MAIOR ACOMPANHADO
ERRO DE JULGAMENTO
ANULAÇÃO DE SENTENÇA
Sumário


I – A nulidade de uma decisão judicial é um vício intrínseco da mesma e não se confunde com um hipotético erro de julgamento, de facto ou de direito.
II – O não decretamento de qualquer medida de acompanhamento do beneficiário, sob o pretexto da sua desnecessidade, não configura um caso de nulidade da sentença, mas sim de um erro de julgamento.
III – Este Tribunal da Relação não pode alterar a sentença e fixar tais medidas, pois essa alteração não pode ser feita de forma tão ampla que retira a garantia, legal e constitucional, do duplo grau de jurisdição na apreciação, julgamento e decisão das medidas em causa e, assim, será inaplicável quando, como é o caso, não foi fixada uma única medida, por tal ter sido considerado desnecessário.
IV – Impõe-se, nesse caso, anular a sentença por forma a que na mesma sejam fixadas as medidas de acompanhamento do beneficiário.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral


Proc. nº 1573/23.5T8BJA.E1

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
O Ministério Público instaurou ação especial de acompanhamento de maior em benefício de AA, alegando, em síntese, que este se mostra incapaz de reger a sua pessoa e bens, por razões de saúde.
O requerido/beneficiário não contestou, tendo-se procedido à sua audição.
Foi de seguida proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
«Conforme os critérios e fundamentos normativos supra referidos, julga-se a acção procedente e, em consequência:
Decreta-se que o Beneficiário AA, viúvo, filho de BB e de CC, nascido em ../../1938, natural da freguesia ..., concelho ..., residente no ..., sito na Rua ..., ... ... se encontra sujeito ao regime legal do maior acompanhado, nomeando-se como acompanhante o seu filho, DD, residente na Rua ...., ... ....
Para constituir o Conselho de Família, nomeiam-se:
- EE, neta do requerido, residente na Rua ...., ... e
- FF, neto, residente na Avenida ...., em ....
Declara-se que o Acompanhado não possui Directivas antecipadas de vontade (DAV) e / ou Procuração de cuidados de saúde (PCS), por referência ao n.º 3 do artigo 900.º do Código de Processo Civil.
Revisão quinquenal.
Sem custas.
Fixa-se o valor da acção em € 30.000,01.
Registe e notifique.
Comunique-se à Conservatória do Registo Civil (arts. 902º e 894º do CPC).»
Inconformado, o Ministério Público interpôs o presente recurso, tendo finalizado a respetiva alegação com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«A - No âmbito da acção de maior acompanhado peticionou o Ministério Público que, nos termos do disposto nos art. 138.º, 141.º e seguintes do Código Civil e art.º 891.º e seguintes do Código Processo Civil, fosse decretado o acompanhamento ao beneficiário AA, com aplicação do regime da representação geral com constituição do conselho de família.
B - Por sentença proferida em 04.03.2024, decretou a Mm.ª Juiz do Tribunal, quando ao acompanhamento do beneficiário requerido pelo Ministério Público, que, “Apesar da flexibilização do regime jurídico dos maiores acompanhados em contraste com o pretérito regime normativo das incapacidades, não se prescinde da verificação da necessidade do acompanhamento, sendo que por força precisamente do princípio da necessidade, na dúvida, não deve ser decretada nenhuma das medidas de acompanhamento.” (…) “Decreta-se que o Beneficiário AA, viúvo, filho de BB e de CC, nascido em ../../1938, natural da freguesia ..., concelho ..., residente no ..., sito na Rua ..., ... ... se encontra sujeito ao regime legal do maior acompanhado, nomeando-se como acompanhante o seu filho, DD, residente na Rua ...., ... ....”
C - Tendo pois por referência o mesmo principio – o da necessidade, resulta da sentença recorrida que, foram dados como provados pela Mma. Juiz, os seguintes factos:
“2º O requerido nasceu em ../../1938 - vide assento de nascimento.
3º O mesmo sofre de síndrome demencial, vide declaração médica,
5º O requerido precisa de auxilio de terceiros nas suas atividades diárias, tais como na alimentação, na higiene, e quando se veste”
D - Concluindo depois pela sujeição do beneficiário ao regime legal do maior acompanhado, sem decretar a aplicação de qualquer medida concreta nesse âmbito.
E - Dispõe o art. 900º, n.º 1 do C. Processo Civil que «1. Reunidos os elementos necessários, o juiz designa o acompanhante e define as medidas de acompanhamento, nos termos do art. 145º do C. Civil, e, quando possível fixa a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes».
F - Nos termos do art. 138º do C. Civil, o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código.
G - O decretamento de qualquer medida de acompanhamento decorre de uma impossibilidade suficientemente forte e não meramente indiciária de uma pessoa maior encontrar-se de modo pleno, pessoal e consciente impedida de exercer os seus direitos e cumprir os seus deveres no âmbito da sua capacidade jurídica e relativamente aos seus interesses pessoais (130.º; 138.º Código Civil).
H - O Requerido sofre de uma doença psíquica, “demência”, que o limita a nível físico e psicológico, e por isso necessita da ajuda de terceiras pessoas para as atividades básicas e fundamentais da vida diária, decorre desde logo da matéria de facto provada que, o requerido precisa de auxilio de terceiros nas suas atividades diárias, tais como na alimentação, na higiene, e quando se veste, pelo que importará decretar seu acompanhamento consubstanciado na medida adequada.
I - Não nos conformamos com a decisão da sentença recorrida, a saber, que, “que por força precisamente do princípio da necessidade, na dúvida, não deve ser decretada nenhuma das medidas de acompanhamento. Pelo exposto, não se estabelecem outras medidas, além da necessidade de nomeação de acompanhante. (…) o Beneficiário AA, (…) se encontra sujeito ao regime legal do maior acompanhado”.
J - Ora, o n.º2 do art.140º do Código Civil aplica-se às situações que não há necessidade de beneficiar o requerido do regime jurídico do maior acompanhado, e não à presente situação.
L - A sentença que decreta ou não o acompanhamento do maior é algo mais do que um mero ato decisório, é antes uma cuidada e individualizada resposta jurídica que o sistema se propõe a aplicar àquela pessoa (em concreto), sujeito de direitos e deveres.
M - Reportando aos factos dados como provados, a sujeição do beneficiário ao regime do maior acompanhado, sem decretar a sujeição a quaisquer medidas de acompanhamento, não terá qualquer significado no que respeita ao bem-estar, ao exercício dos direitos e cumprimento dos deveres do beneficiário.
N - Atendendo ao exposto não faz qualquer sentido a sentença recorrida decretar que fica o beneficiário sujeito ao regime do maior acompanhado e demitir-se de decretar a medida concreta do acompanhamento escudando-se na sua desnecessidade, até porque tal conclusão está em flagrante contradição com o factos dados como provados.
O - A sentença proferida está ferida de nulidade posto que nos termos do Art.º 608 n.º 2 do CPC o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, e nos termos do art.º 615 n.º 1 al. D), quando o Juiz deixe de se pronunciar quanto a questões que devesse apreciar a sentença é NULA.
P - Ora a sentença recorrida não decreta qualquer medida de acompanhamento ao beneficiário.
Q - Conforme decorre expressamente do disposto no art.º 900.º do CPC, num processo de acompanhamento de maior, as questões a decidir dizem respeito à designação do acompanhante (e eventualmente de acompanhante substituto, de vários acompanhantes e, sendo o caso, do conselho de família) e à definição das medidas de acompanhamento, nos termos do artigo 145.º do CC e, quando possível, à fixação da data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes.
R - A sentença recorrida omitiu a pronúncia sobre uma questão concreta que devia ter conhecido - cf. art.º 615.º, n.º 1, al. d), do CPC -, uma vez que não decretou qualquer medida de acompanhamento ao beneficiário, conforme o disposto no art.145º, n.º2do Código Civil, pelo que está ferida de nulidade.
Pelo exposto, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, e, em consequência, ser declarada a nulidade da sentença nos termos do disposto no art.615º, n.º1, d), do C.P.C., impondo-se a sua substituição por outra que decreta medida ou medidas de acompanhamento adequadas às necessidades da acompanhado AA, pois apenas assim é possível dar conteúdo ao regime do maior acompanhado do qual a requerida beneficia e que se mostra adequado à sua situação de saúde e de vida.
Nestes termos e nos mais de direito, deve o presente recurso ter provimento e em consequência ser declarada a nulidade da sentença, e ainda que assim não seja entendido, deve a decisão ser substituída por outra que decida concretamente sobre as medidas decretadas ao beneficiário no âmbito do seu acompanhamento, para que assim se faça JUSTIÇA;»

Não foram apresentadas contra-alegações.

Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão essencial decidenda consubstancia-se em saber se a sentença é nula por omissão de pronúncia quanto às medidas a decretar ao beneficiário no âmbito do acompanhamento, ou se não se trata antes de erro de julgamento, por não terem sido decretadas tais medidas.

FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Na sentença recorrida foram considerados provados (da petição inicial) os seguintes factos:
2º O requerido nasceu em ../../1938.
3º O mesmo sofre de síndrome demencial.
5º O requerido precisa de auxílio de terceiros nas suas atividades diárias, tais como na alimentação, na higiene, e quando se veste.

O DIREITO
Da nulidade da sentença
Imputa o recorrente à sentença recorrida a nulidade prevista na alínea d) do artigo 615º do CPC.
De acordo com este preceito, a sentença é nula «Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento»; tal normativo está em consonância com o comando do nº 2 do art. 608º do CPC, no qual se prescreve que «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
No caso em apreço, ao invés do que entende o Ministério Público, não estamos perante um caso de nulidade da sentença, uma vez que o tribunal a quo não deixou de se pronunciar quanto às medidas a decretar ao beneficiário no âmbito do acompanhamento, mas entendeu que não se justificava o decretamento de qualquer medida.
Com efeito, escreveu-se na sentença recorrida:
«Decorre da audição do Beneficiário que o mesmo não obstante padecer de doença física que obriga a vários apoios nas actividades da vida diária nomeadamente, de alimentação, está amparado no Lar em que reside e na sua família. Efectivamente, no caso judicando, impõe-se sopesar os deveres gerais de cooperação e de assistência mobilizáveis, por referência ao n.º 2 do artigo 140.º do Código Civil, ante a circunstância de o Requerido ter apoio na comunidade e na família.
Apesar da flexibilização do regime jurídico dos maiores acompanhados em contraste com o pretérito regime normativo das incapacidades, não se prescinde da verificação da necessidade do acompanhamento, sendo que por força precisamente do princípio da necessidade, na dúvida, não deve ser decretada nenhuma das medidas de acompanhamento.
Pelo exposto, não se estabelecem outras medidas, além da necessidade de nomeação de acompanhante.»
A nulidade de uma decisão judicial é um vício intrínseco da mesma e não se confunde com um hipotético erro de julgamento, de facto ou de direito, que é o que se verifica in casu, como passamos a demonstrar.
Estipula o art. 900º, nº 1, do CPC, que «[r]eunidos os elementos necessários, o juiz designa o acompanhante e define as medidas de acompanhamento, nos termos do art. 145º do C. Civil, e, quando possível fixa a data a partir da qual as medidas decretadas se tornaram convenientes».
Por sua vez, dispõe 138º do Código Civil [CC] que «[o] maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas neste Código».
O nº 2 do art. 140º do CC invocado na decisão recorrida aplica-se às situações em que não há necessidade de beneficiar o requerido do regime jurídico do maior acompanhado, e não à presente situação, onde está dado como provado que o requerido sofre de síndrome demencial e precisa de auxílio de terceiros nas suas atividades diárias, tais como alimentação, higiene, e quando se veste.
Como bem aduz o recorrente, «[a] sentença que decreta ou não o acompanhamento do maior é algo mais do que um mero ato decisório, é antes uma cuidada e individualizada resposta jurídica que o sistema se propõe a aplicar àquela pessoa (em concreto), sujeito de direitos e deveres».
A propósito do conteúdo do acompanhamento escreve Mafalda Miranda Barbosa[1]:
«(…), o conteúdo do acompanhamento é variável de acordo com as necessidades concretamente evidenciadas pelo sujeito beneficiário. O acompanhamento corresponde, na expressão de Pinto Monteiro, a um fato à medida e, assim sendo, o desenho concreto que conheça fica dependente das necessidades específicas do acompanhado.
Inultrapassável é, com efeito, a regra segundo a qual o acompanhamento se deve limitar ao necessário. Orientado por este padrão de necessidade, o Tribunal pode atribuir ao acompanhante um ou vários poderes, consoante o que seja requerido pela concreta situação do acompanhado, fazendo, assim, intervir diversos regimes jurídicos. Entre as funções que se podem atribuir ao acompanhante, destacam-se, nos termos do artigo 145.º/2 CC, (…), o exercício das responsabilidades parentais ou dos meios de as suprir; a representação geral ou especial, com indicação expressa, neste caso, das categorias de atos para que seja necessária; a administração total ou parcial de bens; a autorização prévia para a prática de determinados atos ou categorias de atos; intervenções de outro tipo.
Significa isto que as situações de acompanhamento podem ser muto díspares, indo desde um mínimo até um máximo, em que o acompanhado é representado na celebração dos diversos negócios jurídicos em que seja parte. No meio-termo encontramos situações de assistência».
Não faz, pois, «qualquer sentido a sentença recorrida decretar que fica o beneficiário sujeito ao regime do maior acompanhado e demitir-se de decretar a medida concreta do acompanhamento escudando-se na sua desnecessidade, até porque tal conclusão está em flagrante contradição com os factos dados como provados», como bem diz o recorrente.
In casu, porque não se trata de nulidade da sentença por omissão de pronúncia, como vimos supra, não funciona a regra da substituição ao tribunal recorrido (art. 665º do CPC)
Considerando a existência de erro de julgamento, será que pode esta Relação alterar a sentença recorrida por não ter elencado as medidas de acompanhamento do beneficiário?
Pensamos que tal alteração não pode ser feita de forma tão ampla que pretira a garantia, legal e constitucional, do duplo grau de jurisdição na apreciação, julgamento e decisão das medidas em causa e, assim, será inaplicável quando, como é o caso, não foi fixada uma única medida, por tal ter sido considerado desnecessário.
Assim, ainda que com fundamentação não totalmente coincidente com a do recorrente, procede a apelação, havendo que anular a sentença por forma a que na mesma sejam fixadas as medidas de acompanhamento do beneficiário.
Ante a isenção legal, não há lugar à condenação do recorrente nas custas do presente recurso - cf. art.º 4.º, n.º 2, al. h), do RCP.


IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, anula-se a sentença recorrida por forma a que na mesma se fixem as medidas de acompanhamento do beneficiário.
Não são devidas custas pelo recurso, atenta a isenção legal.

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Évora, 11 de abril de 2024
Manuel Bargado (relator)
José António Moita (1º adjunto)
Ana Pessoa (2ª adjunta)
(documento com assinaturas eletrónicas)
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[1] Maiores Acompanhados, Primeiras Notas depois da aprovação da Lei n.º 49/2018, de 14 de agosto, Gestlegal, p. 60.