SENTENÇA ESTRANGEIRA
REVISÃO
CONVENÇÃO DE HAIA
Sumário


1 – Tendo um tribunal francês aplicado a favor do requerido – adulto que não está em condições de defender os seus interesses devido a uma deficiência ou insuficiência das suas capacidades pessoais – uma medida de tutela e nomeado a requerente como sua tutora, para o representar e administrar os seus bens e a sua pessoa, essa sentença estrangeira é diretamente eficaz em Portugal, em conformidade com o disposto no artigo 22º, nº 1, da Convenção Relativa à Proteção Internacional de Adultos, adotada na Haia, em 13 de janeiro de 2000, aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 52/2014, de 19/06, e ratificada pelo Decreto do Presidente da Republica nº 44/2014, de 19/06.
2 – A Convenção consagra o sistema de reconhecimento ipso iure, ou seja, as medidas produzem efeitos independentemente de uma decisão do Estado onde se pretende invocar a medida decretada pelo Estado de origem.
3 – Porém, estabelece o artigo 23º da aludida Convenção que: «Sem prejuízo do nº 1 do artigo 22º, qualquer pessoa interessada pode solicitar às autoridades competentes de um Estado Contratante que decidam sobre o reconhecimento ou não reconhecimento de uma medida adotada num outro Estado Contratante. O procedimento rege-se pela lei do Estado requerido.»
4 – É lícito a um interessado recorrer às autoridades do Estado requerido para obter, relativamente a uma sentença do Estado de origem que decreta uma medida inserida no âmbito de aplicação da Convenção, a garantia de conformidade dos pressupostos necessários à sua eficácia.
5 – Para o efeito, basta que invoque um interesse atendível na promoção da proteção do adulto vulnerável através do reconhecimento.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – AA veio requerer contra BB a revisão e confirmação da sentença proferida em 22.06.2023, pelo Tribunal Distrital de ..., em França, que aplicou a favor do Requerido a medida de tutela, com a duração de 120 meses, e nomeou a Requerente como sua tutora, para o representar e administrar os seus bens e a sua pessoa, uma vez que «sofre de doença mental degenerativa em estado avançado e é incapaz de cuidar de si e/ou dos seus bens, dependendo para todos os actos da sua vida do auxílio de terceiros.»
Citado na pessoa da sua sobrinha, CC, o Requerido não contestou.
Não tendo a representante nomeada contestado, citou-se o Ministério Público, que deduziu oposição, alegando que a sentença aqui em causa não necessita de revisão e confirmação para ter eficácia em Portugal, uma vez que nos termos do artigo 22º, nº 1, da Convenção Relativa à Proteção Internacional de Adultos, «as medidas adotadas pelas autoridades de um Estado Contratante são reconhecidas de pleno direito em todos os outros Estados Contratantes.» Concluiu que «verifica-se a exceção dilatória de falta de interesse em agir, a determinar a absolvição da instância – arts. 576º nº 2 e 278º nº 1 al. e) CPP.»

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Respondeu a Requerente, alegando que «é efectivamente verdade que a aludida Convenção prevê tal reconhecimento automático de sentenças estrangeiras, que se crê aplicável ao caso vertente.
Contudo, o art. 23.º dispõe que “sem prejuízo do n.º 1 do artigo 22.º, qualquer pessoa interessada pode solicitar às autoridades competentes de um Estado Contratante que decidam sobre o reconhecimento ou não reconhecimento de uma medida adotada num outro Estado Contratante, o procedimento rege-se pela lei do Estado requerido”.
Ou seja, não obstante a dita eficácia imediata e ciente das dificuldades/entraves que poderão ser colocados na prática, nomeadamente por parte de instituições bancárias, a referida Convenção permite que os Interessados procedam a uma revisão/confirmação preventiva da sentença estrangeira.
É exatamente ao abrigo do referido normativo e com vista a acautelar esse risco que a Requerente intentou a presente acção».
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Cumprido o disposto no 982º, nº 1, do Código de Processo Civil (CPC), a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de a sentença aqui em causa não necessitar de revisão e confirmação para ter eficácia em Portugal.
Por sua vez, a Requerente reiterou a sua anterior posição.
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O Tribunal é competente e não ocorrem nulidades ou questões prévias ou exceções para além daquela que está invocada e de que cumpre conhecer.
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Questões a decidir:

i) Exceção dilatória de falta de interesse em agir;
ii) Caso improceda a exceção, cabe apreciar se estão demonstrados os requisitos legais de que depende a revisão e confirmação da sentença acima referida.
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II – Fundamentos

2.1. Fundamentação de facto
Atentos os documentos juntos pela Requerente aos autos e a posição assumida pelo Requerido e pelo Ministério Público relativamente aos mesmos, consideram-se provados os seguintes factos:
2.1.1. O Requerido BB nasceu a ../../1946, na freguesia ..., concelho ..., e tem nacionalidade portuguesa.
2.1.2. Por sentença de 22.06.2023, proferida pelo Tribunal Distrital de ..., em França, foi aplicada a favor do Requerido a medida de tutela, com a duração de 120 meses, sendo a Requerente AA nomeada sua tutora, para o representar e administrar os seus bens e a sua pessoa.
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2.2. Fundamentos de direito

2.2.1. A decisão revidenda aplicou ao Requerido uma medida de tutela no âmbito de um processo que corresponde, no nosso ordenamento, ao processo especial de acompanhamento de maiores (arts. 891º e seguintes do CPC).
Sobre essa matéria rege a Convenção Relativa à Proteção Internacional de Adultos, adotada na Haia, em 13 de janeiro de 2000, aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº 52/2014, de 19.06.2014 (publicada no Diário da República, 1ª série, nº 116, de 19.06.2014), e ratificada pelo Decreto do Presidente da Republica nº 44/2014, de 19/06. Essa Convenção entrou em vigor em Portugal a 01.07.2018, atento o Aviso nº 41/2018, de 12.04.2018 (que tornou público que a República Portuguesa depositou junto do Secretariado Permanente da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado o seu instrumento de ratificação à Convenção).
Quanto ao seu âmbito de aplicação, dispõe o artigo 1º, nº 1, que «a presente Convenção aplica-se, em situações de caráter internacional, à proteção de adultos que, devido a uma deficiência ou insuficiência das suas capacidades pessoais, não estão em condições de defender os seus interesses.» E o nº 2, al. d), estabelece que ela tem por objeto «assegurar o reconhecimento e a execução dessas medidas de proteção em todos os Estados Contratantes». O artigo 3º especifica os tipos de medidas de proteção contempladas pela Convenção, não pretendendo ser exaustivo. As medidas incluem, por exemplo, a determinação de uma incapacidade, a instituição de um regime de proteção para o adulto, a designação e as funções da pessoa que representa o adulto ou encarregada de se ocupar dos bens do adulto.
No que respeita ao reconhecimento e execução, dispõe o artigo 22º, nº 1, da Convenção que «as medidas adotadas pelas autoridades de um Estado Contratante são reconhecidas de pleno direito em todos os outros Estados Contratantes.»
Segundo Geraldo Rocha Ribeiro[1], «o artigo 22, n.º 1, consagra o sistema de reconhecimento ipso iure, ou seja, as medidas produzem efeitos independentemente de uma decisão do Estado onde se pretende invocar a medida decretada pelo Estado de origem.»
Por conseguinte, tal como afirma a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta, a sentença cuja revisão se pediu está dotada de eficácia em Portugal. As medidas de proteção aplicadas ao Requerido pelo Tribunal francês podem ser diretamente executadas na República Portuguesa.
Prevendo a Convenção um sistema de reconhecimento automático, à partida, a sentença estrangeira que decretou a medida de proteção do Requerido não carece de revisão para ser eficaz.
Porém, estabelece o artigo 23º da aludida Convenção: «Sem prejuízo do nº 1 do artigo 22º, qualquer pessoa interessada pode solicitar às autoridades competentes de um Estado Contratante que decidam sobre o reconhecimento ou não reconhecimento de uma medida adotada num outro Estado Contratante. O procedimento rege-se pela lei do Estado requerido.»
Recorrendo ao autor atrás citado[2], o referido reconhecimento ipso iure «não invalida a possibilidade de suscitar o controlo da medida em sede de pedido de reconhecimento ou não reconhecimento, nos termos de uma acção preventiva ou mesmo incidental (artigo 23.º)
Quer dizer, é lícito a um interessado recorrer às autoridades do Estado requerido para obter, relativamente a uma sentença do Estado de origem que decreta uma medida inserida no âmbito de aplicação da Convenção, a garantia de conformidade dos pressupostos necessários à sua eficácia. Para o efeito, basta que invoque um interesse atendível na promoção da proteção do adulto vulnerável através do reconhecimento.
Portanto, o aludido reconhecimento cumpre a função de assegurar a continuidade da situação e efeitos jurídicos constituídos a partir de uma medida decretada no Estado de origem, tornando indiscutível tanto a prova da medida como, sobretudo, a garantia da verificação dos pressupostos necessários à sua eficácia no ordenamento jurídico do Estado de destino.
Aquele autor refere que a prática das autoridades portuguesas é a «de promover uma acção preventiva de reconhecimento (artigo 23.º), a seguir os termos da acção de revisão (artigos 978.º, e seguintes do Código de Processo Civil), mesmo perante aquele efeito ipso iure. Tal tem conduzido a uma prática de tomada de decisões sumárias, perante a ausência de oposição, conforme o artigo 656.º, do Código de Processo Civil.»[3]

No caso vertente, a Requerente invocou no artigo 8º da petição inicial o interesse na revisão e confirmação da sentença estrangeira «designadamente para efeitos de administração de património de que o Requerido é detentor em Portugal, mais precisamente movimentação de contas bancárias.»
E na resposta à oposição do Ministério Público, explicitou e fundamentou o aludido interesse:
«5. Ou seja, não obstante a dita eficácia imediata e ciente das dificuldades/entraves que poderão ser colocados na prática, nomeadamente por parte de instituições bancárias, a referida Convenção permite que os Interessados procedam a uma revisão/confirmação preventiva da sentença estrangeira.
6. É exatamente ao abrigo do referido normativo e com vista a acautelar esse risco que a Requerente intentou a presente acção,
7. Tal como fez anteriormente aquando da primeira medida de curatela aplicada ao Recorrido, tendo a aludida sentença sido revista e confirmada no âmbito do Proc. n.º 230/19...., que correu termos na ... Secção Cível deste Tribunal.
8. De resto, a Requerente enfrentou já problemas junto das instituições bancárias portuguesas para a movimentação das contas do Requerido, tendo como certo que na ausência de revisão, aquelas instituições não permitirão a referida movimentação.
9. O interesse em agir da Requerente é, assim, evidente, pelo que deverá a excepção dilatória invocada ser declarada totalmente improcedente.»
À luz do invocado, consideramos existir um interesse atendível no recurso ao reconhecimento previsto no artigo 23º da Convenção.

Termos em que julgamos improcedente a exceção deduzida pelo Ministério Público.
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2.2.2. O sistema português de revisão de sentenças estrangeiras inspira-se no chamado sistema de delibação, isto é, de revisão de índole meramente formal, o que significa que o tribunal, em princípio, se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo do fundo ou mérito da causa[4]. Trata-se de um processo especial de simples apreciação, em que o tribunal nacional se certifica de que tem perante si uma verdadeira sentença estrangeira e reconhece-lhe os efeitos típicos das decisões judiciais, sem fazer um novo julgamento da causa[5].

Nos termos do artigo 980º do CPC, para que a sentença seja confirmada é necessário:
«a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d) Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para ação nos termos da lei do país do tribunal de origem e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português».

Dispõe o artigo 983º, nº 1, do mesmo código, que «o pedido só pode ser impugnado com fundamento na falta de qualquer dos requisitos mencionados no artigo 980º ou por se verificar algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a), c) e g) do artigo 696º».
Determina o artigo 984º do CPC, que «o tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 980º; e também nega oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito».
Tal como referido no acórdão do STJ de 21.02.2006, relatado por Oliveira Barros, proferido no processo 05B4168, o requerente está dispensado de fazer prova direta e positiva dos requisitos das alíneas b) a e) do artigo 980º. Se, pelo exame do processo, ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, o tribunal não apurar a falta dos mesmos, presume-se que existem, não podendo o tribunal negar a confirmação quando, por falta de elementos, lhe seja impossível concluir se os requisitos dessas alíneas se verificam ou não. A prova de que não se verificam os requisitos das alíneas b) a e) do artigo 980º compete ao requerido, devendo, em caso de dúvida, considerar-se preenchidos[6].
No que respeita ao requisito da alínea a), o tribunal português tem de adquirir, documentalmente, a certeza do ato jurídico postulado na decisão revidenda, mesmo que não plasmada em sentença na aceção pátria do conceito, devendo aceitar a prova documental estrangeira que suporte a decisão revidenda, ainda que formalmente não seja um decalque daquilo que na lei interna nacional preenche o conceito de sentença[7].
No que tange ao requisito da alínea f) (ordem pública internacional do Estado Português), os princípios da ordem pública internacional do Estado Português são princípios enformadores e orientadores, fundantes da própria ordem jurídica portuguesa, que de tão decisivos que são, jamais podem ceder.
Por outro lado, tem-se em vista o resultado concreto da decisão, ou seja, o dispositivo da sentença e não os seus fundamentos[8].
A ordem pública internacional do Estado Português não se confunde com a sua ordem pública interna: enquanto esta se reporta ao conjunto de normas imperativas do nosso sistema jurídico, constituindo um limite à autonomia privada e à liberdade contratual, a ordem pública internacional restringe-se aos valores essenciais do Estado português. Só quando os nossos interesses superiores são postos em causa pelo reconhecimento duma sentença estrangeira, considerando o seu resultado, é que não será possível tolerar a declaração do direito efetuada por um sistema jurídico estrangeiro. De modo que só quando o resultado dessa sentença choque flagrantemente os interesses de primeira linha protegidos pelo nosso sistema jurídico é que não se deverá reconhecer a sentença estrangeira[9].
Sendo assim, in casu, verificam-se todos os requisitos consagrados no artigo 980º do CPC.
De facto, o exame da certidão da sentença estrangeira acima referida não deixa dúvidas sobre a autenticidade do documento, nem sobre a inteligibilidade da decisão.
Não pode invocar-se ofensa de caso julgado ou litispendência, uma vez que não há notícia de que o caso tenha sido submetido a jurisdição diferente.
Mostram-se observados os princípios do contraditório e igualdade das partes.
Não se vislumbra ofensa aos princípios de ordem pública internacional do Estado português, tanto mais que está em causa uma sentença que determinou a aplicação da medida de tutela ao Requerido e nomeou a Requerente como sua tutora, para o representar e administrar os seus bens e a sua pessoa, atenta a respetiva incapacidade para reger a sua pessoa e bens, com inteira similitude com o instituto do maior acompanhado (aprovado pela Lei nº 49/2018, de 14/08).
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III – Decisão

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedente o pedido e, em consequência, confirma-se a sentença proferida em 22.06.2023, pelo Tribunal Distrital de ..., em França.
Custas a suportar pela Requerente.
Oportunamente, cumpra o disposto no art. 78º do Código do Registo Civil.
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Guimarães, 09.05.2024
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida
Eva Almeida
António Figueiredo de Almeida



[1] Julgar Online, “A Convenção da Haia de 2000, relativa à proteção internacional de adultos: a experiência portuguesa na sua aplicação”, junho de 2023, pág. 24, acessível em https://julgar.pt
[2] Ob. cit., pág. 24.
[3] Ob. cit., pág. 27.
[4] Cfr., por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.07.2011 (Paulo Sá), processo 987/10, acessível em www.dgsi.pt, tal como os demais que se citam no presente acórdão.
[5]  Alberto dos Reis, Processos Especiais, vol. II, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, pág.141.
[6] Acórdão do STJ de 12.07.2005 (Moitinho de Almeida), proc. 051880.
[7] Acórdão do STJ de 29.03.2011 (Fonseca Ramos), proc. 214/09.
[8] Cf. acórdãos da Relação de Lisboa de 14.11.2006, proc. 3329/2006, e de 13.07.2010, proc. 999/09.
[9] Cf. acórdão da Relação de Coimbra de 18.11.2008 (Sílvia Pires), proc. 03/08. Sobre a ordem pública internacional, cfr. ainda os acórdãos do STJ de 21.02.2006 (Oliveira Barros), proc. 05B4168, de 26.06.2009 (Paulo Sá), proc. 43/09, e de 23.10.2014 (Granja da Fonseca), proc. 1036/12.