647.º, n.º 1, todos do CPC) - ref.ª ...01.
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Neste Tribunal, por despacho do ora relator (art. 652.º, n.º 1, al. a), do CPC), foi reformulado o efeito atribuído ao recurso, tendo-lhe fixado o efeito suspensivo (arts. 652.º, n.º 1, al. a) e 1123º, n.º 3, ambos do CPC).
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Foram colhidos os vistos legais.
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II. Delimitação do objeto do recurso             

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal, por ordem lógica da sua apreciação, consistem em saber:         

i) Se o inventário para partilha de bens comuns do casal deve correr por apenso à ação de divórcio;
ii) Da (in)devida remessa das partes para os meios comuns quanto ao alegado crédito invocado pelo cabeça de casal sobre a interessada; e, em caso de improcedência desta questão,
iii) Da suspensão (da instância) do processo de inventário até decisão definitiva a proferir em ação autónoma, sobre a matéria controvertida.
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IV. Fundamentação de facto.

As incidências fáctico-processuais relevantes para a decisão do presente recurso são os que decorrem do relatório supra – que por brevidade aqui se dão por integralmente reproduzidos.
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V. Fundamentação de direito.                      

1. Se o inventário para partilha de bens comuns do casal deve correr por apenso à ação de divórcio.
1.1. Antes propriamente de entrarmos na apreciação da questão supra enunciada importa apreciar e decidir a invocada nulidade da primeira parte da decisão recorrida por falta de fundamentação (art. 615º, n.º 1, al. b), do CPC).
Em termos breves e sintéticos dir-se-á que, mesmo que eventualmente se possa dizer que a fundamentação da decisão que indeferiu a apensação do processo de inventário ao processo de divorcio é escassa, diminuta e incompleta, a verdade é que não poderá dizer-se que ocorre completa ausência ou falta de fundamentação, o que sempre nos reconduziria à inverificação da invocada nulidade da sentença. Como é sabido, só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade ou erroneidade – integra a previsão da al. b) do n.º 1 do art. 615.º do CPC.
Termos em que, sem mais, se tem no caso por inverificada a aludida causa de nulidade da primeira parte da decisão recorrida.
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1.2. Os presentes autos de inventário foram instaurados em 14-04-2023.
A Lei n.º 117/2019, de 13-09, com entrada em vigor a 01-01-2000, reintroduziu o processo de inventário judicial no Código de Processo Civil (arts. 1082.º a 1135.º do CPC), revogando o regime jurídico do processo de inventário instituído pela Lei n.º 23/2013, de 05-03.
O processo de inventário subsequente ao decretamento do divórcio ou da separação judicial de pessoas e bens ou à declaração de nulidade ou anulação do casamento é da exclusiva competência dos tribunais judiciais, por constituir dependência de outro processo judicial (art. 1083º, n.º 1, al. b) do CPC).
Esse inventário constitui um desenvolvimento ou uma consequência de uma decisão judicial, estando por isso legalmente relacionado com a causa em que foi proferida a decisão que pôs termo ao casamento ou que decretou a separação.
O citado art. 1083º não reproduz a norma que constava do art. 1404º, n.º 3, do CPC, na redação do Dec. Lei n.º 329-A/95, de 12/12, que estabelecia que o inventário corria por apenso ao processo de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação, conforme a situação.
Esta norma foi revogada, após a alteração da regulação do inventário pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro.
O que não significa que deixe de haver dependência entre os dois processos.
Como estipula o art. 1133.º, n.º 1, do CPC: «Decretada a separação judicial de pessoas e bens ou o divórcio, ou declarado nulo ou anulado o casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens comuns».
Por sua vez, estabelece o art. 206.º, n.º 2, do CPC: «As causas que por lei ou por despacho devam considerar-se dependentes de outras são apensadas àquelas de que dependam».
Em termos organização judiciária rege o art. 122.º, n.º 2, da Lei n.º 62/2013, de 26/08 (Lei da Organização do Sistema Judiciário – LOSJ), que estende a competência dos juízos de família e menores aos «processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos».
Coloca-se, assim, o problema de determinar a competência por razões de conexão dos processos e não em razão da matéria; concretamente, a conexão entre o inventário e o processo judicial de que emergiu a sentença que legitima a separação do acervo comum do casal.
Sobre a concreta questão em apreço Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres pronunciam-se nos termos seguintes[1]:
«Apesar da referida omissão [a não reprodução pelo art. 1083º da norma do art. 1404º, n.º 3, do CPC, na redação do Dec. Lei n.º 329-A/95], o inventário para partilha de bens comuns não deixou de constituir dependência de uma acção matrimonial (designadamente, de um processo de divórcio), já que o mesmo se configura como decorrência ou consequência da sentença que dissolveu ou considerou inválido o casamento ou que decretou a separação de pessoas e bens. Opera, por isso, o efeito de conexão estabelecido no art. 206.º, n.º 2, nos termos do qual as causas que por lei ou por despacho devam considerar-se dependentes de outras são apensadas àquelas de que dependam.
Aliás, esta dependência do inventário perante a antecedente acção matrimonial resulta da norma que regula o tribunal que é materialmente competente para esse inventário. A competência material encontra-se atribuída aos juízos de família e menores nos termos seguintes: Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos”. Ou seja: o conceito de dependência está associado a situações em que a instauração do inventário para partilha de bens comuns é desencadeada pelo que ocorre num outro processo judicial.
Isso é o que acontece com a separação de meações que é realizada por apenso do processo executivo (arts. 740.°, n." 2, e 741.°, n.º 6) ou do processo de insolvência (art. 141.°, n.º 1, al. b). CIRE). Também assim é com os inventários que sejam consequência de sentença proferida num processo matrimonial. É o que ocorre com as seguintes sentenças: sentença de divórcio ou de separação de pessoas e bens sem consentimento do outro cônjuge (art. 932.°); sentença de divórcio ou de separação de pessoas e bens por mútuo consentimento quer nas situações em que o processo tenha sido instaurado no tribunal (art. 1773.°, n.º 2, CC), quer nos casos em que o processo, instaurado como divórcio sem consentimento do outro cônjuge, tenha sido convertido, por acordo das partes, em divórcio por mútuo consentimento (art. 931.°, n.º 3); por fim. sentença de anulação do casamento. Principalmente agora que foi restaurada a competência dos tribunais judiciais para a tramitação dos processos de inventário (art. 1083.°, n.º I), faz todo o sentido que os processos de inventário que sejam consequência de uma decisão judicial que tenha decretado o divórcio ou a separação de pessoas e bens ou que tenha anulado o casamento devam ser tramitados nesses tribunais.
Deste modo. os inventários subsequentes a sentenças proferidas pelos tribunais judiciais decretando o divórcio ou a separação de pessoas e bens ou anulando o casamento, para além de serem da competência exclusiva dos tribunais judiciais art. 1083.°, n.º 1, aI. b)), correm por dependência dos respectivos processos e a eles devem ser apensados (art. 206.°, n.º 2). Afinal o inventário é dependente de outro processo judicial, porque a partilha de bens é consequência do decidido neste processo. Como a competência para as acções matrimoniais é atribuída aos juízos de família e de menores (art. 122º. n.º 1. als. c) e d), LOSJ), a eles compete também tramitar, por apenso, os inventários subsequentes quer pela via do art. 122º. n.º 2, LOSJ (devidamente interpretado em função de ter sido restaurada a competência dos tribunais judiciais para o processo de inventário). quer pela do art. 206.º, n.º 2».
Essa é igualmente a posição que reúne largo consenso na jurisprudência dos Tribunais da Relação[2] [3].
Como se explicitou no Ac. da RE de 09-06-2022 (relatora Maria Adelaide Domingos), www.dgsi.pt., considerando o supra referido, a interpretação da lei vigente que melhor respeita a unidade do sistema jurídico, bem como a celeridade processual, em nosso entender, é aquela que, levando em conta a competência exclusiva dos tribunais judiciais para tramitar o inventário requerido na sequência de divórcio judicial, conclui que, competindo aos juízos de família e menores preparar e julgar ações de separação de pessoas e bens e de divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, também lhes compete tramitar, por apenso, os processos de inventário que deles decorram, nos termos dos arts. 122.º, n.º 2, da LOSJ, e 206.º, n.º 2, do CPC.
Em face de todo o exposto, a interpretação da lei que vem sendo referida é aquela que melhor se enquadra no quadro legal vigente, pelo que procede este fundamento da apelação, revogando-se nessa parte a decisão recorrida.
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2. Da (in)devida remessa das partes para os meios comuns quanto ao alegado crédito invocado pelo cabeça de casal sobre a interessada.

O recorrente questiona a bondade da decisão que remeteu as partes para os meios comuns sobre a questão atinente à verba n.º 6 do passivo, aduzindo para o efeito que a mesma obsta «a que se realize no processo de inventário subsequente ao divórcio, a compensação do seu crédito sobre a Interessada, designadamente, numa eventual e hipotética situação de tornas que haveria de pagar, em de face do resultado de umas supostas licitações», sendo que a «questão a apreciar e dirimir e que constitui objeto do presente recurso, tem natureza fulcral e é suscetível de afetar os ulteriores termos do processo de inventário», e as «diligências requeridas pelo cabeça de casal, em complemento à prova documental já produzida, não revestem especial complexidade ou morosidade».
Vejamos se lhe assiste razão.
Em consequência da dissolução do casamento, cessam as relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges, salvo as decorrentes da obrigação de alimentos, conforme dispõe o art. 1688.º do Código Civil (CC); o divórcio dissolve o casamento, extingue a relação matrimonial e faz cessar, para o futuro, os efeitos da relação, mantendo-se, porém, os efeitos já produzidos (art. 1788º do CC); os efeitos do divórcio produzem-se, em regra, a partir do transito em julgado da respetiva sentença, mas retrotraem-se à data da propositura da ação quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges (art. 1789º, n.º 1, do CC).
Segue-se, em regra, a partilha do património comum de acordo com o regime de bens que vigorou entre os cônjuges.
Decretado o divórcio, ou declarado nulo ou anulado o casamento, e não se verificando acordo para a partilha, qualquer dos cônjuges pode requerer inventário para partilha dos bens comuns (art. 1133º, n.º 1, do CPC).
Assim, o inventário regulado no art. 1133º do CPC pode ter por função obter a partilha dos bens comuns do casal, na sequência do trânsito em julgado de sentença de divórcio, da separação judicial de pessoas e bens ou de sentença de declaração de nulidade ou de anulação do casamento (art. 1082º, al. d), do CPC).
O regime processual do inventário para partilha dos bens comuns tem de se harmonizar com o regime substantivo, designadamente com as disposições dos arts. 1689º e 1697º do Cód. Civil[4].
Da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal deve constar, além do mais, o passivo do património conjugal. Integram este passivo[5]:
i) As compensações devidas pelo património comum aos patrimónios próprios de cada um dos cônjuges, ou seja, as dívidas do património comum aos patrimónios próprios (art. 1726º, n.º 2, do CC);
ii) As dívidas de cada um dos ex-cônjuges perante terceiros (arts. 1691º, 1693º, n.º 2, e 1696º, do CC);
iii) As dívidas de cada um dos ex-cônjuges perante o outro (arts. 1689º, n.º 3, 1681º, 1682º, n.º 4, 1695º, n.º 1 e 1697º, n.º 1, do CC). Nestas dívidas só relevam aquelas que respeitem à partilha dos bens comuns, que são apenas aquelas que devam ser levadas em conta na meação de cada um dos ex-cônjuges e que, por isso, sejam, não tanto dívidas do ex-cônjuge, mas antes dívidas da sua meação.
Na verdade, no decurso da sociedade conjugal algumas vezes os cônjuges tornam-se reciprocamente devedores entre si, situação que se verifica, designadamente, sempre que por bens próprios de um deles se dá pagamento, total ou parcial, a dívidas da exclusiva responsabilidade do outro, ou mesmo que da responsabilidade comum (art. 1697º do CC), ou quando, tratando-se de dívida da responsabilidade solidária de ambos, um dos cônjuges satisfez voluntariamente maior quantia que o outro[6].
Outras situações ocorrem na previsão do art. 1681º do CC, relevando para o caso a prevista no n.º 1, nos termos do qual, se é certo que o cônjuge administrador dos bens comuns ou próprios do outro cônjuge, ao abrigo do disposto nas alíneas a) a f) do n.º 2 do art. 1678.º, não é obrigado a prestar contas da sua administração, já “responde pelos actos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge”.
O que significa que o cônjuge administrador se constitui em devedor do outro cônjuge, em especial na partilha do património comum.
Donde haja quem defenda que tal relação obrigacional de crédito/débito deve ser objeto da relação de bens[7], em vez de se esperar pela propositura de acção autónoma; o que não significa, porém, que o juiz não possa, se ocorrer circunstância justificativa, remeter os interessados para os meios comuns para definição quer da existência, quer da quantificação da obrigação[8].
Destinando-se o inventário a partilhar o património comum do ex-casal, mas antes disso há que liquidar o passivo desse mesmo património.

As regras gerais a observar na liquidação do património conjugal estão previstas no art. 1689.º (Partilha do casal. Pagamento de dívidas) do CC, no qual se prescreve:

«1. Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros recebem os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este património.
2. Havendo passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao valor do património comum, e só depois as restantes.
3. Os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge devedor no património comum; mas, não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor».

E, no tocante ao pagamento de dívidas do casal, o art. 1697º do CC estatui a compensação nos seguintes termos:

«1. Quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer; mas este crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal, a não ser que vigore o regime da separação.
2. Sempre que por dívidas da exclusiva responsabilidade de um só dos cônjuges tenham respondido bens comuns, é a respectiva importância levada a crédito do património comum no momento da partilha».

A partilha numa acepção ampla compõe-se de três operações básicas: a separação de bens próprios como operação preliminar; a liquidação do património comum, destinada a apurar o valor do activo comum líquido, através do cálculo das compensações e da contabilização das dívidas a terceiros e entre os cônjuges; e a partilha propriamente dita.
A liquidação do património comum depende, assim, do cálculo de compensações, das dívidas a terceiros e das dívidas entre os cônjuges[9].
Se assim é, dada a especificidade do inventário da partilha de bens comuns que comporta a par das dívidas a terceiros e créditos sobre estes, as compensações de patrimónios (comum e próprios), as dívidas entre os cônjuges, ou seja, entre os patrimónios próprios de cada um dos cônjuges, então, da relação de bens, terão de constar, não só as posições activa e passiva do património comum em relação a terceiros, como também as compensações entre património comum e próprios, bem como as dívidas recíprocas dos cônjuges se não tiverem sido saldadas ao longo da vida conjugal, na medida em que, não tendo ocorrido esse pagamento, é no momento da partilha do património comum que tal deve ocorrer[10]. E para tal é necessário que a relação de bens contemple esses créditos ou compensações.
A questão não é, porém, pacífica, visto uma outra corrente doutrinária e jurisprudencial sustentar que, no que concerne às dividas da responsabilidade de um dos cônjuges, as mesmas não devem ser relacionadas[11], podendo o cônjuge em causa ser acionado pelo credor em ação comum[12].
Nesse sentido o acórdão do STJ de 02/05/2012 (relator Azevedo Ramos), in www.dgsi.pt., onde se concluiu, ente o mais, que «[t]endo o cabeça da casal levantado aplicações financeiras (bem comum), antes da propositura da acção de divórcio, não tem que relacionar metade do seu valor, podendo o ex-cônjuge, se se sentir prejudicado, propor acção de indemnização de perdas e danos, nos termos do art. 1681, n.º 1, parte final, do C.C.»
A ação que a tal corresponderá será uma “acção de indemnização por perdas e danos”, a instaurar, sendo disso caso[13].
Tendo presente que a questão enunciada não é incontroversa, vejamos agora o caso concreto.
No caso em apreço, o cabeça de casal arroga-se detentor de um crédito sobre a ex-cônjuge, que relacionou sob a Verba nº. 6 do Passivo, correspondente ao “Valor das quantias monetárias retiradas pela interessada CC, da conta de depósitos à ordem do casal, identificada na Verba nº. 1 do Ativo, no período compreendido entre os anos de 2012 e de 2021, através de sucessivos levantamentos em dinheiro e transferências bancárias realizadas para contas exclusivamente tituladas pela interessada, bem como para contas bancárias tituladas por terceiros e, ainda, através da não realização da transferência do valor mensal dos seus rendimentos do trabalho, ali domiciliados, sem qualquer justificação e sem o conhecimento e autorização do interessado BB, que do mesmo apenas tomou conhecimento após a data da separação do casal, num total de cento e vinte e três mil duzentos e sessenta e sete euros e quarenta cêntimos….123.267,40 Euros”, ulteriormente rectificada para o valor de 168.375,09 Euros e situando o início da conduta imputada à interessada no ano de 2007.
A interessada AA impugnou expressamente essa verba e a respetiva alegação, dizendo não corresponder à verdade (art. 1104º, n.º 1, als. d) e e), do CPC)
No despacho recorrido o Tribunal “a quo” decidiu que esta questão, de saber se existe o alegado direito de crédito do cabeça de casal sobre a interessada AA, relevando para efeitos do disposto no art. 1681.º, n.º 1, do CC, sendo controvertida e atenta a natureza e a extensão matéria em causa e dos meios probatórios envolvidos, deverá ser apreciada e dirimida nos meios comuns, competindo ao cabeça-de-casal alegar e demonstrar, «querendo, que a ex-cônjuge actuou, intencionalmente, ao longo de nove anos, em seu detrimento e prejuízo, levantando quantias em dinheiro comuns do casal».
Através do presente recurso o recorrente questiona a bondade da decisão que remeteu as partes para os meios comuns sobre essa questão controvertida, aduzindo para o efeito que a mesma tem natureza fulcral e é suscetível de afetar os ulteriores termos do processo de inventário, sendo que as diligências requeridas pelo cabeça de casal, em complemento à prova documental já produzida, não revestem especial complexidade ou morosidade e a remessa da apreciação de tal matéria para os meios comuns implicaria, além do mais, a necessidade de propositura de uma ação autónoma, com todos os incómodos e elevados encargos que tal acarretaria ao cabeça-de-casal.
A questão controvertida consiste, pois, em saber se, no período compreendido entre 2007 e de 2021, a interessada retirou de uma conta de depósitos à ordem do casal valores monetários em detrimento do casal ou do outro cônjuge, agindo intencionalmente.
Em termos substantivos está em causa o apuramento da responsabilidade civil do cônjuge administrador perante o outro cônjuge, intencionalmente prejudicial, o que nos remete para o regime previsto no art. 1681º, n.º 1, parte final, do CC.
Dispõe este preceito, no seu n.º 1, que o «cônjuge que administrar bens comuns ou próprios do outro cônjuge, ao abrigo do disposto nas alíneas a) a f) do n.º 2 do artigo 1678.º, não é obrigado a prestar contas da sua administração, mas responde pelos actos intencionalmente praticados em prejuízo do casal ou do outro cônjuge».
A regra da irresponsabilidade do cônjuge administrador é excecionada com a atuação culposa, na modalidade de dolo[14] (directo, necessário ou mesmo eventual), não podendo fundamentar pedidos de indemnização os actos meramente culposos[15]
Limita-se a responsabilidade do cônjuge administrador aos atos dolosos, praticados intencionalmente em prejuízo do casal ou do outro cônjuge. Afasta-se, assim, por um lado, a responsabilidade baseada em meras omissões e, por outro lado, em caso de mera culpa ou negligência, exigindo-se uma culpa qualificada do agente. O objetivo desta irresponsabilização parcial é o de evitar a litigiosidade na constância da relação matrimonial[16].

Vejamos, agora, o quadro legal do processo de inventário.

«Artigo 1091.º
Incidentes
1 - Aos incidentes do processo aplica-se, salvo indicação em contrário, o disposto nos artigos 292.º a 295.º
2 - A dedução de um incidente implica a suspensão da instância sempre que o juiz assim o determinar, por considerá-la conveniente, e fixar o momento a partir do qual a mesma opera.
Artigo 1092.º
Suspensão da instância
1 - Sem prejuízo do disposto nas regras gerais sobre suspensão da instância, o juiz deve determinar a suspensão da instância:
a) (…);
b) Se, na pendência do inventário, forem suscitadas questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados diretos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas;
c) (…);
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, o juiz remete as partes para os meios comuns, logo que se mostrem relacionados os bens.
3 - O tribunal pode, a requerimento de qualquer interessado direto, autorizar o prosseguimento do inventário com vista à partilha, sujeita a posterior alteração em conformidade com o que vier a ser decidido:
a) Quando os inconvenientes no diferimento da partilha superem os que derivam da sua realização como provisória;
(…)».
«Artigo 1093.º
Outras questões prejudiciais
1 - Se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.
2 - A suspensão da instância no caso previsto no número anterior só ocorre se, a requerimento de qualquer interessado ou oficiosamente, o juiz entender que a questão a decidir afeta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha».
Em anotação ao (novo) regime do processo de inventário, Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres escrevem o seguinte[17]:
O novo modelo do processo de inventário continua a prever a remessa das partes para os meios comuns quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão prejudicial não se compatibilize com a sua apreciação incidental (arts. 1092º,1, al. b, 1093º,1 e 1095º,1), nomeadamente porque as limitações decorrentes do disposto nos arts. 292º a 295º (aplicáveis ex vi do art. 1091º) afectariam as garantias das partes.
A necessidade desta remessa para os meios comuns é consequência, sob um ponto de vista formal, da estrutura do processo de inventário, e da resolução de inúmeras questões controvertidas em incidentes nominados ou inominados e, sob uma perspectiva substancial, do tipo de questões prejudiciais que podem surgir no processo de inventário (como as respeitantes à interpretação ou validade de um testamento ou à indignidade sucessória de um herdeiro). Estas questões podem ser complexas em matéria de facto, mas o que realmente justifica a remessa dos interessados para os meios comuns não é tanto esta complexidade, mas muito mais a garantia de um processo equitativo a esses interessados”.
E, em nota prévia aos arts. 1092º e 1093º do CPC, os citados autores referem[18]:
 “Os arts. 1092º e 1093º contêm regras verdadeiramente nucleares do regime do inventário, pois que é do disposto neles que depende o que pode ser decidido e o que, apesar de ser relevante para a realização da partilha, não vai ser decidido no processo de inventário.
A diferença entre o art. 1092º e o art. 1093º é a seguinte:
- o art. 1092º refere-se às questões prejudiciais essenciais, que são aquelas que respeitam à admissibilidade do inventário e à definição dos direitos dos interessados na partilha (cf. art. 1092º,1, b);
- o art. 1093º respeita às questões prejudiciais não essenciais, isto é, àquelas que se referem à determinação do activo e do passivo do património a partilhar (cf. art. 1093º,1);
Em comentário ao art. 1092º, n.º 1, al. b),  do CPC acrescentam[19]:
Para efeito da aplicação do n.º 1, al. b), as questões prejudicais surgidas na pendência do inventario – (…) – só relevam se respeitarem à admissibilidade do próprio processo de inventário ou à definição dos direitos sucessórios ou quotas ideais dos interessados diretos na partilha.
Não relevam aqui as questões que apenas respeitem à determinação dos bens que integram o acervo hereditário (cf. →art. 1093.º)”.
E, em anotação ao art. 1093º do CPC, os citados autores consignam[20]:
“As questões prejudiciais abrangidas pelo nº 1 são, fundamentalmente, aquelas que, não dizendo respeito à definição dos direitos sucessórios das partes do processo, se repercutam na determinação quer dos bens que integram o acervo hereditário, quer do passivo pelo qual é responsável o património a partilhar. O nº 1 abrange, por exemplo, os casos em que certo bem foi relacionado pelo cabeça-de-casal como pertencendo à herança ou como tendo determinado conteúdo ou objecto material, mas contra essa relacionação foi deduzida reclamação ou impugnação por qualquer interessado (artº 1104º, nº 1, al. d))
(…)
Sempre que a questão prejudicial respeite apenas a bens que integram o acervo hereditário ou o passivo que onera este acervo, a regra é a de que o juiz – como decorrência do principio segundo qual o Tribunal competente para a ação é também competente para conhecer os incidentes que nela se levantam (art. 91º, nº 1) – deve dirimir todas as questões suscitadas e convertidas que se revelem indispensáveis para alcançar o fim do processo, ou seja, uma partilha equitativa da comunhão hereditária.
No entanto, a apreciação incidental, no âmbito do processo de inventário, das questões atinentes à determinação dos bens que integram o património hereditário ou ao passivo deste património nem sempre será possível ou conveniente:
a) O n.º 1 admite que o juiz se possa abster de decidir incidentalmente a questão litigiosa e remeter as partes para os meios comuns, quando a complexidade da matérias de facto subjacente à questão tornar inconveniente, na óptica das garantias de que as partes beneficiam no processo declarativo comum, a sua apreciação e decisão no processo de inventário, atendendo à tramitação simplificadas e às limitações probatórias (que quase só não existem para a prova documental) que caracterizam as decisões tomadas ao abrigo do disposto nos – arts. 1105º, n.º 3, e 1110º, n.º 1, al. a).
Apenas tem justificação a remessa dos interessados para os meios comuns quando, estando unicamente em causa a complexidade da matéria de facto, a tramitação do processo de inventário se revele inadequada. Para que isso suceda é necessário que a tramitação do processo implique uma efetiva diminuição das normais garantias que estão asseguradas às partes no processo declarativo comum (n.º 1). A diminuição destas garantias reflete-se na impossibilidade de se alcançar uma apreciação e decisão ponderadas em questões que envolvam larga indagação factual ou probatória.
Nas palavras de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa[21], em anotação ao art. 1092º do CPC, “este artigo (1092º) cura da interferência na marcha do inventário de acções pendentes e da necessidade de suspender a instância com fundamento na discussão externa de questões prejudiciais respeitantes à admissibilidade do inventário ou à definição de direitos de interessados directos na partilha. Fora deste círculo (e da eventualidade de haver nascituros interessados, nos termos do nº 1, alínea c)), em que se verifica uma prejudicialidade “forte”, tendo em conta o reflexo que a decisão a proferir noutra acção é susceptível de produzir no processo de inventário, é de aplicar o regime do art. 1093º.
A conexão com o art. 1093º permite concluir que qualquer questão relacionada com a admissibilidade do processo de inventário ou com a definição de direitos de interessados directos na partilha terá de ser decidida no próprio processo, não podendo os interessados ser remetidos para os meios comuns. A lei apenas concede a possibilidade de suspensão da instância do inventário, aguardando o que, com reflexos na resolução de tais questões, esteja sob discussão noutra acção pendente ou não deva ser incidentalmente decidido no inventário”.
E, em anotação ao art. 1093º do CPC, explicitam[22]: “[q]ualquer questão relacionada com a admissibilidade do processo de inventário ou com a definição de direitos de interessados directos na partilha terá de ser decidida no próprio processo. Embora deva ou possa ser determinada a suspensão da instância, nos termos do art. 1092º, os interessados não podem ser remetidos para os meios comuns quanto a tais questões, que são imanentes ao próprio processo de inventário”.
(…) Todavia, podem suscitar-se no âmbito do processo de inventário questões de outra natureza, designadamente conexas com os bens relacionados e/ou com direitos de terceiros para cuja resolução se revelem inadequados os constrangimentos inerentes ao processo de inventário (cf. art. 1091º, n.º 1, quando remete para o regime dos incidentes da instância), cuja tramitação difere substancialmente da prevista para o processo comum ou para outros processos especiais. Nestas situações, embora a apreciação de tais questões não seja excluída em absoluto do processo de inventário, segundo a regra geral do art. 91º, n.º 1, o litígio pode envolver larga indagação fáctica ou a produção demorada de meios de prova, podendo justificar a remessa dos interessados para os meios comuns.
(…) Destacam-se os casos em que para a apreciação das questões se revele inadequada a tramitação do processo de inventário para assegurar as garantias dos interessados, tendo em conta designadamente as restrições probatórias ou a menor solenidade associada a uma tramitação de cariz incidental. Tal poderá ocorrer, por exemplo, quando esteja em discussão a área ou os limites de um imóvel envolvendo divergências com terceiros, a arguição da invalidade da venda de bens relacionados no processo de inventário, a invocação por parte de terceiro ou de um herdeiro, da aquisição por usucapião de um bem relacionado (cf. nº 5 do art. 1105º), a alegação da acessão industrial imobiliária sobre um imóvel relacionado (cf. art. 1339º CC) ou a dedução de um crédito ou de uma dívida da herança relacionada  com a realização de benfeitorias”.
A “resolução, no âmbito do processo de inventário, de questões de natureza incidental obedece a uma tramitação menos solene do que a consagrada para o processo comum e mesmo para certos processos especiais, designadamente no que concerne aos meios probatórios admissíveis (arts. 1091 e 1105º, n.º 3), o que poderá justificar que não sejam sacrificados os valores da segurança e da justiça em função da maior celeridade na conclusão do processo de inventário. Para o efeito, será importante apreciar as razões apresentadas, quer no sentido da resolução incidental das questões, quer dos benefícios da remessa para os meios comuns”.
E mais adiante: “a opção de remessa para os meios comuns não pode ser orientada por meras razões de comodidade ou de facilitismos, apenas se justifica quando, estando unicamente em causa a complexidade da matéria de facto (situação diversa daquela em que a complexidade respeite a questões de direito que devem ser apreciadas pelo juiz no próprio processo de inventário, nos termos do art. 91º, n.º 1), a tramitação do inventário se revele inadequada, por implicar, designadamente, uma efectiva redução das garantias dos interessados, por comparação com o que pode ser alcançado através dos meios comuns”.
A decisão incidental das reclamações em sede de inventário não pressupõe necessariamente que as questões suscitadas possam ser objeto, pela sua simplicidade, de uma indagação sumária, mediante apenas certos tipos de prova, “maxime” documental, seguida de decisão imediata: a regra é a de que o tribunal da causa tem competência para dirimir todas as questões que importem à exata definição do acervo hereditário (leia-se bens comuns) a partilhar, podendo no entanto, excecionalmente, em caso de particular complexidade da matéria de facto a apreciar – e para evitar redução das garantias das partes –, usar da possibilidade prevista no estatuído no n.º 1 do art. 1093º do CPC[23].
E faz sentido que assim seja, que seja destacada na lei a complexidade da matéria de facto a apreciar – e não a matéria jurídica –, dado que é a prova da matéria de facto subjacente às questões suscitadas (que as partes têm o ónus de alegar e provar), que pode tornar-se mais difícil para as partes, com as necessárias limitações das provas a produzir no incidente do processo de inventário, questão também realçada no n.º 1 do art. 1093º do CPC, de que a inconveniência da apreciação da matéria de facto implique a redução das garantias das partes[24].
No caso dos autos estamos perante situação que se subsume ao citado art. 1093º do CPC.
Na verdade, o que está em discussão no caso sub júdice diz respeito a dívidas dos cônjuges entre si, o que não se prende com a “admissibilidade do processo de inventário” ou com a “definição de direitos de interessados na partilha” – quer no que respeita à titularidade dos seus direitos, quer no que respeita à definição da sua quota.
Dito de outra forma: a concreta definição do crédito invocado por um dos cônjuges perante o outro não constitui qualquer questão prejudicial de cuja resolução esteja dependente a admissibilidade do inventário ou a definição dos direitos dos interessados diretos na partilha.
Estando em causa no caso concreto a reclamação contra a relação de bens, mais especificamente discutindo-se a verificação da verba n.º 6 do passivo – correspondente a um crédito que o cabeça de casal se arroga sobre o ex-cônjuge –, e analisando o requerimento de reclamação [ref.ª ...83 (22/06/2023)], bem como a resposta do cabeça de casal [ref.ª ª ...58 (11/09/2023)], dir-se-ia, à partida, e em face do que foi estritamente alegado pelos interessados, que o incidente em apreço, no tocante àquela concreta questão prejudicial em discussão, não envolve larga ou extensa indagação fáctica.
Trata-se, no entanto, de falsa aparência, posto que aquele juízo tem como pressuposto a parca, exígua e genérica matéria fáctica alegada pelo cabeça-de-casal.
Efetivamente, por referência ao crédito de que o recorrente se arroga titular sobre o ex-cônjuge – que tem por objeto a responsabilidade civil do cônjuge administrador perante o outro cônjuge –, tal pressuporá a alegação concreta e circunstanciada de factos donde se retire que a ora recorrida, na constância do casamento, mais concretamente no (largo/longo) período temporal compreendido entre os anos de 2007 e 2021, retirou ou apropriou-se da conta de depósitos à ordem do casal as quantias monetárias genérica e globalmente indicadas, sem o conhecimento e à total revelia do recorrente, o que fez com o propósito de o prejudicar (cfr. art. 1681.º, n.º 1, do CC).
 Para tanto será indispensável que o ex-cônjuge que se arroga credor alegue, especificada e individualizadamente, i) os sucessivos e continuados “levantamentos feitos sem qualquer justificação” (mediante a alegação das respetivas datas e valores), ii) as transferências bancárias realizadas para outras contas, designadamente tituladas ou co-tituladas por terceiros (igualmente mediante a alegação das respetivas datas e valores individualizados), iii) a indicação das concretas quantias em numerário entregues à reclamante pelo cabeça de casal para realização de depósitos na conta do casal e que não foram por aquela efetivados (com a sua circunstanciação temporal, bem como quantitativa), assim como iv) os concretos valores das remunerações auferidas pela reclamante e que não foram transferidas para a conta do casal.
A isto acresce – por ser imprescindível à verificação da responsabilidade do cônjuge administrador (cfr. art. 1681.º, n.º 1, parte final, do CC) – a alegação de factos que corporizem o referido elemento subjetivo da responsabilidade, o dolo, o que foi genérica e globalmente indicado.
Atento o largo período temporal balizador dos factos em apreço – cerca de 14 anos –, os “inúmeros e sucessivos movimentos bancários” genericamente alegados – sendo de salientar que a pretensão do recorrente tem por objeto o escrutínio da quase totalidade dos múltiplos levantamentos bancários feitos pela recorrida nesse arco temporal –, indevidos na alegação do recorrente, que ao longo daqueles anos a recorrida realizou através da conta bancária de depósitos à ordem do casal em seu proveito próprio – não sendo forma adequada e válida de alegar a respectiva facticidade a mera remissão para documentos juntos aos autos, seja mapas informaticamente elaborados pelo recorrente, seja extratos/elementos bancários, impondo-se que o recorrente articule especificada e individualizadamente tais operações (art. 5º, n.º 1, do CPC) –, é de reconhecer que a questão controvertida – quer sobre a verificação da existência do crédito, quer sobre o seu montante – envolve larga, extensa e complexa indagação da matéria fáctica.
É igualmente de admitir que a demonstração dos factos controvertidos demande extensa e múltipla prova a produzir, com eventual necessidade de solicitar à(s) entidade(s) bancária(s) os necessários documentos comprovativos.
E ainda que se reconheça que a prova documental possa assumir uma predominância na demonstração dos factos controvertidos, afigura-se-nos, porém, que a mesma por si só será insuficiente para ver reconhecido o crédito indemnizatório de que o recorrente se arroga titular, visto lhe incumbir o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos da responsabilidade civil do cônjuge administrador, mormente o referido elemento subjetivo (arts. 1681º, n.º 1, parte final, e 487º, n.º 1, ambos do CC).
Atente-se que as questões relacionadas com a responsabilidade civil por administração de bens do outro cônjuge envolvem a alegação de factos complexos, com a correspondente produção de prova, não compaginável com a prova incidental a produzir no âmbito do processo de inventário.
Ou seja, a questão em discussão, por referência à matéria de facto e à indagação probatória (e não à matéria de direito), é demasiado complexa para ser dirimida de modo sumário no presente inventário, advindo uma redução das garantias dos interessados. O mesmo será dizer que a complexidade da matéria fáctica subjacente à natureza da matéria controvertida afigura-se de complicada e demorada averiguação, fundamentada em provas minuciosas, complicadas e exaustivas e não de fácil indagação. Não é por isso conveniente a sua apreciação no processo de inventário.
Deve ter-se presente que o art. 1093º, n.º 1, do CPC, não atribui um poder discricionária ao juiz quanto à remessa dos interessados para os meios comuns. Assim, se entender que a matéria de facto a apreciar é complexa e, por isso, não é conveniente a sua apreciação no processo de inventario, o juiz não pode deixar de remeter os interessados para os meios comuns[25].
Tal exclui desde logo a prolação de qualquer despacho convite, atenta a inviabilidade da questão poder ser dirimida no processo de inventário.
Por outro lado, da remessa para os meios comuns nenhum prejuízo advirá aos interessados, pois aí usufruirão dos mais amplos meios de prova, sem subordinação aos limites definidos nos arts. 294º, n.º 1, do CPC “ex vi” do art. 1091º, ambos do CPC
Tendo, pois, presente o “objeto” da indicada divergência do(s) interessado(s), a conclusão que se pode já extrair é a de que tal matéria fáctica se reveste de complexidade, a ponto de justificar a remessa dos interessados para os meios comuns, uma vez que há necessidade de levar a cabo a produção de provas que o processo de inventário não comporta. A decisão de qualquer questão em processo de inventário deve revestir-se com um grau de elevada certeza sobre a existência ou inexistência dos bens reclamados, com conclusão segura e consciente, não discricionária, que não se compadece, a maior parte das vezes, com uma averiguação sumária[26].
Num caso como o dos autos, em que se questiona a responsabilidade civil por administração de bens do outro cônjuge, intencionalmente prejudicial – típica de uma acção de indemnização de perdas e danos –, com vista a aferir da existência do crédito de um cônjuge sobre o outro, cremos verificar-se a dita complexidade ou natureza da matéria de facto que está subjacente à referida interpretação que justifica o recurso aos meios comuns dada a necessidade de haver lugar a uma produção de prova aturada e exaustiva o que não é compatível com o presente processo de inventário.
Nesta conformidade, afigura-se que a opção de remessa destas matérias para os meios comuns é materialmente justificada e incontornável, sendo seguramente uma decisão prudente e avisada, quando o que está em causa supõe naturalmente uma necessária amplitude de garantias processuais, traduzidas na livre possibilidade de apresentação dos meios probatórios e da sua efetiva contradição, bem como na realização, judiciosa e pormenorizada, de audiência de julgamento, tudo nos moldes genericamente previstos para as ações declarativas comuns, que extravasa totalmente os termos processualmente confinados, simplificados e relativamente condicionados da resolução das referidas questões de facto e de direito em sede meramente incidental.
Assim, tem-se por adequado o segmento do despacho recorrido que remeteu os interessados para os meios comuns.
*
3. Da suspensão (da instância) do processo de inventário até decisão definitiva a proferir em ação autónoma, sobre a matéria controvertida.
Para a hipótese da manutenção da decisão que remeteu para apreciação através dos meios comuns a questão atinente ao crédito de que o cabeça de casal se arroga sobre a interessada, defende o recorrente que sempre a Mm.ª Juíza “a quo” deveria ter «ordenado a suspensão da Instância até decisão a proferir sobre a matéria controvertida e que, em si, é fulcral no âmbito da partilha em presença e, como tal, configura uma questão prejudicial, tudo nos termos fixados no artº. 1092º. do Código do Processo Civil».
Impõe-se um breve parêntesis para assinalar que o suporte legal da decisão que remeteu as partes para os meios comuns é – nos termos já supra explicitados – o art. 1093º do CPC, e não, como propugnado pelo recorrente, o art. 1092º, n.º 1, al. b), n.º 2, do CPC.
Pois bem, ao invés do que ocorre nos casos abrangidos pelo art. 1092º, n.º 1, do CPC, a remessa para os meios comuns decretada ao abrigo do n.º 1 do art. 1093º do CPC não implica, em regra, a suspensão da instância.
Esta só deverá ser declarada, a requerimento de qualquer interessado ou oficiosamente, se o juiz entender que a questão a decidir afeta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha que irá realizar-se no processo de inventário (n.º 2 do art. 1093º, do CPC).
Esse critério da “utilidade prática da partilha” serve para determinar em que condições se deve suspender o inventário – e, portanto, não realizar a partilha – antes da decisão da questão prejudicial nos meios comuns.
Para tal efeito, importa ponderar nomeadamente o peso do bem ou do direito sobre que versa o litígio autónomo no computo global do acervo a partilhar, bem como a maior ou menor probabilidade de o interessado obter vencimento.
Por regra, a suspensão da instância não se verificará quando o que estiver em causa seja simplesmente a determinação dos bens que devem ser objeto de partilha tendo em conta a regra específica do n.º 5 do art. 1105º do CPC[27]. Nela se estatui que, quanto aos bens objeto da reclamação, a regra ou critério é o de que, com a remessa para os meios comuns dos interessados quanto à questão controvertida, tem lugar a exclusão desses bens litigioso do âmbito da partilha.
Ora, embora o referido crédito/débito de um cônjuge em relação ao outro deva ser objeto de relacionação como tal – dando-se como plausível uma das posições supra enunciadas que defende essa relacionação –, certo é que essa questão, em sede de reclamação sobre a relação, foi objeto de litígio quanto à sua existência (art. 1104º, n.º 1, al. d) do CPC).
A resolução da referida questão controvertida foi remetida para os meios comuns, pelo que a partilha terá lugar sem a considerar; só mais tarde a eventual decisão que afete a correção da partilha deverá ter lugar por sua revisão.
Ora, as regras gerais a observar na liquidação do património conjugal são as seguintes:
- em 1º lugar, são pagas pelo património comum as dívidas comuns (art. 1689º, n.º 2, 1ª parte, do CC);
- Depois, são pagas as dívidas próprias de qualquer dos ex-cônjuges pelas quais deva responder o património comum (art. 1689º, n.º 2, 2ª parte, do CC);
- Por fim, são pagas pela meação do cônjuge devedor no património comum as suas dívidas perante o outro cônjuge; não existindo bens comuns ou sendo estes insuficientes, respondem os bens próprios do cônjuge devedor (art. 1689º, n.º 3, do CC).
Considerando, pois, a referida ordem de pagamento e o facto de o alegado crédito invocado pelo recorrente apenas ser pago em último lugar pela meação do cônjuge devedor no património comum, não se afigura que a questão a decidir seja suscetível de afectar, de forma significativa, a utilidade prática da partilha.
De tudo o exposto resulta que não deve ser declarada a suspensão do inventário, devendo este prosseguir os seus normais termos quanto aos demais bens (art. 1105º, n.º 5, do CPC).
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Das custas

De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1, do CPC, a decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito, acrescentando o n.º 2 que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Como a apelação foi julgada parcialmente procedente, as custas ficam a cargo de ambas as partes, na proporção de metade[28].
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VI. Decisão

Perante o exposto acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação e, consequentemente, revogando-se a primeira parte da decisão recorrida, determinando-se que a tramitação do inventário corra por apenso ao processo de divórcio judicial.
Quanto ao mais, confirmar a decisão recorrida.
Custas da apelação a cargo do apelante e da apelada, em partes iguais.
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Guimarães, 9 de maio de 2024

Alcides Rodrigues (relator)
Raquel Tavares (1ª adjunta)
Eva Almeida (2ª adjunta)



[1] Cfr. O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, 2020, pp. 157/158.
[2] Cfr. Acs. da RE de 23-09-2021 (relatora Conceição Ferreira), de 29-04-2021 (relator Francisco Matos), de 09-06-2022 (relatora Maria Adelaide Domingos), e de 07/03/2024 (relator Tomé de Carvalho); Acs. da RP de 23-02-2021 (relatora Alexandra Pelayo), de 07-04-2022 (relatora Judite Pires) e de 25-05-2021(relator Rodrigues Pires); Ac. da RL de 14-07-2020 (relatora Maria da Conceição Saavedra ) e de 09/02/2022 (relator Orlando Nascimento); Acs. da RC de 08-07-2021 (relator Luís Cravo), de 23/02/2021 (relator Pires Robalo) e de 12/07/2022 (relatora Maria Teresa Albuquerque); Acs. da RG de 11-02-2021 ((relatora Maria Luísa Ramos), de 27-05-2021 (relatora Margarida Almeida Fernandes), 04/01/2023 (relator José Amaral), de 27-04-2023 (relatora Sandra Melo), de 10/07/2023 (relatora Alexandra Lopes), de 30/11/2023 (relator José Cravo), de 1/02/2024 (relatora Margarida Pinto Gomes), todos disponíveis in www.dgsi.pt.; em sentido divergente (mas com voto de vencido), o Ac. RG de 02-06-2021 (relatora Lígia Venade), in www.dgsi.pt.
[3] Cfr., no mesmo sentido na doutrina, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2020, Almedina, p. 629 e Pedro Pinheiro Torres, Cadernos do CEJ, “Inventário: o novo regime”, Maio de 2020, p. 31.; em sentido diverso, Tomé d’Almeida Ramião, o qual, salientando que o art. 1133.º do CPC não refere se o inventário corre autonomamente ou por apenso ao divórcio, ao contrário do que antes previa o correspondente art. 1404.º, n,º 3, do anterior CPC, conclui que: «(…) Perante a ausência de norma expressa em sentido adverso, o processo de inventário instaurado no âmbito do artigo 1133.º do C. P. Civil continua a ser tramitado como processo autónomo e independente, cuja competência está deferida aos Tribunais de Família e Menores, nos termos do referido n.º 2 do artigo 122.º da LOSJ.(…)» (cfr. O Regime dos Recursos e as Normas Transitórias no Novo Regime do Processo de Inventário, Cadernos do CEJ, Inventário: o Novo Regime, Maio de 2020, pp. 39/40).
[4] Cfr. Ac. da RL de 27/10/2016 (relator Vaz Gomes) e Ac. da RG de 09/03/2023 (relator Afonso Cabral de Andrade), in www.dgsi.pt.
[5] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, 2020, p. 159.
[6] Cfr. Augusto Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. III, 6ª ed., 2015, Almedina, p. 338.
[7] Cfr. Acs. da RL de 28/06/07 (relator Vaz Gomes) e de 6/04/2010 (relator Pedro Brighton), in www.dgsi.pt. e Remédio Maques, in Código Civil Anotado, Livro IV - Direito da Família (Coord. Clara Sottomayor), 2020, Almedina, p. 300.
[8] Cfr. Augusto Lopes Cardoso, obra citada, pp. 340/341.
[9] Cfr. Ac. da RL de 28/06/07 (relator Vaz Gomes) e de 6/04/2010 (relator Pedro Brighton), in www.dgsi.pt. e Remédio Maques, in Código Civil Anotado, Livro IV - Direito da Família (Coord. Clara Sottomayor), 2020, Almedina, p. 300].
[10] Cfr. Acs. da RL de 28/06/07 (relator Vaz Gomes) e de 6/04/2010 (relator Pedro Brighton), in www.dgsi.pt.; Remédio Maques, in Código Civil Anotado, Livro IV - Direito da Família (Coord. Clara Sottomayor), 2020, Almedina, p. 300.
[11] João António Lopes Cardoso, a propósito das dívidas dos cônjuges entre si, referia que a execução dessa disciplina – reportando-se ao facto de tais créditos passarem a ser exigíveis tão somente após a dissolução do matrimónio ou, melhor dizendo, na subsequente partilha – não impõe que na partilha se dê pagamento ao cônjuge credor do que o outro cônjuge lhe está devendo; esses créditos não respeitam ao património comum mas ao património individual do  cônjuge credor, constituindo, em contrapartida, elemento negativo do do cônjuge devedor. Assim, não deverão ser objeto de relacionação, isto mau grado deverem ser considerados no momento da partilha para serem satisfeitos na conformidade do disposto no art. 1689º, n.º 3 do Cód. Civil (cfr. Partilhas Judiciais, Vol. III, 4ª ed., 1991, Almedina, p. 392).
Daí que, nessa situação tais créditos deveriam ser submetidas à conferência de interessados, ainda que não sujeitos a relacionação (cfr. Ac. da RC de 12/03/2013 (relatora Maria José Guerra), in www.dgsi.pt.)
[12] Cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo (…), Vol. II, (…), p. 633.
[13] Cfr. Ac. da RC de 9/01/2024 (relator Luís Filipe Cravo), in www.dgsi.pt.
[14] Cfr. Ac. do STJ de 22/02/2011 (Relator Sebastião Póvoas), in www.dgsi.pt.
[15] Cfr., neste sentido, Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito de Família, vol. I, 3.ª edição, 2003, Coimbra Editora, 418 e Ângela Cristina da Silva Cerdeira, Da Responsabilidade Civil dos Cônjuges Entre Si, Coimbra Editora, 2000, pp. 120 a 132.
[16] Cfr. Rute Teixeira Pedro, in Código Civil Anotado, (Ana Prata Coord.), volume II, 2017, Almedina, p. 562.
[17] Cfr. Obra citada, pp. 10/11.
[18] Cfr. Obra citada, p. 44.
[19] Cfr. Obra citada, p. 46
[20] Cfr. Obra citada, pp. 48/51.
[21] Cfr. Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2020, Almedina, p. 543.
[22] Cfr. obra citada, pp. 547/548.
[23] Cfr. Carlos Lopes do Rego, Comentários ao CPC, vol. II, 2ª ed., Almedina, 2004, p. 268, em anotação ao art. 1350º do CPC de 1961.
[24] Cfr. Ac. desta Relação de 2/02/2023 (relatora Maria Amália Santos), in www.dgsi.pt.
[25] Cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, obra citada, p. 51.
[26] Cfr. Ac. da RP de 27/01/2003 (relator Caimoto Jácome), in www.dgsi.pt.
[27] Cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código (…), Vol. II, (…), p. 548, cujo texto vimos seguindo na fundamentação supra.
[28] A recorrida deu azo ao primeiro fundamento do recurso ao instaurar autonomamente o processo inventário, e não por apenso à ação de divórcio.