INJUNÇÃO
HABILITAÇÃO DE CESSIONÁRIO
FORÇA PROBATÓRIA DA FATURA
Sumário

I - Após a substituição processual, é na pessoa do substituto que se devem verificar os requisitos respeitantes à sua representação processual. É desprovido de fundamento ou utilidade pretender que, depois da substituição, se promova a putativa sanação de uma falha na representação da parte ativa substituída, quando a parte ativa atual está regularmente representada.
II - As faturas provam a sua emissão por parte da entidade que nelas consta como emitente. Não provam, nem contra terceiros, nem contra o putativo devedor, que os serviços nelas inscritos foram efetivamente executados.

Texto Integral

Processo 5480/20.5YIPRT.P1 – Apelação
Tribunal a quo Juízo Local Cível de Santa Maria da Feira – Juiz 2
Recorrente(s) A..., L.da
Recorrido(a/s) B..., L.da

Sumário
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Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório

Identificação das partes e indicação do objeto do litígio

C..., L.da, entretanto processualmente substituída por B..., L.da, apresentou um requerimento de injunção, ulteriormente distribuído como ação declarativa com processo especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, contra A..., L.da, para pagamento da quantia total de € 13177,93.
Para tanto, alegou ter sido celebrado entre as partes um contrato de prestação de serviço, não tendo a ré liquidado a totalidade dos serviços prestados, estando em dívida o capital de € 12460,00, acrescido de juros moratórios e despesas de cobrança.

Citada, a ré apresentou contestação, defendendo-se por impugnação. Arguiu, ainda, a exceção de ilegitimidade ativa da autora, por falta de intervenção de dois gerentes. Invocou a exceção de compensação, alegando ser titular de um contracrédito contra a requerente. Em requerimento ulterior (apresentado em 12-06-2020, ref. 10183080), a ré alegou que a procuração junta pela autora não foi subscrita por dois gerentes eficazmente nomeados.
Por despacho de 19-10-2020 (ref. 113106483), foi ordenada a apensação a esta ação das ações com os n.os 5481/20.3YIPRT e 5482/20.1YIPRT.

Após a apensação, em 02-12-2020 (ref. 113819558) foi proferido despacho que, por inadmissibilidade legal, não admitiu a compensação invocada neste processo e no apenso B, nem a instância reconvencional do apenso A.
Na sequência do recurso interposto para este Tribunal da Relação do Porto, veio a ser proferido, no apenso de apelação autónoma n.º 5480/20.5YIPRT-C.P1, em 13-09-2022 (ref. 15945069), Acórdão que, na procedência parcial da apelação, decidiu «(…) manter a decisão recorrida na parte em que não admitiu o pedido reconvencional e revogar a mesma na parte em que não admitiu a invocação da compensação, substituindo-a, nesta parte, por outra através da qual determinamos a sua apreciação, se necessário reabrindo-se a audiência de julgamento para produção de prova relativamente à matéria da invocada excepção da compensação e, a seu tempo, a prolação da respectiva sentença que abarque a referida temática. (…)».

Por decisão de 28-12-2022 (ref. 124836127), proferida no apenso D, foi declarada habilitada a B..., L.da, para com ela seguir a causa, assumindo a posição de autora (em substituição de C..., L.da).
Deste despacho foi interposto recurso, tendo a apelação sido julgada improcedente – não tendo a revista sido admitida (decisão sumária proferida em 02-03-2024, ref. 12221322, no recurso para o STJ n.º 5480/20.5YIPRT-D.P1.S1).

Em 28-04-2023 (ref. 126744923), após realização da audiência final, o tribunal a quo julgou a ação parcialmente procedente, concluindo nos seguintes termos:
a) Condenar a ré a pagar à autora as quantias de € 250,00, € 750,00, € 750,00, € 3.750,00, € 2.100,00, € 2.760,00, e de € 2.100,00, acrescidas de juros comerciais, vencidos e vincendos, a contar, respetivamente, de 15/07/2019, 15/07/2019, 15/07/2019, 15/07/2019, 15/07/2019, 15/07/2019, e de 01/08/2019, até integral e efetivo pagamento;
b) Condenar a ré a pagar à autora a quantia de € 40,00; (…)
Previamente, entre outras questões, o tribunal julgou as partes regularmente representadas.

Inconformada, a ré apelou desta decisão, apresentando as seguintes conclusões:
A – As razões da discórdia da ré, ora recorrente prendem-se com as seguintes questões:
– Falta de representação da autora
– Existência de um contracrédito da ré
B – Apesar de resultar da certidão comercial que a autora se vincula com a assinatura de dois gerentes, considerou-se que a procuração forense válida.
C – Este entendimento viola o disposto no art. 261 CSC
D – Quanto à gerência plural: o art 261.º, fixa o modo como os poderes dos gerentes devem ser exercidos. Deve existir um exercício conjunto e pela maioria dos membros dos gerentes, ou seja, a lei oferece um modo conjunto-maioritário de exercício de poderes.
E – No art 260.º do CSC a referência a gerentes é feita em abstrato, ou seja, em nenhum lado a norma diz que basta a intervenção de um gerente para que a sociedade se vincule
F – No caso em apreço, não faz sentido invocar a proteção de terceiros porque o “terceiro” é o tribunal.
G – Não é exigir demasiado ao tribunal verificar “quantos gerentes têm que intervir e saber contar”, Alexandre Soveral Martins, in anotação ao art. 261º do CSC, “Código das Sociedades Comerciais em Comentário” Vol. IV, p. 185.
H – Assim, visto que a conjunção foi prevista para acautelar os interesses da sociedade, o modo de exercício dos poderes de representação deve subsumir-se ao regime disposto no artigo 261.º do CSC.
I – A propositura da presente ação não constitui um mero ato de administração corrente.
J – A irregularidade na representação da C... não está sanada pela “cessão de crédito”.
L – Dispõe o art. 585º do C. Civil que o devedor pode opor ao cessionário todos os meios de defesa que lhe seria lícito invocar contra o cedente.
M – Isto inclui a alegada exceção de ilegitimidade ativa invocada pela ré/recorrente na contestação.
N – Porque a alegada “cessão de créditos” entre a autora e a habilitada só produziu efeitos com a notificação da ré para contestar a habilitação (10/4/2022).

O – A ré, ora recorrente, discorda que os factos constantes nas alíneas b), c) e d) tenham sido não provados. ESTES FACTOS FORAM PROVADOS POR DOCUMENTOS.
P – Apenas o gerente da autora e da habilitada, em declarações de parte, defendeu a impossibilidade de prestação dos serviços.
Q – Para prova destes factos juntou duas faturas emitidas por “D...” e uma conta corrente elaborada pela mesma “ D...” que refere os débitos, créditos e saldo com a C... (doc. nºs 3 a 6 juntos com a contestação)
R – Não é por estes documentos terem sido impugnados que o seu valor probatório desaparece.
S – O tribunal a quo preferiu acreditar numa pessoa que tem interesse na decisão da causa, através de declarações prestadas pela parte, do que em documentos contabilísticos emitidos por terceiro.
T – As declarações de parte do gerente da autora da Habilitante não merecem nenhuma credibilidade.
U – O documento particular cuja autora seja reconhecida faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor (art. 376º C. Civil).
V – A autoria das faturas não foi colocada em dúvida pela ré.
Z – Teria que ser a ré a provar a falsidade dos documentos.

A apelada não contra-alegou.

II. Objeto do litígio

Face às conclusões das alegações de recurso, cumpre apreciar, em primeiro lugar, a alegada irregularidade de representação da autora.
As questões de facto a abordar são a consideração como provados dos factos constantes nas alíneas b), c) e d) dos factos não provados.
As questões de direito a tratar dependem da procedência da impugnação da decisão respeitante ao julgamento de facto, prendendo-se com a exceção de compensação alegada.

III. Fundamentação

1. Arguição de exceções dilatórias – irregularidade de representação da autora
Sustentou a ré que a primitiva autora não se encontrava devidamente representada em juízo, dado que não atuava por intermédio de dois gerentes regularmente designados. Esta irregularidade estendia-se à procuração, também conferida por quem não tinha, pela mesma razão, poderes bastantes. A questão prende-se, pois, com a regularidade da representação da primitiva autora (art. 25.º do Cód. Proc. Civil) e com a irregularidade do mandato (art. 48.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil), e não com a ilegitimidade processual ativa, em sentido próprio.
As irregularidades apontadas são sanadas mediante a intervenção do representante legítimo da autora, ratificando o processado e conferindo procuração (arts. 27.º, n.º 1, e 48.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil). Para o efeito, o tribunal deve notificar a parte cuja representação é irregular para regularizar a situação (art. 6.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil). A irregularidade subsiste enquanto não for sanada (art. 278.º do Cód. Proc. Civil), cessando logo que a atuação da parte for assumida pelo seu representante e a sua representação for assegurada por patrono mandatado por este representante.
Ora, no caso dos autos, ocorreu uma substituição processual, por força de uma habilitação de cessionário. Após a substituição processual, é na pessoa do substituto que se devem verificar os requisitos respeitantes à sua representação. É a parte substituta que tem de estar devidamente patrocinada e representada. É desprovido de sentido pretender-se que, depois da substituição, deve ser promovida a sanação de uma falha na representação da parte ativa, quando a parte ativa atual está regularmente representada.
Consta-se que, no caso dos autos, nunca foi expressamente proferida a notificação admonitória prevista nos arts, 6.º, n.º 2, 27.º, n.º 1, e 48.º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil. No entanto, a partir do momento em que a parte ativa passou a ser uma diferente pessoa coletiva, a regularidade da atuação da primitiva autora deixou de constituir qualquer tipo de obstáculo ao normal desenvolvimento da lide. O mesmo é dizer que, para todos os efeitos, cessou a irregularidade de representação.
Improcede, nesta parte, o recurso interposto

2. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto

É o seguinte o teor da fundamentação de facto da sentença recorrida, na parte que releva para o conhecimento do objeto do recurso:
Factos provados

1 – A Requerente é uma sociedade por quotas cujo objeto social consiste no transporte público rodoviário (interno e internacional) de passageiros, transporte coletivo de crianças, agência de viagens e turismo.
2 – No normal exercício daquela sua atividade, a Requerente prestou à Requerida, a pedido e no interesse desta, os serviços constantes das faturas (cujo teor aqui se dá por reproduzido):
##NúmeroDataValor
a) FA ...15/07/2019250,00
b) FA ...15/07/2019750,00
c) FA ...15/07/2019750,00
d) FA ...15/07/20193750,00
e) FA ...15/07/20192100,00
f) FA ...15/07/20192760,00
g) FA ...01/08/20192100,00
Total12460,00

3 – A requerente enviou, nomeadamente por correio eletrónico, cujo teor aqui se dá por reproduzido, à ré as faturas supra mencionadas.
4 – A ré e a sociedade D... Unipessoal, L.da, celebraram um acordo denominado de contrato de cessão de créditos cujo teor aqui se dá por reproduzido.
5 – A sociedade D... enviou à requerente email a 13/2/2020 cujo teor aqui se dá por reproduzido.

Dos factos não provados

a) A autora suportou custos com a presente cobrança que se cifram em €250,00.
b) A sociedade D... Unipessoal, Lda. no exercício da sua actividade de agência de turismo prestou à Requerente, a pedido e no interesse desta, os serviços constantes das facturas: factura nº ..., de 23/8/2017, no montante de 14.474,00€ (catorze mil quatrocentos e setenta e quatro euros); factura nº ..., de 29/12/2017, no montante de 14.000,00€ (catorze mil euros); factura nº ..., de 7/9/2018, no montante de 28.000,00€ (vinte oito mil euros).
c) A 5/5/2018 a Requerente pagou o montante de 14.000,00€. d) A 15/1/2019 a Requerente pagou o montante de 9.000,00€.
e) A sociedade D... enviou a 16/12/2019 carta registada com AR à Requerente cujo teor aqui se dá por reproduzido.

2.1. Matéria de facto dada por não provada

Tal como referimos na enunciação das questões a resolver, a apelante pretende, no essencial, que se dê por provada a matéria dada de facto elencada nas seguintes alíneas dos factos não provados:
a) (…)
b) A sociedade D... Unipessoal, L.da. no exercício da sua atividade de agência de turismo prestou à requerente, a pedido e no interesse desta, os serviços constantes das faturas: fatura n.º ..., de 23/8/2017, no montante de 14.474,00 € (…); fatura n.º ..., de 29/12/2017, no montante de 14.000,00 € (…); fatura n.º ..., de 7/9/2018, no montante de 28.000,0 0 € (…).
c) A 5/5/2018 a requerente pagou o montante de 14.000,00 €.
d) A 15/1/2019 a requerente pagou o montante de 9.000,00 €.
e) (…)

2.1.1. Motivação da convicção apresentada pelo tribunal ‘a quo’
O tribunal a quo motivou a sua convicção, no que respeita aos alegados serviços prestados à primitiva autora/requerente, nos seguintes termos:
Alínea b) a d): total ausência de prova nesse sentido. O gerente da autora, AA, explicou de forma perentória a impossibilidade de prestação de determinados serviços. Já BB, funcionária da B..., certificou que prestava serviços para a C..., L.da, mas sempre enquanto funcionária da B..., acrescentado que tratava de todos os aspetos logísticos da primeira, nomeadamente escala de motoristas, abastecimentos e as próprias viagens operadas pela C..., L.da. Mais disse que não tem conhecimento de nenhuma fatura da A..., L.da, à C..., L.da. Por outro lado, a testemunha arrolada pela ré, CC, funcionário administrativo da ré, não sabia nada em concreto destes alegados serviços. Apenas disse vagamente que tomou conhecimento da cessão de créditos efetuada entre a D..., Unipessoal L.da, e a A..., L.da, e, que por via disso, procedeu à ordem de pagamento entre as várias empresas. Isto é, incumbia à ré demonstrar este contra crédito, coisa que não o fez. Afinal, limitou-se, ao fim e ao cabo, a juntar documentos que nada demonstram. Face à impugnação da autora, à ré exigia-se a demonstração da realização dos referidos serviços o que, de todo, não sucedeu.

2.1.2. Análise da prova processualmente adquirida
Sustenta a ré “que os factos constantes nas alíneas b), c) e d) (…) foram provados por documentos”. Tais documentos seriam as faturas alegadamente emitidas pelos serviços prestados. Trata-se de uma posição totalmente desprovida de sentido.
As faturas juntas provam, quando muito, a sua emissão por parte da entidade que nelas consta como emitente. Como é evidente, não provam, nem contra terceiros, nem contra o putativo devedor, que os serviços nelas inscritos foram efetivamente executados.
As faturas unilateralmente emitidas pelo putativo prestador de serviços (credor) não provam, obviamente, que os serviços foram efetivamente prestados.
É manifestamente improcedente a impugnação da decisão respeitante à matéria de facto.

3. Análise dos factos e aplicação da lei

3.1. Do mérito da ação

A sorte da apelação ficou traçada com a decisão sobre a impugnação da pronúncia respeitante à matéria de facto. Basta-nos, pois, dar por reproduzida toda a decisão de mérito proferida pelo tribunal a quo: atenta a falta de prova pela ré do crédito invocado como fundamento da exceção de compensação, improcede esta.
De todo o modo, sempre se acrescenta que, independentemente da qualificação jurídica que se faça deste contrato (aquele que resultou provado) – e é incontroverso que estamos perante um contrato de prestação de serviço –, os direitos dele emergentes que se pretendem exercer por via desta ação encontram-se estipulados pelas partes por um modo não contrário a norma imperativa ou à ordem pública. Por força do acordo firmado entre as partes, deveria a ré efetuar a contraprestação acordada – o pagamento ou a existência de um acordo extintivo da obrigação é matéria de exceção não provada pela ré.
Determina o art. 406.º, n.º 1, do Código Civil que o contrato deve ser pontualmente cumprido. Não sendo a obrigação voluntariamente cumprida, pode o credor exigir judicialmente o seu cumprimento art. 817.º do Código Civil.

Não sendo a obrigação cumprida no tempo devido, constitui-se o devedor em mora. Tal circunstância determina a sua obrigação de reparar os danos causados à credora com este atraso art. 804.º, n.os 1 e 2, do Cód. Civ. Nos termos do art. 805.º, n.o 1, do Cód. Civ., o devedor constitui-se em mora com a interpelação. Finalmente, determina o n.º 1 do art. 806.º do mesmo diploma que “Na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora”. “Os juros devidos são os juros legais (...)” idem, n.º 2.
Os juros devidos são contabilizados à taxa que em cada momento venha a vigorar por força da portaria prevista no § 3.º do art. 102.º, do Cód. Comercial.

O reembolso das despesas de cobrança prévias à demanda judicial é devido, pelo menos no valor de € 40,00 − cfr. o art. 7.º do DL n.º 62/2013, de 10 de maio.

3.2. Responsabilidade pelas custas

A decisão sobre custas da apelação, quando se mostrem previamente liquidadas as taxas de justiça que sejam devidas, tende a repercutir-se apenas na reclamação de custas de parte (art. 25.º do Reg. Cus. Proc.).
A responsabilidade pelas custas cabe à apelante, por ter ficado vencida (art. 527.º do Cód. Proc. Civil).

IV. Dispositivo

Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão do tribunal a quo.
Custas a cargo da apelante.
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Notifique.
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Porto, 18 de março de 2024
Ana Luísa Loureiro
Francisca Mota Vieira
António Paulo Vasconcelos