EXECUÇÃO PARA PRESTAÇÃO DE FACTO
EMPREITADA
TRANSACÇÃO
MORA DO CREDOR
Sumário


I - A convocação no âmbito de um contrato de empreitada de um regime jurídico de direito público não provoca qualquer alteração quanto à natureza do contrato celebrado entre os sujeitos privados, que se mantém como um negócio de direito privado.
II – A aplicação de regras de direito público in casu, funda-se no acordo das partes que, ao abrigo da liberdade contratual, previram no contrato o recurso às normas do Código dos Contratos Públicos.
III - Ainda que assim não fosse, não se vê razões para estabelecer, de uma forma definitiva, a não aplicação dessas normas do regime de direito público quando as disposições relativas às empreitadas de obras particulares sejam omissas na regulação de uma situação específica.
IV - A mora do credor pressupõe a verificação de dois requisitos cumulativos: i) a recusa do credor ou a não realização pelo mesmo da colaboração necessária para o cumprimento da prestação; ii) a ausência de motivo justificado para essa recusa ou omissão.
V - Os atos não praticados pelo credor, ou por ele voluntariamente omitidos, deverão ser ainda atos de cooperação essenciais.
VI – Negando os exequentes a presença em obra do diretor de fiscalização por si indicado, para esclarecer a metodologia de execução do reboco que prescreveu, o que se mostra necessário ao prosseguimento dos trabalhos a realizar pela executada, verifica-se mora dos exequentes.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral


Proc. nº 36/20.5T8SRP-A.E1

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora

I - RELATÓRIO
Por apenso à execução para prestação de facto, que AA e BB movem a A..., Lda., veio esta última deduzir oposição à execução mediante embargos, pedindo que seja decretada «a extinção total da execução e absolvendo-se a executada da instância executiva».
Alega, em síntese, verificar-se mora dos exequentes/embargados (credores) por falta de colaboração com a executada/embargante (devedora) na execução da obrigação, designadamente por não disponibilizarem a presença em obra de um fiscal, sem o qual não é possível executarem a respetiva obrigação.
Os exequentes apresentaram contestação, sustentado não ser obrigatória a presença do fiscal da obra no decurso desta, concluindo pela improcedência dos embargos.
Foi realizada audiência prévia, e não tendo sido possível a conciliação entre as partes, foi concedido a estas prazo para alegarem por escrito, tendo em vista o conhecimento do mérito dos embargos.
Subsequentemente foi proferido despacho saneador/sentença, que julgou a oposição à execução procedente e, em consequência, extinta a execução.
Inconformados, os exequentes/embargados apelaram do assim decidido, finalizando a respetiva alegação com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«I - Os presentes autos de embargos foram deduzidos no âmbito de um processo execução de sentença para prestação de facto
II - Prévia a esta execução, pendeu a ação declarativa onde os ora Recorrentes peticionaram a condenação da Recorrida na execução de obras de reparação de vícios existentes na moradia que aquela tinha construído no âmbito de um contrato de empreitada celebrado entre ambas as partes.
III - Esta ação declarativa terminou por acordo alcançado pelas partes, ou seja, por transação, a qual regulou os aspetos que as partes contratantes, no exercício da sua autonomia privada, tiveram por adequados e necessários à resolução do litígio.
IV - Este acordo foi homologado por sentença, a qual transitou em julgado, uma vez que não foi objeto de reclamação pela nem de recurso por nenhuma das partes.
V- Tendo-se verificado o não cumprimento por parte da Recorrida que não deu continuidade à prestação a que se obrigou, os Recorrentes acionaram a competente ação executiva na jurisdição comum, suportados quer na decisão judicial condenatória, quer no regime jurídico substantivo aplicável, o regime de empreitada previsto nos artigos 1207 do Código Civil
VI - O Tribunal a quo tendo dado como provado, naturalmente, a sentença homologatória de transação alcançada entendeu ainda que era obrigatória a existência de um diretor de fiscalização de obra por tal ser exigível nos termos do DL 31/2009, diploma aplicável face ao disposto do artigo 2/a) do decreto-lei 555/99.
VII - A existência de um diretor de fiscalização de obra não foi objeto de regulação na transação homologada, nem teria que o ser mesmo à luz do regime jurídico invocado pelo Tribunal a quo, uma vez que o mesmo não se aplica ao contrato de empreitada, nem poderia nunca ser apreciado por este tribunal fiz uma por se tratar de matéria jus administrativa:
Neste sentido; cfr: Acordao Tribunal da Relação de Guimarães, no proc. N. 2824/20.3T8BCL.G1 II - O escopo desses diplomas (RGEU, PDM e RJUE e outras normas de direito administrativo), não é a concessão ou reconhecimento de direitos subjetivos a particulares. A relação jurídica emergente de tais normas estabelece entre a administração e os seus destinatários – é uma relação jurídica administrativa
VIII – Ao fazê-lo a sentença terá de ser substituída por outra que absolva os Apelantes por incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria – cfr. Art. 96 do CPC
IX - Aquilo que as partes previram, no acordo homologado, e como encargo de ambas, foi a contratação de um engenheiro, identificado no texto de transação e sob a condição de ele aceitar, para proceder à elaboração do relatório final da obra, no qual de resto deveria assinalar as opções de manutenção a cargo dos donos da obra, se tal fosse necessário é o que resulta expressamente dos pontos 5 e 6 da da sentença executada.
IX – O Tribunal a quo considerou que a presença do referido Engenheiro, assumindo a qualidade de diretor de fiscalização de obra - cargo que o próprio nunca assumiu, nem a tanto se propôs -, era indispensável para a execução da prestação de facto devida, isto é a realização das obras, e, consequentemente, entendeu por essa razão, que existia mora do credor pelo que a obrigação da apelada não era ainda exigível.
X – Contudo a prestação a que a Apelada estava obrigada foi por ela iniciada, sem referir e muito menos exigir a presença do Engenheiro CC (cfr. Pontos 2,3 e 4 da sentenca recorrida), identificado pelo Tribunal a quo como director de fiscalização da obra.
X – Ora, de acordo com a sentença homologatória da transação desejada pelas partes, não existia da parte dos Embargados nenhuma obrigação de solicitar a comparência do Engenheiro CC na obra, no início, durante ou no fim.
XI - Se tal intervenção fosse exigível nos termos em que o Tribunal a quo desenhou – o que aqui apenas se concede para exercício - qualquer uma das partes poderia promover o contacto com tal finalidade porque ambas as partes acordaram em assumir o pagamento em partes iguais dos honorários do mesmo – cfr. Ponto 5 da sentença homologatória e considerada provada sob o ponto 1 dos factos provados.
XII – O tribunal a quo ao aditar um requisito de exequibilidade da transação que não foi regulado pelas partes, alterou uma sentença transitada em julgado, poder que lhe está vedado.
XIII - Ficando a instância definitivamente extinta, com a prolação da sentença homologatória, deixa de poder ser apreciado qualquer facto ou circunstância respeitante à transação. Acórdão de 03/03/2020 do STJ
XIV – A transação é um negócio jurídico regulado pelas partes que livremente se limitam e estabelecem concessões, incluindo a de intentar nova acção que gere o debate e prova do que foi já decidido :Porque não quiseram manter a relação material controvertida sujeita à intervenção judicial, as partes acordaram, mediante concessões recíprocas, que a possível proteção jurídico-judicial que lhes poderia ser concedida cessava com a transação, renunciando, expressa ou tacitamente, ao direito de prosseguir a ação intentada: efeito extintivo da contenda. Assim, encontra-se vedado às partes intentar nova ação relativamente a <res controvertida>, uma vez que esta se encontra, para as partes, decidida. Trata-se de uma prestação jurídica de conteúdo negativo, de não suscitar nova discussão sobre a matéria anteriormente controvertida: <ne bis in idem transactum.> ; cfr. Citado Acórdão do STJ
XV – O Tribunal a quo sustentou a sua decisão numa grosseira violação do caso julgado formal e material
Neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09/12/2023: A prolação de sentença homologatória da transação, transitada em julgado, extingue a instância na sua totalidade, tem como efeito o esgotamento do poder judicial jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa, constituindo sobre ela caso julgado formal e material.
XVI – A decisão recorrida fez errada interpretação dos artigos 1207; 1248 e seguintes do Código Civil e 621 CPC e aplicou erradamente o regime jurídico do DL 555/99 e DL 32/2009, com o que violou o disposto no artigo 37 e 40 da Lei 62/2013 e art: 1 da Lei 13/2002.
XVII – Deve, por isso, ser revogada e substituída por outra que absolva os Apelantes da instância face à violação das regras da competência material ou, quando assim não se entenda, substituída por outra que determine a improcedência dos embargos e a procedência da execução, por ser de elementar Justica!»

A embargante/executada contra-alegou, defendendo a manutenção do sanador/sentença recorrido.

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

II – ÂMBITO DO RECURSO
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), são as seguintes as questões a decidir:
- competência em razão da matéria do tribunal a quo;
- mora dos exequentes (credores) quanto ao cumprimento da obrigação emergente da transação realizada entre as partes na ação declarativa, que torna impossível o cumprimento da obrigação pela executada (devedora).

III – FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
Na decisão recorrida foram dados como provados os seguintes factos:
1) Por sentença homologatória proferida a 03/03/2022 foi acordado entre as partes o seguinte:
“1 - A Ré aceita proceder à execução das obras na moradia unifamiliar, na Rua ..., ..., ..., ..., em ..., obras essas identificadas no pedido formulado pelos autores e que se consubstanciam nas seguintes:
1.1. Picagem geral dos rebocos exteriores até ao suporte (taipa);
1.2. Aplicação de salpico com Argamassa para a estabilização e homogeneização à base de Cal Hidráulica natural (NHL) do tipo “Reabilita Cal Consolidação da Secil”;
1.3. Aplicação de rede de fibra de vidro com 160 grª/m2
1.4. Aplicação camada de emboço de Argamassa de reboco com fibras naturais, à base de Cal Hidráulica Natural (NHL), para enchimento e regularização de paredes, tipo “reabilita Cal Reboco da Secil”;
1.5. Aplicação camada reboco de acabamento através de Argamassa de acabamento à base de Cal Hidráulica Natural (NHL) do tipo “reabilita Cal acabamento da Secil”;
1.6. Pintura através de tinta de silicatos, ou cal. (p.15);
tudo nas dimensões e quantidades melhor descritas no orçamento junto aos autos pelos autores e identificado como doc. ... da Petição Inicial daqueles.
2- As obras iniciar-se-ão no prazo máximo de 30 (trinta) dias, se as condições climatéricas o permitirem, e previsivelmente desenrolar-se-ão ao longo de 3 (três) meses, sempre de acordo com as condições climatéricas.
3- Os Autores reduzem o pedido por danos patrimoniais e não patrimoniais, para o valor de €2000,00, sendo este o valor que a Ré aceita pagar no prazo de 3 (três) meses, mediante transferência bancária para conta a indicar pelos Autores ao Mandatário da Ré, no prazo de 5 dias.
4- Os Autores desistem dos demais pedidos formulados.
5- Autores e Ré acórdão em promover, no final da obra, o relatório de execução da mesma, a ser realizado pelo Sr. Eng. CC, se ele aceitar, e assumindo ambas as partes o pagamento em partes iguais dos honorários do mesmo, admitindo como referência o valor de 7 (sete) UC’s, por ser o valor satisfeito aos peritos que realizaram perícia neste processo judicial.
6- O técnico que realizar o relatório deverá especificar as operações de manutenção a cargo dos donos da obra, se considerar necessário.
7- Autores e Ré acordam em suportar as custas em divida em partes iguais, prescindindo das custas de parte.”
2) A embargante iria iniciar os trabalhos a ../../2022, não o tendo feito a pedido dos embargados que contrapuseram a data de ../../2022;
3) No dia e hora acordados a embargante não compareceu no local da obra, dizendo que tal ocorreu por motivo de avaria no carro que transportava os trabalhadores;
4) Tendo informado posteriormente que iria iniciar os trabalhos no dia ../../2022, o que aconteceu, tendo sido concluída a fase de remoção do reboco no dia ../../2022;
5) A ../../2022, a embargante informou os embargados que estava a aguardar material do fornecedor para retomar os trabalhos e reclamou a presença do Eng.º CC, diretor de fiscalização, para coordenação da execução da obra e esclarecimento da metodologia de execução do reboco;
6) Tendo os embargados respondido que aquele só iria, no final da obra, promover o relatório de execução, não havendo lugar à intervenção do mesmo nos termos pretendidos;
7) A embargante continuou a reclamar a presença do Eng.º CC na obra, tendo os embargados sempre negado darem satisfação a esta pretensão;
8) A presença daquele destinava-se a esclarecer a metodologia de execução do reboco que prescreveu, bem como para acompanhar os trabalhos a fim de poder elaborar o relatório de execução da obra;
9) Pois o reboco previsto em projeto e executado em obra foi substituído por outro com características completamente diferentes, tendo esta definição e projeto de execução sido da autoria do Eng.º CC;

Consignou-se na sentença que, por inexistirem, não foram considerados factos não provados.

O DIREITO
Da competência em razão da matéria
Dizem os recorrentes que a existência de um diretor de fiscalização de obra não foi objeto de regulação na transação homologada, nem teria que o ser, mesmo à luz do regime jurídico invocado pelo Tribunal a quo, porquanto o mesmo não se aplica ao contrato de empreitada, dado tratar-se de matéria de direito administrativo [conclusão VII], pelo que ao fazê-lo, «a sentença terá de ser substituída por outra que absolva os Apelantes por incompetência absoluta do Tribunal em razão da matéria».
Mas não têm razão os recorrentes.
Dispõe o art. 85º, nº 1, do CPC, que «[n]a execução de decisão proferida por tribunais portugueses, o requerimento executivo é apresentado no processo em que aquela foi proferida, correndo a execução nos próprios autos e sendo tramitada de forma autónoma, exceto quando o processo tenha entretanto subido em recurso, casos em que corre no traslado.»
Na base da presente execução esteve uma ação declarativa, na qual os ora recorrentes peticionaram a condenação da recorrida na execução de obras de reparação de vícios existentes na moradia que aquela tinha construído no âmbito de um contrato de empreitada celebrado entre as partes, em cuja cláusula 10ª estipularam: «[e]m tudo aquilo que se encontrar omisso no presente contrato, aplicar-se-á a lei geral em vigor, o Código dos Contratos Públicos (CCP), Decreto-Lei n.° 18/2008 de 29 de Janeiro.»
A convocação, in casu, de um regime jurídico de direito público pelas partes, não provoca qualquer alteração quanto à natureza do contrato celebrado entre os sujeitos privados, que se mantém como um negócio de direito privado.
E não é o facto de o tribunal a quo ter aplicado normas substantivas de direito público a um contrato de empreitada de obra particular, que determina a sua perda de competência para apreciar e decidir o litígio em causa.
Quando muito estaríamos perante uma decisão ilegal - o que não é caso, como veremos infra -, o que nada tem a ver com a competência material do tribunal.
Assim, ao invés do afirmado pelos recorrentes, a sentença recorrida não viola o disposto nos arts. 37º e 40º, da Lei 62/2013 (Lei da Organização do Sistema Judiciário), pois o tribunal a quo não decidiu questão que esteja submetida a outra jurisdição.
Soçobra assim este segmento recursivo.

Da mora dos credores/exequentes
Insurgem-se os recorrentes contra o entendimento da sentença recorrida, de considerar que a presença do engenheiro identificado na transação efetuada entre as partes, na qualidade de diretor de fiscalização de obra - cargo que o próprio nunca assumiu, nem a tanto se propôs -, era indispensável para a execução da prestação de facto devida, isto é, a realização das obras.
Dizem os recorrentes que de acordo com a sentença homologatória da transação desejada pelas partes, não existia da parte dos Embargados nenhuma obrigação de solicitar a comparência do Engenheiro CC na obra, no início, durante ou no fim, «pois se tal intervenção fosse exigível nos termos em que o Tribunal a quo desenhou – o que aqui apenas se concede para exercício - qualquer uma das partes poderia promover o contacto com tal finalidade porque ambas as partes acordaram em assumir o pagamento em partes iguais dos honorários do mesmo – cfr. Ponto 5 da sentença homologatória e considerada provada sob o ponto 1 dos factos provados».
Concluem desse modo que o tribunal recorrido, «ao aditar um requisito de exequibilidade da transação que não foi regulado pelas partes, alterou uma sentença transitada em julgado, poder que lhe está vedado.»
Escreveu-se na sentença recorrida:
«(…) a embargante solicitou a presença do diretor de fiscalização para esclarecer a metodologia de execução do reboco que prescreveu e tal não foi atendido pelos embargados que se recusaram a dar cumprimento a tal pretensão. Assim, a questão prende-se com a necessidade ou não da presença deste no local.
Entende-se que assiste razão à embargante quanto à necessidade de o Sr. Engenheiro CC estar presente no local da obra aquando da sua execução.
E assim se entende, pois, tendo em conta o tipo de trabalhos em causa, subsumíveis ao conceito de obras de edificação – cfr. artigo 2.º, al. a), do DL n.º 555/99, de 16 de dezembro –, à sua execução é aplicável o regime previsto na Lei n.º 31/2009, de 03 de julho, como o determina o seu artigo 2.º, n.º 1, al. a).
Portanto, no decurso da execução da obra existe um diretor de fiscalização de obra a quem incumbe assegurar a verificação da execução da obra em conformidade com o projeto de execução e, quando aplicável, o cumprimento das condições da licença ou da comunicação prévia, bem como o cumprimento das normas legais e regulamentares aplicáveis, e ainda o desempenho das competências previstas no Código dos Contratos Públicos, em sede de obra pública – artigo 3.º, al. f), do referido diploma legal –, sendo que, no caso, ficou estabelecido que tal cargo incumbiria ao referido engenheiro.
Como o estabelece o artigo 16.º, n.º 1, al. a) e b), da Lei n.º 31/2009, o direito de fiscalização de obra fica obrado a (i) assegurar a verificação da execução da obra em conformidade com o projeto de execução, o cumprimento das condições da licença ou admissão e o cumprimento das normas legais e regulamentares em vigor; (ii) acompanhar a realização da obra com a frequência adequada ao integral desempenho das suas funções e à fiscalização do decurso dos trabalhos e da atuação do diretor de obra no exercício das suas funções, emitindo as diretrizes necessárias ao cumprimento do disposto na alínea anterior.
Logo, pese embora não seja obrigatória a sua presença diária na obra – a mesma é necessária com a frequência adequada ao cumprimento das obrigações de fiscalização –, certo é que a mesma deve ser assegurada de forma a permitir a execução dos próprios trabalhos, o que não aconteceu. E assim é na medida em que, requerida a sua presença por necessária ao esclarecimento da metodologia de execução do reboco que prescreveu, tal foi negado pelos donos da obra, vedando, desse modo, a continuação da execução da obra por parte da embargante.»
Concordamos com este entendimento.
Em primeiro lugar, afigura-se de todo correto o recurso às normas do Código dos Contratos Públicos invocadas, o que não se traduz, ao invés do que afirmam os recorrentes, no aditamento de um requisito de exequibilidade da transação efetuada pelas partes no âmbito da ação declarativa.
Referem, a este propósito, Pedro Vieira da Gama Lobo Xavier e Vasco Xavier da Gama Lobo Ribeiro de Mesquita[1]:
«(...). A aplicação de normas jurídicas de direito público pode resultar exclusivamente da vontade das partes que, por qualquer razão, entendem que a satisfação dos seus interesses é melhor prosseguida através da recepção de regimes jurídicos de direito público. Acresce, ainda, que a observância de regras substantivas de direito público pode ser imposta por os contratos serem financiados por entidades públicas (entidades adjudicantes)[…] ou por ser conveniente nos casos em que o cumprimento de regras de contratação pública constituir condição de elegibilidade de despesas efectuadas no âmbito de contratos objecto de co-financiamento comunitário[…].
Ora, a convocação neste âmbito de um regime jurídico de direito público não provoca qualquer alteração quanto à natureza do contrato celebrado entre os sujeitos privados, que se mantém como um negócio de direito privado, pelo que, apesar de o contrato integrar normas de origem pública, este não deixa de se apresentar como pertencendo ao direito privado. Na verdade, a aplicação de regras de direito público funda-se no acordo das partes que, ao abrigo da liberdade contratual, escolheram um regime jurídico substantivo de direito público para disciplinar a sua relação jurídica, que não se lhes aplicaria não fosse a opção convencional.»
Como vimos supra, estipularam as partes na cláusula 10ª do contrato de empreitada, que «[e]m tudo aquilo que se encontrar omisso no presente contrato, aplicar-se-á a lei geral em vigor, o Código dos Contratos Públicos (CCP), Decreto-Lei n.º 18/2008 de 29 de Janeiro».
É, pois, o próprio contrato de empreitada a prever o recurso às normas do CCP e, ainda que assim não fosse, «não vemos razões para ditar, de uma forma definitiva, a não aplicação dessas normas do regime de direito público quando as disposições relativas às empreitadas de obras particulares sejam omissas na regulação de uma situação específica[…]. Com efeito, a interpenetração dos regimes da empreitada pública e civil continuam actualmente bem patentes no próprio Código dos Contratos Públicos, que no seu artigo 280.º, n.º 3, determina que em que tudo o que não estiver regulado nesse diploma «… ou em lei especial e não for suficientemente disciplinado por aplicação dos princípios gerais de direito administrativo, são aplicáveis às relações jurídicas administrativas, com as necessárias adaptações, as restantes normas de direito administrativo e, na falta destas, o direito civil». Por outro lado, sendo este um regime bastante mais densificado e detalhado e presumindo-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (artigo 9.º, n.º 3, do Código Civil ), parece-nos admissível e até legítimo que um juiz, no momento de interpretar determinada disposição contratual, se socorra da «… norma mais clara e explícita para fixar a interpretação de uma outra norma (paralela) mais obscura ou ambígua»[…]. Da mesma forma, nada parece impedir no processo de integração de eventuais lacunas a um caso omisso se proceda à transposição da regulamentação do regime jurídico das empreitadas de obras públicas no caso análogo, à luz do n.º 2 do artigo 10.º do Código Civil[…][2].
Ademais os próprios termos da transação realizada entre as partes, evidenciam que a prescrição da obra é a cargo dos exequentes/recorrentes, quando aí se refere «obras essas identificadas no pedido formulado pelos autores», pelo que não pode imputar-se à sentença recorrida a violação do caso julgado formal e material da sentença proferida na ação declarativa: a sentença homologatória da transação.
De acordo com o art. 813º do Código Civil, «[o] credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os atos necessários ao cumprimento da obrigação».
A mora do credor pressupõe, portanto, a verificação de dois requisitos cumulativos:
a) A recusa do credor ou a não realização pelo mesmo da colaboração necessária para o cumprimento da prestação; e
b) A ausência de motivo justificado para essa recusa ou omissão.
Todavia, para que tal mora seja relevante não basta uma qualquer recusa ou omissão, sendo, antes, de exigir que os atos não praticados pelo credor, ou por ele voluntariamente omitidos, sejam atos de cooperação essenciais[3].
Contrariamente ao que acontece quanto à mora do devedor, a mora do credor, a que alude o artigo 813º do Código Civil, não depende de existência de culpa, ou seja, não se exige que a sua não aceitação da prestação ou a omissão da sua colaboração sejam censuráveis.
Como bem aduz a executada/recorrida nas contra-alegações, «[a] execução deste tipo de trabalhos não é viável sem que sejam prestadas concretas instruções e orientações na obra, fase a fase, no modo de aplicação dos materiais e equipamentos, para cumprimento das intenções da nova prescrição.
Tal não é susceptível de ser deixado ao livre critério da embargante.
A remoção do reboco (fase anterior) não exigia a presença de técnico e director de fiscalização, dai não ter sido suscitada.
Mas, faltando definir a aplicação do reboco, sem o que não é possível passar à execução dos demais trabalhos, é imprescindível a sua presença ou colaboração.»
Dúvidas não há, pois, que os recorrentes não praticaram os atos necessários ao cumprimento da obrigação a cargo da recorrida.
Assim, como certeiramente se escreve na sentença recorrida, «(…), encontrando-se os embargados em mora desde ../../2022 – quando ainda só tinham decorrido 8 dias desde o início do prazo de três meses acordado para conclusão da obra – entende-se que a obrigação exequenda não é exigível por o atraso verificado ser imputável aos credores e, por isso, ainda não ter sido esgotado o prazo conferido à devedora para o seu cumprimento.
Consequentemente, falta um dos requisitos da obrigação exequenda nos termos do disposto no artigo 713.º, do Código de Processo Civil, sendo os embargos deduzidos procedentes o que determina a extinção da execução ao abrigo do artigo 732.º, n.º 4, do mesmo diploma legal».
Por conseguinte, o recurso improcede, não se mostrando violadas as normas invocadas ou quaisquer outras.
Vencidos no recurso, suportarão os embargados/recorrentes as custas respetivas (art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC).


IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes.

*
Évora, 23 de abril de 2024
Manuel Bargado (relator)
Ana Pessoa (1ª adjunta)
Maria Adelaide Domingos (2ª adjunta)
(documento com assinaturas eletrónicas)
_________________________________________________
[1] In Aplicação de normas substantivas de direito público a contratos de empreitada de obra particular: um caso de fuga para o direito público”, disponível em:
https://revistas.ucp.pt/index.php/direitoejustica/article/view/9965/9685, com última visualização em 16.04.2024. Citados também pela recorrida nas contra-alegações.
[2] Ibidem.
[3] Cfr., inter alia, Acórdão da Relação do Porto de 15.09.2022, proc. 15679/18.9T8PRT-A.P1, in www.dgsi.pt.