INVENTÁRIO
LEGADO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
Sumário


1. O atual regime jurídico do inventário consagra os princípios da concentração e da preclusão, donde a falta de reclamação contra relação de bens no prazo previsto na lei, tem como consequência a preclusão da possibilidade de reclamação posterior de outros bens que compõem o acervo hereditário, sem prejuízo das situações em que seja admissível a apresentação de um articulado superveniente.
2. Porém, se ultrapassada a fase da reclamação de bens, o tribunal oficiosamente determinar que se adite um legado à relação de bens, o princípio da adequação formal, do contraditório, da igualdade das partes e da obtenção de um processo equitativo, justifica que também se admita o relacionamento do valor de uma doação que visou igualar o valor do bem legado.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral


Processo n.º 2609/22.2T8STR-A.E1 (Apelação em Separado)
Tribunal recorrido: TJ C...- Juízo Local Cível ... – J...
Apelante: AA
Apelados: BB e CC

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO
No inventário facultativo aberto por morte de morte de DD, falecido em ../../2018, no estado de casado com BB, no qual exerce as funções de cabeça de casal a viúva, e são interessados os filhos do casal, CC e AA (requerente do inventário), após ter sido dada forma à partilha, foi de seguida proferido despacho que, constatando que a relação de bens apresentada a fls. 85v a 88 não contemplava um legado de um imóvel[1], por conta da quota disponível, com dispensava de colação, instituído no testamento outorgado pelo falecido e mulher, à filha AA, ordenou a notificação da cabeça de casal para «(…) juntar aos autos relação de bens completa, em tudo idêntica à relação de bens de fls. 85v a 88, aditando-se, a final, o bem legado (respetiva descrição e valor) sob a designação «Legado».

A cabeça de casal veio dar cumprimento ao ordenado juntando uma nova relação de bens nos termos mencionados no despacho supra, mas também, como se refere no despacho proferido nos autos, e que vem a ser o recorrido, «(…) aproveitando o ensejo, a cabeça-de-casal aditou à relação de bens uma doação de quantia monetária, no valor de € 31.081,09, pretensamente efetuada pelo Inventariado a favor do Interessado CC. Alegou para tanto que, em 1992, ela, cabeça-de-casal, e o Inventariado doaram àquele Interessado o referido montante (6.231.200,00$00) para construção da habitação deste e que o legado efetuado a favor da Interessada AA foi realizado no intuito de colocar ambos os Interessados “em paridade”».

O interessado CC opôs-se ao referido aditamento à relação de bens.

Foi então, proferido despacho que, apreciando o aditamento, se pronunciou nestes termos:
«Salvo em situação de superveniência, que in casu não foi alegada, a cabeça-de-casal deveria ter relacionado a invocada doação quando, citada para o efeito, deu cumprimento ao disposto no art. 1102.º do Cód. Proc. Civil (ex vi art. art. 1100.º, n.º 2, alínea b) do mesmo Código). Por seu turno, o meio adequado e o momento próprio para a Interessada AA acusar a falta de relacionação da aludida doação seria através da reclamação contra a relação de bens, a intentar no prazo estabelecido no art. 1104.º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil.
Não tendo sido deduzido nenhum dos incidentes a que alude este preceito legal, passaram os autos à fase processual seguinte prevista no art. 1110.º, n.º 1, alínea b) do Cód. Proc. Civil. Após, foi proferido despacho que deu forma à partilha (cfr. art. 1110.º, n.º 2, alínea a) do Cód. Proc. Civil).
Encontra-se, pois, precludida a possibilidade de se fazer renascer a discussão de questões cujo lugar próprio seria o incidente de reclamação contra a relação de bens anteriormente apresentada.
Sublinhe-se, a este propósito, que o regime do processo de inventario previsto nos arts. 1082.º a 1135.º do Cód. Proc. Civil, introduzido pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setembro, veio instituir um novo paradigma face ao pretérito regime regulado pelo Cód. Proc. Civil de 1961: o processo de inventário passou a nortear-se pelos princípios da concentração, da preclusão dos atos respeitantes a cada fase processual e da auto-responsabilidade dos interessados na gestão do processo. E o objeto é cristalino: imprimir maior celeridade e eficácia à tramitação processual do inventário.
Nessa esteira, veja-se, a título de exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 15.06.2021 (cfr. processo n.º 556/20.1T8CHV-A.G1, relatora Conceição Sampaio, in www.dgsi.pt), cuja posição perfilhamos:
«I - Com a Lei n.º 117/2019 de 13 de setembro procurou-se instituir um novo paradigma do processo de inventário, com o objetivo de assegurar uma maior eficácia e celeridade processuais, evitando o carácter arrastado, sinuoso e labiríntico da anterior tramitação.
II - O novo modelo procedimental adotado parte de uma definição de fases processuais relativamente estanques, assentando num princípio de concentração, em que determinado tipo de questões deve ser necessariamente suscitado em certa fase processual (e não nas posteriores), sob pena de funcionar uma regra de preclusão para a parte.
III - Esta estruturação sequencial e compartimentada do processo envolve logicamente a imposição às partes de cominações e preclusões, saindo reforçado o princípio de autoresponsabilidade das partes na gestão do processo, cometendo-se simultaneamente ao juiz um maior e poder/dever de direção processual.
IV - O processo de inventário é hoje uma verdadeira ação, obrigando a que os interessados concentrem os “meios de defesa” no articulado que apresentam e indiquem aí todos os meios de prova, sob pena de preclusão».

Identicamente, pronunciou-se o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 22.09.2022 (cfr. processo n.º 5044/20.3T8BRG-B.G1, relator Pedro Maurício, in www.dsg.pt), que explicitou o seguinte: «Actualmente, o processo de inventário judicial está configurado como uma acção declarativa, sendo a primeira fase uma verdadeira fase de articulados (que engloba a fase inicial e da oposições e verificação do passivo), na qual recai sobre todos os interessados o ónus de suscitar nesta fase, com efeitos preclusivos, as questões pertinentes para o objetivo final do inventário (art. 1104º), designadamente tudo quanto respeite à sua admissibilidade, identificação e convocação dos interessados, relacionamento e identificação dos bens a partilhar, dividas e encargos da herança e outras questões atinentes à divisão do acervo patrimonial».
Face ao exposto, não admito o aditamento à relação de bens constante do requerimento (e respetivo anexo) junto aos autos em ../../2023.
Custas do incidente anómalo pela cabeça-de-casal, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal (cfr. art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil e art. 7.º, n.º 4 do Regulamento das Custas Processuais).
Notifique, sendo a cabeça-de-casal para, em 10 (dez) dias, juntar aos autos relação de bens nos termos anteriormente ordenados, desta feita expurgada da doação supramencionada.»

Inconformada, apelou a interessada AA, apresentando as seguintes Conclusões:
«I O presente recurso tem como objeto a matéria de direito vertida no despacho, com referência n.º ...44, que indeferiu o aditamento à Relação de Bens da quantia monetária, no valor de 31.081,09€, doada pelo Inventariado e pela sua cônjuge ao Interessado CC, para construção da sua casa de morada de família.
II No dia ../../2022, a Recorrente requereu, nos termos e para efeitos do preceituado nos artigos 1082.º alínea a) e 1085.º n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil, que se procedesse a inventário por morte de DD.
III - O Inventariado faleceu no dia ../../2018, com último domicílio na Rua ..., ..., ..., tendo deixado como únicos e universais herdeiros: a viúva, BB; a sua filha, AA, casada no regime de comunhão de adquiridos com EE; e, o seu filho, CC, casado no regime de comunhão de adquiridos com FF.
IV - O Inventariado deixou testamento público, através do qual, conjuntamente com a sua esposa, BB, legou, por conta da quota disponível, o prédio urbano para habitação, sito na Rua ..., inscrito na matriz respetiva sob o artigo ...62, da freguesia ..., à sua filha, a ora Recorrente, com cláusula de incomunicabilidade em relação ao marido (cfr. Requerimento com Referência Citius ...16).
V - Tal testamento foi realizado “como forma de compensar a sua filha, visto que, em tempos passados, ele e sua mulher deram a seu filho um montante em dinheiro com o qual ele construiu a casa em que habita.”.
VI - O Tribunal a quo designou, para o exercício de funções de Cabeça-de-Casal, BB (artigo 2080.º n.º 1, alínea a) do Código Civil e artigo 1100.º n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil), ordenando a sua citação nos termos e para os efeitos previstos no artigo 1102.º do Código de Processo Civil.
VII - No dia ../../2023, a Cabeça-de-Casal juntou aos autos a Relação de Bens por óbito de DD, assim como os respetivos documentos necessários à identificação dos bens e ao apuramento da sua situação jurídica.
VIII - Posteriormente, o Tribunal a quo ordenou a notificação da Cabeça-de-Casal para vir juntar aos autos documentos em falta, assim como para juntar nova Relação de Bens, devidamente retificada, pelo facto de a anterior padecer de lapsos de escrita.
IX - Notificada para o efeito, a Cabeça-de-Casal juntou nova Relação de Bens, assim como os elementos solicitados pelo Tribunal a quo.
X - Na Relação de Bens apresentada não foi relacionado o bem legado à ora Recorrente, nem a doação da quantia monetária ao Interessado.
XI - Ora, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 1104.º n.ºs. 1 e 2 do Código de Processo Civil, o Tribunal a quo ordenou a notificação da ora Recorrente e a citação do Interessado CC.
XII - Não tendo sido deduzida, pelos Interessados, qualquer oposição/reclamação à Relação de Bens apresentada pela Cabeça-de-Casal, o Tribunal a quo ordenou a notificação destes para, querendo, proporem a forma da partilha, conforme o preceituado no artigo 1110.º n.º 1, alínea b) do Código de Processo Civil.
XIII - Ora, em Requerimento, vem o Interessado propor a forma da partilha, aproveitando, de igual forma, para requerer a avaliação dos bens pertencentes ao acervo hereditário, incluindo o bem legado à ora Recorrente, nunca por si mencionado.
XIV - No seguimento de tal Requerimento, veio o Tribunal a quo ordenar a junção, pela Cabeça-de-Casal, no prazo de 10 dias, da Relação de Bens completa, em tudo idêntica à anterior, com o aditamento, a final, do bem legado (respetiva descrição e valor) sob a designação “Legado”.
XV - Face à decisão do Tribunal a quo, a Cabeça-de-Casal e a ora Recorrente, em requerimento conjunto, expuseram o motivo pelo qual a Cabeça-de-Casal não relacionou o legado nem a quantia monetária, no valor de 31.081,09€, doada ao Interessado, mormente, a pretensão de equilibrar e igualar as contas entre os seus filhos.
XVI - Não obstante, a Cabeça-de-Casal juntou nova Relação de Bens, na qual inclui o legado deixado à Recorrente pelo Inventariado, acreditando que, o aditamento à Relação de Bens da quantia monetária doada ao Interessado, também seria deferido precisamente pelas mesmas razões.
XVII - O Interessado, exercendo o seu direito de contraditório, veio opor-se ao aditamento de tal verba à Relação de Bens, referindo que: apenas veio evidenciar um facto, que segundo o seu entendimento é de conhecimento oficioso, nomeadamente, a omissão na Relação de Bens do prédio que foi legado à Recorrente; a expressão que consta no testamento é unilateral, vaga e não concretizada no tempo, não correspondendo à verdade, apenas servindo de pretexto para beneficiar a Recorrente e prejudicar o Interessado; a Recorrente pretende, irregular e extemporaneamente, aditar uma pretensa doação feita ao Interessado; a construção da casa de morada de família do Interessado foi executada com rendimentos dos pais da cônjuge do Interessado e com rendimentos do casal (Interessado e cônjuge), não tendo existido, por parte do Inventariado e da Cabeça-de-Casal, qualquer doação em dinheiro ao Interessado.
XVIII - Ora, no Despacho que se recorre, o Tribunal a quo determinou que o imóvel legado à Recorrente deve ser relacionado para efeitos de eventual incidente de redução por inoficiosidade, indeferindo, contudo, o aditamento da doação feita ao Interessado, uma vez que não foi alegada qualquer situação de superveniência, objetiva ou subjetiva, ficando “precludida a possibilidade de se fazer renascer a discussão de questões cujo lugar próprio seria o incidente de reclamação contra a Relação de Bens anteriormente apresentada.”.
XIX - A reclamação da Relação de Bens assume-se como um incidente da instância no processo de Inventário, no qual as partes apresentam as suas alegações e as provas tidas por pertinentes, sendo essa a sede própria para os interessados tomarem posição expressa sobre todas e quaisquerdeficiências que registemna peça processual destinada abalizar e definir as concretas situações jurídicas, ativas e passivas, que compõem o acervo hereditário a partilhar.
XX - Apresentada que foi a Relação de Bens, todos os Interessados foram notificados/citados para, no prazo previsto no n.º 1 do artigo 1104.º do Código de Processo Civil, reclamar contra ela, nomeadamente, acusando a falta de bens que deveriam ser relacionados (noutras palavras, acusar a omissão de bens que não constam, e deveriam constar, da Relação de Bens), requerendo a exclusão de bens indevidamente relacionados, por não fazerem parte do acervo hereditário ou arguindo qualquer inexatidão na descrição dos bens, que releve para a partilha.
XXI - Neste seguimento, é no incidente de reclamação que se discutem todas as questões suscitadas que sejam suscetíveis de influir na partilha, sendo fase primordial do processo onde se determinam os bens a partilhar.
XXII - Ora, independentemente do nomen que o Interessado atribua ao Requerimento, por si apresentado, através do qual propôs a forma da partilha, parece resultar claro que o seu propósito se traduziu, única e exclusivamente, em suscitar questão que inequivocamente constitui fundamento típico do incidente de reclamação da Relação de Bens (neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 09/03/2020, Processo n.º 212/19.3T8PVZ.P1, disponível em Acórdão do Tribunal da Relação do Porto (dgsi.pt)).
XXIII - Consequentemente, a sua apresentação estaria sempre sujeita ao prazo supramencionado, o qual marca o respetivo dies ad quem, prazo esse que, na economia do preceito, assume natureza perentória e preclusiva.
XXIV - Não obstante, o Tribunal a quo apenas decidiu neste sentido quanto ao aditamento requerido pela Recorrente, já não valendo esta justificação quanto ao aditamento pretendido e alcançado pelo Interessado.
XXV - Conforme decorre do testamento, o Inventariado legou o imóvel supra descrito “como forma de compensar a sua filha, visto que, em tempos passados, ele e a sua mulher deram ao seu filho um montante em dinheiro com o qual ele construiu a casa em que habita”.
XXVI - A lei manda que se respeite e cumpra o que o testador efetivamente quis, reconhecendo-lhe a liberdade de dispor, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles, sendo que, descoberta a sua intenção, é ela que vale como sentido do testamento, que deverá executar-se em perfeita conformidade com ela.
XXVII - Dúvidas não existem que a vontade do testador é soberana.
XXVIII - Por via de uma interpretação literal do texto do testamento, é possível inferir que o Inventariado e a sua mulher, a Cabeça-de-Casal, pretendiam colocar os seus filhos em paridade.
XXIX - Considerando que a posição dos seus filhos se encontrava já equilibrada, a Cabeça-de-Casal não relacionou o imóvel legado à Recorrente nem a quantia monetária doada ao Interessado.
XXX - E diga-se, neste seguimento, não tendo o Interessado reclamado contra a Relação de Bens, pretendendo o aditamento do bem legado à Recorrente, esta também não reclamou contra aquela, precisamente, com base no pressuposto que a questão pura e simplesmente não se colocaria.
XXXI - Não obstante, a Recorrente foi surpreendida com o Requerimento do Interessado e, mais ainda, com a decisão do Tribunal a quo quanto ao deferimento do aditamento daquele bem à Relação de Bens.
XXXII - Aliás, foi precisamente na sequência de tal decisão que veio a ora Recorrente requerer o aditamento da verba referente à quantia doada ao Interessado, no valor de 31.081,09€, de modo a reverter a desigualdade gerada e, assim, cumprir a pretensão do Inventariado.
XXXIII - Intuito que ficou comprometido com a decisão, de que se recorre, do Tribunal a quo, que justificou o indeferimento de tal aditamento justamente com base nos motivos pelos quais deveria ter indeferido, em primeiro lugar, a pretensão do Interessado.
XXXIV - Ora, tendo deferido tal pretensão, deve o aditamento requerido pela Recorrente ser, de igual forma, deferido, também para efeitos de eventual incidente de redução por inoficiosidade.
XXXV - Neste seguimento, o facto de se tratar de doação manual, através da qual o Inventariado e a sua Cabeça-de-Casal entregaram ao Interessado, que as aceitou, determinadas quantias em dinheiro, faz operar a presunção legal prevista no n.º 3 do artigo 2113.º, nos termos do qual a colação se presume sempre dispensada nas doações manuais e nas doações remuneratórias.
XXXVI - Não obstante, tal como sucede com o legado, apesar de dispensada de colação e não obstante não integre o acervo hereditário, a respetiva integração na Relação de Bens em inventário é necessária, com vista a verificar a eventual inoficiosidade da doação e prevenir a ofensa da legítima dos demais Interessados não beneficiados.
XXXVII - Em suma, salvo melhor e douta opinião, a decisão de primeira instância aqui recorrida, mostra-se contrária a lei, uma vez que existiu total desrespeito pela vontade do testador, beneficiando-se o Interessado em detrimento da Recorrente, devendo ser revogada e substituída por outra que defira o aditamentoda verba referente à quantia monetária, doada pelo Inventariado e sua esposa ao Interessado CC, o valor de 31.081,09€.»

Não consta que tenha sido apresentada resposta ao recurso.
Foram colhidos os vistos.

II- OBJETO DO RECURSO
Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões apresentadas, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), a questão a decidir consiste em saber se deve ser admitido o aditamento à relação em bens do valor doado ao interessado CC.

III- OS FACTOS
Os factos e ocorrências processuais relevantes para apreciação do recurso constam do antecedente Relatório, a que se acrescenta o seguinte (por consulta do testamento junto com o requerimento de instauração do processo de inventário):
No dia ../../2017, DD, casado com BB, compareceu perante notário e outorgou um testamento, constando do mesmo:
«Que tem dois descendentes.
Que ele e sua referida mulher BB (…) são donos e legítimos possuidores do prédio urbano composto por casa de ... e ... andar para habitação, sito na Rua ..., na dita freguesia ..., inscrito na matriz respetiva sob o artigo ...42.
Que, pelo presente testamento, conjuntamente com a sua indicada mulher (…) por se tratar de bem comum do casal:
LEGAM, por conta da sua quota disponível, O INDICADO PRÉDIO URBANO a sua filha AA, casada com EE, segundo o regime de comunhão de adquiridos (…) com cláusula de incomunicabilidade em relação ao marido desta.
Que faz este testamento como forma de compensar a sua filha, visto que, em tempos passados, ele e sua mulher deram a seu filho um montante em dinheiro com o qual ele construiu a casa em que habita.»

IV- CONHECIMENTO DA QUESTÃO COLOCADA NO RECURSO
Insurge-se a recorrente contra o despacho recorrido alegando, em suma, que o tribunal a quo ao ordenar a alteração da relação de bens para incluir o legado, admitindo, ainda, a avaliação do imóvel legado (deferindo o assim requerido pelo interessado CC), mas não admitindo o aditamento da doação do dinheiro realizada pelo inventariado e cabeça de casal, desrespeita a vontade do testador de igualização dos quinhões pretendida pelo mesmo, beneficiando o referido interessado em detrimento da ora recorrente.
Ademais, acrescenta, que como sucede com o legado, apesar da dispensa de colação, também em relação a doação, cuja dispensa de colação se presume, nos termos do artigo 2113.º, n.º 3, do Código Civil (CC), deve ser verificada a sua eventual inoficiosidade, o que exige o seu relacionamento.
Vejamos, então, se lhe assiste razão.
Como resulta do despacho recorrido, o fundamento da não admissão do aditamento da alegada doação à relação de bens prende-se com o momento em que tal aditamento veio aos autos, tendo o tribunal a quo considerado, em face da atual tramitação do processo de inventário em relação ao incidente de reclamação contra a relação de bens, que se encontra precludida a possibilidade de se fazer renascer a discussão de questões cujo lugar próprio seria o referido incidente. Sendo que, no caso, nenhuma reclamação foi apresentada.
No caso, estamos perante um processo de inventário facultativo destinado a fazer cessar a comunhão hereditária, ao qual se aplica o regime do processo de inventário aprovado pela Lei n.º 117/2019, de 13-09, encontrando-se a respetiva tramitação inserida no Código de Processo Civil (CPC), mormente nos artigos 1097.º e seguintes.
Não cabendo na economia deste acórdão escalpelizar as inovações introduzidas pelo legislador em relação ao processo de inventário com este diploma legal, é mister mencionar que o legislador introduziu regras de preclusão e de concentração no que diz respeito à alegação das questões relevantes e demonstração probatória do alegado, incrementando, assim, a autorresponsabilidade das partes na prática dos atos processuais (cfr. artigos 1097.º e 1099.º do CPC).
Em relação ao princípio da concentração, o legislador procurou concentrar os meios de defesa dos interessados (oposição, impugnação e reclamação), fixando o prazo de 30 dias, contados desde a citação para os termos da ação, estabelecendo o artigo 1104.º que, nesse prazo, deve ser deduzida oposição ao inventário, impugnar-se a legitimidade dos interessados citados ou alegar a existência de outros, impugnar a competência do cabeça de casal ou as indicações constantes das suas declarações e apresentar reclamação à relação de bens ou impugnar os créditos e as dívidas da herança.
No que diz respeito à relação de bens, prescreve o referido artigo 1104.º, n.º 1, alínea e), do CPC, que o interessado pode apresentar reclamação à relação de bens, estipulando o artigo 1105.º a sequência da tramitação da reclamação, ou seja, notifica-se a reclamação ao cabeça de casal, cabendo ao mesmo apresentar a respetiva resposta também no prazo de 30 dias.
Segue-se, no figurino da lei, a realização de prévias diligências probatórias que couberem ao caso, requeridas ou ordenadas oficiosamente (n.º 3, do referido artigo 1105.º), a eventual realização de uma conferência prévia (artigo 1109.º) ou o saneamento do processo (artigo 1110.º), decidindo-se, então, as questões suscitadas pelas partes, devendo ser elaborado um despacho, cuja finalidade e conteúdo decorre das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 1110.º do CPC, devendo o juiz, nesse despacho, resolver todas as questões suscetíveis de influenciarem a partilha e a determinação dos bens a partilhar, ordenando a notificação dos interessados (e do Ministério Público, sendo o caso) para, querendo, proporem a forma à partilha, designando dia para a conferência de interessados, seguindo-se a demais tramitação processual prevista nos artigos 1111.º e ss.
Esta tramitação evidencia, como faz notar LOPES DO REGO, que «(…) toda a defesa (incluindo a contestação quanto à concreta composição do acervo hereditário, ativo e passivo) deve ser deduzida no prazo de que os citados beneficiam para a contestação/oposição, só podendo ser ulteriormente deduzidas as exceções e meios de defesa que sejam supervenientes (isto é, que a parte, mesmo atuando com a diligência devida, não estava em condições de suscitar no prazo da oposição, dando origem à apresentação de um verdadeiro articulado superveniente), que a lei admita expressamente passado esse momento (como sucede com a contestação do valor dos bens relacionados e o pedido da respetiva avaliação, que, por razões pragmáticas, o legislador admitiu que pudesse ser deduzido até ao início das licitações) ou com as questões que sejam de conhecimento oficioso pelo tribunal.
Daqui decorre, por exemplo, que as reclamações contra a relação de bens tenham de ser necessariamente deduzidas, salvo demonstração de superveniência objetiva ou subjetiva, na fase das oposições – e não a todo o tempo, em termos idênticos à junção de prova documental, como parecia admitir o art. 1348.º, n.º 6, do anterior CPC.»[2]
No sentido da admissibilidade, embora sujeita a restrições, de nova reclamação posterior à fase dos articulados, referem os autores infra mencionados,[3] que «(…) a estruturação sequencial e compartimentada do processo de inventário envolve algumas cominações e preclusões, inexistentes no regime anterior, tendo o novo regime implícito um reforço da auto-responsabilidade das partes: o modelo consagra um princípio de concentração na invocação dos meios de defesa que é em tudo idêntico ao que vigora no artigo 573º: toda a defesa (incluindo a contestação quanto à concreta composição do acervo hereditário, activo e passivo) deve ser deduzida no prazo de que os citados têm para deduzirem oposição (artº 1104º). Assim, por exemplo, é no articulado de contestação que os interessados devem suscitar todas as impugnações, reclamações e meios de defesa, quer respeitem à oposição ao inventário, à legitimidade dos citados ou à competência do cabeça de casal, quer se refiram à relação de bens ou aos créditos e dividas da herança. Institui-se, assim, um efeito cominatório, já que a revelia conduz em regra, ao reconhecimento das dívidas não impugnadas (artº 1106º nº 1 do CPC). Posteriormente só podem ser invocados os meios de defesa que sejam supervenientes (isto é, que a parte, mesmo actuando com a diligência devida, não estava em condições de suscitar no prazo de oposição) ou que a lei admita expressamente passado o momento da oposição ou que se prendam com questões que sejam de conhecimento oficioso (artº 573º nº2). Em comparação com o modelo anterior verifica-se por exemplo, que as reclamações contra a relação de bens devem ser deduzidas na sub-fase da oposição (artºs 1104º nº 1 al. d) e 1105º nº 1) e não a todo o tempo como parecia admitir-se no CP/61»
E mais à frente em anotação ao artigo 1111.º do CPC, referem «(…) assim, por exemplo, pode algum dos interessados deduzir ainda reclamação contra a relação de bens, alegando e demonstrando que, no momento da oposição prevista no artº 1104º nº 1 al. d), não podia, mesmo agindo com a diligência devida, ter conhecimento do fundamento da reclamação que agora pretende deduzir».[4]
Decorre, pois, que o atual regime jurídico do inventário consagra os princípios da concentração e da preclusão, ou seja, a falta de reclamação contra relação de bens com fundamento na falta de relacionamento de ativo e/ou passivo, no prazo previsto no artigo 1104.º, n.º 1, do CPC, tem como consequência a preclusão da possibilidade de reclamação posterior de outros bens que compõem o acervo hereditário, sem prejuízo das situações em que seja admissível a apresentação de um articulado superveniente. O que pressupõe o preenchimento dos requisitos dos articulados supervenientes, adaptados à situação que se apresente em concreto (cfr. artigo 588.º, n.º 2, do CPC), impendendo sobre o reclamante o ónus de alegar e provar a superveniência objetiva ou subjetiva dos fundamentos do aditamento pretendido.
No caso em apreço, é evidente que não se verifica uma situação de superveniência objetiva ou subjetiva nos termos supra referidos.
O que sucede no caso dos autos é que o aditamento à relação de bens decorre da iniciativa do tribunal a quo, e bem, porquanto em face do testamento e da concreta deixa testamentária, o legado deveria ter sido relacionado, desde logo, na relação de bens inicialmente apresentada pela requerente do inventário, a ora, recorrente (artigo 1099.º, alínea c), do CPC), sem prejuízo de o também poder ser aquando da apresentação da completa relação de bens pela cabeça de casal (artigo 1102.º, n.º 1, alínea b), do CPC), o que também não sucedeu.
O que significa que, sem prejuízo da tramitação anterior, o decidido pelo tribunal a quo ao ordenar o aditamento da relação de bens para nele incluir o legado, por eventualmente por haver inoficiosidade do legado, estando inscrito no testamento que o legado visava compensar a legatária (filha) em relação à doação que já antes tinha ocorrido em relação ao outro herdeiro (filho), e, simultaneamente, não admitir o aditamento da alegada doação, pode daí resultar um desequilíbrio na composição dos quinhões dos herdeiros legitimários que o testador e a mulher quiseram precaver.
O que, a prevalecer o despacho recorrido, cria-se uma situação de desigualdade de tratamento das duas situações que se encontram intrinsecamente ligadas como decorre da deixa testamentária, com potencial reflexo no valor que irá compor cada uma das quotas dos referidos herdeiros.
Veja-se que tanto os legados como as doações ditas manuais podem ser feitos por força da quota disponível com dispensa de colação (artigos 2113.º, 2114.º, n.º 1, do CC), mas, ainda assim, ficam sujeitas a inoficiosidade se ofenderem a legítima dos herdeiros legitimários, caso em serão reduzidas (artigos 2168.º, n.º 1, e 2169.º a 2174.º do CC).
Efetivamente, a proteção legal da quota legítima dos herdeiros legitimários é estabelecida, além do mais, na lei por via do normativo que qualifica de inoficiosas as liberalidades entre vivos ou por morte que ofendam a legítima dos herdeiros legitimários (artigo 2168.º do CC).
A inoficiosidade consubstancia-se, assim, na ofensa da legítima dos herdeiros legitimários por via de liberalidades do autor da herança que excedam o âmbito da sua quota disponível, sendo suscetível de abranger as que ocorram entre vivos, como é o caso das doações, ou por morte, como é o caso dos legados (artigo 2168.º do CC).
Em concretização da mencionada proteção, prescreve a lei que as liberalidades inoficiosas são redutíveis, a requerimento dos herdeiros legitimários ou dos seus sucessores, em tanto quanto for necessário para que a legítima seja preenchida (artigo 2169.º do CC).
Ou seja, ainda que os legados e/ou doações sejam feitos por conta da quota disponível com dispensa de colação, situação que evidencia claramente que o testador/doador manifestou a sua vontade no sentido de beneficiar o legatário/donatário, tal não implica que o legado/doação não possa vir a ser reduzido por inoficiosidade.
Ora, se apenas for admitida a inclusão na relação de bens do legado que beneficia um herdeiro legitimário e não a doação de outro bem a outro herdeiro legitimário, os herdeiros ficam em situação de desigualdade, dado o diferente tratamento em relação ao legado e à doação, por esta não ser submetida ao eventual incidente de inoficiosidade.
Consequentemente, no caso em apreço, ainda que não se questione que a atual tramitação do processo de inventário se rege pelos princípios da concentração e da preclusão, é necessário atender à concreta tramitação determinada pelo aditamento da relação de bens ultrapassada que estava a fase de apresentação da relação de bens e da respetiva reclamação.
Donde, em cumprimento do princípio da adequação formal, em prol do princípio do contraditório, do princípio da igualdade das partes e da obtenção de um processo equitativo (artigos 3.º, n.º 3, 4.º, 6.º e 547.º, do CPC, e artigo 20.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa), justifica-se a admissão do aditamento do valor da alegada doação.
Nestes termos, procede a apelação, impondo-se a revogação do despacho recorrido.

V- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar procedente a apelação, revogando o despacho recorrido, e, consequentemente, determinam que seja admitido o aditamento da relação de bens da alegada doação de €31.081,09 a favor do interessado CC.
Sem custas.
Évora, 23-04-2024
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
Maria José Cortes (1.ª Adjunta)
Maria João Sousa e Faro (2.ª Adjunta)
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[1] Prédio urbano composto por casa de e ... andar para habitação, sito na Rua ..., freguesia ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...62, da freguesia ....
[2] A Recapitulação do Inventário, Julgar on line, Dezembro 2019, p. 12 e 13.
[3] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, CARLOS LOPES DO REGO, ANTÓNIO ABRANTES GERALDES e PEDRO LIMA PINHEIRO, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, 2020, p. 9.
[4] Ob. cit, p. 104.