NULIDADES DE SENTENÇA
ADVOGADO
TESTEMUNHA
SIGILO PROFISSIONAL
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
OPOSIÇÃO À RENOVAÇÃO
ABUSO DE DIREITO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Sumário

I - As nulidades da sentença previstas no artigo 615º do CPC, não se confundem com a discordância quanto à decisão de facto ou de direito. Essa é questão de mérito e só nesse âmbito deve ser conhecida pelo tribunal da Relação.
II - O depoimento de Advogado na qualidade de testemunha, na parte coberta pelo sigilo profissional, não é idóneo para fundamentar a demonstração de factos que estejam abrangidos pelo sigilo do advogado, a apreciar casuisticamente, mas o conhecimento dessa proibição de valoração consagrada no art. 92º nº 5 do EOA só releva se assumir importância em termos de uma possível alteração da matéria de facto, sob pena de tal conhecimento ser inútil.
III - A Lei nº 6/2006 de 27/2 (NRAU) contem um regime excepcional e especial para efeitos de eficácia da comunicação da oposição à renovação do contrato de arrendamento que prevalece sobre o regime regra da recepção ou conhecimento para efeitos do preceituado no artigo 224º nº 2 do CC, exigindo que aquela comunicação seja efectuada por carta registada com aviso de recepção.
IV - Incumbe ao senhorio a demonstração do cumprimento dessa formalidade legal, nos termos do artigo 342º nº 1 do CC.
V - O abuso do direito supõe que o seu titular o exerça de forma manifestamente grosseira e desproporcional, ofendendo de forma gritante os princípios da boa fé, dos bons costumes ou o fim social ou económico daquele seu direito.
VI - É inexigível ao senhorio a manutenção do contrato de arrendamento em caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento das rendas, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário, sem prejuízo de este último por termo à mora no prazo de um mês, nos termos dos artigos 1083º nºs 1, 3 e 4 e 1084º nº 3, ambos do CC.
V - Neste contexto, para obviar à resolução do contrato cabia à arrendatária, enquanto facto impeditivo/extintivo do direito à resolução do contrato de arrendamento (artigo 342º nº 2 do CC), alegar e demonstrar o depósito das rendas e indemnização prevista no artigo 1041º nº 1 do CC e, ainda que a locadora tinha recusado esse recebimento, conforme previsto no artigo 1042º do mesmo CC.

Texto Integral

Processo n.º 8863/21.0T8PRT.P1- APELAÇÃO

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Sumário (elaborado pela Relatora):
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I. RELATÓRIO:

1. AA intentou acção declarativa sob processo comum contra BB, tendo formulado os seguintes pedidos:
a) Declarar-se a caducidade do contrato de arrendamento operada em 31/08/2019;
b) Deve a Ré ser condenada a pagar à Autora a título de indemnização pelo atraso nessa entrega a quantia total de 6.400.00€ vencida até à presente data;
c) Deve a Ré ser condenada a pagar a quantia de €400,00 mensalmente, desde a data da propositura da presente ação e até efetiva entrega do imóvel livre de pessoas e bens;
d) Caso assim não se entenda, deve ser declarada a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de, pelo menos, as rendas vencidas relativas aos meses de fevereiro, março e agosto de 2020 e março e maio de 2021, num total de € 2.000,00 decretando-se o despejo imediato do imóvel e bem assim a pagar à Autora as rendas vincendas até entrega efetiva do locado livre de pessoas e bens;
e) A pagar à Autora uma indemnização relativa à divida que esta tem de suportar pela falta de pagamento dos consumos de água no arrendado cujo montante atual já vencido é de €1.718,83 e bem assim os montantes que, entretanto, se forem vencendo.
Como fundamento da referida pretensão, a Autora alegou em síntese que, em 1 de Setembro de 2009 deu de arrendamento à Ré o imóvel identificado nos autos, pela renda mensal de €400,00, o qual se destinava a habitação da Ré e seu agregado familiar, tendo comunicado à Ré a sua oposição à renovação do referido contrato de arrendamento por missiva de 7 de Setembro de 2018, contrato esse que teria o seu termo em 31 de Agosto de 2019, sem que a Ré tenha posto em causa a caducidade de tal contrato, porém, na data da cessação do contrato de arrendamento a Ré não entregou o locado embora lhe tenha comunicado verbalmente que se encontrava a diligenciar no sentido de encontrar nova habitação solicitando algum tempo para desocupar o imóvel, tendo-lhe a Autora concedido o prazo limite até ao fim de janeiro de 2020.
Apesar disso, a ré foi protelando a entrega do imóvel e posteriormente à notificação judicial avulsa para entrega do locado a ré comunicou à Autora que o contrato de arrendamento se tinha renovado e que lhe estava a pagar a renda em numerário, o que é falso, nunca tendo acordado com a Ré na renovação do contrato de arrendamento, ocupando-o a Ré por mero favor e nas condições acima descritas.
De todo o modo, alegou a Autora que caso se admita que o contrato se renovou a Ré teria de ter pago pontualmente as rendas que se foram vencendo, não tendo pago as rendas vencidas relativas aos meses de fevereiro, março e agosto de 2020, março e maio de 2021 num total de €2.000,00, o que lhe permite resolver o contrato.
Para além disso a Ré deixou de pagar os consumos de água relativos ao arrendado, conforme se obrigara na cl. 9ª do contrato, perfazendo a dívida às Águas do Porto, já em execução fiscal, a importância de €2.120,92 e os consumos entretanto ocorridos entre fevereiro a maio de 2021 a importância de €97,91, da qual a Ré apenas pagou, depois de interpelada para o efeito, o valor de €500,00.

2. A Ré deduziu contestação, suscitando a questão da ineficácia do exercício da preferência por preterição de formalidades, e a violação do instituto da preferência inscrito nos arts. 416º do CC, bem como invocou a violação do art. 9º nº 1 do NRAU considerando ineficaz a comunicação da oposição à renovação do contrato de arrendamento, concluindo que não ocorreu a caducidade do contrato e que o mesmo se renovou por igual período de 5 anos, bem como a violação do art. 1056º CC sustentando que tendo decorrido mais de um ano a ocupar o locado sem oposição da Autora o contrato renovou-se automaticamente, apelidando-as de excepções inominadas de conhecimento oficioso, assim como impugnou os factos alegados na pi, alegando que reside no locado desde 1 de Abril de 2003 e até 1 de Setembro de 2009 mediante contrato de arrendamento verbal, pelo que à data da carta de 7.09.2018 já residia no locado há mais de 15 anos sendo aplicável o regime estabelecido pela Lei nº 13/2019 não tendo a carta a comunicar a oposição á renovação do contrato qualquer efeito legal.
Alegou ter pago a renda de fevereiro de 2020 em numerário e as restantes por depósito, tendo comunicado á Autora que pretendia beneficiar do regime previsto quanto ás situações de mora no pagamento de rendas previsto no art. 4º e 6º da Lei nº 4-C/2020 de 6.04 bem como as alterações subsequentes por carta e, quanto ao valor em dívida de consumos de água alega ter pago a quantia de €800,00, encontrando-se apenas devedora de €1.418,83.
Formulou, ainda, pedido reconvencional, nos seguintes termos:
“ g) Deve dar-se como provado que a ré apenas se encontra devedora pela quantia de €1.418,83 a título de faturas de água vencidas, no entanto este valor deve ser compensado atento o pedido reconvencional formulado no montante de €7.500,00 que também se deve dar como provado, havendo, Assim, um crédito no valor de €6.081,17 a favor da ré sobre a autora, conforme alegado nos artigos 70 a 78 desta contestação.”
Para o efeito alegou que desde janeiro de 2009 presta serviços na residência da autora em média 5 horas diárias, cobrando a ré pelos serviços domésticos prestados para outras pessoas €5,00 por cada hora de serviço, tendo trabalhado em média 110 horas mensais, multiplicadas por 11 anos e ainda os meses de janeiro e fevereiro de 2020, pelo que teria a receber da autora a quantia total de €73.700,00, mas como até 2015 vigorou um acordo verbal em que a autora apenas lhe pagaria €150,00 mensais e abateria a renda, a partir de janeiro de 2016 deixou de pagar os €150,00 mensais o que totaliza €7.500,000, valor esse que deve ser compensado à dívida que a ré tem de €1.418,83, sendo a autora devedora no presente da quantia de €6.081,17.

3. A Autora apresentou réplica, respondendo à matéria de excepção, bem como invocou o abuso de direito e impugnou os factos que fundamentam o pedido reconvencional.

4. Dispensada a realização da audiência prévia, veio a ser proferido despacho saneador, que admitiu liminarmente o pedido reconvencional, fixou o objecto do litígio e os temas de prova.

5. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, julgando procedente a presente ação e improcedente a reconvenção, decido:
a) considerar cessado o contrato de arrendamento em 31-08-2019;
b) condenar a ré no pagamento do valor da renda estipulada, desde fevereiro de 2020 até à entrega do locado livre de pessoas e bens, deduzidos os valores mensais já pagos pela ré e constantes da alínea I)’ dos factos provados.
c) condenar a ré no pagamento do montante €1.718,83 devida pelos consumos de água no locado;
d) absolver a autora/reconvinda do pedido reconvencional.
e) condenar a ré nas custas da ação e da reconvenção, sem prejuízo do apoio judiciário.
Registe e notifique.”

6. Inconformada, a Ré/Reconvinte interpôs recurso de apelação da sentença final, formulando as seguintes
CONCLUSÕES
O Tribunal a quo deu como provados os factos A) a I)’ dos factos dados como provados na sentença aqui sob recurso e como não provados os factos1.º a 18.º dos factos dados como não provados na sentença aqui sob recurso.
a) Quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de facto ao abrigo do artigo 640.º do CPC
Questões prévias quanto à impugnação da matéria de facto
1.ª- O Dr. CC tem uma sociedade de custos com o aqui signatário, partilhando o mesmo domicílio profissional.
2.ª- A ré/recorrente, não se conforma com o despacho proferido pelo Tribunal a quo na audiência de discussão e julgamento de 01-02-2023 que recaiu sobre o requerimento apresentado pelo aqui signatário nessa mesma sessão (Cfr. Ata sob a referência 444841336), pelo que vem requerer junto deste Venerando Tribunal da Relação do Porto que seja invalidado tal depoimento da aludida testemunha considerando-o nulo ao abrigo do artigo 92.º, n.º 1, alínea c) do EOA e ainda ao abrigo da alínea f).
3.ª- Sendo que quanto à alínea c) do citado artigo, louvamo-nos da consulta n.º 40/2017 (Pareceres do Conselho Regional de Lisboa da OA), que, resumindo, dispõe que a alínea c) do artigo 92.º se aplica “em toda a sua extensão, aos que partilham o escritório, isto é, o mero espaço físico, sem exercer a atividade em associação (sob a forma de sociedade ou não).
Ou seja, todos os Advogados que partilham o mesmo espaço físico para o exercício da advocacia devem considerar-se vinculados ao segredo uns dos outros naquilo que venha ao seu conhecimento.”
In: https://www.oa.pt/cd/Conteudos/Pareceres/detalhe_parecer.aspx?sidc=31634&idc=50 1&idsc=42945&ida=160337
4.ª- Ainda quanto à violação do artigo 92.º, n.º 1, alínea c), 12.ª-, podemos verificar que a testemunha CC tinha conhecimento que o aqui signatário já era mandatário da ré/recorrente pelo menos desde o período da notificação judicial avulsa, porquanto era ele que ia ceder uma casa à ré/recorrente como facilmente se através dos testemunhos do próprio e da testemunha DD:

“[00:08:48] CC: E disse-lhe montes de coisas. Nomeadamente… Nomeadamente arranjei-lhe uma casa. Duas. Não foram… Não foi uma, foram duas. Arranjei-lhe duas casas: uma… uma em ... e outra que era um espaço da Diocese ....”
“[00:14:40] DD: E… E nas conversas, duas ou três chamadas que tive com o doutor EE, o próprio doutor EE disse: “Olhe, eu tinha uma casa que ia ser… ia ser um colega de trabalho que ia ceder e ia dar à dona BB, e a dona BB ia para lá.” Eu disse: “OK, vamos aguardar então que essa situação aconteça. Nós também… Mais mês, menos mês, não tem problema nenhum.” Na outra chamada disse: “Olhe, não aconteceu”, o doutor EE disse que não conseguiu essa casa para a dona BB e que… que continuava à procura, e que já tinha dito à dona… – numa expressão que também não sei precisar palavra por palavra, mas que a expressão foi… o doutor EE disse: “Ó BB, tem que arranjar uma casa. Nós não podemos querer tudo… tudo… o melhor dos dois mundos, que é: não pode querer uma casa com a mesma tipologia, na mesma rua, ao mesmo valor de renda. Temos que ceder nalgum ponto. Portanto, que seja mais longe da periferia… (…)”(O sublinhado é nosso)
5.ª-A presente situação integra ainda o que dispõe o n.º 6, do artigo 99.º do EOA, ou seja, o Dr. CC, enquanto advogado e testemunha nestes autos tem um conflito de interesses a que alude o artigo 99.º do EOA.
6.ª- Com este sentido se pronunciou o Conselho Regional do Porto da OA no parecer retirado do processo 13/PP/2021-P, de 17 de março de 2021, que teve como relatora Maria José Rego in https://www.direitoemdia.pt e ainda o Código de Deontologia dos Advogados Europeus que foi aprovado pela OA pela deliberação n.º 2511/2007, de 07 de dezembro de 2007 e publicado no DR II Série n.º 249, de 27-12-2007.
7.ª-Pelo que dúvidas não podem subsistir quanto à incompatibilidade de ser testemunha nestes autos e ao mesmo tempo sócio do aqui signatário numa sociedade de custos que tem o mesmo domicílio profissional.
8.ª- Quanto à alínea f), do n.º 1, do artigo 92.º do EOA, é manifesto que o Dr. CC tinha conhecimento de factos controvertidos nestes autos e não se coibiu de encetar negociações com o aqui signatário, enquanto mandatário da ré/recorrente, entretanto malogradas, por força do despedimento da ré/recorrente como empregada do escritório, em que interveio em representação dos interesses da autora/recorrida, como está patente no seu depoimento:
“[00:14:13] CC: O que é não as abria. E depois fez-se… E depois, a AA viu-se ali um bocado apertada e depois acabou por se fazer o tal… um acordo, que já foi com a intervenção do doutor EE…
[00:14:28] Mandatário da Autora: Junto de…
[00:14:28] CC: Que a única coisa que eu agora posso aqui dizer que falei com ele foi nesse acordo.
[00:14:33] Mandatário da Autora: Com os serviços (impercetível).
[00:14:35] CC: E consumou-se um acordo, em que a senhora BB pagava à AA por mês aquilo que recebia do escritório. Ou seja, eu não lhe pa… não lhe dava… eu e ele não lhe dávamos o ordenado do escritório e esse dinheiro eu metia num envelope e entregava à AA…
[00:14:58] Mandatário da Autora: Por conta das dívidas…
[00:14:59] CC: …por conta de… Todos os meses certinhos.
(…)
[00:15:29] CC: (…) E eu… E eu aí tive uma conversa com ela, aí. E disse: “Olhe, não estão reunidas as condições para a senhora continuar aqui. Eu não me sinto bem, portanto, um de nós tem que sair. Um de nós sai.” E, portanto, e ela saiu.”
9.ª- Assim, e ao abrigo das disposições invocadas do EOA, deve este Venerando Tribunal invalidar e/ou anular o depoimento desta testemunha, por ser manifestamente ilegal e, consequentemente, ao decidir deste modo o Tribunal a quo conheceu de matéria probatória de que não devia tomar conhecimento, o que constitui uma causa de nulidade da sentença aqui recorrida, ao abrigo da 2.ª parte da alínea d), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC, o que desde já se requer com as legais consequências.
10.ª- Quanto à testemunha FF que ocorreu na audiência de 20 de abril de 2023 e que consta das pág. 212 a 253 da transcrição da gravação efetuada naquela audiência, o Tribunal a quo apesar da síntese descritiva efetuada do seu depoimento, na motivação quanto à matéria de facto no que tange aos factos provados e não provados, nunca menciona nem faz referência ao depoimento desta testemunha.
11.ª- Assim, o Tribunal a quo foi totalmente omisso quanto ao depoimento desta testemunha, por isso constitui uma causa de nulidade da sentença recorrida prevista na 1.ª parte da alínea d), do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, ou seja, a MM Juíza da causa deixou de pronunciar-se sobre questões que devia ter apreciado no que tange à matéria de facto, nulidade que aqui e agora se invoca com as legais consequências.
Quanto à impugnação dos factos dados como provados
12.ª- O facto dado como provado na alínea J) deve ser dado como não provado, pelos seguintes fundamentos:
1.º- Desde logo a carta datada de 07 de Setembro de 2018, não reproduz o seu texto integral.
2.º- O teor da carta datada de 07 de setembro de 2018, ao contrário do que pretende autora/recorrida é a cessação do contrato a partir de 31 de agosto de 2019 e não a caducidade, sendo que o elemento probatório essencial e necessário só se obtém através de aviso de receção assinado pela ré/recorrente (conhecimento desta).
3.º- Não se encontra provado em que data a ré/recorrente recebeu tal carta pois não existe aviso de receção com a sua assinatura reportado ao n.º de registo postal RH0...99PT (Cfr. fls. 3 do doc. 6 junto com a PI).
4.º- Consequentemente, não se encontra provado quando é que a ré/recorrente tomou conhecimento do teor de tal carta registada, tendo presente o facto provado em O) (artigo 19.º e doc. 8 da PI) tal conhecimento só lhe adveio em finais do mês de fevereiro de 2020 de acordo com uma carta registada, enviada à autora/recorrida, datada de 26 de fevereiro de 2020 (Cfr. doc. 8 junto com a PI), sendo que em tal carta não reconhece a caducidade do contrato de arrendamento em 31 de agosto de 2019.
5.º- No facto dado como provado na alínea J), o Tribunal a quo refere que “(…) a autora, comunicou à ré: ”sendo que não está provado nestes autos quando é que a ré/recorrente tomou conhecimento do teor de tal carta, não sendo possível identificar a precisa data do seu conhecimento e tal prova só poderia ser feita através do aviso de receção que não existe enquanto documento nos autos.
6.º- A carta registada de 07 de setembro de 2018, enviada pela autora/recorrida, sem aviso de receção, não respeita a forma legalmente imposta para que se considere eficaz a oposição à renovação do contrato de arrendamento aqui em causa. Aliás, o regime aplicável às comunicações do senhorio, relativas a cessação do contrato de arrendamento, atualização da renda e obras, encontra-se previsto no n.º 1, do artigo 9.º do NRAU, ou seja, “(…) são realizadas mediante escrito assinado pelo declarante e remetido por carta registada com aviso de receção”.
7.º- Consequentemente, a carta enviada pela autora/recorrida, devia ter sido julgada ineficaz pelo Tribunal a quo, porquanto a mesma não foi rececionada expressamente pela ré/recorrente e porque aquele Tribunal, na fundamentação da matéria de direito, admite sem mais tal facto, pelo que a alínea J) dos factos dados como provados pelo Tribunal a quo não deveser dada como não provada, porquanto o envio da carta datada de 07 de Setembro de 2018 não representa qualquer comunicação à aqui ré/recorrente significando apenas, em termos probatórios, que a referida carta foi enviada.
8.º- Assim, tendo presente o disposto na alínea c), do n.º 1, do artigo 640.º do CPC, deve-se aditar aos factos dados como provados o seguinte:
“A carta enviada pela autora à ré, por carta registada, datada de 07 de setembro de 2018, não foi enviada com aviso de receção.”
13.ª- O facto dado como provado na alínea M) deve ser dado como não provado, pelos seguintes fundamentos:
1.º- Tal facto foi impugnado no artigo 49.º da contestação apresentada pela ré/recorrente.
2.º- Como decorre da 1.ª questão prévia suscitada no âmbito da impugnação da matéria de facto, este Venerando Tribunal ao invalidar e/ou anular o depoimento da testemunha, CC, conforme foi requerido, a alínea M) deve ser dada como não provada.
3.º- Caso não seja este o entendimento deste Venerando Tribunal quanto à invalidade do depoimento da referida testemunha, sempre se dirá que a ré/recorrente não protelou a entrega do imóvel porque apenas teve conhecimento da intenção real da autora/recorrida em fevereiro de 2020, como se pode verificar pelos depoimentos de CC e DD, isto é, na mesma altura da notificação judicial avulsa.
4.º- Assim, verifica-se que o Tribunal a quo julgou incorretamente os factos adstritos a este facto dado como provado, e, por outro lado, não atendeu aos depoimentos das testemunhas acima melhor identificadas, como se demonstra da gravação e transcrição dos seus depoimentos e, por isso, impunha-se que o Tribunal a quo desse como não provado este facto ao abrigo da alínea c), do n.º 1, do artigo 640.º do CPC.
14.ª- O facto dado como provado na alínea T) deve ser dado como não provado, pelos seguintes fundamentos:
1.º- Tal facto encontra-se impugnado no artigo 49.º da contestação e como tal não foi aceite pela ré/recorrente.
2.º- Não se deverá olvidar do facto dado como provado na alínea O) e em particular do teor das cartas registadas enviadas pela ré/recorrente em 26 de fevereiro de 2020 (Cfr. doc. n.º 8 junto com a PI) e em 06 de março de 2020 (Cfr. doc. n.º 10 junto com a PI) em que refere que sempre foram pagas as rendas em numerário solicitando-se o NIB/IBAN da autora/recorrida para que a ré/recorrente pudesse transferir os valores das rendas vincendas no âmbito do contrato de arrendamento aqui em causa.
3.º- Contrariando este facto dado como provado ver a alínea I)’ dado como provado.
4.º- Um dos pedidos formulados na PI, ainda que a título subsidiário, é a falta de pagamento de rendas por parte da ré/recorrente (Cfr. alínea d) da PI), até porque a relação controvertida nestes autos prende-se com um contrato de arrendamento e, como tal, oneroso e não com um contrato de comodato que tem na sua génese a gratuidade do uso do imóvel.
5.º- De toda a factualidade dada como provada, não resulta do depoimento de todas as testemunhas que a ré tem vindo a ocupar o locado por favor e também não resulta provado, através de documentos juntos aos autos que a ré/recorrente não tenha pago qualquer renda da autora/recorrida.
6.º- Assim, o Tribunal a quo não fez uma análise crítica, como lhe competia, quer da prova testemunhal, quer da prova documental junta aos autos, julgando incorretamente este facto, porque se o tivesse feito deveria ter dado como não provado este facto, ao abrigo da alínea c), do n.º 1, do artigo 640.º do CPC.
15.ª- Os factos dados como provados nas alíneas U), V), Z), A)’ e B)’ devem ser dados como não provados, pelos seguintes fundamentos:
1.º- Contrariando estes factos dados como provados ver a alínea C)’ dos factos dados como provados.
2.º- Ver requerimento introduzido em juízo pelo Conselho de Administração das Águas do Porto em 12-08-2022, sob a referência Citius 33044539, no qual está escrito que a ré/recorrente assumiu todas as dívidas existentes em nome da autora/recorrida.
3.º- A ré/recorrente com a assunção de tais dívidas não se encontra devedora de qualquer quantia à autora/recorrida, nem tão pouco se percebe que na sentença recorrida o Tribunal a quo venha condenar a ré/recorrente no pagamento do montante de €1.718,83, devida pelos consumos de água no locado.
4.º- O Tribunal a quo não fez uma análise crítica ao documento enviado pelo Conselho de Administração das Águas do Porto em 12-08-2022, consequentemente os concretos pontos de facto constante de tais alíneas acham-se incorretamente julgados. O Tribunal a quo devia ter valorado o aludido documento para dar como não provados os factos constantes de tais alíneas dos factos dados como provados. Assim, impunha-se que a decisão do Tribunal a quo sobre estas questões de facto fosse dá-las como não provadas, tal como dispõe a alínea c), do n.º 1, do artigo 640.º do CPC.
16.ª- Os factos dados como provados nas alíneas G)’ e H)’ devem ser dados como não provados, pelos seguintes fundamentos:
1.º- O Tribunal a quo, quanto à alínea G)’, fundamenta a sua decisão pelo no que se encontra alegado no artigo 27.º da réplica, sendo que, nos termos do artigo 584.º do CPC (função da réplica), este articulado apenas serve para a autora/recorrida deduzir toda a defesa quanto à matéria da reconvenção, mesmo admitindo-se que nesse articulado se possa responder às exceções contidas na contestação, não no plano jurisdicional mas apenas no plano doutrinário, como a própria autora/recorrida admite no ponto 3 de tal articulado, no âmbito da resposta a tais exceções não deve conter factos novos e constitutivos de direito da autora/recorrida como se tratasse da continuação da PI, dado que esta não refere tal facto.
2.º- O Tribunal a quo, quanto à alínea H)’, fundamenta a sua decisão pelo que se encontra alegado no artigo 28.º da réplica, sendo que, nos termos do artigo 584.º do CPC (função da réplica), este articulado apenas serve para a autora/recorrida deduzir toda a defesa quanto à matéria da reconvenção, mesmo admitindo-se que nesse articulado se possa responder às exceções contidas na contestação, não no plano jurisdicional mas apenas no plano doutrinário, como a própria autora/recorrida admite no ponto 3 de tal articulado, no âmbito da resposta a tais exceções não deve conter factos novos e constitutivos de direito da autora/recorrida como se tratasse da continuação da PI, dado que esta não refere tal facto.
b) Quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de direito ao abrigo do n.º 2, do artigo 639.º do CPC
Questão prévia
17.ª- A autora/recorrida, na PI formulou como 1.º pedido o seguinte:
“a) Declarar-se a caducidade do contrato de arrendamento operada em 31/08/2019.”
18.ª- Sendo que na causa de pedir de tal articulado não invoca factos que conduzam à caducidade do contrato de arrendamento no sentido técnico jurídico previsto no artigo 1079.º do CC, onde se refere que o arrendamento urbano cessa por acordo das partes, resolução, caducidade, denúncia ou outras causas previstas na lei.
19.ª- As causas da caducidade do contrato de arrendamento vêm prescritas no artigo 1051.º do CC, sendo que o pedido formulado pela autora na PI não se enquadra nas alíneas a) a g) daquele artigo.
20.ª- O Tribunal a quo não atendeu àquele pedido formulado pela autora/recorrida na sentença aqui sob recurso, e, no seu segmento decisório refere:
“a) considerar cessado o contrato de arrendamento em 31-08-2019;”
21.ª-Em face do exposto, estamos perante uma causa de nulidade da sentença ao abrigo da alínea e), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC, dado que o Tribunal a quo condenou a aqui ré/recorrente em objeto diverso do peticionado pela autora/recorrida, nulidade de conhecimento oficioso, que aqui se invoca perante este Venerando Tribunal, com as legais consequências.
Quanto à impugnação da matéria de direito propriamente dita
22.ª- O Tribunal a quo, na fundamentação quanto à matéria de direito, veio dizer, entre o mais que a autora/recorrida não demonstrou ter remetido a carta com aviso de receção, o que é exigido por força do artigo 9.º, n.º 1 do NRAU.
23.ª-O que parece manifestamente contraditório com a decisão que ao caso se aplicaria o artigo 224.º do Código Civil (conhecimento efetivo da ré), porquanto as normas constantes no n.º 1, do artigo 9.º do NRAU, são normas especiais, dado que se encontram num Novo Regime de Arrendamento Urbano que, por si só, revogou, fez cessar, alterou e aditou novos artigos ao Código Civil, sendo que este Código passou a ter regimes legais próprios e adequados (senão mesmo subordinados) aos regimes jurídicos do NRAU.
24.ª- Por isso, entendemos que o regime legal previsto no artigo 224.º do Código Civil, que se integra na parte geral do Código Civil, é uma norma que trata da perfeição da declaração negocial (artigos 224.º a 235.º do CC) e refere-se à eficácia de declaração negocial do negócio jurídico em geral e, consequentemente, não é numa norma especial, tendo presente o disposto no artigo 7.º do Código Civil.
25.ª- Pelo exposto, ao presente caso não se podem aplicar as normas constante do n.º 1, do artigo 224.º do CC, por referência às normas constantes do n.º 1, do artigo 9.º do NRAU, pelo que houve um erro de julgamento quanto à matéria de direito aplicável ao presente caso, tendo Tribunal a quo violado as normas constantes do citado artigo do NRAU, devendo as mesmas ser aplicadas e não as constantes do n.º 1, do artigo 224.º do CC, tal como dispõem as alíneas a), b) e c), do n.º 2, do artigo 639.º do CPC o que, desde já, se requer com as legais consequências.
Sem conceder, ainda se dirá o seguinte
26.ª- Mesmo que ao caso fosse aplicável o regime legal previsto no artigo 224.º do Código Civil e que versa sobre a eficácia da declaração negocial, o que não se admite nem consente, em sede de eficácia da proposta negocial cumpre distinguir duas questões; respeita uma a saber os termos em que a proposta se torna eficaz e outra a definir os efeitos que ela produz.
27.ª- Quanto ao primeiro ponto, para seu completo esclarecimento, importa ainda identificar qual a sua duração e, por referência a esta, quais as causas da cessação da sua eficácia.
28.ª- A duração da proposta negocial é regida pelo artigo 228.º do CC, sendo que na alínea a), do n.º 1 do citado artigo é referido o seguinte:
“a) Se for fixado pelo proponente (…) um prazo para aceitação, a proposta mantém-se até ao prazo findar.”
29.ª- A vontade relevante na fixação do prazo de duração da eficácia da declaração negocial expressa pela autora/recorrida (através da carta datada de 07-09-2018) tinha um prazo de duração certo e determinado, que foi fixado pela própria autora/recorrida como sendo o dia 31 de agosto de 2019, data a partir da qual não se renovava o contrato de arrendamento aqui em causa e está devidamente identificada no ponto 2 da aludida carta, quando refere:
“2) Assim, venho também comunicar expressamente a V. Exa. que não pretendo renovar o contrato de arrendamento por nós celebrado em 01/09/2009, pelo que, o mesmo caducará em 31 de Agosto de 2019.”
30.ª- Encontra-se provado nos autos que a aqui ré/recorrente apenas tomou conhecimento da declaração enviada em 17-09-2018, em 26 de fevereiro de 2020 (Cfr. alínea O) dos factos dados como provados), através de carta enviada à autora/recorrida, informando-a, entre o mais, que o contrato de arrendamento aqui em causa se tinha renovado e que a ré/recorrente estaria a pagar em numerário a renda do locado à senhoria.
31.ª- Assim, é manifesto que por força do decurso do tempo a situação jurídica em causa, porque não foi exercida dentro do prazo determinado pela própria autora/recorrida, e por força da lei (artigos 296.º e 298.º, n.º 2 do CC), extinguiu-se por caducidade, porquanto a autora/recorrida não exerceu o seu direito de oposição à renovação do contrato de arrendamento até ao dia 31 de agosto de 2019, dado que até a esta data a ré/recorrente não teve conhecimento de tal facto.
32.ª- Ora, tendo ocorrido a extinção de tal direito por parte da autora/recorrida por força da caducidade o contrato de arrendamento aqui em causa renovou-se por igual período, ou seja, até 31-08-2024.
33.ª- Por fim, dir-se-á que a eficácia da proposta efetuada pela autora/recorrida (através da carta de 07-09-2018) cessou os seus efeitos através da caducidade, nos termos conjugados da alínea a), do n.º 1, do artigo 228.º do CC e dos artigos 296.º e 298.º n.º 2 do mesmo Compêndio Legal, o que constitui uma exceção ao regime legal invocado pelo Tribunal a quo (1.ª parte do n.º 1, do artigo 224.º do CC).
34.ª- Ou seja, a caducidade ocorreu pelo decurso do prazo da respetiva duração da oposição à renovação do contrato, tendo presente que a aqui ré/recorrente apenas tomou conhecimento do teor da carta de 07-09-2028 em 26-02-2020, tendo-se, por isso, renovado o contrato de arrendamento aqui em causa.
35.ª- Entendemos assim, que ocorreu um erro de julgamento quanto à matéria de direito aplicável ao presente caso, por referência aos factos provados que sucederam no tempo e por não ter tido em conta a exceção acima melhor explicitada, tendo violado, por isso, as normas constantes nos artigos 228.º, n.º 1, alínea a), 296.º e 298.º, n.º 2, todas do CC, não se aplicando o regime legal previsto na 1.ª parte do n.º 1, do artigo 224.º do CC, tal como dispõem as alíneas a), b) e c), do n.º 2, do artigo 639.º do CPC.
36.ª- Por tudo quanto ficou exposto, deve proceder a exceção invocada não podendo o Tribunal a quo aplicar o regime legal previsto na 1.ª parte do n.º 1, do artigo 224.º do CC, pelo que a comunicação de oposição à renovação do contrato de arrendamento é manifestamente ineficaz, o que, desde já, se requer a este Venerando Tribunal, com as legais consequências.
37.ª- Ainda num segundo segmento da motivação da matéria de direito, o Tribunal a quo veio valer-se do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, no processo com o n.º 25240/19.5T8LSB.L1-8, que teve como Relatora a Sra. Juíza Desembargadora Teresa Sandiães tendo o mesmo sido prolatado em 29-11-2022, para considerar eficaz a comunicação da carta de 07-09-2028, sendo que para o presente interessa salientar:
“Por último, entendo que a referida exigência formal, prevista nos artigos 9.º e 10.º do NRAU, não é suscetível de aplicação extensiva à oposição à renovação que serve de fundamento deduzido em ação declarativa destinada a conhecer da caducidade do contrato e à restituição do locado, como é o caso, dado que não se justifica especial proteção do arrendatário. (…) (v. entre outros, em situação semelhante, Ac. da RL de 29-11-2022, www.dgsi.pt).” (o sublinhado é nosso)
38.ª- Antes de mais, tal Acórdão apenas versa sobre o regime jurídico constante do artigo 10.º do NRAU que trata das vicissitudes das comunicações havidas e não do regime jurídico constante do artigo 9.º do NRAU (Forma de comunicação) e no presente processo nunca foi invocado o regime jurídico do artigo 10.º do NRAU.
39.ª- Ora, para além de não ter sido invocada qualquer norma constante do artigo 10.º do NRAU nos presentes autos, e atentando o Acórdão de que se louvou o Tribunal a quo, podemos sempre ter como base que na decisão tomada em tal Acórdão foi sempre tida em conta o envio de carta com aviso de receção, o que não sucedeu nos presentes autos.
40.ª- Aliás, o TRL no Acórdão em causa escreve
“Tendo o senhorio optado pelo recurso à via judicial para efetivar a cessação do arrendamento deve entender-se que a comunicação produz efeitos na data da assinatura do aviso de receção por pessoa diferente do destinatário, não estando dependente da remessa de uma nova carta registada com aviso de receção com comunicação idêntica à primeira, nos termos previstos nos n.ºs 2.º, 3 e 4 do artigo 10.º do NRAU porquanto não se destina a mesma a servir de base a procedimento especial de despejo.” (sublinhado nosso).”
41.ª- Portanto, sempre seria necessário o envio da carta com aviso de receção, isto é, o artigo 10.º do NRAU necessita que seja cumprida formalidade exigida no n.º 1 do artigo 9.º do mesmo Compêndio Legal.
42.ª- Ora o Tribunal a quo, embora não o tenha dado como provado nos factos dados como provados (Cfr. motivação quanto à matéria de facto), na motivação da matéria de direito admite que a autora não provou que a carta de 07-09-2018 tenha sido enviada com aviso de receção e, consequentemente, aquela declaração da autora/recorrida é ineficaz à luz do n.º 1, do artigo 9.º do NRAU.
43ª- Por isso, entendemos que houve um erro de julgamento quanto à matéria de direito aplicável ao presente caso tendo o Tribunal a quo violado as normas constantes do n.º 1, do artigo 9.º do NRAU, devendo as mesmas ser aplicadas e não outras do mesmo Regime Jurídico, tal como dispõem as alíneas a), b) e c) do n.º 2, do artigo 639.º do CPC, o que, desde já ser requer a este Venerando Tribunal com as legais consequências.
44.ª- Refere ainda o Tribunal a quo, quanto à matéria de direito, o seguinte:
“Afirma, ainda, a ré que se mantém no locado sem que a autora se tenha oposto à sua estadia. Não obstante, alega que a autora confessou que a ré aí se mantém, de favor, o que parece contraditório. Relevante, é ainda, que foi a própria ré que fez juntar aos autos os depósitos de renda desde abril de 2020, neles invocando “recusa de receber renda”, o que contraria a sua tese.”
45.ª- Desde logo, a alínea T) dos factos dados como provados encontra-se impugnada quanto à matéria de facto, como acima melhor se demonstrou e fundamentou.
46.ª- Por outro lado, veio a autora/recorrida, na parte final do artigo 28.º da PI, confessar que a ré/recorrente tem ocupado o arrendado, até à presente data, no seu dizer “por favor” sendo que a alínea I’ dos factos provados é demonstrativa que a ré/recorrida procedeu aos depósitos na Banco 1... da autora/recorrida de todas as rendas vencidas desde fevereiro de 2020 até ao mês de junho de 2023, sendo que, por requerimento introduzido em juízo já após a prolação da sentença aqui sob recurso a ré veio informar o Tribunal a quo que continuava a pagar as rendas vincendas, conforme melhor se vê do requerimento sob a referência 45837385, de 13 de junho de 2023 e no qual junta o comprovativo de pagamento da renda relativa ao mês de julho de 2023.
47.ª- A junção de tais depósitos liberatórios de renda contraria substantivamente a versão dada pela autora/recorrida, porquanto a ré/recorrente desde 01-09-2009, data da outorga do contrato de arrendamento em causa nestes autos (Cfr. doc. nº 4 junto com a PI), até à presente data pagou todas as rendas devidas à autora/recorrida.
48.ª- Acresce ainda que a autora/recorrida tendo dito no citado artigo da PI que nunca acordou na renovação do contrato de arrendamento a verdade é que, desde o dia 06 de Março de 2020 até à data da propositura da presente ação, não fez qualquer tipo de oposição à estadia da ré no arrendado, tendo, por isso, passado mais de um ano com a ré/recorrente no uso do locado sem oposição da autora/recorrida, como locadora, não tendo esta notificada aquela por carta registada com AR para restituir o locado e, consequentemente, a ré/recorrida não incorreu em mora na restituição do locado.
49.ª- Assim, o contrato encontra-se automaticamente renovado a partir do 06 de Março de 2021, pelo período de mais 5 anos, como dispõe o 1056.º do Código Civil, conjugado com o artigo 1054.º do mesmo Código, sendo que tal exceção perentória foi invocada nos artigos 13 a 19 da contestação e só agora na sentença o Tribunal a quo se pronunciou sobre a mesma com os fundamentos acima descritos que, salvo por melhor opinião, não colhem.
50.ª- Assim o Tribunal a quo violou as normas constantes do artigo 1056.º do CC conjugado com ao artigo 1054.º do mesmo Código, devendo as mesmas ser aplicadas ao presente caso, tal como dispõem as alíneas a), b) e c) do n.º 2, do artigo 639.º do CPC, o que deveria ser do conhecimento oficioso do Tribunal a quo que, por consequência, não deveria ter conhecido do mérito da causa e concomitantemente deveria absolver a ré/recorrente de todos os pedidos formulados pela autora/recorrida, o que, desde já ser requer a este Venerando Tribunal com as legais consequências.
51.ª- Ainda na motivação de direito o Tribunal a quo, quanto aos consumos de água vem dizer o seguinte:
“No que diz respeito ao valor devido pelos consumos da água, atenta a factualidade apurada, é devido o pagamento da quantia peticionada pela autora.”
52.ª- Sendo que na alínea c) do segmento decisório condenou a aqui ré/recorrente no pagamento no montante de €1.718,83, devido pelos consumos de água no locado.
53.ª- Salvo por melhor opinião, a motivação de direito é manifestamente insuficiente e não se mostra consentânea com os fundamentos dos factos impugnados nas alíneas U), V), Z), A)’ e B)’, por referência ao facto dado como provado na alínea C) e ainda o requerimento introduzido em juízo pelo Conselho de Administração das Águas do Porto em 12-08-2022, sob a referência Citius 33044539, no qual está escrito que a ré/recorrente assumiu todas as dívidas existentes em nome da autora/recorrida mostrando-se assim credora da autora/recorrida em €500,00, tal como ficou provado na alínea C)’ dos factos dados como provados.
54.ª- Por tudo quanto ficou exposto verifica-se que a fundamentação da matéria de direito quanto ao putativo valor devido pela ré/recorrente à autora/recorrida é manifestamente falaciosa, para além de ser manifestamente insuficiente quanto à sua fundamentação, neste segmento a sentença padece de nulidade prevista na alínea b), do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, dado que não especifica os fundamentos de direito que justificam a decisão de condenar a ré/recorrente no montante de €1.718,83, como decorre da alínea c) do segmento decisório da sentença aqui sob recurso, nulidade que aqui se invoca perante este Venerando Tribunal com as legais consequências.
Concluiu, pedindo que o presente recurso seja admitido, julgadas procedentes as questões prévias suscitadas, as nulidades arguidas deferidas e, em consequência seja declarada a sentença nula com todas as legais consequências e, caso assim não se entenda, deve ser julgado procedente o presente recurso, absolvendo-se a ré/recorrente quanto ao segmento decisório da sentença proferida pelo Tribunal a quo.

7. A Autora/Apelada ofereceu contra-alegações, pugnando pela confirmação do julgado e ampliou o objecto do recurso apresentando a seguinte síntese conclusiva:
Tudo visto e ponderado, é de concluir o seguinte:
Não ocorre nenhuma das três nulidades que a Ré imputa à sentença.
Improcede o recurso deduzido contra o julgamento da matéria de facto.
No plano jurídico, não assiste qualquer razão à Ré, como passa a sintetizar-se:
- porque produziu efeitos a carta destinada a comunicar a oposição da Autora à renovação do contrato de arrendamento em apreço, sendo indiscutível que tal carta foi recebida pela Ré em momento imediatamente seguinte ao do registo postal, estando demonstrado que a Ré percebeu e assumiu o sentido e alcance dessa comunicação, tendo-se ajustado a tal e adoptado condutas em conformidade;
- porque constitui um inaceitável abuso de direito a Ré suscitar a questãoda falta de aviso de recepção dessa carta, já que, como se demonstrou, actuou e agiu, ao longo de vários meses, tanto perante a Autora como perante terceiros, sem nunca ter questionado os efeitos a que tal carta tendia e sem nunca ter posto em causa o sentido e as implicações dessa caducidade;
- porque é totalmente infundada e até incompatível com a sua própria conduta a alegação da Ré no sentido de que o contrato de arrendamento se renovou.
Por tudo isso, o recurso deve ser julgado totalmente improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Subsidiariamente, nos termos do art. 636º, nº 1, do CPC,
Para a hipótese de se entender que a invocada caducidade não operou e ainda para hipótese de se entender que, tendo havido caducidade, o contrato de arrendamento se renovou,
Deverá ser apreciada a pretensão de resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento pontual das rendas, tanto nos termos nº 3 como nos termos do nº 4 do art. 1083º do CC.
Nessa conformidade, com base no(s) fundamento(s) acima elencado(s), deverá ser decretada a procedência da acção nos termos da al. d) do pedido conclusivo da petição inicial, declarando-se a resolução do contrato de arrendamento ajuizado, com as legais consequências.

8. Foram observados os vistos legais.
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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Por outro lado, ainda, sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o tribunal de recurso não pode conhecer de questões não antes suscitadas pelas partes perante o Tribunal de 1ª instância, sendo que a instância recursiva, tal como configurada no nosso sistema de recursos, não se destina à prolação de novas decisões, mas à reapreciação pela instância hierarquicamente superior das decisões proferidas pelas instâncias. [1]
*

As questões a decidir no presente recurso são as seguintes:
1ª Questão - Nulidades da sentença;
2ª Questão - Nulidade da prova atinente a depoimento testemunhal prestado com violação do sigilo profissional de advogado;
3ª Questão - Impugnação da decisão sobre matéria de facto;
4ª Questão - Ineficácia da comunicação pela senhoria da oposição à renovação do contrato de arrendamento;
5ª Questão - Obrigação de pagamento dos consumos de água no locado;
6ª Questão - Abuso de direito na invocação da preterição de uma formalidade legal;
7ª Questão - Resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

1. O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
A)- Por escritura de divisão de coisa comum celebrada em 31 de março de 2021 foi adjudicada à autora a fração autónoma denominada pela letra “J” do prédio urbano sito na Rua ..., da freguesia ..., concelho do Porto, composto por prédio de 8 fogos e com dependência no rés do chão para comércio, com área coberta de seiscentos e sete vírgula noventa metros quadrados e área descoberta de trezentos e dezasseis vírgula dez metros quadrados, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial do Porto sob o número ...17 da referida freguesia, e inscrito na matriz respetiva sob o artigo ...58 (artigo 1.º e doc. 1 da petição inicial – aceite).
B)- A autora é dona do referido imóvel (artigo 2.º da petição inicial – aceite).
C)- Em data anterior a 31 de março de 2021, o prédio urbano da qual a fração “J” faz parte, era já propriedade da autora em regime de compropriedade (artigo 3.º da petição inicial – aceite).
D)- O referido prédio urbano veio à propriedade da autora e dos demais comproprietários por força de um contrato de doação celebrado em 10 de julho de 2009, no qual lhe foi doado 4/16 do referido prédio (artigo 4.º e doc. 2 da petição inicial – aceite).
E)- No dia 08 de maio de 2009 a autora celebrou com os demais comproprietários do prédio um contrato promessa de divisão de coisa comum em que lhe foi prometido adjudicar, as habitações relativas ao terceiro andar A e terceiro andar C (artigo 5.º e doc. 3 da petição inicial – aceite).
F)- Por força do aludido contrato, a partir de 08/05/2009, a autora, passou, em exclusivo, a usar, usufruir, administrar e onerar os imóveis identificados na alínea anterior, por sua conta e risco (artigo 6.º e doc. 3 da petição inicial - aceite).
G)- Em 1 de setembro de 2009 e pela renda mensal de € 400,00 (quatrocentos euros) a autora deu de arrendamento à ré a habitação correspondente ao 3º andar C do prédio identificado na alínea A) e que atualmente corresponde à fração autónoma denominada pela letra “J” (artigo 7.º e doc. 4 da petição inicial – aceite).
H)- O arrendamento destinava-se a habitação da ré e do seu agregado familiar que era constituído por seu filho, este à data menor e atualmente já maior de idade (artigo 8.º da petição inicial – aceite).
I)- Posteriormente, em 25 de junho de 2018 a autora celebrou um contrato-promessa de compra e venda com DD e GG relativo ao imóvel arrendado (artigo 9.º e doc. 5 da petição inicial – aceite).
J)- Por carta registada, datada de 7-09-2018 a autora, comunicou à ré:
“Reg.
07 de Setembro de 2018
Assunto: Exercício do direito de preferência pela Venda do imóvel arrendado sito na Rua ..., ..., nno Porto e Oposição à renovação do contrato de arrendamento celebrado em 01 de Setembro de 2009.
Exma. Senhora,
Na qualidade de proprietária da habitação correspondente ao 3º andar C do imóvel sito na Rua ..., da freguesia ... do concelho do Porto, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...58 e descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº ...17 da qual V. Exa é arrendatária desde 01 de Setembro de 2009, venho contactar V. Exa para o seguinte:
1)É m/intenção vender a habitação supra referenciada, tendo já um projeto de venda pelo preço de €63.000,00 (sessenta e três mil euros) com o pagamento de 10% deste valor para a promessa de compra e venda, e o remanescente do preço na data da realização da escritura de compra e venda que está prevista realizar-se logo que esteja concluído o processo de constituição da propriedade horizontal, o que se prevê até ao final do mês de Outubro/2018, podendo ser prorrogável com o consentimento escrito de ambas as partes.
Deste modo, caso V. Exa. pretenda exercer o direito de preferência tem 8 (oito) para o fazer nos termos do nº 2 do art. 416º do Cód. Civil.
Informo também que uma das condições do presente negócio é a comunicação da m/parte da oposição à renovação do contrato de arrendamento celebrado com V. Exa e o qual terá o seu termo em 31 de Agosto de 2019.”
L)- Em 14 de novembro de 2019, a autora, celebrou um aditamento ao referido contrato promessa de compra e venda supra referido, no qual, a partir desta data conferia a posse aos promitentes compradores, podendo estes usar, fruir e administrar o imóvel prometido vender, como verdadeiros proprietários do mesmo (artigo 15.º e doc. 7 da petição inicial – aceite).
M)- Contudo, a ré apesar de ter transmitido que se encontrava a procurar nova casa para habitar,  foi protelando a entrega do imóvel (artigo 17.º da petição inicial).
N)- Entretanto os promitentes compradores, enviaram à ré uma notificação judicial avulsa solicitando a entrega do mesmo (artigo 18.º e doc. 8 da petição inicial).
O)- A ré recusou-se a assinar a notificação judicial avulsa e posteriormente comunicou à autora, entre o mais, que o contrato de arrendamento se tinha renovado e que a mesma estaria a pagar em numerário a renda do locado à senhoria, a autora (artigo 19.º e doc. 8 da petição inicial – aceite), remetendo carta do seguinte teor:
“Carta Registada Simples
Assunto: da não caducidade do Contrato de Arrendamento em 31 de Agosto de 2019
Porto, 26 de Fevereiro de 2020
Exma. Senhora Dra,
Com os meus melhores cumprimentos, venho informar V. Exa do seguinte:
1- A caducidade do Contrato de Arrendamento que invocou por carta registada datada de 7 de Setembro de 2018 não pode operar nos termos do artigo 331º do Código Civil.
2- Por ter havido negociações entre nós, após 31 de Agosto de 2019, e na sequência das mesmas, V. Exa, enquanto senhoria, permitiu e consentiu que eu continuasse a pagar a renda de €400,00 mensais, até á presente data, renovando-se assim o contrato de arrendamento em causa por mais cinco anos, ou seja, o mesmo apenas caducará em 31 de Agosto de 2024.
3- Acresce ainda, como é do seu conhecimento, mantenho-me no locado, com a sua autorização e o seu consentimento, e por isso não pode conferir posse a terceiros quanto ao imóvel que venho ocupando desde 1 de Setembro de 2009, de forma contínua e ininterrupta, enquanto sua arrendatária/inquilina.
4- Por outro lado, dado que paguei todas as rendas, sempre em numerário, desde 1 de Setembro de 2009 até á presente data, venho solicitar-lhe a emissão dos correspondentes recibos a que está obrigada por lei a emitir, ou seja, deve emitir recibos até ao próximo mês de Março de 2020, de acordo com a cláusula 7ª do contrato por nós celebrado em 1 de Setembro de 2009.
5- A fim de evitar situações dúbias desde já lhe solicito que me envie por carta registada o seu NIB/IBAN para que eu possa transferir a quantia de €400,00 até ao próximo doa 8 de Março de 2020 respeitante à renda de Abril de 2020.
6- Entretanto, deixe-me informá-la da minha total surpresa e espanto quanto à notificação judicial avulsa de que fui alvo, efectuada no passado dia 13 de Fevereiro de 2020, pelos senhores DD e GG, na qual requereram a entrega do locado, livre de pessoas e bens, no prazo de 10 dias.
7- Não sei se V. Exa é conhecedora de tal iniciativa, mas a mesma, apesar de ser descabida, dado que os requerentes de tal notificação judicial avulsa não são no presente donos e legítimos proprietários do imóvel que ocupo de forma legal, enquanto sua arrendatária/inquilina, porque não fizeram prova daquelas qualidades.
8- Acresce ainda que a notificação judicial avulsa em causa vem comprovar um facto que resultou das negociações havidas entre nós, após 31 de Agosto de 2019, que detenho a posse do locado de forma legal, por força da renovação do contrato de arrendamento, celebrado por nós em 1 de Setembro de 2019 e que apenas caducará no próximo dia 31 de Agosto de 2024.
9- Mas houve mais e pior, porquanto, no passado domingo, dia 23 de Fevereiro de 2020, pelas 20:22horas, fui surpreendida por uma chamada telefónica efetuada através do telemóvel com o número ...59, por um senhor que se identificou como arquiteto GG e se intitulou dono e legítimo proprietário do imóvel que ocupo como sua arrendatária/inquilina dizendo-me taxativamente “(…) ou a senhora desocupa o andar até á próxima quarta-feira, ou sou obrigado a chamar a polícia para que á força abandone o imóvel que é propriedade minha (…)”.
10- Só posso entender tal telefonema como uma ameaça expressa por parte daquele senhor, que apesar de se intitular dono e proprietário do imóvel, que não é, como demonstrou pelos documentos juntos á notificação judicial avulsa que me foi endereçada no passado dia 13 de Fevereiro de 2020.
11- Caso V. Exa não me informe do número do IBAN/NIB para a conta a que estou obrigada a transferir o valor de €400,00 a título de renda atá ao próximo dia 8 de Março de 2020 e referente à renda de Abril de 2020, e não me envie todos os recibos de renda que eu paguei, ver-me-ei obrigada ainda que a contragosto, de procurar saber se V. Exa enquanto Senhoria/Locatária tem declarado às Finanças as rendas que auferiu e que eu paguei, sempre em numerário, desde 1 de Setembro de 2009 até á presente data, o que totaliza um valor global de €50.400,00.
Fico a aguardar pelo envio de todos os recibos de renda pagos e pela informação do seu IBAN/NIB da conta para que possa transferir o valor da renda até ao próximo dia 8 de março de 2020, para que não subsistam dúvidas no futuro quanto ao pagamento da renda.
Muito agradeço que me informe quando é que vai vender o imóvel, por escritura pública, de que sou inquilina/arrendatária, para que eu possa exercer, ou não, o direito de preferência, que é um direito que me assiste.
Finalmente cumpre informar V. Exa que a presente comunicação vale como interpelação e notificação extrajudicial.
                                             Sem outro assunto, subscrevo-me
                                              De V. Exa
                                              Atentamente,
                                            A inquilina/arrendatária”
P)- A autora respondeu por carta datada de 03/03/2020 (artigo 20.º e doc. 9 da petição inicial).
Q)- Em data anterior ao recebimento da carta datada de 3-03-2020 a ré remeteu outra carta à autora, na qual referia que iria começar a efetuar o depósito liberatório da renda (artigo 21.º e doc. 10 da petição inicial – aceite).
R)- A ré, por dificuldades económicas, acordou com a autora a compensação do valor da prestação de serviços domésticos com o valor do uso do locado (artigo 23.º da petição inicial).
S)- A autora concordou com tal situação (artigo 24.º da petição inicial).
T)- A ré tem vindo a ocupar o locado por mero favor (artigo 28.º da petição inicial – aceite, v. artigo 14.º da contestação).
U)- A ré há muito que não vem pagando os consumos de água relativos ao arrendado, nem contratou tais serviços em seu nome (artigo 34.º da petição inicial e cl. 9.ª doc. 4; não impugnado).
V)- A ré aproveitando-se do contrato de fornecimento de água ainda estar em nome da autora (a qual residia naquela habitação antes da celebração do contrato de arrendamento) foi-se furtando ao longo dos anos ao pagamento regular dos consumos de água (artigo 35.º da petição inicial – não impugnado).
X)- Já por diversas vezes os funcionários das Águas do Porto, SA, a solicitação da autora, se deslocaram ao local, mas a ré e o seu filho que com esta reside, recusam-se a permitir o acesso ao imóvel (artigo 38.º da petição inicial – não impugnado).
Z)- Na data da entrada da petição inicial, existia uma dívida às Águas do Porto referente aos consumos de água do locado já em execução fiscal intentada contra a aqui Autora, e que ascende em € 2.120,92. (artigo 39.º e doc. 11 da petição inicial – não impugnado).
A)’- A autora não teve outra alternativa senão fazer um acordo de pagamento prestacional da referida divida, estando a pagar a quantia a quantia de € 88,39 (artigo 40.º e doc. 11 da petição inicial, não impugnado).
B)’- A acrescer a esta quantia estão ainda vencidas as faturas de relativas ao consumo de água dos meses de fevereiro, março, abril e maio de 2021 no valor de quantia de € 97,91, já vencida e paga pela autora (artigo 41.º e doc. 12 da petição inicial – não impugnado).
C)’- Instada para o pagamento desta divida, a ré pagou à autora a quantia de €500,00 (artigo 43.º da petição inicial).
D)’- A ré tem, no presente, uma incapacidade permanente de 60% (artigo 39.º e doc. 2 da contestação).
E)’- A ré, pelo menos desde janeiro de 2009, presta serviços na residência da autora, sita na Rua ..., ..., ..., nesta cidade do Porto (artigos 61.º e 75.º da contestação).
F)’- A ré, por serviços domésticos que presta para outras pessoas cobra €5,00 por cada hora de serviço (artigo 76.º da contestação).
G)’- Antes de tomar de arrendamento a fração relativa ao 3º andar C do imóvel referido na alínea A) supra, a ré já residia no dito prédio, mas residia noutra fração (artigo 27.º da réplica).
H)’- Até então, a ré residia na fração relativa ao 3º andar B do mesmo imóvel (artigo 28.º da réplica).
I)’- A ré procedeu aos depósitos na Banco 1... a favor da autora, no montante de 400 euros cada, a título de renda, nas seguintes datas: 14-04-2020, 8-05-2020, 08-06-2020, 10-07-2020, 11-09-2020, 7-10-2020, 24-11-2020, 18-12-2020, 20-01-2021, 19-02-2021, 19-04-2021, 3-09-2021, 03-09-2021, 13-09-2021, 20-09-2021, 11-10-2021, 11-11-2021, 22-11-2021, 10-12-2021, 27-12-2021, 03-03-2022, 14-03-2022, 8-04-2022, 9-05-2022, 8-06-2022, 07-2022, 8-08-2022, set 2022, 10-10-2022, 8-11-2022, 9-12-2022, Jan- 2023, 08-02-2023, 8-03-2023, 6-04-2023, 8-05-2023 (artigos 65.º e 66.º da contestação e documentos juntos).

O Tribunal de 1ª instância julgou não provados os seguintes factos:
1.º- Por volta de 31 de agosto de 2019 a ré comunicou verbalmente à autora que se encontrava a diligenciar no sentido de encontrar nova habitação solicitando algum tempo para desocupar o imóvel (artigo 14.º da petição inicial).
2.º- A autora informou verbalmente a ré de tal acordo celebrado com os promitentes compradores e da urgência da entrega do imóvel concedendo-lhe o prazo limite até ao fim de janeiro de 2020 (artigo 16.º da petição inicial).
3.º- A partir de meados de 2015 a ré, foi deixando de pagar pontualmente a renda do locado tendo proposto (artigo 23.º da petição inicial).
4.º- A autora tolerou com tal situação (…) para compensar o não pagamento das rendas e porque nutria alguma amizade com a ré (artigo 24.º da petição inicial).
5.º- Todavia, como a ré bem sabe, tais serviços que a mesma fazia de forma não regular e sem qualquer subordinação, não correspondiam ao valor da renda mensal do locado, ou seja, a quantia de €400,00 (artigo 25.º da petição inicial).
6.º- Por outro lado, o imóvel onde permanece a ré, vem causando infiltrações estando a necessitar de obras urgentes de reparação, pois tem causado danos para a habitação do piso inferior (artigo 44.º da petição inicial).
7.º- Porém, a ré, para além de não executar as obras também não permite o acesso ao seu interior, apesar de várias vezes alertada para o efeito (artigo 45.º da petição inicial).
8.º- A autora vê o imóvel a deteriorar-se e constituindo perigo para a segurança do prédio (artigo 46.º da petição inicial).
9.º- A ré, enquanto arrendatária, reside no locado (fração C) desde 1 de abril de 2003 (artigo 23.º e doc. 1 da contestação).
10.º- Tendo vigorado, no período entre 1 de abril de 2003 até 1 de setembro de 2009, um contrato verbal de arrendamento celebrado com o proprietário do mesmo, Dr. HH (artigo 24.º da contestação).
11.º- A ré prestou serviços até fevereiro de 2020, com uma regularidade de, pelo menos, 25 horas semanais (artigo 61.º da contestação).
12.º- A renda relativa ao mês de fevereiro de 2020 foi paga em numerário pela ré (artigo 64.º da contestação).
13.º- A ré comunicou à autora que pretendia beneficiar do regime previsto quanto às situações de mora no pagamento de rendas, invocando, para o efeito, os artigos 4.º e 6.º da Lei n.º 4-C/2020 de 6 de abril, bem como as alterações subsequentes (artigo 70.º e doc. 6 e 7 da contestação).
14.º- A ré pagou a quantia de €800,00, relativa às faturas do consumo de água (artigo 72.º da contestação).
15.º- em média 5 horas diárias (artigo 75.º da contestação).
16.º- Assim, a ré desde aquele ano de 2009 trabalhou em média 110 horas mensais, multiplicadas por 11 anos e ainda os meses de janeiro e fevereiro de 2020 (artigo 77.º da contestação).
17.º- Até 2015, vigorou um acordo verbal entre a autora e a ré que consistia na autora pagar apenas a quantia de €150,00 mensais abatendo o valor da renda de €400,00 (artigo 79.º da contestação).
18.º- A partir de 2016 a autora não cumpriu com o que havia sido acordado, não pagando aqueles €150,00, porque passava por graves dificuldades económicas e financeiras (artigo 80.º da contestação).   
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.

1ª Questão- Nulidades da sentença
O Apelante aludiu ao conhecimento pelo tribunal a quo de matéria probatória de que não devia tomar conhecimento (Conclusão 9ª), considerou que o tribunal a quo foi totalmente omisso quanto ao depoimento da testemunha FF (Conclusão 11ª), que o tribunal a quo condenou a recorrente/ré em objecto diverso do peticionado pela recorrida/autora (Conclusão 21ª) e finalmente que a sentença padece de insuficiência de fundamentação relativamente ao segmento decisório em que a condenou no montante de €1.718,83 devido pelos consumos de água no locado, ao não ter especificado os fundamentos de direito que justificam essa decisão (Conclusão 54ª), apelidando tais erros de nulidades da sentença.
Adiantamos desde já que resulta, porém, evidente da leitura das conclusões de recurso que não estamos perante qualquer nulidade da sentença, mormente as mencionadas pela Apelante como previstas no art. 615º nº 1 al. b), d) e e) do CPC, estamos sim perante uma manifestação de inconformismo com a decisão sobre a matéria de facto prolatada pelo tribunal recorrido, mormente com a valoração que foi feita de determinada prova testemunhal e a invocação de erro de julgamento quanto aos segmentos decisórios em que foi condenada, erros esses, quer de facto quer de direito, que a Apelante suscitou nas demais conclusões de recurso e serão apreciados em sede própria de impugnação da decisão sobre a matéria de facto e de julgamento de mérito.
Sendo o elenco das alíneas do n.º 1 do art. 615º do CPC, um elenco taxativo [2], só nas hipóteses ali expressamente consignadas se coloca a hipótese de nulidade da sentença.
A esse propósito, a Apelante invocou as nulidades da sentença consagradas no mencionado art. 615º nº 1 al. b), d) e e) do CPC, cujo teor, para o que aqui importa, é o seguinte:
“É nula a sentença quando:
(…)
b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) o juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
Vejamos.
1.1 Nulidade do art. 615º nº 1 al. b) do CPC
Alegou a Apelante que foi condenada no pagamento do montante de €1.718,83 por consumos de água no locado, no entanto a motivação de direito é manifestamente insuficiente e não se mostra consentânea com os fundamentos dos factos impugnados nas alíneas U), V), Z), A)’ e B)’, por referência ao facto dado como provado na alínea C) e ainda o requerimento introduzido em juízo pelo Conselho de Administração das Águas do Porto em 12.08.2022, referência citius 33044539 no qual está escrito que a ré assumiu todas as dívidas existentes em nome da autora, mostrando-se assim credora da Apelada em €500,00 tal como ficou provado na alínea C)’ dos factos dados como provados.
Concluiu que a fundamentação da matéria de direito quanto ao putativo valor por si devido à Apelada é manifestamente falaciosa, para além de ser manifestamente insuficiente quanto á sua fundamentação, não especificando os fundamentos de direito que justificam a decisão de a condenar no referido montante.
A nulidade da sentença por falta de fundamentação de facto e de direito está relacionada com o disposto no art. 607º, n.ºs 3 e 4 do CPC, que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.
A propósito da relevância da fundamentação do acto decisório, refere Alberto dos Reis, que “As partes precisam de ser elucidadas a respeito dos motivos da decisão. Sobretudo a parte vencida tem o direito de saber por que razão lhe foi desfavorável a sentença; e tem mesmo necessidade de o saber, quando a sentença admita recurso, para poder impugnar o fundamento ou fundamentos perante o tribunal superior. Este carece também de conhecer as razões determinantes da decisão, para as poder apreciar no julgamento do recurso.
         Não basta, pois, que o juiz decida a questão posta; é indispensável que produza as razões que apoiam o seu veredicto. A sentença, como peça jurídica, vale o que valerem os seus fundamentos. “ [3]
         Assim defende Anselmo de Castro, quando refere que ,“ Há ainda que ter em conta os destinatários da sentença que, aliás, não são só as partes, mas a própria sociedade. Para que umas e outras entendam as decisões judiciais, e não as sintam como um acto autoritário, importa que as sentenças e as decisões se articulem de forma lógica. Uma decisão vale, sob o ponto de vista doutrinal, o que valerem os seus fundamentos. E, embora a força obrigatória da sentença ou despacho esteja na decisão, sempre a força se deve apoiar na justiça. Ora os fundamentos destinam-se precisamente a formar a convicção de que a decisão é conforme à justiça. “ [4]
         Dito isto, e tendo, pois, por assente a exigência de fundamentação da sentença ou de qualquer outro acto decisório (que não seja de mero expediente), não é, todavia, qualquer eventual vício ao nível da fundamentação que conduz à nulidade da sentença.
Como é entendimento pacífico da Jurisprudência e Doutrina, só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na al. b) do n.º 1 do citado art. 615º do CPC.
A mera fundamentação deficiente, incompleta, não convincente, medíocre ou errada afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz a sua nulidade. [5]
         Desde logo, como salientam quer Alberto dos Reis, quer A. Varela, não basta para que exista falta de fundamentação de facto e/ou de direito que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta ou não convincente; é preciso que haja falta absoluta ou total de fundamentação, seja de facto, seja de direito. [6]
Assim sendo, para que haja falta de fundamentação, enquanto causa de nulidade da sentença, é necessário que o juiz não concretize os factos que considera provados e os não coloque na base da decisão, ou, ainda, quanto aos fundamentos de direito, que o juiz não explicite as razões jurídicas que servem de apoio à solução por si adoptada. [7]
Perante o antes exposto, afigura-se-nos que no caso em apreço não ocorre o sobredito vício, uma vez que na sentença recorrida foram especificados, ainda que de forma incipiente, os fundamentos fáctico- jurídicos subjacentes à decisão de condenação da Ré no pedido referente aos consumos de água no locado, não se pode afirmar a ausência absoluta de fundamentos de facto ou de direito subjacentes àquela condenação.
Ainda que a Apelante defenda que a “motivação de direito é manifestamente insuficiente e não se mostra consentânea com os fundamentos dos factos impugnados nas alíneas U), V), Z), A)’ e B)’, por referência ao facto dado como provado na alínea C) e ainda o requerimento introduzido em juízo pelo Conselho de Administração das Águas do Porto em 12.08.2022, referência citius 33044539 no qual está escrito que a ré assumiu todas as dívidas existentes em nome da autora, mostrando-se assim credora da autora em €500,00 tal como ficou provado na alínea C)’ dos factos dados como provados”, isso só demonstra que discorda da prova que o tribunal a quo invocou na fundamentação da sentença recorrida, bem como discorda da solução jurídica, erros esses que a verificarem-se serão conhecidos em sede própria- impugnação da decisão sobre a matéria de facto e erro de julgamento-e quando muito poderão levar à revogação desse segmento decisório, sem que o mesmo se possa considerar nulo à luz do art. 615º nº 1 al. b) do CPC.
A discordância da Apelante quanto à referida fundamentação fáctico-jurídica que conduziu à procedência daquele pedido não consubstancia verdadeira nulidade por falta de fundamentação, a sua divergência quanto aos parcos fundamentos de direito utlizados pelo tribunal naquela decisão, traduz argumentação a esgrimir e a resolver em sede de apreciação do mérito substantivo da sentença, mas não em sede de vício de nulidade da sentença. [8]
  A decisão recorrida contém, ainda que porventura de forma imperfeita as razões jurídicas (fundamentos de direito) pelas quais o Tribunal a quo julgou o pedido referente ao pagamento dos consumos de água e que alicerçam ou justificam o sentido decisório a que chegou de condenação da Apelante/ Ré nesse pedido.
        Da própria argumentação da Apelante em sede do recurso interposto, resulta que o que está em causa não é uma falta (absoluta) de fundamentação de direito da sentença – que, manifestamente, não existe -, referindo-se apenas a motivação insuficiente e falaciosa, traduzindo uma discordância quanto ao julgamento feito em 1ª instância quanto àquele segmento decisório.
A nulidade da sentença por falta absoluta de fundamentação de direito não se confunde com o erro de julgamento, isto é, com o erro na subsunção dos factos dados como provados ao direito aplicável ao caso sub judice.
 Se após a impugnação de determinados factos elencados na sentença não resulta a prova dos pressupostos necessários à condenação da ré no pedido referenciado, como alegou a Apelante, o vício poderá reconduzir-se a um erro de julgamento passível de reapreciação em sede de recurso de mérito, que a Apelante também suscitou, mas não em sede de verificação de nulidade da sentença, o mesmo ocorrendo quanto aos factos a ele subjacentes a reapreciar em sede de impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
         Em conclusão, a sentença recorrida não enferma de qualquer falta de fundamentação fáctico-jurídica para efeitos do preceituado no art. 615º n.º 1 al. b) do CPC, improcedendo o recurso nesta parte.
1.2 Nulidade do art. 615º nº 1 al. d) do CPC
Segundo o disposto no art. 615º, n.º 1 al. d) do CPC é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Este comando normativo é consequência do princípio consagrado no art. 608º, n.º 2 do CPC, em que se prescreve que “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
Segundo ensinamento de Miguel Teixeira de Sousa, o aludido princípio é um «corolário do princípio da disponibilidade objectiva (arts. 264º, n.º 1 e 664º, 2ª parte) [9] que significa que o tribunal deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes e analisar todos os pedidos formulados por elas, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tornar inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões. (…) Também a falta de apreciação de matéria de conhecimento oficioso constitui omissão de pronúncia.» [10]
Questões para efeito do referido preceito legal são «… todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os pressupostos específicos de qualquer acto (processual) especial, quando realmente debatidos entre as partes» [11], não se confundindo com os argumentos, razões ou pressupostos (de facto e de direito) em que a parte funda a sua posição sobre a questão suscitada.
Diferente das questões a decidir referidas no citado art. 608.º n.º 2 do CPC, são os argumentos ou razões jurídicas alegadas pelas partes em defesa dos seus pontos de vista.
Existe nulidade da sentença quando o juiz deixa de conhecer a questão/pretensão que devia conhecer, mas já não existe nulidade da sentença se apenas deixa de apreciar qualquer argumento ou razão jurídica suscitada pela parte em abono da sua pretensão.
Quando as partes submetem ao Tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o Tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão». [12]
Este entendimento tradicional decorrente da lição do Prof. Alberto dos Reis, tem sido perfilhado pela Jurisprudência, a qual, de forma reiterada, perfilha a posição de que a não apreciação de um ou mais argumentos aduzidos pelas partes não constitui omissão de pronúncia, pois que o Juiz não está obrigado a ponderar todas as razões ou argumentos alegados nos articulados para decidir certa questão de fundo, estando apenas obrigado a pronunciar-se «sobre as questões que devesse apreciar» ou sobre as «questões de que não podia deixar de tomar conhecimento[13]
Em suma, ao Tribunal cabe o dever de conhecer do objecto do processo, definido pelo pedido deduzido (à luz da respectiva causa de pedir) e das excepções deduzidas, devendo apreciar e decidir todas as questões trazidas aos autos pelas partes e todos os factos em que assentam, mas já não está obrigado a pronunciar-se sobre todos os argumentos esgrimidos nos autos.
Em função desse condicionalismo, torna-se evidente que a decisão recorrida não padece da referida nulidade por omissão de pronúncia, porquanto a questão da invalidade do depoimento da testemunha Dr CC colocada pela Apelante diz respeito apenas e só à possibilidade de valoração daquele depoimento para a prova de determinados factos, a apurar em sede de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, sendo que tendo o tribunal a quo admitido tal depoimento e tendo-o valorado para prova de determinados factos, mesmo que se venha a decidir estar essa decisão errada,  esse erro não traduz qualquer conhecimento de matéria de que o tribunal não pudesse tomar conhecimento.
Temos dificuldade em perceber porque afirma a Apelante que o tribunal a quo “conheceu de matéria probatória de que não devia tomar conhecimento”, porquanto a matéria de facto alegada pela Autora enquanto causa de pedir de qualquer um dos pedidos que formulara tinha de ser conhecida, o que pode estar errado é a valoração que o tribunal fez daquele depoimento testemunhal caso tenha a testemunha tenha incorrido em violação do sigilo profissional, mas isso terá de ser avaliado em função dos factos impugnados e para cuja prova tal depoimento foi utilizado.
Se a Apelante pretende afirmar que o tribunal não devia ter permitido aquele depoimento testemunhal e ao ter deixado que o mesmo fosse prestado incorreu a sentença em nulidade, está a Apelante profundamente errada, pois que esse eventual erro só se repercutirá na valoração que foi feita daquele meio de prova quanto à factualidade impugnada, consubstanciando quando muito um meio de prova de que o tribunal não se podia ter socorrido na motivação dos factos dados como provados ou não provados, não consubstanciando qualquer questão de que o tribunal não podia tomar conhecimento.
Diferente das pretensões deduzidas, são os argumentos de facto e as provas utilizadas pelo tribunal a quo na decisão proferida quanto à matéria de facto por si considerada para a resolução das pretensões formuladas e que lhe incumbia decidir.
Relativamente à invocada nulidade por omissão de pronúncia, a falta de razão da Apelante é ainda mais evidente, porquanto o facto de o tribunal a quo ter sido totalmente omisso quanto ao depoimento de determinada testemunha ou até ter desconsiderado determinado depoimento testemunhal, ou qualquer outro meio de prova, pode vir a redundar num erro de julgamento, mas nunca numa omissão de pronúncia- não estamos perante qualquer questão colocada ao tribunal de que este devia ter conhecido e decidido.
A não apreciação de algum argumento ou razão jurídica invocada pela Apelante, ou a não apreciação ou valoração de um meio de prova arrolado pela Apelante pode traduzir, eventualmente, um erro de julgamento, mas não traduz qualquer nulidade por omissão de pronúncia.[14]
A Apelante pode discordar dos fundamentos de facto e/ou dos meios de prova em que se alicerçou a decisão recorrida, não pode é alegar que a sentença é nula por excesso ou omissão de pronúncia quando se limita a não concordar com o sentido da pronúncia emitida pelo tribunal, porque nesse caso não se está perante uma nulidade mas uma discordância jurídica a escalpelizar em sede de mérito da decisão, a título de erro do julgamento de facto, ou erro de julgamento de direito.
1.3 Nulidade do art. 615º nº 1 al. e) do CPC
Esta nulidade da sentença articula-se com o disposto no art. 609º do CPC segundo o qual a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir, no entanto o art. 5º nº 3 do CPC atribui ao juiz a qualificação jurídica da pretensão que lhe é apresentada para decisão, desde que se contenha dentro do objecto do litígio, em função da causa de pedir e do pedido formulado.
Sustentou a Apelante que a Autora/Apelada havia pedido que se declarasse a caducidade do contrato de arrendamento operado em 31.08.2019, contudo as causas de caducidade do contrato de arrendamento vêm prescritas no art. 1051º do CC não se enquadrando tal pedido nas alíneas a) a g) daquele preceito legal, pelo que tendo o tribunal considerado cessado o contrato de arrendamento em 31.08.2019, condenou a Apelante/Ré em objecto diverso do peticionado.
Discordamos da Apelante, porquanto a caducidade é uma das formas de cessação do contrato de arrendamento, pelo que, tendo a Apelada/Autora requerido ao tribunal que se declarasse a caducidade do contrato de arrendamento, tendo subjacente a oposição à sua renovação comunicada pela senhoria, o tribunal não condenou em objeto diverso do pedido quando considerou cessado tal contrato, apenas não especificou que essa cessação havia ocorrido por ter considerado ter sido validamente comunicada pela senhoria a oposição à renovação do contrato.       
Em conclusão, a sentença recorrida não enferma das nulidades apontadas pela Apelante, improcedendo estes argumentos recursivos.
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2ª Questão- Nulidade da prova atinente a depoimento testemunhal prestado com violação do sigilo profissional de advogado.
Alegou a Apelante que a testemunha Dr CC tem uma sociedade de custos com o mandatário da Apelante, partilhando o mesmo domicílio profissional e que aquela testemunha indicada pela Apelada tinha conhecimento dos factos em discussão desde pelo menos o período da notificação judicial avulsa, tendo violado as alíneas c) e f) do art. 92º nº 1 do EOA, bem como tem um conflito de interesses a que alude o art. 99º do EOA, ao ter entabulado negociações com o mandatário da Apelante quando tinha conhecimento de factos controvertidos nestes autos e interveio em representação dos interesses da Apelada/Autora, concluindo que tal depoimento deve ser invalidado e considerado nulo.
O art. 92º nº 1 al. c) e f) do EOA sob a epígrafe “Segredo profissional”, refere que o advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente a factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração; e a factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
Esta questão não pode deixar de ser abordada em função das questões decidendas e da solução de direito que adoptaremos em sede de mérito, porquanto o conhecimento das implicações da valoração de um depoimento testemunhal feito por um advogado alegadamente em violação do sigilo profissional só assumirá relevância se e na estrita medida em que poder determinar a modificação de matéria de facto vertida na sentença recorrida, pois só assim assumirá utilidade o seu conhecimento para a revogação ou modificação do sentido decisório da sentença ou de algum dos seus segmentos de acordo com o pedido recursivo formulado pela Apelante.
Deste modo, dir-se-á desde já que, conforme se decidirá mais aprofundadamente em sede de mérito, afigura-se-nos ter sido ineficaz a comunicação de oposição à renovação do contrato de arrendamento implementada pela Apelada/Autora e deste modo será completamente irrelevante aferir se apesar da omissão do AR a Apelante tomou ou não efectivo conhecimento dessa comunicação e quando, e sendo assim, também será irrelevante aferir se o depoimento da testemunha Dr CC violou ou não o sigilo profissional quando depôs sobre aquela matéria, tendo sido sobre aquela matéria que em grande medida o depoimento se debruçou, como pudemos confirmar na gravação do seu depoimento.
De todo o modo, cumpre salientar que tudo o que esta testemunha afirmou saber sobre a comunicação a dar preferência e em simultâneo a comunicar oposição à renovação do arrendamento e quanto ao pedido de ajuda que a Apelante lhe fez para procura de habitação alternativa, não lhe foi transmitido enquanto assunto profissional, tal conhecimento não lhe adveio do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, nem muito menos depôs sobre factos referentes a assuntos profissionais que lhe tenham sido comunicados por colega com o qual estivesse associado ou ao qual prestasse colaboração, depôs sim sobre factos que lhe foram transmitido pela própria Apelante, empregada de limpeza no seu escritório, quando não estava em causa qualquer serviço do foro profissional, não tendo a testemunha tido conhecimento dos factos porque tenha prestado qualquer serviço à Apelante, nem sequer à Apelada, enquanto advogado, ou em sede de negociações mantidas com o mandatário da Apelante que só muito depois foi contratado por esta.
Já assim não será quanto à questão dos consumos de água e ao acordo que terá sido feito com a Apelante para ser retido o valor dos serviços de limpeza que aquela fazia no escritório de advogados ao qual pertencem a testemunha e o mandatário da Apelante, por conta da dívida perante a Apelada respeitante a esses consumos, porquanto afigura-se-nos que implicará essa parte do depoimento violação do art. 92º nº 1 al. f) do EOA por se reconduzir a factos de que a testemunha tomou conhecimento durante negociações entabuladas com o aqui mandatário da Apelante para acordo que visasse a liquidação da referida dívida, negociações entretanto malogradas.
Sendo assim, relativamente aos factos respeitantes a esta última matéria, para prova dos quais o depoimento desta testemunha tenha sido valorado, impor-se-ia a proibição de valoração desse depoimento conforme determina o art. 92º nº 5 do EOA (neste sentido veja-se Ac STJ de 12.12.2023, Proc. Nº 1178/21.5T8FNC.L1.S1, Ac STJ de 5.05.2022, Proc. Nº 126/20.4T8OAZ-A.P1.S1, www.dgsi.pt).
Não obstante, como melhor veremos em sede de impugnação da matéria de facto, esse depoimento não foi utilizado pelo tribunal a quo para dar como provada a matéria referente aos consumos de água e dívida a eles respeitante, pelo que nenhuma relevância prática assumirá a questão da proibição de valoração daquele depoimento.
Em jeito de conclusão o depoimento da referida testemunha nunca seria nulo, até porque o art. 92º nº 5 do EOA apenas diz que “os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo”.
Quando muito poderia não ser idóneo para fundamentar a demonstração de factos que estivessem abrangidos pelo sigilo do advogado, a apreciar casuisticamente, mas desde que os factos para prova dos quais tenha sido valorado esse depoimento tivessem alguma utilidade para a decisão da causa, o que não ocorre no caso sub judice.
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3ª Questão- Impugnação da decisão sobre matéria de facto
Perante as exigências estabelecidas no art. 640º do CPC, constituem ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, a seguinte especificação, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
“Quer isto dizer que recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus:
Primeiro: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento;
Segundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa;
Terceiro: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas. 
Ónus tripartido que encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa fé processuais a sua ratio e que visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão.”[15]
Analisadas as conclusões deste recurso, que estabelecem os limites do objecto da apelação e, consequentemente, do poder de cognição do Tribunal de 2ª instância, concluímos que tais ónus de impugnação da matéria de facto foram minimamente cumpridos pela Apelante, tendo feito constar das Conclusões 12ª a 16ª os factos impugnados, a decisão alternativa pretendida pela recorrente e os meios de prova em que alicerça a sua impugnação.
Sob as referidas Conclusões de recurso 12ª a 16ª a Apelante requereu as seguintes alterações à decisão sobre a matéria de facto:
- alíneas J), M), T), U), V), Z), A)’, B)’, G)’ e H)’ dos factos provados devem ser dado como não provados.
Vejamos a redação de cada um dos pontos de facto impugnados para melhor percepção da decisão a tomar:
J)- Por carta registada, datada de 7-09-2018 a autora, comunicou à ré:
“Reg.
07 de Setembro de 2018
Assunto: Exercício do direito de preferência pela Venda do imóvel arrendado sito na Rua ..., ..., nno Porto e Oposição à renovação do contrato de arrendamento celebrado em 01 de Setembro de 2009.
Exma. Senhora,
Na qualidade de proprietária da habitação correspondente ao 3º andar C do imóvel sito na Rua ..., da freguesia ... do concelho do Porto, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...58 e descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº ...17 da qual V. Exa é arrendatária desde 01 de Setembro de 2009, venho contactar V. Exa para o seguinte:
1)É m/intenção vender a habitação supra referenciada, tendo já um projeto de venda pelo preço de €63.000,00 (sessenta e três mil euros) com o pagamento de 10% deste valor para a promessa de compra e venda, e o remanescente do preço na data da realização da escritura de compra e venda que está prevista realizar-se logo que esteja concluído o processo de constituição da propriedade horizontal, o que se prevê até ao final do mês de Outubro/2018, podendo ser prorrogável com o consentimento escrito de ambas as partes.
Deste modo, caso V. Exa. pretenda exercer o direito de preferência tem 8 (oito) para o fazer nos termos do nº 2 do art. 416º do Cód. Civil.
Informo também que uma das condições do presente negócio é a comunicação da m/parte da oposição à renovação do contrato de arrendamento celebrado com V. Exa e o qual terá o seu termo em 31 de Agosto de 2019.”
M)- Contudo, a ré apesar de ter transmitido que se encontrava a procurar nova casa para habitar, foi protelando a entrega do imóvel (artigo 17.º da petição inicial).
 T)- A ré tem vindo a ocupar o locado por mero favor (artigo 28.º da petição inicial – aceite, v. artigo 14.º da contestação).
U)- A ré há muito que não vem pagando os consumos de água relativos ao arrendado, nem contratou tais serviços em seu nome (artigo 34.º da petição inicial e cl. 9.ª doc. 4; não impugnado).
V)- A ré aproveitando-se do contrato de fornecimento de água ainda estar em nome da autora (a qual residia naquela habitação antes da celebração do contrato de arrendamento) foi-se furtando ao longo dos anos ao pagamento regular dos consumos de água (artigo 35.º da petição inicial – não impugnado).
Z)- Na data da entrada da petição inicial, existia uma dívida às Águas do Porto referente aos consumos de água do locado já em execução fiscal intentada contra a aqui Autora, e que ascende em € 2.120,92. (artigo 39.º e doc. 11 da petição inicial – não impugnado).
A)’- A autora não teve outra alternativa senão fazer um acordo de pagamento prestacional da referida divida, estando a pagar a quantia a quantia de € 88,39 (artigo 40.º e doc. 11 da petição inicial, não impugnado).
B)’- A acrescer a esta quantia estão ainda vencidas as faturas de relativas ao consumo de água dos meses de fevereiro, março, abril e maio de 2021 no valor de quantia de € 97,91, já vencida e paga pela autora (artigo 41.º e doc. 12 da petição inicial – não impugnado).
G)’- Antes de tomar de arrendamento a fração relativa ao 3º andar C do imóvel referido na alínea A) supra, a ré já residia no dito prédio, mas residia noutra fração (artigo 27.º da réplica).
H)’- Até então, a ré residia na fração relativa ao 3º andar B do mesmo imóvel (artigo 28.º da réplica).
Relativamente à alínea J) dos factos provados alega a Apelante que a mesma não reproduz o texto integral da carta de 7.09.2018 e tem razão, pelo que, por uma questão de rigor alterar-se-á a sua redação de forma a reproduzir na íntegra o seu texto.
A Apelante defende ainda que não está provado quando é que tomou conhecimento dessa carta porque tal prova só poderia ser feita através do A/R que não se mostra junto aos autos porque não existe.
No entanto aquele ponto de facto não contém qualquer facto relativo à tomada de conhecimento pela Apelante, nem nada sobre o envio da carta ter sido com ou sem aviso de recepção, apenas refere o facto de ter sido enviada aquela comunicação pela autora à ré e o seu teor, factos esses provados documentalmente e que em rigor nem são questionados pela Apelante.
O julgamento a fazer-se sobre a ineficácia da carta é uma questão de direito e não uma questão de facto.
Ainda que aquela carta não tenha sido enviada sob aviso de recepção não deixa de ser uma comunicação enviada à ré, como consta do ponto de facto impugnado, pelo que como tal não se impõe a transição deste facto para os factos não provados.
Também o aditamento pretendido pela Apelante não se impõe, por contrariar as regras do ónus da prova, porquanto a alegação e prova desse envio com aviso de recepção incumbia à Apelada para se poder valer da comunicação válida e eficaz da oposição à renovação do contrato de arrendamento (facto constitutivo do direito que aqui pretende fazer valer), pelo que, não tendo sido feita prova de que a comunicação tenha sido enviada com A/R daí se poderá extrair as consequências legais.
Deste modo, mantém-se a alínea J) dos factos provados, contendo a redação integral da referida carta, nos seguintes moldes:
J) Por carta registada, datada de 7-09-2018 a autora, comunicou à ré:
“Reg.
07 de Setembro de 2018
Assunto: Exercício do direito de preferência pela Venda do imóvel arrendado sito na Rua ..., ..., nno Porto e Oposição à renovação do contrato de arrendamento celebrado em 01 de Setembro de 2009.
Exma. Senhora,
Na qualidade de proprietária da habitação correspondente ao 3º andar C do imóvel sito na Rua ..., da freguesia ... do concelho do Porto, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...58 e descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº ...17 da qual V. Exa é arrendatária desde 01 de Setembro de 2009, venho contactar V. Exa para o seguinte:
1)É m/intenção vender a habitação supra referenciada, tendo já um projeto de venda pelo preço de €63.000,00 (sessenta e três mil euros) com o pagamento de 10% deste valor para a promessa de compra e venda, e o remanescente do preço na data da realização da escritura de compra e venda que está prevista realizar-se logo que esteja concluído o processo de constituição da propriedade horizontal, o que se prevê até ao final do mês de Outubro/2018, podendo ser prorrogável com o consentimento escrito de ambas as partes.
Deste modo, caso V. Exa. pretenda exercer o direito de preferência tem 8 (oito) para o fazer nos termos do nº 2 do art. 416º do Cód. Civil.
Informo também que uma das condições do presente negócio é a comunicação da m/parte da oposição à renovação do contrato de arrendamento celebrado com V. Exa e o qual terá o seu termo em 31 de Agosto de 2019.
2) Assim, venho também comunicar expressamente a V. Exa que não pretendo renovar o contrato de arrendamento por nós celebrado em 01/09/2009, pelo que, o mesmo caducará em 31 de Agosto de 2019.
Com os m/melhores cumprimentos, subscrevo-me
                                                                       De V. Exa.
                                                                        Atentamente”

Relativamente à alínea M) dos factos provados alega a Apelante que deve ser dado como não provado porque tal facto foi impugnado no art. 49º da contestação e o tribunal não pode utilizar como prova o depoimento da testemunha Dr CC, mas apesar disso, mesmo do depoimento dessa testemunha e da testemunha DD resulta que a Apelante não protelou a entrega do locado porque apenas teve conhecimento da intenção real da Apelada em fevereiro de 2020, na mesma altura da notificação judicial avulsa.
A propósito deste facto o tribunal a quo verteu a seguinte motivação:
“- O teor da alínea M) decorre, no essencial, do depoimento de CC, que se afigurou inteiramente credível, porquanto circunstanciado, frontal e espontâneo, explicitando adequadamente as razões pelas quais a ré deixou de prestar serviços no seu escritório. Ora, tendo a ré solicitado que a referida testemunha fizesse diligências para tentar arranjar uma casa, é lógico que a mesma tivesse comunicado à autora e com isso foi protelando a entrega do imóvel. “
Independentemente do depoimento daquela testemunha que efectivamente relatou que a própria Apelante lhe solicitou ajuda na procura de nova habitação e as diligências que efectuou com esse objectivo, certo é que embora não se saiba quando tomou a Apelante conhecimento da carta de 7.09.2018, a testemunha DD referenciou que teve contactos com a Apelante relativos à saída dela do locado, tendo inclusivamente contactado com a Apelante em data anterior ao aditamento do contrato promessa- este data de novembro de 2019-tendentes a encontrar alternativa de habitação para aquela e embora entenda que, das conversas que com ela teve, ela estaria consciente de que ia sair da fração locada, também mencionou que a Apelante nunca lhe disse que não ia sair, no entanto procedeu ao envio da notificação judicial avulsa porque percebeu que estaria a protelar a saída.
Deste modo, afigura-se-nos que apesar de tal facto ter sido impugnado pela Ré no art. 49º da contestação foi produzida prova bastante de que a Apelante esteve à procura de nova casa para habitar e com isso foi adiando a entrega da casa, não havendo razões para dar tal facto como não provado.
Por tais motivos manter-se-á no elenco dos factos provados.
Relativamente à alínea T) dos factos provados alega a Apelante que tal facto foi impugnado no art. 49º da contestação e como tal não foi aceite.
Efectivamente assim foi, e o art. 14º da contestação não invalida tal impugnação.
De todo modo o que é relevante é que se trata de um ponto manifestamente conclusivo, pois se se tratava de uma mera ocupação do imóvel por favor tinha de estar descrito a que se devia tal ocupação- comodato?, mera tolerância?, contrapartida de algum serviço?-pelo que, em face do desconhecimento do motivo subjacente à ocupação do imóvel pela Apelante a partir de 31.08.2019 e tendo a expressão “ocupar o locado por mero favor” como pressuposto a cessação do contrato de arrendamento, que não é consensual, resulta numa mera asserção conclusiva que como tal não deve permanecer nos factos provados, nem nos não provados, devendo ser pura e simplesmente eliminado do elenco dos factos, o que se determina.
Relativamente às alíneas U), V), Z), A)’ e B)’ dos factos provados alega a Apelante que estes factos são contrariados pelos factos dados como provados na alínea C)’ e pelo requerimento junto aos autos em 12.08.2022 sob a referência citius 33044539 pelo Conselho de Administração das Águas do Porto, de acordo com o qual a Apelante assumiu todas as dívidas existentes em nome da Apelada.
Os artigos 34º a 42º da petição inicial que se referem a tal matéria de facto não foram impugnados pela Apelante/Ré na contestação, pelo que estão admitidos por acordo, tal como ficou referenciado na motivação da decisão de facto da sentença recorrida.
De todo o modo a documentação junta pelas Águas do Porto mencionada pela Apelante ainda reforça a prova da veracidade de tais factos e complementa a documentação já junta com a petição inicial a esse respeito ( mormente doc 11), que não foi impugnada pela Apelante.
Da informação prestada nos autos pelas Águas do Porto consta que foi instaurado processo de execução fiscal nº ...67 por dívidas de consumos de água no locado ocupado pela Apelante na importância de €2.120,92 e que a cliente aqui Apelada solicitou plano de pagamento em prestações o qual foi aprovado mediante o pagamento da mensalidade no valor de €88,39 que esta cumpriu até 9.06.2022 tendo pago €1.062,88, e que em 8.06.2022 a aqui Apelante assumiu a dívida em nome da Apelada e também requereu plano de pagamento em prestações, que veio a ser aprovado, mas permanece em dívida naquele processo de execução fiscal o valor de €1508,62 desconhecendo-se se a Apelada foi libertada daquela dívida perante as Águas do Porto ou ainda se mantém responsável pelo seu pagamento caso a Apelante não cumpra uma vez que como titular do contrato permanece a aqui Apelada.
Acresce a documentação junta à petição inicial relativa aos pagamentos dos consumos mencionados na alínea B)’ dos factos provados (mormente doc 12) também mencionada na motivação da decisão de facto da sentença recorrida.
Deste modo, não assiste razão à Apelante, estando tal matéria de facto inequivocamente provada.
Relativamente às alíneas G)’ e H)’ dos factos provados alega a Apelante que tais factos foram alegados na réplica e que tal articulado só serve como resposta à matéria de excepção e da reconvenção, não podendo nela ser alegada matéria de facto nova e constitutiva do direito da Apelada.
Também não tem razão a Apelante quanto a este ponto, porquanto o que é relevante é que tal matéria de facto foi devidamente alegada pela Apelada na réplica e é inegavelmente matéria que se destina a responder a matéria de excepção suscitada na contestação pela Apelante quando mencionou estar a oposição à renovação do contrato de arrendamento impedida ( facto impeditivo do direito exercido pela Apelada/Autora) por estar abrangida pelo regime legal extraordinário e transitório para proteção de pessoas idosas que sejam arrendatárias e residam no mesmo locado há mais de 15 anos ( Lei nº 30/2018)- sendo até caricato que tenha sido a própria Apelante a apelidar tal matéria de excepção inominada na própria contestação-  pelo que, não temos dúvidas de que a Apelada podia alegar matéria de facto destinada a afastar tal excepção perentória, como é o caso da vertida nos pontos de facto impugnados e que se extraem dos arts. 27 e 28 da réplica.
Em jeito de conclusão, com excepção da alínea J) dos factos provados cuja redação passa a incluir o texto do documento na sua integralidade e a eliminação da alínea T) dos factos provados, no mais improcede este segmento recursivo de impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
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4ª Questão- Ineficácia da comunicação pela senhoria da oposição à renovação do contrato de arrendamento
Na sentença recorrida decidiu-se que a Apelada/senhoria havia comunicado devidamente à Apelante/arrendatária a oposição à renovação do contrato de arrendamento com prazo certo e que por tal motivo havia cessado tal contrato em 31.08.2019.
A fundamentação a esse propósito foi a seguinte:
“Nos presentes autos a autora pretende a condenação da ré na entrega do locado, na sequência da comunicação da oposição à renovação do contrato de arrendamento celebrado entre as partes, no ano de 2009, e relativo à fração J do prédio sito na Rua ... que correspondia anteriormente a fração C (v. alíneas A); G) e J) – v. carta datada de 7 de setembro de 2018).
A ré veio invocar a ausência de cumprimento das formalidades legalmente exigidas na comunicação da intenção de vender o imóvel locado, constante da mesma carta de 7-09-2018. Ora, é inútil apreciar se a comunicação para o exercício do direito de preferência foi ou não corretamente comunicada, uma vez que, nos presentes autos, não se discute tal questão.
Vaio, ainda, a ré invocar que a carta de 7-09-2018, que comunicou a oposição à renovação não foi remetida com aviso de receção. Efetivamente, por força do artigo 9.º, n.º 1 do NRAU as comunicações relativas à cessação do contrato de arrendamento devem ser remetidas por carta registada com aviso de receção, não tendo a autora demonstrado ter remetido a carta com tal formalidade (aviso de receção).
Neste particular, é preciso atentar ao regime legal previsto no artigo 224.º do Código Civil. «1. A declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida; as outras, logo que a vontade do declarante se manifesta na forma adequada. (…)».
A comunicação ao arrendatário, é uma declaração recetícia porquanto se dirige a um destinatário, sendo assim aplicável a 1.ª parte do artigo 224.º do citado diploma legal. Ou seja, havendo prova do conhecimento efetivo, não é preciso provar a receção (ou seja, a chegada ao poder). (v. Heinrich Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português, teoria Geral do Direito Civil, Almedina, pág. 449).
Sucede, porém, que não restam dúvidas que a ré teve conhecimento de tal comunicação, bastando atentar no teor da carta por si remetida à autora, datada de 26-02-2020.
Por último, entendo que a referida exigência formal, prevista nos artigos 9.º e 10.º do NRAU, não é suscetível de aplicação extensiva à oposição à renovação que serve de fundamento deduzido em ação declarativa destinada a conhecer da caducidade do contrato e à restituição do locado, como é o caso, dado que não se justifica especial proteção do arrendatário. A imposição daquela formalidade, destinada a uma maior garantia na receção da comunicação pelo arrendatário, não encontra na ação declarativa qualquer suporte, pois não se está perante mecanismo de simplificação (e aceleração) do regime de efetivação da cessação do contrato que, no PED, o legislador entendeu disciplinar de molde a estabelecer maior equilíbrio nos interesses das partes, com vista à proteção do arrendatário (v. entre outros, em situação semelhante, Ac. da RL de 29-11-2022, www.dgsi.pt).
Assim, considero eficaz a comunicação de oposição à renovação do contrato de arrendamento. Por consequência, fica prejudicado o conhecimento do pedido de resolução do contrato por falta de pagamento das rendas.”
Não podemos acompanhar tal decisão por a mesma contrariar frontalmente disposição legal imperativa quanto à forma de comunicação da cessação de um contrato de arrendamento habitacional com prazo certo- art. 9º nº 1 e 2 da Lei nº 20006 de 27.02.
Não há dúvidas que a declaração do senhorio de oposição à renovação do contrato de arrendamento tem carácter receptício (art. 1097º nº 1 do CC), mas para que seja eficaz não basta que chegue ao conhecimento do arrendatário, sendo necessário o cumprimento de uma formalidade especificamente imposta pela lei para aqueles casos ( mais exigente que o regime geral previsto no art. 224º do CC): que a comunicação seja feita mediante carta registada com aviso de recepção.
Como se decidiu de forma lapidar no Ac STJ de 19.10.2019, “A Lei nº 6/2006, de 27-02 (NRAU) prevê um regime complexo e especial para a eficácia dessa declaração de oposição que prevalece sobre a recepção ou conhecimento a que o regime geral do nº 1 do art. 224º do CC dá relevância: exige-se que seja feita por escrito assinado pelo declarante (senhorio), remetido ao destinatário (inquilino), por carta registada com aviso de recepção, (i) para o local arrendado, desde que o aviso de recepção seja assinado pelo inquilino; ou (ii) tendo havido convenção de domicílio, para esse local.”[16]
Na doutrina, entre outros, sufraga igual entendimento Jorge Pinto Furtado, que claramente escreve em anotação ao art. 1097º do CC, sob a epígrafe- Oposição à renovação deduzida pelo senhorio- que essa comunicação  ao arrendatário faz-se nos termos do preceituado nos arts. 9º a 13º NRAU, podendo ser realizada mediante escrito assinado pelo senhorio e remetido por carta registada com aviso de recepção (nº 1), por notificação judicial avulsa ou por contacto pessoal de advogado, solicitador ou agente de execução ( art. 9º, nº 7).[17]
Assim o sustenta também Menezes Leitão, que refere que o NRAU veio estabelecer um formalismo especial a que devem obedecer as comunicações entre as partes no âmbito do arrendamento urbano, regulado nos seus arts. 9º e ss.[18]
Esse formalismo imposto por lei, desde a Lei nº 6/2006 de 27.02 (NRAU), tal como o aresto acima identificado refere, é um regime “manifestamente determinado por razões de equilíbrio entre a protecção do arrendatário – pois aumenta as probabilidades de a oposição chegar efectivamente ao seu conhecimento –, e a simplificação do regime de efectivação da cessação do contrato –, pois acelera essa efectivação”.
A eficácia da comunicação da oposição à renovação do arrendamento depende do envio de carta com aviso de recepção e essa formalidade não é despicienda se atentarmos que terá por objectivo razões de segurança e maior certeza quanto ao efectivo conhecimento por parte do arrendatário que o contrato de arrendamento cessará- neste caso, não se renovará findo o prazo contratualizado-, atentas as sérias implicações que a falta de gozo do locado certamente acarretará ao arrendatário e, simultaneamente permitindo tornar clara a data em que a restituição do locado ao senhorio deverá ocorrer, impedindo dúvidas desnecessárias e inconvenientes sobre a efectiva cessação do contrato entre as partes.
Bastaria que a carta tivesse sido enviada pela Apelada com aviso de recepção para que ficasse minimamente definida a data a partir da qual o locado lhe deveria ser entregue e, como veremos mais à frente, teria a vantagem de dissipar dúvidas sobre se a posterior actuação da Apelante traduzia abuso de direito como a Apelada se viu na necessidade de suscitar.
Por conseguinte, não tendo a Apelada/senhoria demonstrado ter comunicado à Apelante/arrendatária a oposição à renovação do contrato de arrendamento habitacional para o termo do prazo, através de carta registada com aviso de recepção (apenas o fez por carta registada), conforme lhe competia (art. 342º do CC) a referida comunicação não pode ser considerada eficaz e como tal o contrato não cessou por caducidade em 31.08.2019, tendo-se renovado por mais 5 anos até 31.08.2024.
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5ª Questão-Obrigação de pagamento dos consumos de água no locado.
A Apelante foi condenada a pagar à Apelada a importância de €1.718,31 devida pelos consumos de água no locado e insurge-se contra tal decisão por considerar que a mesma não está suficientemente fundamentada.
Não obstante, sem razão o faz porquanto resultam dos autos com suficiente clareza que de acordo com a cláusula 9ª do contrato a Apelante obrigou-se a pagar todas as despesas inerentes ao consumo de água e que o deixou de fazer, conforme alíneas U) a C)’, tendo sido instaurada execução fiscal contra a Apelada pela referida dívida de consumos de água que na data da entrada da petição inicial era no valor de €2.120,92.
A esse valor acrescem os consumos de água entretanto também pagos pela Apelada no valor de €97.91, conforme consta da alínea B)’ dos factos provados.
Por conta dessa importância global em dívida a Apelante apenas pagou à Apelada a quantia de €500,00, pelo que a Apelante permanece em dívida de consumos com água no locado perante a Apelada na importância de €1718,83, independentemente de a Apelante ter entretanto assumido parte da dívida junto das Águas do Porto, certo é que nessa altura já a Apelada havia pago uma boa parte dessa importância em prestações acordadas com as Águas do Porto e ao que se sabe não foi desonerada dessa obrigação, não tendo a aqui Apelante pago aquilo a que se comprometeu.
Deste modo, mantém-se a condenação da Apelante no reembolso à Apelada do valor respeitante aos encargos com a água no locado cujo pagamento não demonstrou ter efectuado, como lhe incumbia ( art. 342º do CC).
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6ª Questão- Abuso de direito na invocação da preterição de uma formalidade legal.
Tal como já havia sido aflorado nos articulados, a Apelada veio invocar nas suas contra alegações a actuação da Apelante em abuso de direito por forma a impedi-la de beneficiar da invocação da ineficácia da comunicação de oposição à renovação do contrato de arrendamento por preterição da formalidade legal consubstanciada na omissão do envio da comunicação com aviso de recepção.
Nos termos do art. 334º CC é ilegítimo o exercício de um direito quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Tal como resulta do art. 334º do Cód. Civil, com a reprovação do abuso do direito procura-se que se não desvirtue o verdadeiro sentido da norma abstracta que o confere. Visa-se, pois, evitar o exercício anormal, em termos reprováveis, do direito próprio, só formalmente adequado ao direito positivo, e, portanto, sancionam-se os manifestos abusos no exercício do direito, numa direcção ilegítima ou para fim diverso daquele para que foi atribuído ao seu titular.
Do exposto decorre que a censura do exercício abusivo do direito não pretende suprimir ou extinguir o direito, mas apenas impedir que o seu titular o exerça numa direcção ilegítima, visando, deste modo, manter o seu exercício em moldes adequados a um salutar equilíbrio de interesses, requerido pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico do direito.
À verificação do exercício abusivo do direito não é necessário que o agente tenha consciência do seu procedimento ser abusivo, basta que o seja na realidade, sendo certo, todavia, que o citado inciso normativo impõe que tal abuso seja manifesto, gritante, que o titular do direito ultrapasse de forma evidente ou inequívoca os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, não bastando que o exercício do direito cause prejuízos a outrem, visto que a atribuição de direitos traduz deliberadamente a supremacia de certos interesses sobre outros interesses com eles conflituantes.”[19]
No mesmo sentido, escreve Menezes Cordeiro que “O abuso de direito, previsto no art. 334º do Código Civil consiste no exercício ilegítimo de um direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Não basta que o titular do direito exceda os limites referidos, é necessário que esse excesso seja manifesto e gravemente atentatório daqueles valores.
Os “limites impostos pela boa fé” têm em vista a boa fé objectiva. Aparentemente lidamos com a mesma realidade presente noutros preceitos, com relevo para os arts. 227º/1, 239º, 437º/1 e 762º/2.” [20]
Uma das modalidades de abuso de direito, consagradas pela Doutrina, é a de inalegabilidade formal, “situação em que a nulidade derivada da falta de forma legal de determinado negócio não possa ser alegada sob pena de se verificar um “abuso de direito” contrário à boa fé. A ocorrência paradigmática seria a de um venire contra factum proprium específico: o agente convence a contraparte a concluir um negócio nulo por falta de forma, prevalece-se dele e, depois, vem alegar a nulidade.
Nessa altura, a tutela da confiança impõe, ex bona fide, a manutenção do negócio vitimado pela invalidade formal. Summo rigore, passará a ser uma relação legal, apoiada no artigo 334º e em tudo semelhante à situação negocial falhada por vício de forma.” [21]
Menezes Cordeiro expressamente afirma ser possível que “em nome da boa-fé, se possa bloquear a invocação de invalidades formais quando as mesmas forem determinadas por um contraente que, depois de aproveitar as vantagens do contrato, vem invocar a nulidade delas emergente. O reconhecimento de que este comportamento traduz abuso do direito funciona, então, através da chamada figura das inalegabilidades formais”.[22]
Acontece que, desconhecemos em que data a Apelante tomou conhecimento da comunicação enviada pela Apelada a dar conta da oposição à renovação do contrato de arrendamento porque ela não resulta dos factos dados como provados, uma vez que a Apelada não provou ter enviado a carta com aviso de recepção que permitiria esse conhecimento, ao que sabemos a relação contratual manteve-se igual a partir de 31.08.2019 sem que a Apelada tenha demonstrado ter interpelado a Apelante para entregar o locado ou tenha reclamado por não estar a ser pago qualquer valor mensal pela ocupação do locado desde aquela data, apenas se apurou que a Apelante transmitiu que se encontrava a procurar nova casa para habitar, tendo protelado a entrega do imóvel, mas isso é manifestamente insuficiente para se dizer que a ré assumiu um comportamento inequívoco de que não iria opor-se à caducidade do contrato mediante a invocação da falta de envio de carta com A/R assim que fosse confrontada pela Apelada  para a entrega do locado.
Certo é que posteriormente a ter sido enviada à Apelante uma notificação judicial avulsa a solicitar-lhe a entrega do locado, a qual se recusou a assinar, aquela comunicou em 26.02.2020 à Apelada, entre o mais, que considerava que o contrato se tinha renovado e procedeu aos depósitos das rendas mensais mencionados na alínea I)’ dos factos provados. 
Diferente seria, porventura, se a Apelada tivesse logrado provar a matéria de facto que ficou vertida nos pontos 1º e 2º dos factos não provados, embora resulte evidente a insuficiência de demonstração de um abuso manifesto, gritante, que a Apelante tenha ultrapassado de forma evidente ou inequívoca os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
A Apelante tem direito a invocar a ineficácia da comunicação de oposição à renovação do contrato de arrendamento por falta de envio mediante carta registada com A/R, não tendo actuado de forma a que a Apelada pudesse legitimamente confiar que tal omissão de uma formalidade legal não viesse a ser invocada pela Apelante quando confrontada com o pedido de entrega do locado.
Deste modo, não se verifica actuação da Apelante em abuso de direito que impeça a improcedência da pretensão da Apelada de considerar caduco o contrato de arrendamento em 31.08.2019.
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7ª Questão- Resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas.
Esta pretensão foi apresentada pela Apelada em sede de ampliação do objecto de recurso, porquanto havia formulado na petição inicial pedido subsidiário sob a alínea d) de resolução do contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento pontual das rendas, tendo sido identificadas as relativas aos meses de Fevereiro, Março e Agosto de 2020 e aos meses de Março e Maio de 2021.
Esse pedido não foi conhecido porque o tribunal a quo o considerou prejudicado ao considerar procedente a cessação do contrato de arrendamento por caducidade ocorrida em 31.08.2019.
Uma vez que tal decisão foi revogada, tendo-se considerado renovado tal contrato, são devidas as rendas pelo menos a partir da data referenciada pela Apelada- Fevereiro de 2020- já que as rendas entre 31.08.2019 e essa data não estão a ser exigidas nem o seu não pagamento foi invocado pela Apelada para efeitos de resolução do contrato.
A noção legal do contrato de locação encontra-se no art. 1022º CC, segundo o qual “Locação é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição”.
O contrato de locação é um negócio jurídico sinalagmático, porque implica a obrigação de proporcionar o gozo de uma coisa como contrapartida do dever de pagar a retribuição.
Assim sendo, os deveres de pagar a retribuição e de proporcionar o gozo da coisa encontram-se numa relação sinalagmática, havendo reciprocidade e interdependência entre estas duas prestações.[23]
Sobre o locador impendem duas obrigações principais: a de entregar ao locatário a coisa locada, e a de assegurar ao locatário o gozo da coisa locada, tendo em conta o fim a que ela se destina (art. 1031º CC).
Já ao locatário incumbe-lhe primacialmente pagar a renda acordada e restituir a coisa locada findo que esteja o contrato ( art. 1038º al. a) e i) do CC).
O contrato de arrendamento urbano está sujeito às causas gerais de extinção dos contratos, nelas se incluindo a revogação, a resolução, a caducidade, a denúncia ou a oposição à renovação ( art. 1079º), sendo que o regime da cessação do contrato de arrendamento tem natureza injuntiva, salvo disposição legal em contrário, o que se compreende face á importância dos interesses em jogo ( art. 1080º).
A cessação do arrendamento não é sujeita ao regime comum de liberdade de forma ( cfr art. 221º, nº 2) dado que a lei a sujeita normalmente a forma especial. Esta pode consistir, consoante os casos, numa comunicação escrita à outra parte, registada com aviso de recepção (art. 9º nº 1 e 7 c) do NRAU), ou em notificação avulsa ou contacto pessoal de advogado, solicitador ou solicitador de execução, comprovadamente mandatado para o efeito ( arts. 1084º nº 1 e 9º nº 7 a) e b) do NRAU) ou ainda ter que ser exercida nos termos lei do processo ( art. 1084º nº 1), através da acção de despejo ( art. 14º NRAU).[24]
Qualquer das partes pode resolver o contrato, nos termos gerais de direito, com base em incumprimento pela outra parte ( art. 1083º nº 1 do CC).
É fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento.
Está nesta previsão o caso de resolução do contrato fundada na falta de cumprimento por parte do arrendatário das correspondentes obrigações, entre elas a elementar de pagar as rendas no tempo e lugar próprios e não haver depósito liberatório, por força dos arts. 1048º, 1083º nº 3 do CC e art. 14º do NRAU, podendo o senhorio, na hipótese de mora no pagamento de rendas optar, quer pela resolução por simples comunicação ao arrendatário, quer pela acção de despejo. (neste sentido França Pitão, NRAU anotado, p.580v, Luís Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 2013, p. 217 e 218).
No arrendamento urbano, as normas sobre a resolução têm natureza imperativa (art. 1080º do CC), não opera automaticamente, carecendo de interpelação dirigida à contraparte (art. 1084º nº 2 do CC) ou da interposição de uma acção de despejo (arts 14º do NRAU e 1084º nº 1do CC).
Dispõe o art. 14º nº 1 do NRAU que a acção de despejo se destina a fazer cessar a situação jurídica do arrendamento, sempre que a lei imponha o recurso à via judicial para promover tal cessação, e segue a forma de processo comum declarativo.
Designadamente, quanto à resolução pelo senhorio, é inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento em caso de mora igual ou superior a três meses no pagamento da renda, encargos ou despesas que corram por conta do arrendatário, sem prejuízo de a resolução pelo senhorio, quando opere por comunicação à contraparte e se funde na falta de pagamento da renda, ficar sem efeito se o arrendatário puser fim à mora no prazo de um mês ( arts. 1083º nº 1, 3 e 4 e art. 1084º nº 3 do CC, com redação dada pela Lei nº 43/2017 de 14/6).
Também é ainda inexigível ao senhorio a manutenção do arrendamento no caso de o arrendatário se constituir em mora superior a oito dias, no pagamento da renda, por mais de quatro vezes, seguidas ou interpoladas, num período de 12 meses, não sendo aplicável neste caso o disposto no art. 1084º nº 3 e 4 do CC.
No entanto, neste último caso- de mora superior a oito dias- o senhorio apenas pode resolver o contrato se tiver informado o arrendatário, por carta registada com aviso de recepção, após o terceiro atraso no pagamento da renda, de que é sua intenção pôr fim ao arrendamento naqueles termos.
Relativamente ao pagamento de rendas naquele período o mesmo consta da alínea I)’ dos factos provados, segundo a qual a Apelante procedeu apenas aqueles depósitos na Banco 1... a favor da Apelada, no montante de €400,00 cada, a título de renda, nas datas ali mencionadas.
A Apelante procedeu ao depósito das rendas, sempre em singelo, apesar de na grande maioria dos casos ter pago muito para além do prazo, como é exemplo a renda referente a Julho de 2020 ter sido depositada em 31.01.2022, a renda referente a Novembro de 2020 ter sido depositada em 3.03.2022,  a renda de Abril de 2021 ter sido depositada em 27.12.2021, ou a renda referente a Maio de 2021 ter sido depositada em 3.09.2021.
Por conseguinte, não estando comprovado o pagamento por parte da Apelante da renda de Fevereiro ( ponto 12 dos factos não provados), bem como não tendo sido pago atempadamente as restantes aludidas rendas, pagamento esse que não se presume, conforme art. 342º nº 2 do CC, bem como não tendo sido pagos os encargos com os consumos de água que de acordo com o contrato eram encargos a cargo do locatário, estão reunidos os pressupostos para a resolução do contrato de arrendamento pela Apelada e, consequentemente para o despejo da Apelante e, condenação desta no pagamento das rendas em dívida, na importância de €400,00 cada uma, bem como das rendas vincendas até efectiva entrega do locado e respectivos juros de mora, à taxa legal.
Só assim não seria se a Apelante tivesse depositado as rendas devidas e a indemnização referida no art. 1041º nº 1 do CC demonstrando recusa da senhoria em receber as correspondentes importâncias, conforme previsto no art. 1042º do CC, hipótese que a Apelante nem sequer alegou e como tal não podia constar, como não consta, dos factos provados.
Apesar de decretada a resolução do contrato de arrendamento, a desocupação do locado apenas será exigível passado um mês após a resolução, nos termos do art. 1087º do CC.
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V. DECISÃO:
Em razão do antes exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto:
i. julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela Apelante/Ré, revogando-se o segmento decisório da alínea a) da sentença recorrida e no mais mantendo-se o aí decidido, designadamente sob as alíneas b) e c);
ii. julgar procedente o pedido subsidiário formulado na petição inicial sob a alínea d), cujo conhecimento foi requerido em sede de ampliação do objecto do recurso apresentada pela Apelada, decretando-se a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas e o consequente despejo do imóvel.

Custas a cargo da Apelante, que ficou vencida (sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia).

Notifique.




Porto, 9 de Abril de 2024
Maria da Luz Teles Meneses de Seabra
(Relatora)
Artur Dionísio Oliveira
(1º Adjunto)
João Diogo Rodrigues
(2º Adjunto)


(O presente acórdão não segue na sua redação o Novo Acordo Ortográfico)
______________________
[1] F. Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8ª edição, pág. 147 e A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª edição, pág. 92-93.
[2] A. Varela, Manual de Processo Civil, pág. 686.
[3] Alberto dos Reis, CPC Anotado, Volume V, p. 139
[4] Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Volume III, p. 96/97; no mesmo sentido A. Varela, Manual de Processo Civil, pág. 687/689.
[5]A. Varela, M. Bezerra, S. Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 687-688; AC STJ de 14.12.2016, www.dgsi.pt.
[6] Alberto dos Reis, ob. Cit., pág. 140 e A. Varela, ob. Cit., pág. 687
[7]A. Varela,ob. cit., pág. 688.
[8] neste sentido AC RP de 13.05.2013, www.dgsi.pt.
([9])Paulo Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, I volume, 2ª edição, pág. 34-46.
([10]) Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 1997, pág. 220-221.
([11]) A. Varela RLJ, ano 122º, pág. 112.
([12]) Alberto dos Reis, CPC Anotado, volume V, 1984, pág. 143.
([13])AC STJ de 7.07.2016, relatora Consª. Ana Luísa Geraldes, AC STJ de 21.10.2014, relator Consº. Gregório Silva Jesus e AC STJ de 8.02.2011, relator Consº. Moreira Alves, www.dgsi.pt.
[14] Neste sentido, entre outros, Ac STJ de 16.11.2021, Proc nº 2534/17.9T8STR.E2.S1
[15]  Cadernos Temáticos De Jurisprudência Cível Da Relação, Impugnação da decisão sobre a matéria de facto, consultável no site do Tribunal da Relação do Porto, Jurisprudência
[16] Proc. Nº 83/16.1YLPRT.L1.S1
[17] Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano, 2019, pág. 589
[18] Arrendamento Urbano, 11ª edição, pág. 117
[19] Galvão Telles, Direito das Obrigações, pág. 6
[20] Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, p. 239ss
[21] António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo IV, 2007, p. 299 e p. 312
[22] Ob cit, Tomo IV, págs. 299 e seguintes,
[23] vide Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações, parte especial, p.155
[24] Luís Menezes Leitão, Arrendamento Urbano, 11ª edição, pág. 141