PROCURAÇÃO IRREVOGÁVEL
Sumário


1 – O ponto relevante para aferir da irrevogabilidade de uma procuração é que da relação basilar, que está na origem da decisão do “dominus”, resulte a existência de um interesse conferido também no interesse do mandatário, ou representante, ou de terceiro, que incorpore um direito subjectivo que transcenda o mero interesse do mandante ou do representado.
2 – Satisfaz as exigências legais referentes ao termo de autenticação de um documento particular a referência neste de que os outorgantes confirmaram perante o autenticador que leram esse documento ou que conhecem o seu conteúdo e que este corresponde à sua vontade.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral


Apelação n.º 453/22.6T8BJA.E1 (1ª Secção Cível)

ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO
Os Autores, AA, BB e CC, instauraram a presente acção declarativa com processo comum contra os Réus DD e EE.
Alegam os Autores, em suma, que foi celebrado um negócio de doação de um prédio urbano, que descrevem, tendo na escritura respectiva o Réu DD intervenção como donatário e também como representante dos doadores, seus pais – FF, entretanto falecido, e a Ré EE.
O Réu DD representou os doadores seus pais por possuir uma procuração, emitida por estes, que lhe permitia efectuar o negócio consigo próprio.
Entretanto faleceu o doador FF, e os Autores (netos dele) e os Réus (filho e viúva dele) são os seus herdeiros.
Dizem os Autores que a procuração em causa era uma procuração irrevogável, por permitir a celebração de negócio consigo mesmo, e consequentemente deveria ter sido elaborada por instrumento público.
E ainda que no termo de autenticação dessa procuração consta que FF disse ter lido a procuração, mas este não pode ter lido por ser invisual.
Concluem os Autores que uma e outra circunstância determinam a invalidade da procuração e do termo de autenticação, e consequentemente do contrato de doação acima referido (em que o Réu DD esteve na qualidade de donatário, outorgando por si, e em representação dos doadores, seus pais, munido precisamente da referida procuração).
Pelo exposto, peticionam os Autores que seja declarada a “nulidade da procuração irrevogável, efetuada por documento particular, por falta de forma, e em consequência” também a “nulidade/ineficácia da doação do prédio urbano, sito na ..., por carência da forma legalmente prevista na lei” e o “cancelamento do registo da aquisição a favor do 1ª Réu efetuado sob a AP. ...83 de 20/08/2020 registada na Conservatória do Registo Predial de Beja”.
Contestaram os Réus, dizendo em suma que a procuração em causa não pode classificar-se como irrevogável, pelo que não estava sujeita às aludidas exigências de forma, e por outro lado alegando-se que o autenticador leu e explicou, não só o conteúdo da própria autenticação em si, como da própria procuração, e que inclusivamente a segunda Ré veio posteriormente a ratificar por instrumento público o contrato de doação.
Concluem os Réus que não existindo qualquer desvalor no documento particular autenticado a que se referem os Autores, também por consequência não sofre de qualquer invalidade o contrato de doação outorgado pelo 1.º Réu munido de tal procuração, pelo que os pedidos deduzidos são improcedentes.
Prosseguiram os autos, percorrendo a tramitação normal, concluindo com a realização do julgamento e a prolação de sentença, que julgou a acção totalmente improcedente e absolveu os Réus do peticionado.

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II – O RECURSO
Contra a decisão proferida insurgiram-se os Autores, através do presente recurso de apelação, apresentando alegações que terminaram com as seguintes conclusões:
“1º- Requer-se a integração na base probatória como fatos provados, que os outorgantes conferiram ainda poderes ao procurador para representá-los junto de quaisquer conservatórias do Registo Predial, Serviços de Finanças e Câmara Municipais, onde poderá liquidar impostos ou contribuições, requerer certidões, informações, inscrições matriciais e avaliações fiscais, registos, inscrições, averbamentos, cancelamentos, retificações de áreas, prestar declarações complementares, praticar, requerer e assinar mais quanto seja preciso aos indicados fins.
2º- Requer-se igualmente a integração na base probatória como fato não provado que, a falsa declaração contida no termo de autenticação, foi devida a erro do autenticador, por tal não ser possível presumir-se.
3º -Requer-se ainda que integre a base probatória da sentença, como fato não provado que foi explicado o conteúdo da procuração aos mandantes.
4º - Requer também que seja integrado na base probatória como fato não provado que os mandantes declararam que o conteúdo da procuração exprimia a vontade destes.
5º- Resultando notório que a douta sentença padece de irremediável erro de julgamento, quer quanto à matéria de fato quer quanto ao direito aplicável, eis que, interpretou equivocadamente os fatos presentes nos autos e firmou-se nos dele ausentes, viola designadamente o artigo 615º alínea d) do nº1 e 640º ambos do CPC, pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que tenha em conta a Lei, Doutrina e Jurisprudência.
6º - Com efeito, resultando do teor da procuração que os mandantes conferem a seu filho e herdeiro, a capacidade para doar a si próprio, por conta da quota disponível e por consequência com dispensa de colação, um prédio urbano devidamente descrito, podendo ainda outorgar e assinar as respetivas escrituras, bem assim como representar os mandantes, perante qualquer organismo publico, com poderes para liquidar impostos, requerer registos, averbações, cancelamentos, averbações de áreas, etc, objetivamente estão conferindo tal procuração também no interesse efetivo do procurador/mandatário.
7º - Pelo que ao contrário da douta sentença, aplicando aos fatos presentes outra interpretação, se conclua que a relação basilar subjacente à procuração e causa desta, são além do contrato de mandato e do contrato de doação, no qual mandante e mandatário têm um interesse comum a ser perseguido, sendo notório que o interesse do mandatário, suplanta o do mandante por se tratar de interesse relevante, referente à legitima deste que lhe é antecipada, até com clara vantagem perante os restantes herdeiros, resultando claro de qualquer forma o interesse comum a demonstrar a relação basilar.
8º - Com efeito no caso “sub judice” não se vislumbra manifestamente, uma situação de unilateralidade dos mandantes e/ou de falta de bilateralidade, antes pelo contrário, resulta manifesto do teor da procuração, a existência efetiva de um contrato de mandato e também de um contrato de doação, este, por conta da quota disponível, com dispensa de colação, que iniludivelmente incorpora um direito subjetivo do procurador/mandatário/donatário que, transcende claramente o mero interesse dos mandantes, demonstrando sem mais, a existência de relação subjacente à procuração e o manifesto interesse comum, do procurado que tem interesse na doação que faz por conta da quota disponível e do procurador que antecipa o seu direito legítimo à herança que por isentar este da colação lhe atribui também vantagem relativamente aos outros herdeiros, configurando assim claramente o interesse comum de ambos e a existência da relação basilar, cujo instrumento de concretização é a procuração.
9º - Ainda em suporte da nossa posição, entre muitos outros veja-se o sumário do acórdão do E. STJ, processo nº 67/19... de 13/07/2010 que assim deixou consignado no que interessa ao caso sub judice:
V) - O donatário, no caso herdeiro legitimário do mandante, é terceiro com interesse, tendo em conta a relação basilar, do mandante de dispor dos seus bens em favor de um herdeiro (…)
10º - E mais adiante ainda no mesmo acórdão, confirmando a tese dos Autores, expressa na Petição inicial e nas alegações do presente recurso, que por ser mais eloquente do que qualquer conclusão que pudéssemos tirar, pode ler-se:
“Temos por inquestionável o interesse para pessoa terceira, emergente da procuração e do mandato dimanados do referido EE, já que através do contrato de mandato e da incindível procuração irrevogável, visava ele contemplar com bens o seu único e universal herdeiro o 2º Réu GG, ou através de contrato de compra e venda, que em seu nome a mandatária estava autorizada a celebrar, ou através de contrato de doação dos imóveis que identificou na procuração que a favor dela, e também no interesse de terceiro, outorgou.”
11º - Assim, ao contrário da douta sentença, o douto acórdão consigna que, é interesse relevante obstativo da livre revogabilidade da procuração, o direito do mandante dispor dos seus bens em favor de um herdeiro, constituindo esse direito a relação basilar, que confere a irrevogabilidade à procuração, exatamente como no caso vertente.
12º - Nestes termos, a douta sentença aplicou erradamente o direito aos fatos, pelo que deverá ser modificada, para se considerar a irrevogabilidade da procuração e em consequência a sua nulidade, por falta de forma, uma vez que autenticada por entidade não competente, em violação do artigo 116º do Código do Notariado e consequentemente também a nulidade da escritura notarial e do registo predial.
13º - Por outro lado, a douta sentença labora também em erro, ao avaliar erradamente os pressupostos, colocados pelos Autores, com relação ao termo de autenticação da procuração, vez que que estes não colocam em causa primacialmente a leitura da procuração pelo autenticador aos mandantes, que obviamente não constitui obrigação legal deste, mas diferentemente do afirmado na sentença, que o termo de autenticação está ferido de falsidade e consequentemente nulo, transformando por via da sua nulidade, a procuração em documento particular não autenticado, ao declarar plena de falsidade que o mandante invisual havia lido esta, e que por isso se declara que exprimia a sua vontade, o que também está eivado de falsidade.
14º - Não se vê como alguém invisual, sem ter lido o conteúdo da procuração por essa circunstância específica, nem o seu conteúdo lhe ter sido explicado, porque tal não é possível retirar do respetivo termo de autenticação, nem há qualquer prova adicional que o consigne, pode afirmar que este (conteúdo) exprime a sua vontade. Tal circunstância, inquina inelutavelmente de nulidade, o termo de autenticação que declara falsamente, que a procuração e o seu conteúdo exprime a vontade esclarecida e livre do mandante.
15º - Em abono da nossa tese, trazemos jurisprudência unânime, de que é exemplo paradigmático o acórdão do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Processo: 456/21.8T8PRG.G1 , Relator: ELISABETE COELHO DE MOURA ALVES Datado de 22-09-2022, na parte que interessa ensina: (…) 3. O documento particular só pode ser considerado devidamente autenticado se “o seu teor tiver sido confirmado pelas partes perante o certificante (o notário, a câmara de comércio e indústria, o conservador, o oficial de registo, o advogado ou o solicitador), nos termos prescritos nas leis notariais, circunstância que terá de constar da respetiva autenticação”(…)
16º - O que nos remete para o teor do artigo 151º do CN que afirma: -“ A declaração das partes de que já leram o documento ou estão perfeitamente inteiradas do seu conteúdo e que este exprime a sua vontade;”, o que manifestamente não resultou provado, antes pelo contrário o que se provou foi a falsidade da declaração autenticante, ao afirmar que o invisual tinha lido a procuração, o que se verifica ser impossível, nunca se tendo declarado e muito menos provado que lhe tivesse sido explicado o conteúdo desta, o que consuma inapelavelmente a omissão de uma disposição legal e por consequência a nulidade do respetivo termo de autenticação.
17º - Por outro lado, a suposição/presunção da douta sentença, para considerar que a falsidade ínsita no termo de autenticação, se deve a erro de escrita do autenticador, e com essa presunção considerar que tal falsidade não contende com o valor intrínseco da declaração, não pode ter-se por legítima, eis que inexistem provas de tal erro e não há qualquer previsão legal para essa presunção, o que a torna nula, além de que tal erro a haver, o autenticante teria à sua disposição o mecanismo retificativo ínsito no Código do Notariado.
18º - Da mesma forma, a decisão extraída pela douta sentença, acerca da parte final do termo de autenticação, afirmando que o conteúdo da procuração representa a vontade do mandante, com base na presunção de que quem faz essa afirmação de concordância é porque conhece o conteúdo, além de ilegal, sofre de erro intrínseco.
19º - Com efeito o termo de autenticação afirma essa conclusão, na sequência da falsa declaração, acerca do mandante ter lido o conteúdo da procuração e porque o leu, declara o autenticante que o mesmo representa a vontade do procurado, sendo que tal manifestação de vontade terá que se considerar falsa, por ser falso o pressuposto em que se firma (o cego ter lido a procuração), porquanto é manifesto que a consequência retirada, do seu conteúdo representar a vontade do outorgante, está na dependência direta de este ter lido a procuração, o que é falso e se revela mesmo impossível em face da cegueira do procurado, comunicando obviamente também a falsidade à declaração de que o conteúdo da procuração exprime a vontade do outorgante, que efetivamente não conhece por não ter podido ler nem lhe ter sido explicado.
20º - Também, não podemos concordar com a douta sentença quando afirma, não se aplicar ao caso em tela o artigo 66º do CN, por este não referenciar no seu corpo a pessoa cega, inexistindo, quanto a nós, duvida de que deva ser aplicado também ao invisual, por ser situação incapacitante em tudo semelhante, ou até mais grave, do que o surdo e mudo, semelhança que aliás se encontra vertida no artigo 68º do mesmo código, quando equipara cegos, surdos e mudos na mesma previsão.
21º - Por outro lado, aplicando como o sustenta a douta sentença, o artigo 373º do Código Civil, resulta efetivamente comprovado, inclusive por esta, a violação clara e inequívoca do seu nº 3 o que convoca em consequência, a nulidade da procuração, por não ter sido lido ou explicado o seu conteúdo ao procurado, na condição de invisual, nos exatos termos ínsitos no artigo.
22º Ao invés do que considera a douta sentença, somos de parecer que não pode o termo de autenticação, que não faz a mínima referência ao conteúdo da procuração, convalidar a nulidade formal pela violação que encerra nos termos do artigo 373º, por não ter sido lido o conteúdo da procuração a pessoa cega.
23º - Assim, sendo nula a procuração por falta de forma, o contrato realizado por seu intermédio, mostra-se efetuado por alguém que atuou em nome do representado, mas sem poderes de representação, o que implica a ineficácia desse contrato relativamente ao representado, o que se requer seja determinado.
Termos em que, invocando-se o douto suprimento do Venerando Tribunal, deverá ser julgada procedente a apelação, e em consequência revogar-se a sentença recorrida, substituindo-a por outra que julgue a ação totalmente procedente como soe da mais lídima justiça.”
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Pelos Réus/recorridos não foram apresentadas contra-alegações.
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III – DA FACTUALIDADE A CONSIDERAR
A sentença impugnada declarou provada a seguinte factualidade com interesse para a decisão da causa:
1. Autores e Réus são os únicos herdeiros habilitados de FF, falecido no dia ../../2020, nos termos da escritura pública junta ao requerimento datado de 11/11/2022 [ref.ª ...04] como documento n.º 1, correspondendo a folhas 61-verso a 63 dos autos físicos, aqui dada por reproduzida.
2. No dia 12 de agosto de 2020, o 1.º Réu, outorgou por si e na qualidade de procurador de FF e da 2.ª Ré, a escritura pública de doação junta à petição como documento n.º 4, correspondendo a folhas 16-verso a 17-verso dos autos físicos, aqui dada por reproduzida.
3. Na escritura supra aludida, o outorgante declarou, entre o mais, na qualidade de procurador de FF e da 2.ª Ré: «Que, os seus representados são donos e legítimos possuidores do seguinte imóvel: Prédio urbano, sito em ..., formado por três lotes, da freguesia e concelho ..., prédio descrito na Conservatória do Registo Predial desse concelho sob o número ..., da mesma freguesia, e aí registado a favor dos seus representados, conforme apresentação um, de dezasseis de setembro de mil, novecentos e noventa e sete e apresentação quatrocentos e oitenta e um de vinte e três de julho de dois mil e vinte, prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...10, da dita freguesia, com o valor patrimonial tributável de € 36.600,90, o mesmo atribuído. Que, pela presente escritura, os seus representados doam a si mesmo sem qualquer reserva ou condição, o prédio supra identificado. Que esta doação é feita por conta das suas quotas disponíveis e, consequentemente, com dispensa de colação».
4. Na escritura supra aludida, o outorgante declarou, entre o mais, por si: «Que aceita a presente doação nos termos exarados».
5. A procuração mencionada na escritura supra aludida, datada de 05 de agosto de 2020 e assinada por FF e pela 2.ª Ré, junta à petição como documento n.º 3, correspondendo a folhas 15 dos autos físicos, aqui dada por reproduzida, tem, entre o mais, o seguinte texto: «FF, (…), e esposa, EE, (…), constituem seu bastante procurador o seu filho, DD, (…), a quem conferem os poderes necessários, podendo fazer negócio consigo mesmo, para doar a si próprio, por conta da quota disponível e nos demais termos e condições que entender convenientes, o prédio urbano sito na ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia ... sob o n.º ...87, podendo, para tanto, outorgar e assinar as respetivas escrituras».
6. A procuração supra aludida foi autenticada com o seguinte termo, datado de 05 de agosto de 2020 e assinado por HH, autenticador, por FF e pela 2.ª Ré, junto à petição como documento n.º 3, correspondendo a folhas 14-verso dos autos físicos, aqui dado por reproduzido, que tem, entre o mais, o seguinte texto: «Aos cinco dias do mês de Agosto de dois mil e vinte, perante mim HH, advogado (…), compareceram FF, (…), e esposa, EE, (…). Os outorgantes, para fins de autenticação, apresentaram-me o presente documento, que consta de uma Procuração, datada de hoje, que disseram ter lido e assinado, e que o seu conteúdo exprime a sua vontade. Este termo de autenticação foi lido e o seu conteúdo explicado aos outorgantes».
7. No dia 04 de maio de 2022, a 2.ª Ré, outorgou o instrumento público de ratificação junto à contestação como documento n.º 4, correspondendo a folhas 40-verso e 41 dos autos físicos, aqui dado por reproduzido.
8. No instrumento supra aludido, a outorgante declarou, entre o mais: «Que, pelo presente instrumento ratifica a Doação, feita neste Cartório Notarial, no dia doze de agosto de dois mil e vinte, (…), onde doou a seu filho DD, o imóvel convenientemente identificado nesse título, sem reserva ou condição, por conta da quota disponível, aceitando a mesma, tal e qual se encontra exarada e onde seu filho, interveio por si e na qualidade de procurador de seus pais».
9. O prédio supra aludido está descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...87 da freguesia ..., e no mesmo consta, sob a AP. ...83 de 2020/08/20, registo de aquisição, por doação, a favor do 1.º Réu, e como sujeito passivo, FF e a 2.ª Ré.
10. FF era invisual.
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IV – DO OBJECTO DO RECURSO
Como é sabido, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC).
Sublinha-se ainda a este propósito que na sua tarefa não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelo recorrente, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (cfr. art. 5.º, n.º 3, do CPC).
No caso presente, tendo em conta as conclusões apresentadas, as questões colocadas ao tribunal de recurso resumem-se a apreciar uma eventual nulidade da sentença (violação do artigo 615º alínea d) do nº1 do CPC), a pretendida alteração da matéria de facto, e finalmente a alegada nulidade da procuração outorgada ao primeiro réu, e a consequente nulidade do negócio de doação celebrado nos termos desta.
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V – APRECIANDO E DECIDINDO
Passamos então a decidir do objecto do recurso, tal como ficou delimitado nas conclusões acima transcritas.
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A) A alegada nulidade
A dado passo das suas conclusões os recorrentes dizem que a “douta sentença padece de irremediável erro de julgamento, quer quanto à matéria de fato quer quanto ao direito aplicável, eis que, interpretou equivocadamente os fatos presentes nos autos e firmou-se nos dele ausentes, viola designadamente o artigo 615º alínea d) do nº1 e 640º ambos do CPC”.
O art. 615º, n.º 1, al. d), do CPC, refere-se a uma nulidade da sentença: dele resulta que é nula a sentença quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Ou seja, existe nulidade por omissão de pronúncia quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar e existe nulidade por excesso de pronúncia quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Os recorrentes não especificam qual seja o vício da sentença, se a omissão ou o excesso, ou uma coisa e outra. Não especificando, também não é possível ao tribunal de recurso descortinar onde resida o vício ou os vícios, e conhecer concretamente da alegação.
Pronunciando-se a este respeito, nos termos conjugados dos artigos 617.º, n.º 1 e 641.º, n.º 1, do CPC, o tribunal recorrido, no despacho que admitiu o recurso, explicou que no seu entender a sentença em causa não padece de qualquer nulidade (interpretando a alegação como referindo-se a dado passo da argumentação expendida na sentença, o que nem sequer é identificável com as “questões” a que alude a citada norma legal).
Examinada a dita sentença, também nesta instância entendemos não ser de atender à alegação, desde logo por falta da sua concretização, consignando-se assim que a sentença recorrida satisfez plenamente todas as exigências legais nesta matéria, designadamente a vinculação temática definida pelo art. 608º do CPC.
Ou seja, o tribunal decidiu as questões que lhe vinham colocadas e que devia resolver, e não passou além delas, conhecendo de matéria que lhe estivesse vedada.
Improcede, portanto, a alegação de nulidade.
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B) Quanto à matéria de facto
Nas suas alegações de recurso, os recorrentes invocam o art. 640º do Código de Processo Civil, que regula a impugnação do julgamento da matéria de facto feito na primeira instância.
Todavia, é patente que não estamos perante uma verdadeira impugnação da matéria de facto, nos termos previstos na citada norma legal.
Desde logo, não são referidos quais sejam os concretos pontos de facto que os recorrentes consideram incorretamente julgados, como refere a al. a) do n.º 1 do citado preceito.
Visto o teor dos arts. 1º a 4º das conclusões apresentadas, que se referem às pretendidas alterações à matéria de facto, constata-se que os recorrentes pretendem, em resumo, que seja aditado um facto como provado e sejam aditados três factos aos factos não provados.
Em face do requerido, constata-se que o aditamento aos factos provados consistiria numa inutilidade, que nada acrescenta ao que ficou consignado como sendo a factualidade provada. Dizem os recorrentes que requerem “a integração na base probatória como fatos provados, que os outorgantes conferiram ainda poderes ao procurador para representá-los junto de quaisquer conservatórias do Registo Predial, Serviços de Finanças e Câmara Municipais, onde poderá liquidar impostos ou contribuições, requerer certidões, informações, inscrições matriciais e avaliações fiscais, registos, inscrições, averbamentos, cancelamentos, retificações de áreas, prestar declarações complementares, praticar, requerer e assinar mais quanto seja preciso aos indicados fins.”
Ora da factualidade dada como provada já consta expressamente a referência à dita procuração e ao conteúdo desta, que aliás nunca constituiu matéria controversa (ver arts. 5 e 6 da matéria provada). O documento consta dos autos, e o julgador deu como provado o seu conteúdo, embora transcrevendo apenas alguns excertos (diz que tal procuração corresponde “a folhas 15 dos autos físicos, aqui dada por reproduzida, tem, entre o mais, o seguinte texto (…)”.
Ou seja, aquilo que os recorrentes mencionam é uma passagem do texto dessa procuração, que o julgador deu como integralmente reproduzido. Não oferece dúvidas o sentido da solução técnica utilizada, nem o aditamento pretendido se justifica.
Trata-se de um acto de todo inútil, proibido nos termos expressos do art. 130º do Código de Processo Civil.
Indefere-se, portanto, o requerido a este respeito.
E quanto aos três factos pretendidos aditar aos “factos não provados”, afigura-se ainda mais óbvia a falta de fundamento da pretensão.
Repare-se que não se trata de dar como não provados alguns factos que a primeira instância tenha dado como provados. Nesse caso estaríamos realmente perante impugnação do julgamento efectuado. Todavia, o que os recorrentes pedem é realmente que sejam aditados como factos não provados três factos que ali não constam nem constam da factualidade provada: “que a falsa declaração contida no termo de autenticação, foi devida a erro do autenticador”, “que foi explicado o conteúdo da procuração aos mandantes” e “que os mandantes declararam que o conteúdo da procuração exprimia a vontade destes”.
Assim exposta a pretensão, logo ressalta a falta de razão desta. Desde logo, a decisão a proferir sobre as questões colocadas nos autos tem que resultar da aplicação do Direito aos factos que ficaram provados. Os factos não provados, em número potencialmente indefinido (são todos os outros) não contam para esse efeito – repare-se que a circunstância de ser dado como provado um certo facto nem sequer significa que ele não se verificou, significa apenas que não ficou provado que ele se verificasse.
Cremos que a pretensão dos recorrentes exprime um equívoco. Na verdade, a solução jurídica de uma dada questão pode depender da prova de certos factos, e a falta de prova deles pode determinar a sorte do pedido. Mas isso há-de ser conhecido em face dos factos provados e tendo em conta a repartição do ónus da prova – se não constarem da factualidade provada aqueles factos de que dependia uma certa solução jurídica, a parte a quem competia fazer a sua prova para que procedesse essa solução jurídica fica com a sua pretensão inevitavelmente comprometida. Mas, repete-se, esta operação de aplicação do Direito faz-se tendo em conta os factos provados e a distribuição do ónus probatório.
A obrigação imposta ao tribunal de especificar quais os factos não provados, de entre aqueles que foram alegados e que possuem relevância para a decisão do pleito, justifica-se pela possibilidade conferida às partes de impugnarem esse julgamento de não provado.
Não é o caso presente, em que os recorrentes pretendem que sejam aditados aos factos não provados três factos que não figuram entre os provados (portanto, não estamos no campo da impugnação da matéria de facto apurada) nem teriam qualquer função no elenco dos não provados, visto que para decisão da causa o tribunal aplica o Direito considerando “os factos que considera provados” (cfr. n.º 3 do art. 607º CPC), e não outros.
Soma-se que os factos em questão nem sequer foram alegados, nomeadamente pelos autores.
Em conclusão, afigura-se processualmente inadmissível, para além de inútil, por desprovida de consequências no que se reporta à decisão da causa, o aditamento aos factos não provados daqueles mencionados pelos apelantes.
Indefere-se, portanto, o requerimento também nessa parte, mantendo-se sem alterações o julgamento feito na primeira instância quanto à matéria de facto.
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C) A questão de mérito
Resolvidas as duas questões prévias anteriores, deparamos com a questão essencial em debate no processo, e designadamente no presente recurso.
Os autores vieram aos autos peticionar em primeiro lugar que seja declarada “a nulidade da procuração irrevogável, efetuada por documento particular, por falta de forma”, aludindo à procuração utilizada pelo Réu DD para formalizar a escritura de doação, em que outorgou em representação de seus pais, como doadores, e em seu próprio nome, como donatário.
E em consequência dessa nulidade pedem os autores que seja declarada a “a nulidade/ineficácia da doação do prédio urbano, sito na ..., por carência da forma legalmente prevista na lei”, e que seja ordenado “o cancelamento do registo da aquisição a favor do 1ª Réu efetuado sob a AP. ...83 de 20/08/2020 registada na Conservatória do Registo Predial de Beja”.
Como se verifica, os segundo e terceiro pedidos dependem inteiramente da sorte do primeiro: na lógica dos autores, é a invalidade da procuração que será determinante da invalidade da doação, e justificará o cancelamento do registo subsequente.
Assim, ao inverso, considerando válida a procuração mencionada ficam irremediavelmente comprometidos os pedidos dependentes da sua invalidade.
Constatando essa articulação entre os pedidos, a sentença recorrida concentrou-se na análise da alegada nulidade da procuração, concluindo pela sua não verificação, do que decorreu a improcedência total da acção.
Contra o decidido insurgem-se os recorrentes, insistindo que existe desde logo na dita procuração um vício de falta da forma legalmente prescrita, por se tratar de uma procuração irrevogável e para essas a lei exigir a forma de instrumento público.
Como se verifica, a classificação da procuração como sendo irrevogável é o ponto fundamental neste raciocínio: não sendo uma procuração irrevogável, surge como pacífico o entendimento de que basta a forma de instrumento particular autenticado, como acontece no caso vertente.
Ora a verdade é que, diferentemente do que sustentam os recorrentes, não estamos perante uma procuração irrevogável (tal como entendeu correctamente a sentença recorrida, e foi também o entendimento do notário responsável pela escritura de doação).
Ao contrário do que parecem defender os recorrentes, para que uma procuração seja considerada irrevogável não basta que ela confira ao procurador poderes para fazer negócio consigo mesmo, nem basta que se venha a verificar que ela redunda num benefício para o procurador.
A questão tem que ser dilucidada à luz do art. 265º do Código Civil, o qual dispõe que:
“1. A procuração extingue-se quando o procurador a ela renuncia, ou quando cessa a relação jurídica que lhe serve de base, excepto se outra for, neste caso, a vontade do representado.
2. A procuração é livremente revogável pelo representado, não obstante convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação.
3. Mas, se a procuração tiver sido conferida também no interesse do procurador ou de terceiro, não pode ser revogada sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa.”
Atento o conteúdo desta norma, temos que, em regra, uma procuração é livremente revogável pelo representado, não obstando a isso nem a existência de convenção em contrário nem a renúncia ao direito de revogação.
Diga-se que no caso dos autos não existiu convenção de irrevogabilidade, nem renúncia ao direito de revogação, o que logo inculca a ideia de que estamos perante um instrumento enquadrável no regime-regra: era livremente revogável pelos representados, caso estes entendessem fazer a respectiva revogação.
Mas a argumentação dos recorrentes centra-se no disposto no n.º 3 do preceito citado. Entendem eles que esta procuração não podia ser revogada sem acordo do interessado visto ter sido “conferida também no interesse do procurador”.
Não têm razão os recorrentes, na interpretação que fazem da aludida disposição legal. Uma procuração é “conferida também no interesse do procurador” quando a sua emissão tem como base uma relação subjacente, onde se identifica um direito próprio do procurador, um interesse deste juridicamente protegido.
É essa relação basilar que confere irrevogabilidade à procuração, e inclusivamente justifica que esta não caduque com a morte do representado. Por outras palavras, para que uma procuração seja irrevogável é necessário que ela seja “instrumental da satisfação de uma pretensão reciprocamente vinculativa”.
Veja-se a este respeito, por todos, o Acórdão do STJ de 18-02-2014, no processo n.º 3083/11.4TBFARE.E1.S1 (relator Fonseca Ramos), disponível em www.dgsi.pt, onde se explica que manifesta esta característica da irrevogabilidade uma procuração em que o representado declara conferir poderes a uma procuradora para que esta alienasse um determinado prédio de sua propriedade, da forma que entendesse, inclusivamente a si própria, para desse modo remunerar os serviços que esta lhe havia prestado durante anos.
Ou seja, o relevante para aferir da irrevogabilidade é que “da relação basilar, que está na origem da decisão do “dominus”, resulte a existência de um interesse conferido também no interesse do mandatário, ou representante, ou de terceiro, que incorpore um direito subjectivo que transcenda o mero interesse do mandante ou do representado.”
No caso em análise no citado aresto, o factor determinante da irrevogabilidade foi a existência dessa relação basilar, preexistente ao tempo da emissão da procuração, e que faz que esta seja um instrumento de vinculação recíproca (o outorgante visa satisfazer um direito que reconhece à procuradora). Essa circunstância justifica a irrevogabilidade, sob pena de possibilitar a frustração do interesse, legalmente atendível, do procurador.
No caso em apreço nos nossos autos não existia qualquer irrevogabilidade, como muito bem ficou explicado na sentença recorrida, que acompanhamos inteiramente.
Os representados pretenderam tão só satisfazer um interesse subjectivo próprio deles, ainda que da concretização da sua vontade tenha resultado inequivocamente num benefício para o representante (mas não se podendo nunca dizer que isso significou a satisfação de qualquer direito subjectivo deste).
Concluindo a análise desta linha de argumentação dos recorrentes, ficaram afastadas as exigências de forma pública por eles referidas, decorrentes que seriam da natureza irrevogável da procuração.
Tal como sublinha a sentença recorrida, a procuração aqui em causa não é irrevogável e, por isso, assumiu a forma legalmente exigida para a celebração do contrato de doação: a forma de documento particular autenticado, nos termos conjugados dos artigos 262.º, n.º 2 e 947.º, n.º 1 do C.C.
Resta o segundo argumento esgrimido pelos recorrentes, e que tem a ver com o termo de autenticação, da responsabilidade do advogado autenticador.
No termo de autenticação em referência pode ler-se o seguinte:
«Os outorgantes, para fins de autenticação, apresentaram-me o presente documento, que consta de uma Procuração, datada de hoje, que disseram ter lido e assinado, e que o seu conteúdo exprime a sua vontade».
Argumentam os recorrentes que existe aqui causa de nulidade do termo de autenticação, por vício de forma, uma vez que um dos outorgantes era invisual e por isso não podia ter lido a procuração autenticada, ao contrário do que ficou a constar no termo.
Sublinhamos neste ponto, como a sentença impugnada, que “os Autores não invocam que os mandantes, incluindo FF, não pretendia doar o bem ao seu filho, que houvesse deformação na sua vontade por erro, por dolo, por acidente, ou qualquer outra razão; que tenha havido sequer abuso dos poderes de representação por parte do 1.º Réu.
O que alegam é a existência de um vício formal no termo de autenticação, de onde decorreria a nulidade deste (e por extensão a nulidade da procuração, e ainda por extensão a nulidade da doação e do registo, obviamente).
Todavia, dispõe o artigo 151.º, n.º 1, al. a) do Código do Notariado, que o termo de autenticação, além de satisfazer, na parte aplicável e com as necessárias adaptações, o disposto nas alíneas a) a n) do n.º 1 do artigo 46.º, deve conter ainda os seguintes elementos: “A declaração das partes de que já leram o documento ou estão perfeitamente inteiradas do seu conteúdo e que este exprime a sua vontade.”
Assim sendo, destaca-se a disjuntiva “ou”: o autenticador deve atestar a declaração das partes de que leram o documento autenticado ou que estão inteiradas do seu conteúdo e que este exprime a sua vontade.
Basta, portanto, uma das referências: que as partes declarem ter lido o documento autenticado ou que estão inteiradas do seu conteúdo. Cumulativamente, é necessário ainda que declarem que esse conteúdo exprime a sua vontade.
No nosso caso, o autenticador atesta que os outorgantes lhe apresentaram um documento “que disseram ter lido e assinado, e que o seu conteúdo exprime a sua vontade”. Obviamente que existirá alguma imprecisão na expressão, sabendo que um dos elementos do casal era invisual e por isso não poderia ler. Mas daí não decorre que a afirmação constante do termo não tenha sido feita, com inteira boa fé, e com a mesma boa fé aceite pelo advogado autenticador (v. g. o outro elemento do casal poderia ler e falar pelos dois) e sobretudo afigura-se que a declaração de que o conteúdo da procuração exprime a vontade dos declarantes, o que pressupõe o conhecimento desse conteúdo, é suficiente para afastar alegações de invalidade do referido termo de autenticação.
Assim, sem necessidade de mais considerações, julgamos improcedente também este fundamento do recurso em apreciação (para mais sendo esse fundamento desacompanhado de qualquer alegação, e prova, de que a declaração não foi feita, ou que a vontade dos declarantes não era aquela, ou que essa vontade expressa na declaração ou no termo sofreu de qualquer vício que pudesse invalidar esses actos).
Como sublinhou a sentença recorrida: “FF podia simplesmente ter dito que o conteúdo do documento representa a sua vontade. Sem dizer que o leu. Tendo dito que o leu [ou tendo-se assim feito constar] e que o conteúdo representa a sua vontade, ainda que a primeira declaração não possa valer, não se concebe porque razão tal haverá de inquinar a validade do segundo trecho.”
“Portanto, constando a declaração de FF de que o conteúdo exprime a sua vontade, nenhum desvalor há que assacar ao termo de autenticação por quebra do requisito previsto no artigo 151.º, n.º 1, al. a) do Código do Notariado.”
“E, frise-se bem, novamente, não está sequer em julgamento saber se o conteúdo exprimia ou não a vontade de FF.”
Neste ponto, reproduzimos a citação, feita na sentença impugnada, de um excerto de Acórdão da Relação do Porto, raciocinando em situação paralela a esta dos autos (alegava-se aí analfabetismo dos declarantes):
Para além disso, idêntica razão lhe falece quanto a uma hipotética irrealidade da afirmação de que os declarantes haviam lido o conteúdo do documento, perante a probabilidade de não serem capazes de o fazer, por via do seu analfabetismo. Já acima se discorreu sobre a irrelevância desta questão, quer perante a circunstância de o termo de autenticação se limitar a afirmar que os outorgantes haviam declarado terem lido o documento e não que o haviam lido nas próprias condições de celebração do acto de autenticação, quer perante o facto de tal afirmação não relevar de per si, por ser meramente instrumental em relação ao interesse de garantir que os outorgantes tinham total ciência sobre o conteúdo do documento de doação e de que este correspondia à sua vontade. Ora um tal interesse foi garantido, como ficou a constar do próprio termo de autenticação, de resto em cumprimento do disposto na al. a) do art. 151º. Ser esse o interesse essencial a garantir resulta dos próprios termos desta norma, que não prevê como essencial assegurar que os outorgantes tenham lido o documento a autenticar, pois que a isso é alternativa ficar a constar – obviamente por disso se assegurar o autor da autenticação – que os mesmos estão perfeitamente inteirados do seu conteúdo e que este exprime a sua vontade. Ora é precisamente isso que consta do termo de autenticação, donde ser irrelevante a questão suscitada pela apelante, que jamais poderia afectar a validade do acto. Improcederá, pois, a apelação, quanto a esta questão.” (cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 08 de junho de 2022, relatado por Rui Moreira, no processo n.º 6730/17.0T8VNG.P1, disponível em www.dgsi.pt).
Mais não diremos, por não se afigurar necessário.
Por último, invocam os recorrentes o disposto no art. 66º do Código do Notariado, respeitante a actos notariais em que sejam intervenientes surdos e mudos, impondo a presença nesses actos de intérprete, ou pessoa que desempenhe o mesmo papel, entendendo que o mesmo dispositivo também será aplicável à intervenção de pessoas invisuais.
Sem indagar das consequências jurídicas do eventual desrespeito dessa estatuição legal, em relação aos surdos e mudos, diremos apenas que, como decorre da epígrafe do preceito e do corpo do artigo, nos seus três números, o mesmo se reporta tão só a essas categorias de pessoas, expressamente referidas pelo legislador (tal como previu exigência especial para os actos com intervenção de outorgantes que não compreendam a língua portuguesa, a que se refere o art. 65º, imediatamente antecedente).
Quanto aos invisuais, é manifesto que não estão abrangidos por esta norma (nem tal seria compreensível, dado que normalmente um invisual será perfeitamente capaz de comunicar, nomeadamente ouvindo o que lhe seja dito e exprimindo adequadamente a sua vontade).
De igual modo, também não pode aceitar-se o entendimento expresso dos recorrentes quanto ao art. 373º do Código Civil, segundo o qual resultou comprovada “a violação clara e inequívoca do seu nº 3 o que convoca em consequência, a nulidade da procuração, por não ter sido lido ou explicado o seu conteúdo ao procurado, na condição de invisual, nos exatos termos ínsitos no artigo”.
Na realidade, percorrendo a factualidade disponível, constata-se que nada disso ficou comprovado (que não foi lido nem explicado ao invisual o conteúdo da procuração). Nem poderia ter sido, desde logo por não ter sido alegado por quem nisso tinha interesse, precisamente os autores. Assim sendo, e por força do art. 342º, n.º 1, do Código Civil, a falta dessa comprovação não pode deixar de pesar sobre a argumentação dos autores, inviabilizando à partida o seu sucesso.
Também por aí não poderemos avançar para qualquer invalidação da procuração.
Julgamos assim que estão decididas as questões suscitadas no recurso, restando-nos concluir pela improcedência deste, de acordo com a fundamentação que ficou exposta.
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VI - DECISÃO
Por todo o exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo-se em consequência a sentença recorrida.
As custas do recurso, nos termos do art. 527º, n.º 1, do CPC, ficam a cargo dos Autores apelantes, dado o seu decaimento.
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Évora, 23 de Abril de 2024
José Lúcio
Ana Pessoa
Mário Branco Coelho