I - Solicitado o livro de reclamações, não pode o fornecedor de bens ou prestador de serviços condicionar a sua apresentação aos motivos da reclamação ou à legitimidade de quem solicita a apresentação do livro.
II - A contraordenação continuada depende, para além da proximidade temporal dos factos e da homogeneidade dos comportamentos, que se verifique um contexto exterior que tenha facilitado a execução do segundo comportamento e que diminua consideravelmente a conduta do agente.
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO
No recurso de contraordenação n.º21/23.5T9ALB a correr termos na comarca de Aveiro, Juízo de Competência Genérica de Albergaria-a-Velha, Juiz 1, por decisão proferida e depositada em 6/10/2023, foi julgada parcialmente procedente a impugnação judicial apresentada pela arguida A..., Lda. e em consequência condenada na coima única de €9.500,00, correspondente às coimas parcelares de €5.000,00 e de €8.000,00 cada, pela prática de duas contraordenações muito graves p. e p. pelos arts.3.º, n.ºs 1, alínea b) e 4 e 9.º, n.ºs 1, alínea a) e 3 do DL156/2005, sendo que quanto à coima de €5.000,00 foi aplicado o regime concretamente mais favorável e em consequência atendidas as alterações introduzidas pelo DL 9/2021, de 29/1, à redação do art.9.º, n.ºs 1, alínea a) e 3 do DL 156/2005.
Inconformada, a arguida interpôs recurso para este Tribunal da Relação, extraindo da motivação, as seguintes conclusões:
1. Entendeu o Tribunal da 1ª instância que AA deve ser considerado cliente do serviço de reparação prestado pela arguida ou, ainda que assim se não entenda, seu utente;
2. Face à matéria de facto dada como provada nos pontos 16) e 17) o equipamento, objeto da reclamação, foi adquirido numa outra sociedade com a firma B..., S.A.;
3. Onde foi apresentada a reclamação como se impunha e onde o referido AA solicitou a reparação do equipamento;
4. Também não resultou provado de forma inequívoca, nem mesmo, daquilo que resultou do ponto 7), dos factos provados que o serviço de reparação foi efetuado na sociedade arguida;
5. Do dado como provado em 8) o motivo da recusa de entrega do livro de reclamações foi o facto de que o mesmo não era cliente;
6. Não existia qualquer relação comercial direta e/ou de consumo entre a sociedade arguida e o comprador do equipamento;
7. Pelo que este e relativamente à sociedade arguida não é seu cliente, nem utente, mas sim, da sociedade comercial que lhe vendeu o equipamento e onde posteriormente, o entregou para reparação – B..., S.A.;
8. A reparação, ao contrário do que consta da sentença, foi prestada diretamente ao revendedor, não sendo AA o beneficiário direto do serviço;
9. Daí a sua falta de legitimidade para que lhe fosse prestado um serviço ou fornecido um determinado bem pela arguida, que nenhuma relação de clientela havia estalecido com o mesmo.
10. E, como tal, de cliente ou utente, tal como se extrai da interpretação do disposto no art.3º, nº1, al. d) do D.L. 156/2005 de 15.09 e do previsto no art. 2º da Lei 24/96 de 31.07 e no art. 1º-B, al. a) do D.L. 67/2003 de 08.04, em vigor à data dos factos;
11. Como tal e, salvo melhor opinião, AA não tinha legitimidade para solicitar o livro de reclamações, sendo legítimo o fundamento da recusa por parte da arguida;
12. O legal representante da arguida na situação ocorrida em 03.01.20, face à matéria de facto dada como provada em 8), 16) e 17), atuou em erro, suscetível de excluir, no caso concreto, o dolo ou a culpa da arguida sociedade;
13. Ao dar como provada tal matéria de facto – 8), 16) e 17) - implicaria dar como provado o facto constante da alínea g) dos factos não provados, pelo que, nessa parte, existe erro notório na apreciação da prova suscetível de conhecimento pelo Tribunal superior;
14. Entendemos que a arguida no caso ocorrido em 03.01.20, não atuou como dolo sendo que, o seu comportamento é subsumível a uma atuação negligente;
15. No caso concreto e em ambas as situações ocorridas em novembro de 2019 e janeiro de 2020, verificam-se os pressupostos de forma a qualificar ambas as condutas como uma só contraordenação na forma continuada – art. 30º, nº 2 do Cód. Penal, “ex-vi” art. 32º do RGCO;
16. Na determinação da medida da coima não foi apurada a situação económica da arguida, sendo a sentença totalmente omissa a esse respeito;
17. Tal circunstância é determinante para a fixação concreta e justa da coima, ao abrigo do disposto nos arts. 18º do RGCO e do art. 20º do RJCE, nomeadamente e, quando no caso concreto, estamos perante uma sociedade que, em 2018, empregava 8 trabalhadores e em 2019 empregava 10, sendo que cerca de 80% do nosso tecido empresarial é constituído por sociedades desta dimensão a maior parte das quais não apresenta lucros de exercício acima do valor da coima aplicada – 9.500 Euros;
18. Impondo-se a baixa do processo à 1ª instância para apuramento dessa factualidade – art. 75º, nº 2, al. b) do RGCO;
19. A arguida é primária, não tem antecedentes contraordenacionais, vide fls. 91 do processo administrativo;
20. No caso concreto dos autos, tendo em conta o lapso temporal em que os factos ocorreram, à situação de dúvida ou erro em que incorreu, à circunstância de não ter sido obtido qualquer benefício económico, o facto da arguida ser primária cfr. fls. 91 do processo administrativo, não obstante a arguida laborar desde 1996, i.é., há 27 anos, impunha-se o recurso ao mecanismo de atenuação especial da coima prevista no art. 23º do RJCE;
21. Sendo que, atualmente e à data dos factos os potenciais clientes que vejam ser-lhes negado o livro de reclamações não ficam privados do direito de reclamar em qualquer circunstância tendo ao seu dispor o mecanismo do livro de reclamações eletrónico – art. 5º-B e ss. do D.L. 156/2005 de 15.09, na redação dada pelo D.L. 74/2017 de 21.06;
22. Na aplicação da coima única foi violado o princípio da proibição da dupla valoração;
23. Deve ser declarada a inconstitucionalidade material da norma ínsita no art. 9º, nº 3 do D.L. 156/2005 de 15.09, por violação do princípio constitucional da proporcionalidade previsto no art. 18º do CRP;
24. Com a consequente desaplicação da norma no caso concreto, ou seja, sem a aplicação de um limite mínimo de 7.500 Euros, i.é., aplicando-se a moldura prevista no art. 9º, nº 1, al. a) do D.L. 156/2005 de 15.09;
25. Sem prescindir,
26. Ser declarada a inconstitucionalidade material da norma constante do art. 19º, nº 1, al.b) do D.L. 9/2021 de 29.01., por violação do princípio da igualdade proporcional, princípios previstos nos arts. 13º e 18º da CRP;
27. Classificando a arguida pelos factos ocorridos em 03.01.20, como um microempresa que na realidade é ao empregar 10 trabalhadores;
28. Com a consequente aplicação ao caso concreto do art. 18º, al. c), ii) do RJCE, por ser regime mais favorável;
29. A sentença sob censura viola, por deficiente aplicação e/ou interpretação, o disposto nos arts. 2º, 3º, nº 1, al. b), 9º, nº3 do D.L. 156/2005 de 15.09, arts. 8º, 9º e 19º do RGCO, arts. 8º, 9º, 10º, 20º, 21º e 23º do RJCE, art. 30º do Cód. Penal e arts. 13º e 18º da CRP.
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência.
Remetidos os autos ao Tribunal da Relação e aberta vista para efeitos do art.416.º, n.º1, do C.P.Penal, o Exmo.Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado improcedente.
Cumprido o disposto no art.417.º, n.º2, do C.P.Penal, não foi apresentada resposta.
Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Decisão recorrida
A sentença recorrida tem o seguinte teor:
“Nos presentes autos de contraordenação em que é arguida/recorrente A..., Lda. e recorrida a ASAE, foi aplicada àquela a coima única de €10.000,00 [dez mil euros], correspondente às coimas parcelares de €8.000,00 cada, pela prática de duas contraordenações muito graves, p. e sancionadas pelos arts. 3.º/1, al. b) e 4 e 9.º/1, al. a) e 3 do Decreto-Lei n.º 156/2005.
- a nulidade do procedimento de contraordenação, por preterição de diligências de prova que entendia essenciais para a descoberta da verdade material;
- a nulidade da decisão, por omissão das normas punitivas e disposições legais aplicáveis, ausência de imputação dos factos aos titulares dos órgãos sociais e falta de análise crítica da prova e, consequentemente, não fundamentação da decisão;
- a impugnação da matéria de facto; a este propósito, quanto aos factos reportados a novembro de 2019, impugnou a data, invocou que duas pessoas iniciaram uma discussão em tom agressivo e insultuoso com a interlocutora, levando a que tivesse de ser chamado o INEM, que ficou em situação de incapacidade para reagir a qualquer solicitação; a funcionária da arguida disponibilizou-se a apresentar o livro de reclamações, tendo as mesmas pessoas entrado em contacto com as autoridades policiais, comunicado falsamente que lhes estava a ser recusada a entrega do livro de reclamações; já relativamente aos factos de janeiro de 2020, alega que a pessoa que solicitou o livro de reclamações não era cliente da arguida, por não lhe ter adquirido o produto; face à ausência de qualquer relação direta de consumo entre a arguida e o comprador do equipamento, foi este informado que deveria deslocar-se ao vendedor do equipamento, o que este não acatou;
- a falta de preenchimento dos elementos típicos da norma ante a factualidade exposta;
- a existência de erro por parte do legal representante da arguida quanto aos factos de janeiro de 2020, a ausência de culpa e o comportamento negligente e não doloso do mesmo;
- a prática das contraordenações na forma continuada;
- a atenuação especial da coima;
- a aplicação do regime legal mais favorável relativamente aos factos ocorridos em 20/11/2019, visto que, nessa altura, a arguida seria considerada uma microempresa e, consequentemente, a contraordenação seria sancionável com uma coima com uma moldura abstrata de €3.000,00 a €11.500,00, o que consubstancia um regime mais favorável.
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O âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação sem prejuízo das questões do conhecimento oficioso.
No caso, decididas que se encontram as questões prévias invocadas, o objeto da impugnação prende-se com a verificação dos elementos objetivos das duas contraordenações, a verificação dos elementos subjetivos da contraordenação praticada em janeiro de 2020, por verificação de erro, o regime legal aplicável à contraordenação de novembro de 2020, a verificação dos pressupostos da “contraordenação continuada” e a verificação dos pressupostos da atenuação especial da coima.
Maneira que, tendo em conta o conteúdo da decisão impugnada e das alegações da recorrente, as questões concretas controversas que a presente sentença deve resolver são as seguintes:
A. – relativamente aos factos de novembro de 2020, demonstrou-se que a arguida se mostrava incapacitada ou impossibilitada de apresentar o livro de reclamações e, na afirmativa, porquê?
B. – qual o regime sancionatório aplicável ao caso concreto, designadamente, será de aplicar a lei posterior, emergente do RJCE, porquanto mais favorável?
C. – verifica-se ou não a obrigatoriedade de o legal representante da ora recorrente apresentar o livro de reclamações a AA? Porquê?
D. – caso houvesse esse dever, incorreu o legal representante da recorrente em erro?
E. – atuou a sociedade arguida com dolo ou negligência?
F. – verificam-se os pressupostos legais de uma “contraordenação continuada”?
G. – estão verificados os pressupostos do atenuação especial da coima?
Mais se consigna que, atentando no teor das alegações orais produzidas pela defesa, iremos, sinteticamente, debruçar-nos sobre a eventual inconstitucionalidade do regime legal convocado.
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FACTOS PROVADOS
Com relevo para a decisão da causa encontram-se provados os seguintes factos:
1) No dia 20 de novembro de 2019, BB e CC, dirigiram-se ao estabelecimento da arguida a fim de apresentarem uma reclamação por escrito no livro de reclamações, na sequência de uma avaria de um recuperador de calor que haviam adquirido à mesma.
2) Encontrando-se presente naquelas instalações a legal representante da arguida DD, esta recusou facultar o livro de reclamações aos mesmos, defendendo que as pessoas referidas em 1) não tinham adquirido o bem à arguida.
3) Face a essa recusa, as pessoas referidas em 1) chamaram as autoridades ao local.
4) Após ter sido informada pela patrulha da GNR, da obrigatoriedade de facultar de forma imediata e gratuita o livro, a legal representante, manteve a sua recusa em fazê-lo.
5) Alegou que não era obrigada a facultar, sendo licenciada em Direito e conhecedora do diploma legal em causa.
6) O livro de reclamações nunca foi facultado aos clientes.
7) No dia 3 de janeiro de2020, AA, dirigiu-se ao estabelecimento da arguida, a fim de elaborar uma reclamação devido a uma reparação realizada pela mesma num recuperador de calor fabricado por si, mas que terá adquirido nos B....
8) Nesse dia e nesse momento, encontrava-se presente o legal representante da arguida, EE, que não lhe facultou o livro argumentando com o fundamento de que AA não era cliente.
9) Perante tal recusa, o cliente chamou as autoridades ao local/GNR, que o informaram da obrigatoriedade de entregar de forma imediata e gratuita o livro de reclamações.
10) O livro foi, entretanto, entregue pela arguida ao reclamante.
11) A arguida sabia que a sua conduta consubstanciava uma contraordenação económica.
12) A arguida agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era punida e proibida por lei.
14) Em 31/12/2019 a sociedade arguida tinha ao seu serviço 10 trabalhadores.
15) Em 3/1/2020 o objeto social da arguida constante da respetiva certidão permanente era a fabricação de equipamentos para energias alternativas.
16) AA em 31/5/2017 enviou email aos B... expondo, entre o mais, que o recuperador de calor referido em 7) estava a descascar e não acendia há mais de dois meses.
17) Nesse seguimento, pelos B... foi solicitada a reparação do aparelho à sociedade arguida.
Ficou por provar:
a) - no dia 20 de novembro de 2019, a legal representante da arguida, DD foi objeto de insultos, atitude agressiva e hostilidade por parte das pessoas acima referidas, o que a colocou num estado de incapacidade para reagir à solicitação do livro de reclamações;
b) - a funcionária que ali se encontrava presente, FF, ofereceu-se a disponibilizar o livro de reclamações, contudo, os clientes não quiseram aceita-lo ou apresentar qualquer reclamação;
c) - em 3/1/2020, AA apresentou-se nas instalações da sociedade arguida pretendendo a substituição do recuperador referido em 7);
d) - AA solicitou a comparência das autoridades policiais sem que tivesse havido qualquer recusa expressa por parte da sociedade arguida em entregar-lhe o livro de reclamações;
e) - AA teve acesso ao livro de reclamações quando o solicitou na presença das autoridades, sem que anteriormente tivesse havido qualquer recusa expressa por parte da arguida;
f) - À data de 3/1/2020 a sociedade arguida estabelecia relações comerciais apenas com revendedores grossistas;
g) - em virtude do que decorre em 15) e 16) dos factos provados, o legal representante da sociedade arguida julgava que AA deveria dirigir-se à entidade onde adquiriu o equipamento e aí, verbalmente ou por escrito, formular o que entendesse.
*
A nossa convicção quanto aos factos baseou-se na posição assumida pela recorrente, no seu recurso, e na análise da prova produzida, que foi lida de forma articulada com as regras da experiência e do senso comum.
Da análise da prova produzida nesta fase judicial ficamos com uma perceção idêntica àquela que ficou plasmada na decisão administrativa e que se mostrava devidamente fundamentada.
Os autos fundamentam-se em dois autos de notícia distintos, que se mostram juntos, e que deram origem a dois processos, que acabaram por ser apensados. Cada uma das situações ajuizadas teve como interlocutor um diferente representante legal da arguida.
Na situação de 20/11/2019, data referida pela arguida como a correta, e que é a conforme com o teor do auto de notícia respetivo - o que conduziu à correção da factualidade demonstrada na decisão administrativa -, interveio a legal representante DD, enquanto na de janeiro de 2020, o marido EE.
Relativamente à primeira ocorrência, invocaram conhecimento direto DD, a então funcionária FF, CC e BB, as duas pessoas que se dirigiram às instalações da ora recorrente, e o militar da GNR que se dirigiu ao local, na sequência da denúncia da situação às autoridades, solicitando a sua intervenção, GG.
O legal representante da recorrente, EE, tem pouco conhecimento dos factos essenciais em discussão relativamente a esta situação, tendo dito que foi chamado ao local porque a sua esposa tinha desmaiado; mau grado os depoimentos de CC, BB e GG não confirmem integralmente esta sequência, destacando-se que o sr. militar disse expressamente que o legal representante da arguida se encontrava já no local quando sucedeu o dito desmaio, parece-nos inequívoco que este legal representante não teve conhecimento do que se passou entre a esposa, CC e BB antes da chamada das autoridades ao local. Ademais, do que afirmou teria de se concluir que não assistiu a qualquer contributo da postura de CC e BB para o desmaio da esposa.
Já DD tem conhecimento direto sobre esta situação, mas já não sobre o episódio de janeiro de 2020.
Relativamente a este segundo, quem revelou conhecimento direto foram somente EE, HH e AA, pelo que já não assumiu grande relevância a demais prova oral produzida para apuramento deste episódio que, de resto, quanto ao essencial da sua dinâmica, não foi questionado pela arguida.
Começando então pelo sucedido no mês de novembro de 2021, DD referiu que a testemunha BB dirigiu-se à sua empresa, foi atendida, de forma educada, por si, e que começou por dizer que vinha fazer uma reclamação. DD destacou a agressividade da referida BB, o tom alto com que falava para ela e que a chamou de “vigarista”. Numa primeira narração, disse que BB não lhe solicitou o livro de reclamações, porém, recuou e contrariou tal primitiva asserção, tendo posteriormente admitido que lhe foi solicitado o livro de reclamações e que ela respondeu que não conhecia BB nem o seu acompanhante e que eles não eram clientes da recorrente, postura essa que denuncia que a ora declarante mostrou logo relutância em entregar o livro de reclamações no caso em concreto, tendo aventado razões para não o fazer. Acrescentou que se ausentou após as pessoas terem dito que iriam chamar a GNR e que ia buscar o livro de reclamações, altura em que se começou a sentir mal. Entretanto, acrescentou, chegou a GNR e ela disse aos militares que «não estava em condições», tendo reiterado que não entregou o livro de reclamações, porque não estava capaz de o fazer.
A este propósito, diga-se que o documento de fls. 120 – relatório da ocorrência - é inconclusivo, permitindo essencialmente sustentar algo que foi inequívoco, ou seja, que o INEM foi chamado ao local para prestar assistência à legal representante da sociedade arguida.
Isto salvaguardado, a legal representante da arguida declarou desconhecer se lhe foi pedido o livro de reclamações pela GNR, não sabe se solicitou à funcionária FF para o entregar, justificando que estava muito nervosa.
As declarações prestadas não foram credibilizadas por prova que cremos objetiva e desinteressada, como os depoimentos dos militares inquiridos, e, igualmente, pelos depoimentos das duas pessoas que se deslocaram ao estabelecimento da arguida, que, contrariamente ao que DD retratou, pareceram-nos pessoas serenas e educadas e nos mereceram credibilidade. Mesmo o depoimento de FF, como veremos infra, não se mostra taxativo, nem tão linear como as declarações da legal representante da recorrente.
Sem prejuízo, dir-se-á que, ficou para nós patente das declarações de DD que ela não pretendeu facultar àquelas pessoas o livro de reclamações. Ainda no presente é patente a forte resistência da legal representante da recorrente em facultar o livro de reclamações a quem lho solicita, tendo, inclusive, declarado que «se chega lá uma simples pessoa e lhe pede sem mais o livro de reclamações fica algo indignada» e que, no caso em concreto, «não reconhece aquele casal como cliente».
No que toca ao caso concreto e, pese embora nem tenha sido questionado no recurso a legitimidade das pessoas em causa para lhe solicitarem o livro, nem se aventado qualquer hipótese de erro, diga-se que a renitência em reconhecer a legitimidade de BB ou de CC em solicitar-lhe o livro de reclamações naquela situação em concreto desvenda a sua intenção em não se conformar com a norma, posto que, de outro modo, não se compreende esta postura tão vincada, nomeadamente, se analisarmos o teor do documento de fls. 48, cuja genuinidade e correção não foi posta em crise, e que traduz uma fatura, emitida pela ora recorrente, em nome precisamente de BB, documentando a aquisição do recuperador de calor em relação ao qual ela pretendia versar a reclamação.
É manifestamente incoerente, da parte da arguida, emitir uma fatura em nome de BB, onde a identifica expressamente como “customer”, ou seja, cliente, na aquisição de um recuperador de calor, e, após a emissão dessa fatura e no seguimento da reclamação de um defeito desse produto, negar-lhe essa qualidade de cliente.
Portanto, se é certo que perante BB, DD lhe negou o acesso ao livro, invocando que ela não era sua cliente, tal argumentação mostra-se de tal modo descabida ante o próprio teor da fatura emitida pela própria recorrente, que indica que existiu, sim, da sua parte uma concreta intenção de rejeitar o acesso ao livro de reclamações, independentemente da legitimidade do pedido.
E esta intencionalidade enquadra-se, de forma coerente, com a descrição distinta dos factos que foi feita pelos srs. militares inquiridos e pelas testemunhas BB e CC, que apontaram para uma postura, da parte de DD, de recusa vincada em entregar o solicitado livro de reclamações, inclusive, após as solicitações e advertências da autoridade pública, com a argumentação de que seria licenciada em direito, algo que ela, em audiência e no seu recurso, negou, mas que foi asseverado pelas referidas testemunhas, como melhor veremos infra.
O depoimento de FF, à data funcionária da sociedade arguida, não se nos mostrou totalmente credível, parecendo-nos que a testemunha se revelou comprometida e não totalmente isenta. Para além da linguagem corporal – e.g. o mexer nas unhas enquanto falava, revelando alguma tensão, ou a ausência de contacto visual connosco quando solicitado algum esclarecimento – pareceu-nos algo vaga no seu relato e pouco convicta da descrição que efetuou, vincando que, apesar da tensão de que se apercebeu na zona de atendimento ao público entre DD e as pessoas que se tinham ali dirigido, continuou a fazer o seu trabalho, na zona do escritório, não tomando total atenção ao que estaria a ocorrer junto ao balcão no exterior do local onde se encontrava. Sem prejuízo, como se disse, a testemunha não sustentou a essencial da versão do recurso.
Em particular, a testemunha não relatou, de forma pormenorizada, o que foi falado entre as pessoas em causa e DD, não tendo ouvido, nem descrito insultos, nem agressividade da parte daqueles, tendo aludido a uma situação de exaltação e de discussão, mas não imputou exclusivamente tal clima, genericamente aludido, às testemunhas reclamantes, tendo salvaguardado, mais do que uma vez, que a própria legal representante também se encontrava exaltada – por exemplo, referindo que «quando começa uma discussão o normal seria de ser parte a parte e que, no caso em concreto», foi de parte a parte, e que «havia exaltação de parte a parte».
Relativamente ao livro de reclamações, declarou que não ouviu que o mesmo tivesse sido solicitado, nem sequer se prontificou a entrega-lo, porque não lhe foi solicitado diretamente a si, contrariando a versão da impugnação – referiu que a ela nunca lhe foi pedido, nem assistiu as pessoas a queixarem-se de não entregarem o livro de reclamações. De resto, a própria legal representante da recorrente manifestou dúvidas sobre se teria pedido à funcionária que entregasse o livro de reclamações, não tendo sufragado a versão do recurso, daí a sua não demonstração por ausência de prova.
Do que aludiu, não se verificou, portanto, qualquer tipo de situação de incapacidade acidental da legal representante para entregar o livro de reclamações às pessoas em causa antes da chegada da GNR. Segundo afirmou, a legal representante ter-se-á sentido mal apenas após a legal representante da recorrente se encontrar no interior das instalações desta, já no escritório; nessa ocasião, segundo o seu depoimento, já as pessoas não estariam no interior das instalações. Não mencionou qualquer ato concreto de DD revelador da intencionalidade de facultar o livro de reclamações àquelas pessoas.
Acrescentou ainda que, quando a GNR chegou ao local, já a legal representante da recorrente estaria a passar mal e se encontraria incapaz de verbalizar junto da GNR, o que foi contrariado pelo militar autuante.
GG, militar da GNR, testemunha muito clara, objetiva e isenta, foi ao local e sustentou o teor do auto de notícia, tendo referido expressamente que, até perante si próprio, a legal representante da recorrente se negou a apresentar o livro de reclamações, dizendo-se licenciada em direito e que percebia de leis e, que, segundo a lei, não teria de apresentar o livro. No final do seu depoimento, precisou que a legal representante da assistente disse que não conhecia as pessoas em causa de lado algum e que, como tal, elas não tinham direito a fazer a reclamação.
Relativamente à pretensa incapacidade acidental para apresentar o livro, com relevo, o sr. militar sublinhou que a legal representante da recorrente encontrava-se nervosa, no entanto, não revelou qualquer impossibilidade de contacto pessoal com a mesma. Teve conhecimento que ela se sentiu mal e que foi chamado o INEM, tendo, aliás, aguardado pela sua chegada, porém, mencionou que tal não foi diretamente relacionado com o pedido de entrega do livro de reclamações, nem com a abordagem policial inicial, nem com a própria conduta de BB e CC, tendo ocorrido posteriormente, após a intervenção do marido e do filho junto dos alegados clientes, que provocaram desentendimentos, agudizando a situação de tensão.
A este propósito, sublinhamos que a testemunha declarou nada ter a apontar ao comportamento do casal em causa, afirmando que as pessoas não procuraram entrar em contacto com ninguém, tendo aguardado pela sua presença e, decorrendo do que expos, que mantiveram uma postura equilibrada e tranquila, contrastante com aquela que foi adotada pelos legais representantes da arguida.
Também mencionar que, do seu depoimento resultou a intransigência da legal representante da arguida em entregar o livro de reclamações, tendo infirmado a versão desta, prestada em audiência, de que manifestou junto da autoridade a intenção de entregar o livro de reclamações, mas mostrou-se incapaz de o fazer. De resto se diga que, a ser verdade que existia a intenção de facultar o livro de reclamações, não se vislumbra qualquer dificuldade em faze-lo, nomeadamente, através de um qualquer funcionário da arguida, ou do próprio legal representante Paulo ou filho, que acorreram ao local.
Com relevo também, referir que GG disse que a legal representante da recorrente, em momento algum, lhe aludiu ao comportamento das pessoas em causa.
O sr. militar, portanto, veio descredibilizar as declarações da legal representante da arguida em audiência e a versão recursiva.
Do afirmado por CC e BB resultou também patente que a legal representante da arguida terá perdido a sua compostura perante si, quer telefonicamente, quer, no dia em que se deslocaram ao local. A sua descrição do sucedido foi bastante distinta daquela que veio relatada em sede de recurso e mereceu-nos credibilidade, sendo aquela que também se mostra mais consentânea com o relato do sr. militar GG.
CC contextualizou os factos, tendo mencionado, inclusivamente, que já tinham tido contacto prévio, quer por via presencial, quer telefonicamente com a legal representante da arguido. Segundo a testemunha, por via telefónica, falaram com a gerente, que se exaltou e maltratou a companheira, tendo sido nesse seguimento que decidiram deslocar-se ao local para formalizar uma «queixa» pela forma como foram tratados e por defeito do aparelho.
Nessa ocasião, aludiu novamente ao comportamento da legal representante da recorrente. Segundo afirmou, já se tinham deslocado às instalações da recorrente para pedir assistência técnica, porém, foi-lhes solicitado que telefonassem, dado que, na ocasião, não estaria alguém da gerência; depois, cumprindo com o solicitado, telefonaram e a legal representante da recorrente exaltou-se e maltratou a companheira, tendo-lhe dito que «estava a falar com uma garota». Nesse seguimento, deslocaram-se às instalações para formalizarem a reclamação, tendo sido atendidos por DD que, segundo disse, estava «super exaltada». Mencionou que a companheira se limitou a pedir o livro de reclamações, tendo atuado de forma cordata e num tom baixo, o que contrastou com a postura da legal representante, que se recusou a entregar o livro e, inclusive, os «convidou a sair do estabelecimento», tendo sido nessa ocasião que decidiram chamar a GNR. Mais referiu que também a GNR solicitou o livro de reclamações e que a legal representante da ora recorrente se recusou a entrega-lo, argumentando novamente que era licenciada em direito e que não iria fornecer o livro, sufragando, pois, a versão de GG e descredibilizando a legal representante da ora recorrente.
Com relevo também, CC precisou que ele e a companheira compraram o recuperador de calor aos sogros e que ele próprio de dirigiu às instalações da recorrente aquando da compra, tendo falado com a legal representante desta, nesta ocasião, descredibilizando a posição desta quando menciona que não conhecia as pessoas que se dirigiram às suas instalações e que não as reconhecia como clientes, o que corrobora o que já deixamos consignado supra e que confirma que a legal representante da recorrente, com a sua conduta, pretendia obstar o acesso ao livro de reclamações daquelas pessoas, mesmo sabendo que o fazia de forma injustificada, porque eram efetivamente os compradores do produto e, consequentemente, os seus clientes, em conformidade com a fatura que a arguida emitiu.
Deste depoimento ficou perentoriamente negado qualquer cenário de agressividade ou injúrias da sua parte e da companheira, descredibilizando a tese do recurso.
Finalmente, debrucemo-nos no depoimento de BB.
A testemunha pareceu-nos ponderada, equilibrada e credível tendo também apresentado uma versão dos factos bastante distinta da legal representante da arguida, mas já coadunada com a das testemunhas GG e CC.
BB contextualizou a ida ao local, no seguimento de uma denúncia de defeito no recuperador que ela e o companheiro haviam adquirido para oferecer aos pais. Confirmou também que a legal representante da ora recorrente a chamou “garota” ao telefone, quando mostrou a sua indignação perante o prazo que lhe foi apontado para a reparação do aparelho. Na ocasião dos factos, afirmou que se limitou a pedir o livro de reclamações e que DD mostrou-se exaltada e a «colocou na rua», tendo-lhe disse “ponha-se daqui para fora”; foi nessa ocasião que decidiu chamar a polícia.
Acrescentou que lhes continuou a ser-lhes negado o livro e que, da parte da legal representante da arguida, se manteve uma postura de muita exaltação, tendo, inclusive, a polícia decidido encaminha-lo para fora das instalações, porquanto «as coisas estariam muito exaltadas». Acrescentou que, várias vezes a GNR solicitou o livro de reclamações, mas a legal representante da arguida negou-o, dizendo-se licenciada em direito. Acrescentou que decidiram abandonar o local porque as coisas estavam “descontroladas”. Sustentou reiteradamente que, da sua parte, não houve qualquer postura injuriosa, nem agressiva, tendo-se limitado a pedir o livro de reclamações sem sequer levantar a voz.
Como dissemos, para além da demais prova produzida em sentido concordante, a sua postura em audiência, que também se mostrou contrastante com a da legal representante da arguida [que se assumiu uma pessoa nervosa e, de resto, revelou sê-lo durante as suas declarações], credibilizou o que aludiu.
Uma última nota para as declarações prestadas a propósito por EE, legal representante da ora recorrente e não obstante o pouco contributo deste para o esclarecimento dos factos imputados à recorrente, por falta de conhecimento direto.
EE declarou que a GNR não falou com a sua esposa, porque desmaiada, tendo-nos parecido pouco convicto do afirmado, tendo desviado o olhar em direção ao chão nessa ocasião. Como dissemos, foi contrariado pela restante prova produzida, não se tendo vislumbrado sequer qualquer interesse do autuante em plasmar no auto um facto falso no respetivo auto; tal posição do declarante, aponta para a pouca fiabilidade das suas declarações.
Portanto, por tudo quanto se expos, entendemos que se provou uma versão contrária àquela que vinha defendida em sede de recurso, posto que a prova que entendemos mais coerente e fiável aponta que a única pessoa que assumiu uma conduta agressiva, exaltada e de pressão, procurando negar o exercício de um direito, foi a legal representante da arguida.
A arguida é uma sociedade comercial, ou seja, uma estrutura organizada, que, segundo as certidões permanentes juntas aos autos, foi constituída em 29/1/1996, tendo logo como seus gerentes DD e EE. Os factos foram praticados em novembro de 2019, ou seja, decorridos cerca de 11 anos desde a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 156/2005 e estabilizada que se encontrava, à data, a relevância do livro de reclamações e a consciência de um crescente reconhecimento dos direitos dos consumidores. A legal representante da arguida manifestou, inclusive em audiência, saber a obrigatoriedade de entregar o livro de reclamações aos clientes, pelo que conhecia a norma legal. Como dissemos, os factos patenteiam uma postura vincada em não permitir o exercício do direito a BB, mesmo sendo ela a pessoa identificada como cliente na fatura emitida pela arguida e não obstante os esforços da GNR em ultrapassar a resistência da legal representante da arguida e elucidando-a sobre o dever que sobre si impendia.
Por tudo quanto se expôs, portanto, dúvidas inexistem relativamente aos factos demonstrados, sendo que, da dinâmica dos acontecimentos e do demais expendido, lido conjuntamente com as regras da experiência e do senso comum, resulta a verificação do elemento subjetivo.
Já relativamente ao episódio de janeiro de 2020, para além da posição assumida no recurso, que não pôs em crise que houve uma primeira recusa na entrega do livro de reclamações a AA e que este comprou um aparelho fabricado pela ora recorrente nos B..., nem o contexto em que foi solicitado tal livro, nem a chamada e vinda da GNR ao local, tivemos em consideração, essencialmente, o auto de notícia, as declarações do legal representante EE, os depoimentos do militar autuante, HH e de AA e, finalmente, os documentos por este facultados, constantes de fls. 35 a 45.
Começando por estes últimos documentos, explicitados de forma coerente por AA, temos a referir que, se é certo que o comprador reclamou diretamente o defeito junto do vendedor que, por seu turno, o reportou ao fabricante, a aqui recorrente, também se mostra junto um email de 19/10/2018, proveniente da ora recorrente, para a esposa de AA, conforme este explicou, onde esta se refere ao defeito no produto e à assunção da sua reparação – ver fls. 40. Assim, desde logo referir que, conforme mencionou AA e ao contrário do que parece pretender transparecer do recurso, existiu aqui um contacto direto entre a ora recorrente e o cliente final.
A este propósito, II, mencionou que AA se encontrava nas instalações da sociedade arguida, que lhe foi solicitada a resolução de um defeito numa máquina e que concluiu que teria de reclamar o defeito diretamente no comprador, B..., até porque já havia troca de emails para, alegadamente, resolver o problema.
Afirmou que AA lhe pediu o livro de reclamações, mas entendeu que ele não era seu cliente e, consequentemente «não tinha nada de reclamar» e abandonou a pessoa. Nesse seguimento, aquele informou que iria chamar a GNR, o que sucedeu. Acrescentou que junto da GNR voltou a referir que não tinha de entregar o livro de reclamações e que a pessoa em causa teria de se dirigir à outra sociedade, que lhe terá vendido o produto. Portanto, o próprio legal representante da arguida contraria a versão recursiva de que não foi recusado o livro de reclamações antes da chegada da GNR e mesmo posteriormente à chegada desta.
Acrescentou desconhecer se tinha reparado ou não o produto e que a sociedade arguida é apenas uma fábrica. Muito embora este ponto acabe por ter, em nossa ótica, pouca relevância, atalhamos que, conforme revela o episódio de novembro de 2019, não nos parece tão linear a versão da recorrente. Não olvidamos que, segundo a certidão permanente da sociedade arguida, designadamente, a de fls. 20 e sgs., o seu objeto social começou por ser a “fabricação de equipamentos para energias alternativas; porém, em 14 de maio de 2020, poucos meses após os factos, foi registada uma alteração ao contrato de sociedade, contendente com o objeto social da empresa, envolvendo, entre o mais, o comércio por grosso e a retalho de equipamentos diversos; mais relevante do que esse aditamento formal, conforme decorre da própria fatura de fls. 48, lida conjuntamente com os depoimentos de BB e CC, de onde resulta que o aparelho foi diretamente adquirido por si à ora recorrente e se destinava a uso privado e não para fins ou uso profissional, os factos patenteiam com evidência que, não obstante o objeto social da sociedade arguida não se tivesse alterado, ela já vendia diretamente ao público/consumidor final e não se limitava apenas à fabricação dos produtos. Também em abono dessa conclusão, veja-se que AA afirmou que tinha já estado nas instalações da ora recorrente, numa zona onde ela tinha os seus produtos expostos e que, nessa ocasião, o legal representante da ora recorrente lhe esteve a apresentar os produtos, o que também confirma que a ora recorrente tinha ligação direta com o público em geral e não apenas a outros comerciantes, pelo que não se pôde ter como demonstrado o alegado no recurso quanto a este particular, mas apenas o concreto objeto social da ora recorrente, o que refletimos nos factos provados e não provados.
Em acréscimo, neste caso em concreto, mau grado II tenha alegado desconhecimento sobre a situação da reparação em concreto, o que se mostra pouco verosímil, considerando o teor dos emails de fls. 35 a 41, reveladores dos contactos quer da recorrente com o particular, quer, posteriormente à reparação efetuada por aquela, do revendedor com a ora recorrente, AA revelou que a ora recorrente levantou o aparelho defeituoso em sua casa após a reclamação feita junto do vendedor e procedeu à reparação do mesmo. Sublinhou mais do que uma vez que pretendeu reclamar junto da ora recorrente da reparação efetuada, tendo justificado o porquê de entender que ela estaria mal feita. Foi também a ora recorrente, segundo a testemunha, que voltou a entregar o aparelho em sua casa. Acresce ainda que, voltando a descredibilizar II, a testemunha disse que se dirigiu à ora recorrente, tendo falado com o legal representante, expondo que a reparação não tinha sido bem feita e solicitando a sua correção, mencionou que «o tentou chamar à razão», porém, ele afirmou que a reparação estava bem feita e que não iria voltar a reparar o aparelho. AA prestou um depoimento seguro, consistente, espontâneo, tendo-nos merecido credibilidade. Do que afirmou resulta que AA contextualizou e justificou a sua pretensão, tendo deixado claro junto do legal representante da ora recorrente que estava a reagir em decorrência da reparação defeituosa que ela fez e porque recusou-se a voltar a repara-la devidamente. De modo que, ante tudo o exposto, as dúvidas manifestadas por EE em audiência sobre se a sociedade arguida tinha ou não reparado o recuperador de calor da testemunha deixam-nos sérias reservas, tendo sido, para nós, inverosímeis.
Prosseguindo, AA referiu que foi ante a postura do legal representante da ora recorrente, que decidiu pedir o livro de reclamações, porém, ele negou-se a entregar-lho, ao que decidiu chamar a polícia. Sublinhou que solicitou várias vezes o livro, contando com a oposição do legal representante da recorrente, postura que este manteve também junto da GNR, tendo sido necessária insistência desta autoridade, para ele ter acedido. O argumento do legal representante da ora recorrente, afirmou, era que AA não tinha comprado ali o aparelho, porém, acrescentou novamente, ele não veio reclamar da compra, mas da reparação.
Com relevo, a testemunha ainda explicou o teor dos emails, mencionou que foi ele o interlocutor com a ora recorrente, estando presente quando foi o levantamento e entrega do aparelho em sua casa.
Perante tudo o exposto, o alegado desconhecimento do legal representante da ora recorrente quanto à reparação do aparelho, não nos pareceu séria, evidenciando novamente que, da parte da ora recorrente, o que existiu foi uma clara tentativa de obstar o acesso ao livro de reclamações, não parecendo propriamente verosímil que consumidores tenham mais conhecimento dos seus direitos do que os comerciantes ou prestadores de serviços dos seus deveres. No caso, do teor do depoimento desta testemunha AA, corroborado por HH, resulta, efetivamente que houve uma recusa deliberada e consciente do livro, até perante as autoridades policiais, não tendo subsistido, da nossa parte, convencimento quanto a um eventual erro do legal representante da ora recorrente. Veja-se que, segundo o sr. militar da GNR HH, o legal representante da ora recorrente mostrava-se “intransigente”, não pretendendo entregar o livro de reclamações, mesmo perante si. Acrescentou que teve de repetir mais do que uma vez e explicar, pelo menos algumas vezes, que tinha de ceder o livro de reclamações, para o legal representante da ora recorrente acabar por “ceder”. De resto, como já dissemos, o próprio II, indo em sentido distinto daquele que se pretendia veicular nas suas alegações recursivas, mencionou que mesmo perante a GNR disse que não tinha de entregar o livro de reclamações, porque AA tinha de se dirigir a outra empresa.
Ora, esta conduta não nos parece consentânea com qualquer erro quanto ao dever, fundado numa errada interpretação ou aplicação da norma, mas, como se disse, revelar uma consciente contrariedade perante o dever imposto, aliás, em sintonia com o que os factos de novembro de 2019 patenteavam. Seria de esperar que, em caso de erro genuíno, houvesse cedência, hesitação ou dúvida perante a primeira abordagem das autoridades policiais. Porém, o que HH e AA relataram foi uma postura obstinada de recusa de entrega do livro de reclamações, mesmo após os esclarecimentos prestados perante a entidade policial. De resto, ante tudo o exposto. é, em nosso entendimento, inverosímil, o apontado erro quanto à obrigação de entrega do livro. Ficou claro do depoimento de AA que se pretendia usar do mesmo no seguimento de uma reparação defeituosa feita pela recorrente ante a recusa desta em proceder a nova reparação; o objetivo da sua solicitação não se prendia com algo estranho à ré, ou à sua atividade, pelo que parece-nos evidente que a sua legitimidade para solicitar o livro era patente, e que, da parte da arguida, houve sim uma clara intenção de impedir que AA expressasse a sua reclamação e de violar a norma legal que obrigava à entrega do livro. Em acréscimo, como dissemos supra, à data dos factos, a obrigatoriedade do livro de reclamações e suas finalidades estavam já suficientemente sedimentadas e, de resto, a sociedade arguida tinha tido recentemente uma experiência semelhante, com intervenção das autoridades policiais, por conta de uma recusa em facultar o livro de reclamações, não se mostrando verosímil, ante o exposto, qualquer erro ou desconhecimento da obrigação de entrega do livro naquela situação em concreto.
Por tudo o exposto, ficou demonstrada, sem sombra de dúvida, a matéria de facto constante da decisão administrativa, tanto objetiva, como subjetiva, e não se demonstrou o alegado pela recorrente, nomeadamente, que AA pretendia a substituição do aparelho, a ausência de qualquer recusa expressa em entregar o livro de reclamações, inclusive, perante as autoridades, e o erro invocado pela ora recorrente.
No mais, precisar que o número de trabalhadores da sociedade arguida resultou, essencialmente, da análise do extrato global da declarações de remunerações, de fls. 84 a 85 e a matéria de 16) e 17), em precisão do alegado nos últimos dois parágrafos da pág. 18 do recurso – fls. 114 – resultou da análise dos documentos apresentados por AA e do depoimento deste, não tendo sido contrariados tais meios probatórios por nenhuma prova produzida.
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- DA RESPONSABILIDADE CONTRAORDENACIONAL -
À arguida é imputada a prática de duas contraordenações muito graves, previstas no artigo 3.º/1, al. b) e n.º 4 do Decreto-Lei n.º 156/20O5, de 15 de setembro com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 74/2017, de 21 de junho, e punida nos termos do art. 9.º/1 al. a) e n.º 3 do mesmo diploma legal, com coima de €7.500,00 a €15.000,00, por se tratar de pessoa coletiva.
Entende a arguida que, quanto aos factos de 20/11/2019, se deveria aplicar o regime legal mais favorável, em obediência ao disposto no art. 182.º do RGCE - Regime Jurídico das Contraordenações Económicas.
Em concreto, convoca o disposto nos arts. 18.º e 19.º deste diploma, entendendo que a sociedade arguida, à data dos factos, deveria ser considerada uma microempresa e, como tal, a moldura da coima seria de €3.000,00 a €11.500,00, regime esse que reputa mais favorável.
Assim, como questão prévia importa definir o regime jurídico aplicável aos factos de 20/11/2019.
Assim, iremos atentar no disposto nos seguintes normativos, previstos no DL n.º 156/2005, de 15 de Setembro, que estabelece a obrigatoriedade de disponibilização do livro de reclamações a todos os fornecedores de bens ou prestadores de serviços que tenham contacto com o público em geral, na redação vigente à data dos factos.
[…]
CAPÍTULO II
Do formato físico do livro de reclamações e do procedimento do fornecedor de bens ou prestador de serviços
Artigo 3.º
Obrigações do fornecedor de bens ou prestador de serviços
1 - O fornecedor de bens ou prestador de serviços é obrigado a:
[…]
b) Facultar imediata e gratuitamente ao consumidor ou utente o livro de reclamações sempre que por este tal lhe seja solicitado, sem prejuízo de serem observadas as regras da ordem de atendimento previstas no estabelecimento comercial, com respeito pelo regime de atendimento prioritário
[…]
2 - O fornecedor de bens ou prestador de serviços não pode, em caso algum, justificar a falta de livro de reclamações no estabelecimento onde o consumidor ou utente o solicita pelo facto de o mesmo se encontrar disponível noutros estabelecimentos, dependências ou sucursais, ou pelo facto de disponibilizar o formato eletrónico do livro de reclamações.
3 - O fornecedor de bens ou o prestador de serviços não pode impor qualquer meio alternativo de formalização da reclamação antes de ter disponibilizado o livro de reclamações, nem condicionar a apresentação da reclamação, designadamente, à necessidade de identificação do consumidor ou utente.
4 - Quando o livro de reclamações não for imediatamente facultado ao consumidor ou utente, este pode requerer a presença da autoridade policial a fim de remover essa recusa ou de que essa autoridade tome nota da ocorrência e a faça chegar à entidade competente para fiscalizar o setor em causa.
[…]
CAPÍTULO VI
Da fiscalização e regime contraordenacional
Artigo 9.º
Contraordenações
1 - Constituem contraordenações puníveis com a aplicação das seguintes coimas:
a) De (euro) 250 a (euro) 3500 e de (euro) 1500 a (euro) 15 000, consoante o infrator seja pessoa singular ou coletiva, a violação do disposto nas alíneas a), b) e e) do n.º 1 do artigo 3.º, nos n.os 1 e 2 do artigo 5.º , no n.º 3 do artigo 5.º-A, nos n.os 1 a 3 do artigo 5.º-B e nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º;
b) De (euro) 150 a (euro) 2500 e de (euro) 500 a (euro) 5000, consoante o infrator seja pessoa singular ou coletiva, a violação do disposto no n.º 3 do artigo 1.º, nas alíneas c) e d) do n.º 1 e nos n.os 2, 3 e 5 do artigo 3.º, nos n.os 3 e 4 do artigo 4.º, nos n.os 4 e 5 do artigo 5.º, no n.º 4 do artigo 5.º-B, no n.º 6 do artigo 6.º e nos n.os 2 e 5 do artigo 8.º
2 - A negligência é punível sendo os limites mínimos e máximos das coimas aplicáveis reduzidos a metade.
3 - Em caso de violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º, acrescida da ocorrência da situação prevista no n.º 4 do mesmo artigo, o montante da coima a aplicar não pode ser inferior a metade do montante máximo da coima prevista.
Este normativo sofreu alteração com a entrada em vigor do Regime Jurídico das Contraordenações Económicas (RJCE), prevendo o seu art. 61.º, a alteração, entre o mais, ao disposto no art. 9.º do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro que passou a ter a seguinte redação:
1 - Constitui contraordenação económica grave, punível nos termos do Regime Jurídico das Contraordenações Económicas (RJCE), a violação ao disposto nas alíneas a), b) e e) do n.º 1 do artigo 3.º, nos n.os 1 e 2 do artigo 5.º , no n.º 3 do artigo 5.º-A, nos n.os 1 a 3 do artigo 5.º-B e nos n.os 1 e 3 do artigo 8.º
[…]
3 - A violação do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 3.º, acrescida da ocorrência da situação prevista no n.º 4 do mesmo artigo, constitui contraordenação económica muito grave, punível nos termos do RJCE.
4 - A negligência é punível nos termos do RJCE.
O RJCE entrou em vigor 180 dias após a sua publicação, ocorrida em 29/1, de acordo com o art. 183.º do DL n.º 9/2021, de 29 de Janeiro, sendo, portanto, posterior aos factos, convocando-se a problemática da sucessão de leis no tempo.
Nessa conformidade, vejamos o regime estabelecido no art. 183.º do DL n.º 9/2021, de 29 de Janeiro para concluirmos se, no caso, ele se mostra mais favorável:
Da coima e das sanções acessórias
Artigo 17.º
Classificação das contraordenações
Montante das coimas
[…]
b) Contraordenação grave:
i) Tratando-se de pessoa singular, de (euro) 650,00 a (euro) 1500,00;
ii) Tratando-se de microempresa, de (euro) 1700,00 a (euro) 3000,00;
iii) Tratando-se de pequena empresa, de (euro) 4000,00 a (euro) 8000,00;
iv) Tratando-se de média empresa, de (euro) 8000,00 a (euro) 16000,00;
v) Tratando-se de grande empresa, de (euro) 12000,00 a (euro) 24000,00;
c) Contraordenação muito grave:
i) Tratando-se de pessoa singular, de (euro) 2000,00 a (euro) 7500,00;
ii) Tratando-se de microempresa, de (euro) 3000,00 a (euro) 11500,00;
iii) Tratando-se de pequena empresa, de (euro) 8000,00 a (euro) 30000,00;
iv) Tratando-se de média empresa, de (euro) 16000,00 a (euro) 60000,00;
v) Tratando-se de grande empresa, de (euro) 24000,00 a (euro) 90000,00.
Classificação de pessoas coletivas
a) «Microempresa», quando empreguem menos de 10 trabalhadores;
b) «Pequena empresa», quando empreguem entre 10 e 49 trabalhadores;
c) «Média empresa», quando empreguem entre 50 e 249 trabalhadores;
d) «Grande empresa», quando empreguem 250 ou mais trabalhadores.
2 - Para efeitos de aplicação do número anterior, tem-se em consideração o número de trabalhadores ao serviço a 31 de dezembro do ano civil anterior ao da data da notícia da infração autuada pela entidade competente, considerando-se como trabalhadores, para este efeito:
a) Os assalariados;
b) As pessoas que trabalham para essa empresa com um nexo de subordinação com ela e equiparados a assalariados de acordo com legislação específica;
c) Os proprietários-gestores;
d) Os sócios que exerçam uma atividade regular na empresa e beneficiem, em contrapartida, de vantagens financeiras da mesma.
3 - No caso de não ser possível determinar a dimensão da empresa para efeitos de aplicação dos números anteriores, aplica-se a moldura contraordenacional prevista para as médias empresas, sem prejuízo de poderem ser considerados novos elementos de facto que conduzam à alteração dessa classificação, trazidos aos autos por indicação do arguido, ou que sejam de conhecimento oficioso da autoridade administrativa que proceda à instrução ou decisão do processo.
[…]
Ora, demonstrando-se que em dezembro de 2018 a sociedade arguida empregava menos de 10 trabalhadores, ela deveria ser considerada uma microempresa, pelo que a moldura da contraordenação imputada, por ser muito grave, tratando-se de microempresa, era de (euro) 3000,00 a (euro) 11500,00.
Assim, uma vez que do regime legal pretérito resultava uma moldura que, na prática, era de €7.500,00 a €15.000, considerando o disposto no n.º 3 do art. 9.º na redação vigente, e que o montante máximo dessa moldura era também ele superior ao que resulta do novo regime legal, então, em concreto, a nova lei é mais favorável à sociedade arguida e deve ser a aplicável, assistindo razão, nesta parte, ao recurso.
Já no que concerne aos factos de janeiro de 2020, a arguida não colocou em crise a correção do regime jurídico utilizado.
Sem prejuízo, faz-se consignar que, efetivamente, a decisão administrativa, nesta parte, se mostra acertada, uma vez que, neste caso, o regime legal vigente à data da prática dos factos era mais favorável, na medida em que, para as pequenas empresas, como o era a arguida, o RJCE implicava uma coima de (euro) 8000,00 a (euro) 30000,00, ou seja, uma moldura substancialmente mais elevada do que a contida no art. 9.º do Decreto-Lei n.º 156/2005, na redação vigente à data de 3/1/2020.
O DL n.º 156/2005, de 15 de Setembro visa reforçar os procedimentos de defesa dos direitos dos consumidores e utentes no âmbito do fornecimento de bens e prestação de serviços, mediante a instituição da obrigatoriedade de existência e disponibilização do livro de reclamações, nos formatos físico e eletrónico – vide seu art. 1.º/1 e 2.
Nessa conformidade, o diploma legal veio sucessivamente a alargar a obrigatoriedade de existência do livro de reclamações, sendo atualmente obrigatória a existência do livro de reclamações a todos os fornecedores de bens e prestadores de serviços que tenham contacto com o público, com exceção dos serviços e organismos da Administração Pública, que continuam a reger-se pelo disposto no artigo 38.º do Decreto-Lei n.º 135/99, de 22 de Abril.
Assim, o legislador com o citado Decreto-Lei, quis reforçar os procedimentos de defesa dos
Define, assim, o art. 2.º do citado diploma legal o seu âmbito:
Âmbito
a) Se encontrem instalados com carácter fixo ou permanente, e neles seja exercida, exclusiva ou principalmente, de modo habitual e profissional, a atividade; e
b) Tenham contacto com o público, designadamente através de serviços de atendimento ao público destinado à oferta de produtos e serviços ou de manutenção das relações de clientela.
2 - São abrangidos pela obrigação de disponibilização do formato eletrónico do livro de reclamações todos os fornecedores de bens e prestadores de serviços designadamente os identificados no anexo ao presente decreto-lei, quer desenvolvam a atividade em estabelecimento que cumpra os requisitos previstos no número anterior ou através de meios digitais.
3 - O regime previsto neste decreto-lei não se aplica aos serviços e organismos da Administração Pública a que se referem os artigos 35.º-A e 38.º do Decreto-Lei n.º 135/99, de 22 de abril, alterado pelos Decretos-Leis n.os 29/2000, de 13 de março, 72-A/2010, de 18 de junho, 73/2014, de 15 de maio, e 58/2016, de 29 de agosto.
4 - São abrangidas pela obrigação de disponibilização do livro de reclamações as associações sem fins lucrativos que exerçam atividades idênticas às dos estabelecimentos identificados no anexo ao presente decreto-lei.
5 - O livro de reclamações pode ser utilizado por qualquer consumidor ou utente nas situações e nos termos previstos no presente decreto-lei.
6 - Excetuam-se do disposto no n.º 3 os serviços e organismos da Administração Pública encarregues da prestação dos serviços de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos que passam a estar sujeitos às obrigações constantes deste decreto-lei.
7 - Sem prejuízo do disposto no n.º 3, compete aos fornecedores de bens e aos prestadores de serviços cuja atividade esteja sujeita a regulação por entidade reguladora do setor ou entidade de controlo de mercado competente assegurar o cumprimento das obrigações previstas no presente decreto-lei nos casos em que os fornecimentos de bens e as prestações de serviços sejam efetuados, ainda que de forma não exclusiva ou principal, nos locais dos serviços e organismos da Administração Pública que tenham contacto com o público.
8 - A reclamação apresentada no livro de reclamações em formato eletrónico tem a mesma validade da reclamação apresentada no livro de reclamações em formato físico.
A recorrente não questionou que estivesse abrangida pela obrigação de disponibilização do formato físico do livro de reclamações, sendo que esta, de resto, decorre das atividades que, efetivamente, se demonstrou que realizou junto do público.
Relativamente aos factos ocorridos em novembro de 2019, a recorrente, no seu recurso, também não pôs em crise que lhe foi solicitado o livro de reclamações por um cliente e que este não lhe foi entregue. O que defendeu é que se viu impossibilitada de cumprir com a obrigação legal de proceder a essa entrega após a solicitação, em virtude da atuação de duas pessoas que se deslocaram ao seu estabelecimento, que a visaram com insultos e atitude agressiva.
Porém, não se demonstrou qualquer incapacidade acidental da legal representante da arguida, mas uma deliberada intenção de não proceder à entrega do livro de reclamações naquela situação em concreto. A defesa, portanto, não procede neste ponto.
Também não demonstrou a defesa que o livro de reclamações foi efetivamente facultado pela funcionária da arguida e que foram as pessoas referidas que se recusaram a aceita-lo ou a preenche-lo.
Assim, os factos patenteiam que junto da arguida foi solicitada a entrega de livro de reclamações por quem era cliente da mesma, por lhe ter adquirido um recuperador de calor e que, nesse seguimento, foi chamada uma autoridade policial, mormente, a GNR.
A arguida atuou ciente da ilicitude da sua conduta, tendo agido livre, deliberada e conscientemente, não obstante saber que, com a mesma, incorria na prática de uma contraordenação económica, sancionada por lei.
Assim, mostram-se reunidos os elementos objetivos e subjetivos da contraordenação imputada, tendo a arguida atuado com dolo.
Relativamente ao sucedido em janeiro de 2020, entende a arguida que a pessoa em causa não era sua cliente, por inexistir qualquer relação de consumo consigo e que, novamente, se usou de uma atitude de pressão, não lhe tendo sido recusada a entrega do livro de reclamações.
Quanto a este aspeto, começamos por referir que os factos demonstram que, também nesta situação, houve uma recusa expressa por parte do legal representante da arguida em entregar o livro de reclamações, ainda que com argumentando que esta pessoa não era cliente da sociedade arguida.
No seu recurso, a sociedade arguida mantém esta linha de pensamento, sufragando que inexistia o dever de entrega do livro de reclamações, cabendo indagar se, efetivamente, a pessoa solicitante tinha legitimidade ou não para solicitar o livro de reclamações.
O Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro pretende tornar mais acessível o exercício do direito de queixa, proporcionando ao consumidor a possibilidade de reclamar no local onde o conflito ocorreu, o que é enfatizado no Preâmbulo deste diploma legal, onde se refere ser necessário incentivar e encorajar o exercício do direito de queixa, introduzindo mecanismos que o tornem mais eficaz enquanto instrumento de defesa dos direitos dos consumidores e utentes, de forma a alcançar a igualdade material dos intervenientes a que se refere o artigo 9.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, vulgo Lei de Defesa do Consumidor.
Considerando esta remissão e não havendo no Decreto-Lei n.º 156/2005, qualquer definição específica de consumidor para efeitos desse diploma legal, haverá, a nosso ver, que atender ao conceito vertido no n.º 1 do art. 2.º da Lei de Defesa do Consumidor, que define consumidor como todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.
O mesmo diploma legal refere-se ainda ao utente no respetivo preâmbulo e ao longo dos seus normativos, também sem definir e concretizar esse conceito.
Da conjugação dos n.ºs 1 e 3 do artigo 3.º do Decreto-Lei 156/2005, resulta que utente e consumidor, para efeitos desse diploma, é todo aquele que pretende que lhe seja prestado um serviço ou fornecido um determinado bem, ou o utilizador do bem ou dos serviços.
Acresce também que decorre do regime legal que a apresentação do livro de reclamações não pode ser condicionada e não se compadece com considerações sobre os motivos das reclamações ou a legitimidade de quem as apresenta – cf., no mesmo sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido no processo 3960/16.1T8BRG.G1, em 03.04.2017 (disponível para consulta no sítio de Internet www.dgsi.pt).
No caso em concreto, se é certo que não se demonstrou que AA adquiriu diretamente o recuperador de calor à arguida, verificou-se que a arguida fabricou esse produto e que, após ele ter sido adquirido pelo referido AA nos B..., ela também procedeu à reparação do mesmo.
Assim, a arguida prestou um serviço de reparação num bem por si fabricado. O adquirente desse produto pretendeu reclamar dessa reparação, ou seja, desse serviço que havia sido prestado pela arguida no bem por si adquirido.
Defende, porém, a recorrente que o serviço de reparação foi prestado diretamente ao revendedor e não ao adquirente do produto reparado.
Não temos como correta essa leitura, pois que nos parece que, independentemente de o vendedor poder ou não ter intermediado o procedimento de reparação do bem defeituoso, tem de se entender que o beneficiário imediato da reparação é o dono do produto reparado e, como prestador da reparação, a entidade que a realiza, ou seja, respetivamente, AA e a arguida/recorrente.
Sem prejuízo e mesmo que isso não se entenda, parece-nos evidente que tal relação confere legitimidade a AA para, no caso, solicitar o livro de reclamações à sociedade arguida.
Nessa medida e para esse efeito, AA dever-se-ia entender como cliente do serviço de reparação prestado pela arguida ou, ainda que assim não se entendesse, um utente.
Pelo que se entender ser obrigatória a entrega do livro de reclamações e ilícita a recusa que se sucedeu à solicitação da pessoa.
Em abono da nossa interpretação, citamos, a título de exemplo:
- o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 7/4/2015, relatado pelo sr. Desembargador José Proença da Costa, onde estava em causa a recusa de acesso ao livro de reclamações a utente com o fundamento de que o defeito num produto de uma máquina de produtos alimentares (máquina de vending) explorada nas suas instalações, pertencia a terceiro.
Defendia a defesa/recorrente que o disposto no artº 3º, nº 1, al. b), do Dec. Lei nº 156/2005, só pode ser interpretado no sentido de fazer impender aquela obrigação sobre o fornecedor de bens ou prestador de serviços que contratou com o utente e, no âmbito desse contrato, o lesou de alguma forma; E não impendendo o dever de facultar imediata e gratuitamente o livro de reclamações para o utente reclamar sobre a prestação de um serviço ou sobre o fornecimento de um bem que não é fornecido ou prestado pelo detentor do livro de reclamações, inexistiria contraordenação.
Porém, entendeu-se nesse douto aresto que a recorrente parece confundir a obrigação de apresentar o livro de reclamações a utente que não ficou satisfeito com a venda de bem nas suas instalações com o merecimento, ou não, da aludida reclamação.
Depois, discorrendo sobre a razão de ser da existência e obrigatoriedade do livro de reclamações, escreveu “Como consabido, o Dec. Lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro, veio estabelecer a obrigatoriedade de disponibilização do livro de reclamações a todos os fornecedores de bens ou prestadores de serviços que tenham contacto com o público em geral.
E como decorre do preâmbulo do citado Dec. Lei, o livro de reclamações constitui um dos instrumentos que tornam mais acessível o exercício do direito de queixa, ao proporcionar ao consumidor a possibilidade de reclamar no local onde o conflito ocorreu.
Sendo que a criação deste livro teve por base a preocupação com um melhor exercício da cidadania através da exigência do respeito dos direitos dos consumidores.
E a justificação da medida, inicialmente vocacionada para o sector do turismo e para os estabelecimentos hoteleiros, de restauração e bebidas em particular, prendeu-se com a necessidade de tornar mais célere a resolução de conflitos entre os cidadãos consumidores e os agentes económicos, bem como de permitir a identificação, através de um formulário normalizado, de condutas contrárias à lei. É por este motivo que é necessário incentivar e encorajar a sua utilização, introduzindo mecanismos que o tornem mais eficaz enquanto instrumento de defesa dos direitos dos consumidores e utentes de forma a alcançar a igualdade material dos intervenientes a que se refere o artigo 9.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho […]
Para além de se entender que o princípio base que sustenta a exigência do livro de reclamações, praticamente em todas as entidades públicas e privadas que prestam serviços ao consumidor, vai muito além da mera possibilidade de em concreto ser dado ao utente/cliente a possibilidade de ver o seu caso resolvido. De facto, está subjacente em toda a evolução legislativa a garantia de uma boa prestação de serviços ao consumidor em geral, nomeadamente na possibilidade de fiscalização efectiva do modo como se prestam os serviços, como se deu nota no Acórdão da Relação de Coimbra, de 10 de Março de 2010, no Processo n.º 918/09.5TBCR.C1 […]”.
-o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15 de dezembro de 2021, relatado pela sra. desembargadora Cláudia Rodrigues, disponível em www.dgsi.pt e jurisprudência nele citado:
“Ora, se a disponibilização do livro de reclamações não pode ser condicionada e não se compadece com considerações sobre os motivos das reclamações ou a legitimidade de quem as apresenta, a circunstância invocada pela arguida, de os participantes não terem “aceitado as regras do estabelecimento” (a provar-se, o que não sucedeu), não constitui justificação válida para a arguida se recusar a facultar aos participantes o dito livro. Essa divergência entre a arguida e os participantes (potenciais clientes), quanto a haver ou não motivo válido para vedar o acesso ao estabelecimento, constitui questão a decidir exatamente através do procedimento de reclamação que tem início com o preenchimento do livro de reclamações, na esteira da posição perfilhada no Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães proferido no processo 3960/16.1T8BRG.G1, em 03.04.2017, acessível in www.dgsi.pt.
Neste mesmo sentido se pronuncia o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra proferido no processo 3530/20.4T8CBR, em 10.27.2021, acessível in www.dgsi.pt. de onde se extrai “que toda a recusa de apresentação do livro a quem tenha a qualidade de consumidor – pessoa que tenha adquirido ou pretenda adquirir bens ou serviços de um estabelecimento que se encontre no âmbito da previsão do art. 2º, nºs 1, 2 e 4, do DL nº 156/2005 de 15.09 – por parte do prestador de bens ou fornecedor de serviços é abusiva e ilegal, incorrendo o infrator em responsabilidade contraordenacional”.
Mas isto não significa, como se lê no aresto por último mencionado, que o consumidor tenha sempre razão – em muitos casos certamente não a terá – ou que mesmo tendo-a isso implique de forma automática uma qualquer consequência para o agente económico. A razão que originou a queixa poderá ter sido fortuita ou involuntária, não justificando censura, ou poderá haver uma actuação emotiva, menos racional ou menos séria por parte do consumidor. Ainda assim, o prestador de bens ou serviços não pode ser juiz de si próprio, estando-lhe absolutamente vedada a recusa de apresentação do livro seja com que fundamento for.
[…]
E a circunstância de não estar em causa uma reclamação originada na relação de prestação do serviço ou de venda de produtos dentro do estabelecimento, pois isso pressupunha que a pessoa tivesse entrado e que se tivesse chegado a estabelecer essa relação de consumo, a tal não obsta.
Repare-se que, o consumidor não pode deixar de ser visto como toda e qualquer que pessoa com interesse em adquirir um produto ou serviço, e que com esse propósito se dirige a um estabelecimento de venda de bens ou prestação de serviços. Basta pensar-se na simples e frequente situação de se entrar numa qualquer loja para comprar um produto, acabando por não se realizar a compra, não chegando assim a efetivar-se a relação contratual, o que não pressupõe, naturalmente, que a pessoa em questão não assuma a qualidade de consumidor, e por qualquer motivo, caso pretenda apresentar uma reclamação, possa solicitar o livro em questão […]”.
Ora, no caso em concreto, parece-nos manifesto que AA tinha legitimidade para solicitar o livro de reclamações, considerando a matéria de facto demonstrada, sendo que, como decorre da jurisprudência citada, a disponibilização do livro de reclamações não pode ser condicionada e não se compadece com considerações sobre os motivos da reclamação ou a legitimidade de quem a apresenta, visando precisamente obstar à resistência das entidades visadas pelo estabelecimento das obrigações em causa à organização dos respetivos serviços de forma a não condicionar por qualquer forma a imediata entrega do livro de reclamações aos utentes que o pretendam utilizar.
Acresce que se se provou que ante a recusa do legal representante da arguida, AA chamou a GNR ao local.
Igualmente se demonstraram os elementos subjetivos do ilícito, nomeadamente, a atuação livre, deliberada e consciente da sociedade arguida, não obstante saber do carater proibido e sancionado por lei de tal conduta.
Entende a recorrente, porém, que atuou em erro que, no caso, elimina a sua culpa.
A este propósito, rege o art. 9.º do RGCO:
Erro sobre a ilicitude
2 - Se o erro lhe for censurável, a coima pode ser especialmente atenuada.
No direito de mera ordenação social o erro sobre a proibição pode ser tratado quer como um problema de dolo - artigo 8.º/2 do RGCO -, quer como um problema da culpa - artigo 9.° do RGCO.
A este propósito, escreve Paulo Pinto de Albuquerque , em anotação ao art. 9.º, convocado pela arguida recorrente, que «no direito das contraordenações strictu sensu, que incluem as condutas eticamente irrelevantes, o erro sobre a ilicitude tem um campo de aplicação muito reduzido, uma vez que o artigo 8.º já prevê o “erro sobre a proibição”, como causa de exclusão do dolo do tipo. […]
O erro sobre a ilicitude no direito das contraordenações strictu sensu fica, pois, restringido às seguintes situações típicas: (1) o erro sobre a existência e os limites de uma causa de justificação ou de exclusão da culpa e (2) o erro sobre a validade da norma».
Já estatui o art. 8.º do RGCO:
Dolo e negligência
2 - O erro sobre elementos do tipo, sobre a proibição, ou sobre um estado de coisas que, a existir, afastaria a ilicitude do facto ou a culpa do agente, exclui o dolo.
3 - Fica ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais.”
Escreve Paulo Pinto Albuquerque , a propósito deste normativo, o seguinte: “O erro sobre a proibição é a especialidade do regime do erro no direito das contraordenações, pois supõe o tratamento logo ao nível do dolo do tipo de situações de erro que o direito penal trata, em regra, ao nível do dolo da culpa. Isto deve-se à natureza eticamente neutral do objecto do ilícito contraordenacional, sendo o conhecimento da proibição indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto. Ele inclui as seguintes situações típicas: (1) o erro sobre a ilicitude da ação; (2) o erro sobre a existência de um dever de garante; e (3) o erro sobre o significado dos elementos normativos do tipo.”.
No caso em mãos, mau grado o alegado pela recorrente, parece-nos que o erro invocado parece subsumir-se ao art. 8.º/2 do RGCO, e não ao art. 9.º do RGCO, por incidir sobre circunstâncias tipicamente relevantes – o reconhecimento da qualidade de cliente ou utente à pessoa solicitante – havendo aqui, na tese da recorrente, falta de conhecimento de elementos de direito indispensáveis para que norteasse a sua conduta licitamente.
Trata-se de um erro relevante, em termos de excluir o dolo, ficando ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais, o que é expressamente admitido quanto à infração contraordenacional ora em causa – veja-se o art. 9.º acima citado e igualmente o art. 8.º do RGCE.
Porém, a existência de qualquer erro sobre a ilicitude ou sobre elementos do tipo, para poder ser considerada, teria de resultar dos factos provados, o que não se verifica.
Assim, mostram-se demonstrados os elementos subjetivos de um ilícito, em particular, o dolo da sociedade arguida.
Pelo que improcede a defesa nesta parte, concluindo-se pela demonstração da prática das duas contraordenações imputadas.
A admitir-se a existência da contraordenação continuada, por via da aplicação subsidiária do Código Penal ao direito contraordenação, então a aplicação desta figura jurídica implicaria a demonstração de que a recorrente cometeu plúrimas violações da mesma norma ou de normas com estreita afinidade, arrastada por um circunstancialismo externo que tivesse diminuído fortemente a sua culpa e se verificasse uma certa proximidade temporal entre essas violações – art. 30.º/2 do Código Penal, ex ui do art. 32º do RGCO.
Ora, para além de, no caso em concreto, não se vislumbrar da factualidade provada uma motivação única subjacente às condutas repetidas, pressuposto fundamental da contraordenação continuada será a existência de uma relação exterior que objetivamente facilite a repetição das condutas, diminuindo de forma sensível a culpa do agente, tornando menos exigível ao agente que se comporte de outra maneira.
No caso, as contraordenações foram praticadas por legais representantes distintos, a primeira em novembro de 2019, a segunda em janeiro de 2020, as pessoas que solicitaram o livro de reclamações não foram as mesmas, os fundamentos para essa solicitação também foram distintos e os factos demonstrados não revelam qualquer circunstância exterior facilitadora da repetição das condutas, nem, tão-pouco, uma diminuição da culpa, muito pelo contrário.
Inexistem, pois, fatores exteriores que motivassem a atuação da recorrente por forma a facilitar a prática dos ilícitos com considerável relevância atenuativa da culpa.
Pelo que se mostra improcedente o recurso nesta parte.
Tem-se entendido ser de aplicar o disposto no art. 72.º do Código Penal ao direito contraordenacional, por força do estatuído no art. 32.º do RGCO.
Nesses termos, há lugar à atenuação especial da coima quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores à contraordenação, ou contemporâneas dela, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto ou a culpa do agente, estando a moldura especialmente atenuada da coima fixada no art. 18.º/3 do RGCO.
As molduras atinentes aos ilícitos penais ou contraordenacionais estão previstas legislativamente, sendo ao legislador que cabe defini-las, valorando para o efeito a gravidade máxima e mínima que o ilícito de cada um daqueles tipos pode assumir. A atenuação especial de tais molduras é concebida como válvula de escape do sistema para situações excecionais, em que existem circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo padrão de casos que o legislador teve em mente à partida.
Assim, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/10/02, relatado pelo sr. Conselheiro Pereira Madeira escreveu-se: «como instituto, a atenuação especial da pena surgiu em nome dos valores irrenunciáveis de justiça, adequação e proporcionalidade. Surgiu da necessidade de dotar o sistema de uma verdadeira válvula de segurança que permita, em hipóteses especiais - quando existam circunstâncias que diminuam de forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer uma imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respetiva - a possibilidade, se não mesmo a necessidade, de especial determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto, por outra menos severa» - em idêntico sentido o Acórdão da Relação do Porto, de 17 de Setembro de 2014, relatado pela sra. Desembargadora Elsa Paixão, disponível em https://jurisprudencia.pt/acordao/9967/, onde se cita este mesmo Acórdão.
No caso, se bem interpretamos o recurso, invoca a recorrente as seguintes circunstâncias:
- a ausência de benefício retirado dos factos;
- o facto de na situação ocorrida em janeiro de 2020 a pessoa ter tido acesso ao livro e ter exposto a sua reclamação.
Preliminarmente, diga-se que a única circunstância efetivamente demonstrada é a segunda, não se podendo retirar da materialidade demonstrada a ausência de benefício retirado dos factos. Pelo contrário, na primeira situação, a arguida impediu o acesso ao livro de reclamações e, na segunda, o acesso apenas foi garantido após a efetiva intervenção da GNR e não de forma voluntária pela arguida. Todo esse circunstancialismo, de resto, é uma forte condicionante ao exercício do direito dos consumidores, que tiveram de chamar a GNR e, inclusivamente, aguardar pela sua chegada, o que acarreta dispêndio de tempo e os inerentes incómodos e constrangimentos, pelo que a apontada conduta cerceadora era adequada a fazer os interessados desistir do exercício de tal direito para evitar tais prejuízos.
O facto de, numa das situações, a pessoa ter conseguido exercer o seu direito, como dissemos, não diminui por forma acentuada a ilicitude do facto ou a culpa do agente.
De resto, tal conduta, como dissemos, nem sequer surgiu de forma espontânea, nem no seguimento imediato do contacto telefónico para a autoridade policial, mas apenas após a sua chegada e intervenção ao local.
Esta conduta é ainda mais censurável e reveladora de particular ilicitude se atentarmos que era a segunda vez, num espaço temporal inferior a dois meses, que a arguida recusou a apresentação do livro de reclamações e obrigou a chamada das autoridades ao local com esse fundamento.
Não vislumbramos quaisquer fatores idóneos a reduzir a culpa e a ilicitude dos factos que, em nosso entendimento, se mostram elevadas no caso em concreto.
Por conseguinte, improcede o recurso nesta parte.
Já no que concerne à medida concreta da coima aplicada pelos factos de janeiro de 2020, não foi questionada a sua medida concreta, sendo certo que entendemos que a decisão administrativa se mostra devidamente fundamentada e, a mostrar-se desajustada, seria por defeito, dado que a coima se mostra fixada em medida próxima do limite mínimo da moldura contraordenação, mau grado se tratar da segunda recusa em facultar o livro de reclamações, adotada pelo próprio legal representante da arguida, e de ter persistido depois da chamada das autoridades ao local, tendo apenas cessado depois da chegada destas e com a sua intervenção.
Após, pronunciar-nos-emos sobre a medida da coima única, porquanto relacionada com as questões a decidir.
Corolário da neutralidade ética da conduta que integra o ilícito de mera ordenação social, em si mesma, isto é, divorciada da proibição legal, acrescenta Figueiredo Dias , que “a coima representa um mal que de modo algum se liga à personalidade ética do agente e à sua atitude interna, antes servindo como mera “admonição”, como mandato ou especial advertência conducente à observância de certas proibições ou imposições legislativas, assim se compreendendo que não seja conatural a uma tal sanção uma dimensão de retribuição ou expiação de uma culpa ética, como o não será também a da ressocialização do agente.
Desligada, é certo, da personalidade do agente, a coima só cobra, porém, sentido e justificação se entendida como reação, a um facto censurável, imputado à responsabilidade social do seu autor por desrespeito dos deveres impostos pela ordem jurídica. Daí a necessidade de tutela das expectativas comunitárias na manutenção (ou mesmo reforço) da vigência da norma jurídica violada”.
Dispõe o n.º 1 do art. 18.º do RGCO que a determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contraordenação, da culpa do agente, da sua situação económica e dos benefícios económicos com a prática do facto.
A gravidade da contraordenação revela o grau de ilicitude, podendo delinear-se uma proporção entre a quantificação da gravidade da contraordenação e a anti-socialidade da conduta.
E assim, essa gravidade afere-se pelo bem ou interesse jurídico que a contraordenação visa tutelar, pelo modo de execução da infração, pela gravidade das suas consequências, pela natureza dos deveres violados, pelas circunstâncias que antecederam, envolveram e se seguiram ao cometimento da infração.
Ou então resulta essa gravidade diretamente da lei, que classifica as contraordenações.
No que concerne à culpa, como adverte Figueiredo Dias “[...] não se trata de uma culpa, como a jurídico-penal, baseada numa censura ética, dirigida à pessoa do agente e à sua atitude interna, mas apenas de uma imputação do facto à responsabilidade social do seu autor; dito de outra forma, da adscrição social de uma responsabilidade que se reconhece exercer ainda uma função positiva e adjuvante das finalidades admonitórias da coima”.
Assim, no que concerne à gravidade da contraordenação, atentou-se na finalidade da norma e nos efeitos da sua violação, tendo-se concluído que a conduta ajuizada criou um efetivo obstáculo ao exercício do direito de queixa do consumidor, que poderia levar o reclamante a desistir de o exercer, acrescido do facto de que a recusa se manteve mesmo com a intervenção policial e que acabou por ser bem sucedida, posto que o livro de reclamações não foi facultado a BB e a CC.
Agrava a ilicitude e a culpa do arguido o facto de esta postura partir da própria legal representante da sociedade arguida, a quem era exigível particular cuidado e ponderação na avaliação das circunstâncias do caso e das consequências sancionatórias associadas à recusa da apresentação do livro de reclamações.
Acresce que a arguida atuou com dolo, tendo mantido a sua postura mesmo diante da autoridade policial, revelando forte contrariedade à norma jurídica violada, sendo, consequentemente, intensa a sua culpa.
Não se demonstraram elementos relativos à situação económica da arguida e ao benefício económico emergente da prática da contraordenação.
Também não se demonstrou que a arguida, à data destes factos, tivesse antecedentes contraordenacionais por práticas idênticas.
Finalmente, os factos não patenteiam arrependimento, ou maior consciência da arguida em relação aos factos, conforme flui do texto do recurso, ancorada em factos que foram contrariados ou não demonstrados, e da própria posição manifestada pela legal representante da arguida em audiência, a que fizemos alusão na motivação da matéria de facto.
Situando-se a moldura abstrata da coime entre os 3 000,00 a (euro) 11 500,00, entendemos, ante os factos demonstrados, ser de aplicar uma moldura concreta de €5.000,00.
Assim, a este propósito, importa atentar no seguinte normativo legal do RGCO:
Concurso de contraordenações
2 - A coima aplicável não pode exceder o dobro do limite máximo mais elevado das contraordenações em concurso.
3 - A coima a aplicar não pode ser inferior à mais elevada das coimas concretamente aplicadas às várias contraordenações.
Assim sendo, atentando no n.º 3 do art. 19.º citado, o limite mínimo da moldura corresponde a €8.000,00 e o máximo a €13.000,00.
Na medida concreta da coima única, importa atentar, entre o mais, à circunstância de a intervenção da GNR em novembro de 2019 e da confrontação com a prática de uma contraordenação grave não ter servido para demover a arguida de repetir idêntica contraordenação, não obstante o curto espaço temporal em causa; esse contacto prévio com a autoridade e a violação da norma legal, em situações de normalidade, deveria servir como inibidor da repetição do ilícito no curto e médio prazo, o que aqui não sucedeu.
Ademais, está em causa recusa de apresentação de livro de reclamações na sequência de duas reclamações com fundamentos distintos, praticadas sempre pelos legais representantes da sociedade arguida.
A arguida manteve a efetiva recusa de facultar o livro de reclamações em novembro de 2019 e, em janeiro de 2020 acabou por facultar o livro após a chegada e intervenção da GNR.
Em ambas as situações, os factos patenteiam forte renitência da arguida em cumprir com a norma jurídica violada e em permitir o exercício do direito de reclamação por parte de quem se mostrava legitimado para o efeito, procurando condicionar esse direito, conforme efetivamente sucedeu com sucesso em novembro de 2019.
Perante o exposto, entendemos ser de aplicar uma coima única de €9.500,00.
Sem prejuízo, tendo a defesa invocado, no final das suas alegações orais, a questão da inconstitucionalidade do regime sancionatório aplicável, apontando para a violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, previstos nos artigos 13.º e 18.º/2 da Constituição da República Portuguesa, fazemos consignar que não vislumbramos qualquer inconstitucionalidade nas normas convocadas e aplicadas, em linha de posição idêntica à que tem vindo a ser considerada pelo Tribunal Constitucional e a jurisprudência sobre a matéria, por exemplo, nos acórdãos n.ºs 62/2011, 67/2011, 132/2011 e 97/2014 (este último em Plenário), todos disponíveis em www.dgsi.pt e em https://www.tribunalconstitucional.pt/.
No Acórdão 62/2011, o Tribunal Constitucional expressou-se no sentido de não julgar inconstitucional a norma constante do n.º 3 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro, que sanciona com coima entre € 15000 e € 30000 o fornecedor de bens ou prestador de serviços que não faculta imediatamente o livro de reclamações, sendo requerida pelo utente a presença da autoridade policial a fim de remover essa recusa, à luz dos princípios da igualdade e da proporcionalidade (artigos 13.º e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa);
No Acórdão n.º 67/2011, decidiu o Tribunal Constitucional não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação entre os artigos 3º, n.º 1, alínea b), 9º, n.º 1, alínea a), e nº 3, todos do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro, no sentido de considerar ser aplicável a coima aí prevista, – cujo limite mínimo para as pessoas colectivas é de 15.000 euros – nos casos em que, requerida a presença da autoridade para remover a recusa referida no número anterior, essa recusa é removida sendo o livro de reclamações facultado ao utente;
No Acórdão n.º 132/2011, o Tribunal Constitucional decidiu não julgar inconstitucional, por violação do princípio constitucional da proporcionalidade, a norma extraída da conjugação dos artigos 2.º, n.° 1, 3.°, n.° 1, alínea b), n.° 4 e 9.°, n.º 1, alínea a) e n.° 3, todos do Decreto-Lei n.° 156/05, de 15 de Setembro, no sentido de sancionar, com a coima mínima de € 15.000,00, as pessoas colectivas fornecedoras de bens e prestações de serviços, que recusam facultar, imediata e gratuitamente, o livro de reclamações aos utentes, sempre que por estes tal lhe seja solicitado, quando tal recusa se mantém mesmo após intervenção da autoridade policial.
Escreveu-se, neste douto Acórdão, o seguinte, com plena pertinência para a situação em mãos:
“Como se refere no acórdão n.º 67/2011“(…) o legislador ordinário goza de ampla liberdade de fixação dos montantes das coimas aplicáveis, desde que respeitados os limites fixados pelo regime geral do ilícito contra-ordenacional e que as sanções aplicadas sejam “efectivas”, “proporcionadas” e “dissuasoras”, de modo a garantir o efeito preventivo daquelas, sob pena de os destinatários das normas não se sentirem compelidos a cumpri-las (com efeito, a fixação de coimas com montantes irrisórios face ao benefício colhido da prática do ilícito contra-ordenacional tende a enfraquecer o próprio cumprimento da lei; assim, ver Paulo Otero / Fernanda Palma, Revisão do Regime Legal do Ilícito de Mera Ordenação Social, in «RFDUL» (Separata), 1996, n.º 2, pp. 562 e 563).
Neste sentido, o Tribunal Constitucional tem reconhecido ao legislador ordinário uma livre margem de decisão quanto à fixação legal dos montantes das coimas a aplicar (ver Acórdãos n.º 304/94, n.º 574/95 e n.º 547/00, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), ainda que ressalvando que tal liberdade de definição de limites cessa em casos de manifesta e flagrante desproporcionalidade ou de excessiva amplitude entre os limites mínimo e máximo.
(…)
Na linha da jurisprudência consolidada neste Tribunal, a propósito da fixação dos montantes das coimas a aplicar (a título de exemplo, ver Acórdãos n.º 304/94, n.º 574/95 e n.º 547/2000, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), o Tribunal Constitucional deve coibir-se de interferir directamente nesse espaço de livre conformação legislativa, apenas lhe cabendo – sempre que necessário – acautelar que tais opções legislativas não ferem, de modo flagrante e manifesto, o princípio da proporcionalidade. A este propósito, deve sempre ter-se presente que “Só um método interpretativo rigoroso e controlado limita a invasão pelos tribunais constitucionais da esfera legislativa e impede a actividade judicativa de se tornar um «contra-poder legislativo»” (Fernanda Palma, O legislador negativo e o intérprete da Constituição, in «O Direito», 140º (2008), III, 523)”.
O mesmo Acórdão conclui:
“Ora, a agravação do montante mínimo da coima a suportar pelas pessoas colectivas, em 11.500 €, não pode considerar-se manifestamente desproporcionada, visto que tem por finalidade promover o cumprimento voluntário de um dever legalmente imposto que, por sua vez, visa acautelar os direitos dos consumidores constitucionalmente consagrados (artigo 60º, nº 1, da CRP. Conforme já supra notado, tal cumprimento voluntário apenas é promovido mediante a aplicação de sanções “efectivas” e “dissuasoras”.
No caso sub judice, estando em análise a dimensão normativa extraída da conjugação dos artigos 2.º, n.° 1, 3.°, n.° 1, alínea b), n.° 4 e 9.°, n.º 1, alínea a) e n.° 3, todos do Decreto-Lei n.° 156/05, de 15 de Setembro, que respeita ao sancionamento, com a coima mínima de € 15.000,00, das pessoas colectivas fornecedoras de bens e prestações de serviços, que recusem facultar, imediata e gratuitamente, o livro de reclamações aos utentes, sempre que por estes tal lhe seja solicitado, quando tal recusa se mantém, mesmo perante intervenção policial, parece-nos que os argumentos aduzidos no referido acórdão n.º 67/2011 são transponíveis para a presente apreciação, por maioria de razão.
Na verdade, deve ter-se em conta que a persistência da recusa inviabiliza, definitivamente, a possibilidade de o consumidor reclamar, no próprio estabelecimento onde o conflito com o agente económico ocorreu, frustrando o objectivo de tornar mais acessível e expedito o exercício do direito de queixa – que esteve na base da criação do livro de reclamações, de acordo com a exposição de motivos do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de Setembro.
Este objectivo não visa apenas garantir o interesse do consumidor mas também o interesse da regulação económica.
Mais ainda, é de notar que a obrigação que impende sobre o agente económico, e de cujo desrespeito poderá resultar a aplicação de coima definida dentro da moldura contra-ordenacional mencionada, é uma obrigação cujo cumprimento não se reveste de qualquer complexidade ou de especial onerosidade. Pelo que, ao manter, mesmo após intervenção policial, requerida pelo utente, a recusa de facultar o livro de reclamações, o fornecedor ou prestador de serviços desrespeita uma obrigação cujo cumprimento não era complicado, nem particularmente oneroso, assim frustrando a intenção do legislador ao conceber um sistema de queixa baseado na utilização do livro de reclamações enquanto instrumento facilitador do seu exercício, pelo consumidor,
Por estas razões, não se vislumbra que a fixação do montante mínimo da coima em € 15.000,00, relativamente às pessoas colectivas, viole o princípio da proporcionalidade. […]”
E, no Acórdão proferido em Plenário com o n.º 97/2014, o mesmo Tribunal decidiu “não julgar inconstitucional a norma extraída do n.º 3 do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 156/2005, quando interpretada no sentido de que, requerida a presença da autoridade para remover a recusa referida no número anterior, essa recusa é removida sendo o livro de reclamações facultado ao utente.”
O Tribunal Constitucional pronunciou-se, então, no sentido da não inconstitucionalidade de normas que impunham uma coima cuja moldura implicava o valor mínimo de €15.000,00 para as contraordenações em apreço, a qual é substancialmente superior às molduras aqui ajuizadas - Acórdão n.º 132/2011.
Nas suas apreciações, realçou esse Tribunal que se deve coibir de interferir diretamente no espaço de livre conformação legislativa quanto à moldura das coimas, porquanto a fixação da dosimetria sancionatória, designadamente, em sede contraordenacional, encontra-se no âmbito de um amplo espaço de conformação do legislador, só devendo ser censuradas “as soluções legislativas que cominem sanções que sejam desnecessárias, inadequadas ou manifesta e claramente excessivas, pois tal proíbe o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição” - vide Acórdão n.º 574/95. Tal asserção é sobretudo significativa no domínio do ilícito de mera ordenação social, porquanto – pode ler-se no mesmo aresto – “as sanções não têm a mesma carga de desvalor ético que as penas criminais – para além de que, para a punição, assumem particular relevo razões de pura utilidade e estratégia social”.
Ora, no caso em concreto, no que tange à proporcionalidade e garantia do princípio da igualdade, importa relevar que, das normas legais por nós citadas e aplicadas resulta que o legislador estabeleceu molduras que permitem liberdade de apreciação e conformação por parte do julgador e adequação ao caso em concreto; classificou as contraordenações em função da sua gravidade e diferenciou a moldura das coimas em função dessa mesma gravidade; mais diferenciou a moldura aplicável em caso de negligência ou dolo, impondo molduras reduzidas para metade em caso de negligência; em acréscimo, no RJCE ainda diferencia as molduras abstratas das coimas em função da dimensão da infratora, o que, no caso em concreto, até redundou na aplicação de um regime sancionatório mais favorável à recorrente. Ainda em acréscimo, veja-se que é possível convocar subsidiariamente a aplicação de outros institutos jurídicos como a atenuação especial da coima, que servem igualmente para alcançar maior justiça para o caso em concreto.
Assim, para além de não se vislumbrar qualquer ostensivo exagero na fixação das molduras abstratas das coimas legalmente prescritas, o regime legal permite dosear a medida abstrata e concreta da coima em função, entre outros elementos relevantes do caso em concreto, do dolo ou negligência, da culpa, da gravidade da contraordenação e da própria situação económica do infrator, o que serve para alcançar com sucesso o princípio da igualdade, assim se tratando de forma igual o que é igual e desigualmente o que é desigual.
De resto, como tem sido anotado, o regime legal tem por finalidade promover o cumprimento voluntário de um dever legalmente imposto, que, de resto, se mostra de fácil cumprimento, e tal dever, por sua vez, visa acautelar os direitos dos consumidores constitucionalmente consagrados - artigo 60º, nº 1, da Código de Registo Predial -, cumprindo, pois, as molduras ajuizadas a necessidade de salvaguardar o cumprimento voluntário do dever, mediante a aplicação de sanções “efetivas” e “dissuasoras”.
Pelo que não vislumbramos qualquer inconstitucionalidade no regime legal convocado e aplicado.”
Apreciação
É entendimento uniforme da jurisprudência que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo da apreciação das matérias de conhecimento oficioso.
Atento o disposto no nº 1 do art.75.º do DL n.º 433/82, de 27/10, que aprovou o Regime Geral das Contraordenações e Coimas (de ora em diante designado RGCOC), o Tribunal da Relação apenas conhece da matéria de direito, sem prejuízo de alteração da decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido da decisão recorrida ou de anulação e devolução do processo ao mesmo tribunal, conforme dispõe o art.75.º n.º2 do aludido diploma, seguindo os recursos a tramitação do processo penal – art.74.º n.º4 do citado DL –, decorrente do princípio da subsidiariedade a que se refere o art.41.º.
O Tribunal da Relação pode conhecer ainda de facto, mas apenas nas hipóteses que constam do art. 410.º nº 2 do C.P.Penal , aplicável ex vi dos arts. 41.º n.º 1 e 74.º nº 4 do citado DL n.º 433/82, ou seja, desde que, do texto da decisão recorrida resulte insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou erro notório na apreciação da prova.
Assim, por aplicação dos preceitos reguladores do processo penal, que é o direito subsidiário do processo contraordenacional, nada obsta a que o tribunal conheça dos vícios referidos, caso se verifiquem e resultem do texto da decisão recorrida.
Atentas as conclusões apresentadas, as questões trazidas à apreciação deste tribunal são as seguintes:
- não preenchimento da contraordenação prevista no art. 2.º, n.ºs 1 e 5 e art. 3.º, n.º 1, al. b) r n.º4 do DL n.º156/2005 de 15/9, no que se refere aos factos corridos em 3/1/2020, por falta de legitimidade do queixoso para exigir o livro de reclamações.
Sem prescindir
- erro notório na apreciação da prova – art.410.º, n.º2 , alínea c), do C.P.Penal,
- o representante legal da arguida atuou em erro quanto aos factos ocorridos em 3/1/2020, suscetível de excluir, no caso concreto, o dolo ou a culpa da arguida sociedade;
- os factos ocorridos em 3/1/2020, reconduzem-se a um comportamento negligente,
- as contraordenações imputadas à arguida integram uma contraordenação na forma continuada,
- não apuramento da situação económica da arguida,
- atenuação especial da sanção
- violação do princípio da proibição da dupla valoração
- inconstitucionalidade material da norma do art.9.º, n.º3 do DL n.º 156/2005, de 15/9 por violação do princípio da proporcionalidade,
- inconstitucionalidade da norma do art.19.º, n.º1, alínea b) do DL n.º 9/2021, de 29/1, por violação do principio da igualdade proporcional.
1ªquestão: na tese recursiva os factos ocorridos no dia 3/1/2020 não integram a contraordenação prevista no art. 2.º, n.ºs 1 e 5 e art. 3.º, n.ºs 1, al. b) e 4 do DL n.º 156/2005 de 15/9, uma vez que a pessoa que solicitou o livro de reclamações não era cliente nem utente do estabelecimento da recorrente, pelo que não tinha legitimidade para exigir a apresentação do referido livro. Sustenta que a reparação foi solicitada pelo revendedor diretamente à arguida, pelo que o serviço de reparação, ao contrário do que consta da sentença sob censura, foi prestado diretamente ao revendedor, e não à pessoa em causa, não sendo ela o beneficiário direto desse serviço. Daí a sua falta de legitimidade para que lhe fosse prestado um serviço ou fornecido um determinado bem pela arguida, que nenhuma relação de clientela havia estalecido com a referida pessoa.
Dispõe o art. 3.º do DL n.º 156/2005, sob a epígrafe Obrigações do fornecedor de bens ou prestador de serviços:
“1 - O fornecedor de bens ou prestador de serviços é obrigado a:
a) Possuir o livro de reclamações nos estabelecimentos a que respeita a atividade;
b) Facultar imediata e gratuitamente ao consumidor ou utente o livro de reclamações sempre que por este tal lhe seja solicitado, sem prejuízo de serem observadas as regras da ordem de atendimento previstas no estabelecimento comercial, com respeito pelo regime de atendimento prioritário;
(…)
3 - O fornecedor de bens ou o prestador de serviços não pode impor qualquer meio alternativo de formalização da reclamação antes de ter disponibilizado o livro de reclamações, nem condicionar a apresentação da reclamação, designadamente, à necessidade de identificação do consumidor ou utente.
4 - Quando o livro de reclamações não for imediatamente facultado ao consumidor ou utente, este pode requerer a presença da autoridade policial a fim de remover essa recusa ou de que essa autoridade tome nota da ocorrência e a faça chegar à entidade competente para fiscalizar o setor em causa.
(…)”
Nos termos deste normativo, solicitado o livro de reclamações, deve ser de imediato apresentado, não podendo o fornecedor de bens ou prestador de serviços condicionar a sua apresentação aos motivos da reclamação ou à legitimidade de quem solicita a apresentação do dito livro. A obrigação de apresentação é obrigatória e deve ser imediata, sendo que a sua recusa confere ao utente do estabelecimento a faculdade de requerer a presença da autoridade policial para a remover.[1]
Aliás, não se pode deixar de atentar na razão de ser da obrigatoriedade do livro de reclamações.
O DL n.º 156/2005, de 15/9, veio estabelecer a obrigatoriedade de disponibilização do livro de reclamações a todos os fornecedores de bens ou prestadores de serviços que tenham contacto com o público em geral.
E como consta do preâmbulo deste diploma, “o livro de reclamações constitui um dos instrumentos que tornam mais acessível o exercício do direito de queixa, ao proporcionar ao consumidor a possibilidade de reclamar no local onde o conflito ocorreu. A criação deste livro teve por base a preocupação com um melhor exercício da cidadania através da exigência do respeito dos direitos dos consumidores.”
No caso vertente, se é certo que a pessoa que solicitou o livro de reclamações em 3/1/2020 não adquiriu diretamente o bem à ora recorrente mas a outra empresa, também não se pode esquecer que a ora recorrente fabricou o referido bem e procedeu à reparação do mesmo, pelo que prestou um serviço de reparação num bem por si fabricado. Como bem salienta a decisão recorrida, independentemente de o vendedor do bem fabricado pela recorrente ter intermediado no procedimento de reparação, o beneficiário da reparação é o dono do produto reparado e como prestador da reparação, a ora recorrente, pelo que aquele podia exigir o livro de reclamações a quem procedeu à reparação do bem, ou seja, à recorrente.
Improcede, assim, este fundamento do recurso.
2ªquestão: sustenta a recorrente que a factualidade dada como provada nos pontos 8) 16) e 17) impunha que o Tribunal da 1ª instância tivesse retirado o devido silogismo e dar como provado aquilo que deu como não provado no ponto g), pelo que existe erro notório na apreciação da prova, vício previsto no art.410.º, n.º2, alínea c), do C.P.Penal
Os vícios previstos no art.410.º, n.º2, do C.P.Penal têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos àquela, para a fundamentar.
Existe erro notório na apreciação da prova quando, analisada a decisão recorrida na sua globalidade e sem recurso a elementos extrínsecos, resulta de forma inequívoca que o tribunal fez uma apreciação ilógica da prova, em patente oposição às regras básicas da experiência comum, ou seja, sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal.
“Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o Tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis”
Atentando nos pontos 8, 16 e 17 dos factos provados e o facto dado como não provado sob a alínea g), não resulta o invocado erro notório na apreciação da prova, uma vez que entre a factualidade dada como provada e o aludido ponto da factualidade não provada não há qualquer raciocínio ilógico ou contraditório.
Com efeito, da circunstância de o representante legal da arguida ter invocado como fundamento para não apresentar o livro de reclamações que AA não era cliente da arguida, do facto da reparação do aparelho ter sido solicitada pela empresa vendedora e do adquirente do aparelho ter comunicado a esta os defeitos que apresentava o aparelho, não resulta necessariamente que o representante legal da arguida estivesse convicto que a reclamação tivesse de ser apresentada na empresa vendedora. Com efeito, quem era diretamente afetado pela reparação ser, ou não, bem efetuada, era o adquirente do aparelho, ou seja, a pessoa que junto da arguida, empresa fabricante do aparelho e que procedeu à sua reparação, exigiu a apresentação do livro de reclamações. Ademais, embora o objeto social da arguida constante da respetiva certidão permanente fosse a fabricação de equipamentos para energias alternativas, objeto social que veio a ser alterado em maio de 2020, como se refere na fundamentação da matéria de facto, a arguida em 2019 já vendia diretamente ao público, como resulta da fatura de fls.48, a que se faz referência no texto da decisão recorrida
3ªquestão: sustenta a recorrente que o seu representante legal, atenta a factualidade dada como provada sob os pontos 8, 16 e 17, atuou em erro, o que exclui, no caso concreto, o dolo ou a culpa da arguida sociedade.
Estabelece o art.8.º do RGCOC:
“1. Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos n lei, com negligência.
2.O erro sobre elementos do tipo, sobre a proibição, ou sobre um estado de coisas que, a existir, afastaria a ilicitude do facto ou a culpa do agente, exclui o dolo.
3. Fica ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais.”
Na primeira parte do n.º2 prevê-se o erro sobre elementos do tipo e este ocorre “quando o agente desconhece ou tem um falso conhecimento sobre os elementos objetivos do tipo, quer se trate de um elemento descritivo, quer se trate de um elemento normativo (de facto ou de direito, como expressamente consta do texto do número do artigo 16.º do Código Penal), isto é, quando o agente erra por não conhecer todos os elementos do tipo legal de crime.
Estamos aqui perante um erro que incide sobre os elementos objectivos do tipo, sem mais, isto é, de um erro que recai sobre os elementos objecto do dolo, tal qual ele é definido no artigo 14.º do Código Penal.”[2]
No caso em apreço, não resulta em face da factualidade dada como provada nos pontos 8, 16 e 17 que o representante legal da arguida tenha incorrido em erro, face á circunstância da factualidade constante da alínea g) integrar o acervo dos factos não provados.
O facto de o representante legal da arguida ter invocado que AA não era cliente para recusar a apresentação do livro de reclamações, não significa que estivesse convicto da afirmação que fazia e, em consonância com este raciocínio, foi dada como não provada a factualidade da alínea g).
Improcede, assim, este fundamento do recurso.
4ªquestão: invoca ainda a recorrente que a atuação do seu representante legal no dia 3/1/2020 reconduz-se a uma atuação negligente.
A negligência traduz-se num atuar do agente sem que proceda com o cuidado a que, segundo as circunstâncias concretas, está obrigado e de que é capaz. A negligência consiste portanto, na omissão pelo agente, de um dever de cuidado.
Em face da factualidade dada como provada, a arguida, através do seu representante legal, atuou com o conhecimento e vontade de praticar o facto, bem sabendo ser a sua conduta proibida por lei, pelo que estamos perante uma atuação dolosa.
Soçobra, pois, este fundamento do recurso.
5ªquestão: na tese recursiva as duas contraordenações imputadas à arguida integram uma contraordenação na forma continuada.
Dispõe o art. 30.º do C.Penal, aplicável por força do disposto no art.32.º, do DL n.º 433/82, de 27/10:
1 - O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2 - Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
3 - O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.”
Nos casos de contraordenação continuada existe uma só contraordenação porque, verificando-se embora a violação repetida do mesmo tipo contraordenacional, a culpa está tão acentuadamente diminuída, que só é possível formular um único juízo de censura e não vários.
A diminuição considerável da culpa do agente deve radicar numa situação exterior que facilite ao agente a prática dos atos delituosos e o impele à sua reiteração.
São, assim, requisitos do contraordenação continuada:
-todos os atos constitutivos do comportamento violem o mesmo tipo contraordenação ou pelo menos de vários tipos de contraordenação que protejam o mesmo bem jurídico;
-homogeneidade do comportamento;
-conexão espacial e temporal entre as várias condutas;
-persistência de uma situação exterior que facilita a execução e que diminua consideravelmente a culpa do agente;
-cada uma das ações seja executada através de uma resolução e não com referência a um desígnio inicialmente formado (resolução que se renova).
Como refere o Professor Eduardo Correia[3], “(…) pressuposto da continuação criminosa será verdadeiramente a existência de uma relação que de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é de acordo com o direito.”
No caso vertente, em factualidade dada como provada, pese embora a proximidade temporal da prática dos factos, não se vislumbra qual o contexto exterior que propiciou a repetição, sendo que a repetição do segundo ato contraordenacional ocorre após ter sido levantado auto do primeiro ato contraordenacional, pelo que não é sequer defensável por parte da arguida uma menor reflexão sobre a ilegalidade do ato praticado.
Soçobra, pois, este fundamento do recurso.
6ªquestão: sustenta a recorrente que na determinação da medida da coima não foi apurada a sua situação económica, sendo a sentença omissa a esse respeito. Tal circunstância é determinante para a fixação concreta e justa da coima, ao abrigo do disposto nos arts. 18.º do RGCOC e do art. 20.º do RJCE, nomeadamente e, quando no caso concreto, estamos perante uma sociedade que, em 2018, empregava 8 trabalhadores e em 2019 empregava 10, sendo que cerca de 80% do nosso tecido empresarial é constituído por sociedades desta dimensão a maior parte das quais não apresenta lucros de exercício acima do valor da coima aplicada – 9.500 Euros;
Por isso, defende a recorrente a baixa do processo à 1ª instância para apuramento dessa factualidade – art. 75º, nº 2, al. b) do RGCO.
Atentando na decisão recorrida, é verdade que não se apuraram factos referentes à situação económica da arguida, sabendo-se apenas, de acordo com os factos provados, que fabrica equipamentos para energias alternativas, em 31/12/2018 tinha 8 trabalhadores ao seu serviço e em 31/12/2019, tinha ao seu serviço 10 trabalhadores.
Embora o número de trabalhadores dê uma noção aproximada da dimensão da atividade desenvolvida pela arguida, nada mais se sabe quanto à sua situação económica. Porém, a arguida contribuiu para essa omissão, sendo que notificada pela autoridade administrativa para se pronunciar sobre as infrações e enviar elementos sobre a sua situação económica, nomeadamente cópia da última declaração de IRC , referência ao volume de vendas, nada juntou quanto à sua situação económica, tendo exercido o seu direito de defesa e logo aí, peticionando pela punição por uma contraordenação continuada, pela aplicação da admoestação ou, caso assim não se entendesse, pela atenuação especial da coima.
Como salienta o Ac. R.Évora de 11/9/2012[4], em situação com algum paralelismo à dos presentes autos quanto à questão do não apuramento da situação económica, “a arguida insurge-se contra o desconhecimento de factos (da sua situação económica) para o qual contribuiu. Mas limita-se a afirmá-lo, sem concretizar em que medida essa omissão a prejudicou.”
In casu, a omissão só a pode ter beneficiado na medida em que a situação económica não foi atendida contra a arguida, como se explicita na decisão.
Ademais, na impugnação judicial a arguida apenas questionou a medida concreta da coima pela infração ocorrida em novembro de 2019 e por força da aplicação da lei mais favorável, a qual veio a ser fixada em valor situado abaixo do meio da moldura abstrata. Quanto à infração cometida em janeiro de 2020, a arguida não se insurgiu quanto à sua medida concreta, sendo de realçar ainda que se situa muito próxima desse mínimo legal.
Assim, a circunstância de a arguida não indicar razões que apontem que o não apuramento de outros factos quanto à sua situação económica a ter prejudicado e, por outro lado, a apurada dimensão da empresa apontando para um pequeno volume de negócios, mostra-se suficiente para a determinação da coima nos termos efetuados.
Posto isto, resulta que, no caso, a invocada omissão de factos não configura insuficiência da matéria de facto provada, a qual pressuporia que a matéria de facto apurada inviabilizasse a adequada subsunção jurídica, o que não se afigura.
Soçobra, pois, este fundamento do recurso.
7ªquestão: sustenta a recorrente que a coima devia ser atenuada especialmente face ao lapso temporal em que os factos ocorreram, à situação de dúvida ou erro em que o seu representante legal incorreu quanto aos factos ocorridos em 3/1/2020, à circunstância de não ter sido obtido qualquer benefício económico, o facto da arguida ser primária, conforme fls. 91 do processo administrativo, não obstante a arguida laborar desde 1996, ou seja, há 27 anos Ademais, atualmente e à data dos factos os potenciais clientes que vejam ser-lhes negado o livro de reclamações não ficam privados do direito de reclamar em qualquer circunstância tendo ao seu dispor o mecanismo do livro de reclamações eletrónico – art. 5º-B e ss. do D.L. 156/2005 de 15.09, na redação dada pelo D.L. 74/2017 de 21/7.
É entendimento da doutrina e da jurisprudência que é aplicável o disposto no art.72.º do C.Penal ao direito contraordenacional, por força do preceituado no art.18.º, n.º3, do RGCOC.
Estabelece o art.72.º n.º1 do C.Penal, “O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena”.
Por sua vez, o n.º 2 indica várias circunstâncias em diversas alíneas, que podem fundamentar a atenuação especial da pena subordinadamente aos pressupostos referidos no n.º 1, sendo essa indicação meramente exemplificativa.
Como vem sustentando a doutrina e jurisprudência, a atenuação especial da pena tem subjacente uma ideia de excepcionalidade, constituindo como que uma válvula de segurança do sistema punitivo, de modo que “a atenuação especial da pena deve abranger apenas aqueles casos em que se verifique a ocorrência de circunstâncias que se traduzam numa diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena – casos verdadeiramente excepcionais em relação ao comum da situações previstas pelo legislador ao estabelecer a moldura penal correspondente ao respectivo tipo legal de crime.”- Ac. R.Guimarães de 21/10/2013, proc. n.º162/02.2GBVLN.G1, relatado pelo Desembargador Paulo Fernandes da Silva e em que foi adjunta a ora relatora, disponível in www.dgsi.pt.
O legislador, ao estabelecer as molduras penais para os tipos legais, fixando com uma certa amplitude um mínimo e um máximo, já tem presente a multiplicidade de situações concretas, desde as de menor às de maior gravidade que se podem subsumir a esses tipos legais. Daí que só mesmo situações residuais devem ser objeto de uma atenuação especial da moldura penal fixada no respetivo tipo.
Conclui-se desta forma que a atenuação especial da pena só em casos extraordinários ou excecionais pode ter lugar, uma vez que, para a generalidade dos casos existem as molduras penais normais, com os seus limites máximos e mínimos próprios.
Aplicando este raciocínio ao caso presente, não tem fundamento a atenuação especial da coima.
Na verdade, os factos ocorreram há pouco mais de três anos, a circunstância da arguida não ter antecedentes contraordenacionais é tida em conta dentro dos limites mínimo e máximo da coima aplicável, o mesmo sucedendo quanto a não ter tido um benefício económico com a prática das infrações.
Não se verificam circunstâncias que acarretem uma acentuada diminuição da ilicitude, da culpa ou da necessidade da coima, não se podendo esquecer que os factos são graves, sendo que os ocorridos em 3/1/2020 tiveram lugar cerca de dois meses depois da arguida ter tido uma atuação idêntica de recusa de apresentação do livro de reclamações.
Não há, assim, fundamento para a atenuação especial da coima.
8ªquestão: na tese recursiva, na fixação da coima única o tribunal deve ter em conta a apreciação conjunta dos factos e não os critérios de determinação da medida da coima, uma vez que tal leva a uma dupla valoração das circunstâncias e, consequentemente, à violação do princípio da proibição da dupla valoração.
Ora, no caso concreto, a sentença recorrida, nessa parte, faz apenas a apreciação concreta da culpa e ilicitude do facto assente nos critérios já tidos em conta aquando da fixação da medida da coima.
Salvo o devido respeito, não assiste razão à recorrente.
Com a fixação da coima única pretende-se sancionar o agente pelo conjunto dos factos, enquanto revelador da gravidade global do comportamento delituoso do agente.
Assim, na determinação concreta da coima única deve-se ponderar se ocorre ou não ligação entre os factos em concurso, tendo em vista obter uma visão unitária do conjunto dos factos.
Como salienta o Ac.STJ de 1/2/2023, proc. n.º224/18.4P8LSB.1.S1, relatado pelo Conselheiro Pedro Branquinho Dias, disponível in www.dgsi.pt, embora referindo-se aos crimes, “De acordo também com a jurisprudência estabilizada deste Supremo Tribunal, a fixação da pena conjunta pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também, e especialmente, pelo seu conjunto, enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento do agente. Há, deste modo, que atender ao conjunto de todos os factos cometidos pelo arguido e ao fio condutor presente na repetição criminosa, procurando estabelecer uma relação desses factos com a personalidade do agente, tendo-se em conta a caracterização desta, com sua projeção nos crimes praticados, levando-se em consideração a natureza destes e a verificação ou não de identidade dos bens jurídicos violados, tudo isto tendo em vista descortinar e aferir se o conjunto de factos praticados é a expressão de uma tendência criminosa, isto é, se significará já a expressão de algum pendor para uma “carreira”, ou se, diversamente, a repetição comportamental dos valores estabelecidos emergirá antes e apenas de fatores meramente ocasionais.”
Tem-se discutido a questão de saber se os fatores de determinação das penas parcelares podem ou não, face ao princípio da proibição da dupla valoração, ser de novo considerados na medida da pena conjunta.
Em princípio, tais fatores não podem voltar a ser considerados na medida da pena conjunta. Porém, como salienta o Professor Figueiredo Dias[5] “ (…) aquilo que à primeira vista possa parecer o mesmo factor concreto, verdadeiramente não o será consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles: nesta medida não haverá razão para invocar a proibição de dupla valoração”.
Por isso, “com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto, (e não unitariamente) os factos e a personalidade do agente. Como doutamente diz Figueiredo Dias, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado.”[6]
Na decisão recorrida, a propósito da determinação da coima única, ponderou-se nos seguintes termos:
“Assim sendo, atentando no n.º 3 do art.19.º citado, o limite mínimo da moldura corresponde a €8.000,00 e o máximo a €13.000,00.
Na medida concreta da coima única, importa atentar, entre o mais, à circunstância de a intervenção da GNR em novembro de 2019 e da confrontação com a prática de uma contraordenação grave não ter servido para demover a arguida de repetir idêntica contraordenação, não obstante o curto espaço temporal em causa; esse contacto prévio com a autoridade e a violação da norma legal, em situações de normalidade, deveria servir como inibidor da repetição do ilícito no curto e médio prazo, o que aqui não sucedeu.
Ademais, está em causa recusa de apresentação de livro de reclamações na sequência de duas reclamações com fundamentos distintos, praticadas sempre pelos legais representantes da sociedade arguida.
A arguida manteve a efetiva recusa de facultar o livro de reclamações em novembro de 2019 e, em janeiro de 2020 acabou por facultar o livro após a chegada e intervenção da GNR.
Em ambas as situações, os factos patenteiam forte renitência da arguida em cumprir com a norma jurídica violada e em permitir o exercício do direito de reclamação por parte de quem se mostrava legitimado para o efeito, procurando condicionar esse direito, conforme efetivamente sucedeu com sucesso em novembro de 2019.
Perante o exposto, entendemos ser de aplicar uma coima única de €9.500,00.”
O tribunal recorrido ponderou os factos de novembro de 2019 e janeiro de 2020 no seu conjunto, não de per si, a ligação entre os mesmos, ou seja, a gravidade global dos factos e a persistência da arguida em atuar contra a lei.
Tendo sido feita essa ponderação global dos factos, a gravidade do conjunto dos factos, pelas razões acima expostas não há violação da proibição da dupla valoração.
9ª questão: a recorrente invoca a inconstitucionalidade, por violação do princípio de proporcionalidade consignado no art. 18.º, n.º 2 da CRP, a norma extraída do art. 9.º, n.º 3 do DL n.º156/2005, na interpretação segundo a qual é aplicável a coima aí prevista, cujo limite mínimo para as pessoas coletivas é de 7.500 euros, nos casos em que, não sendo o livro de reclamações imediatamente facultado ao cliente, este requer a presença da autoridade policial, mas a recusa é ultrapassada por via da satisfação da pretensão do cliente pelo prestador do serviço, facultando o livro de reclamações.
A decisão recorrida pronunciou-se sobre esta questão, tendo julgado a mesma improcedente.
Desde já, adiantamos concordar com a decisão.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou várias vezes sobre esta questão nos acórdãos n.ºs 62/2011, 67/2011 e 97/2014 (este último em Plenário), todos disponíveis em www.dgsi.pt.
No Acórdão do Tribunal Constitucional, nº 67/2011, entendeu-se não julgar inconstitucional a norma extraída da conjugação entre os artigos 3º, nº 1, alínea b), 9º, nº 1, alínea a), e nº 3, todos do Decreto-Lei nº 156/2005, de 15 de setembro, no sentido de considerar ser aplicável a coima aí prevista nos casos em que, requerida a presença da autoridade para remover a recusa referida no número anterior, essa recusa é removida sendo o livro de reclamações facultado ao utente. Como se refere no aludido Acórdão : “ (…) a título preliminar, deve notar-se que o legislador ordinário goza de ampla liberdade de fixação dos montantes das coimas aplicáveis, desde que respeitados os limites fixados pelo regime geral do ilícito contraordenacional e que as sanções aplicadas sejam “efetivas”, “proporcionadas” e “dissuasoras”, de modo a garantir o efeito preventivo daquelas, sob pena de os destinatários das normas não se sentirem compelidos a cumpri-las (com efeito, a fixação de coimas com montantes irrisórios face ao benefício colhido da prática do ilícito contraordenacional tende a enfraquecer o próprio cumprimento da lei; assim, ver Paulo Otero/Fernanda Palma, Revisão do Regime Legal do Ilícito de Mera Ordenação Social, in «RFDUL» (Separata), 1996, n.º 2, pp. 562 e 563).
Também no Acórdão do Pleno n.º 97/2014, o mesmo Tribunal decidiu não julgar inconstitucional a norma extraída do n.º 3 do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 156/2005, quando interpretada no sentido de que, requerida a presença da autoridade para remover a recusa referida no número anterior, essa recusa é removida sendo o livro de reclamações facultado ao utente. Neste Acórdão, citando a declaração de voto aposta no Acórdão n.º313/2013, escreve-se. “(…) tendo em atenção que a infração prevista no n.º 1 artigo 9.º, do Decreto-Lei n.º 156/2005, de 15 de setembro, atinge a sua consumação com a omissão de entrega imediata e gratuita do livro de reclamações ao consumidor que o solicita, a conduta posterior à perfeição do ilícito contraordenacional reveste desvalor importante, na perspetiva da tutela do bem jurídico protegido, pois não só traduz persistência na recusa de cumprimento do dever legal imposto, como coloca o consumidor perante a necessidade de fazer intervir instâncias formais de controlo no local do litígio ou então suportar o ónus de formalizar ulteriormente (e com dificuldades acrescidas de prova) a sua reclamação. E, fundamentalmente, promove a escolha do consumidor pela via da desistência da reclamação, em função do maior esforço que sobre si (e sobre si apenas) recai. (…) Não procede (…) o argumento de que o legislador deixa apenas na mão do consumidor o poder de desencadear o agravamento da moldura sancionatória, sem possibilidade do agente económico a tal obstar ou modular o seu comportamento antes dessa iniciativa. Ciente que ao consumidor assiste a possibilidade de solicitar a intervenção policial, pode o agente económico configurar a sua estrutura organizativa por forma a que todas as solicitações de livro de reclamação sejam apreciadas pelo responsável máximo presente no local – gerente ou gestor de estabelecimento – e assim assegurar a qualidade da avaliação interna das circunstâncias e ponderação plena das consequências sancionatórias associadas à recusa inicial e à sua persistência. Intercede, então, nexo de imputação objetiva entre a conduta omissiva e a intervenção policial, enquanto mobilização indesejada de recursos institucionais, independentemente de, subsequentemente, ter sido (finalmente) cumprido o dever de facultar o livro de reclamações.”
Em conclusão, a coima prevista para a contraordenação praticada pela recorrente não ofende o princípio da proporcionalidade consagrado no art. 18º, nº 2, da CRP.
O legislador ordinário goza de ampla liberdade de fixação dos montantes das coimas aplicáveis à prática de contraordenações, desde que sejam respeitados os limites fixados pelo regime geral do ilícito contraordenacional, e que que as sanções a aplicar sejam proporcionadas e dissuasoras, de modo a que os destinatários das normas se sintam compelidos a cumpri-las.
Soçobra, assim, este fundamento do recurso.
10ªquestão: Invoca ainda a recorrente a inconstitucionalidade da norma do art.19.º, n.º1, alínea b) do DL 9/2021, de 29/1, por violação do principio da igualdade proporcional, no que se refere à classificação das pessoas coletivas, quando no seu nº 1 al. a) classifica como pequena empresa aquela que empregue entre 10 a 49 trabalhadores, pois trata ratando de forma igual aquilo que é desigual dado que existe uma diferença muito significativa em termos económicos, estruturais e outros, entre uma empresa que emprega 11, 12 ou até vinte trabalhadores e uma empresa que emprega mais do dobro, ou seja, 49 trabalhadores.
O princípio da igualdade, consagrado no art. 13°, da CRP exige que se trate por igual o que é essencialmente igual e desigualmente o que é essencialmente desigual. Tal princípio analisa-se, pois, numa proibição do arbítrio e diferenciações irrazoáveis, sem fundamento material.
O Tribunal Constitucional tem entendido que o legislador ordinário goza de uma ampla liberdade nas suas opções quanto à definição de crimes, à fixação de penas, assim como na fixação dos limites dos escalões utilizados nos diplomas legais.
Assim, o art.19.º do RJCE ao prever a classificação das pessoas coletivas consoante o número de trabalhadores ao seu serviço se enquadre em determinado escalão que prevê números mínimo e máximo de trabalhadores, não fere os princípios da igualdade e da proporcionalidade, pois não se afiguram critérios irrazoáveis, sem qualquer fundamento, havendo que estabelecer um mínimo e máximo com alguma amplitude.
Soçobra, pois, este fundamento do recurso.
III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso interposto pela arguida “A..., Lda.”, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando em 4 Uc a taxa de justiça.
(texto elaborado pela relatora e revisto por todos os signatários)
Porto, 10/4/2024
Maria Luísa Arantes
Paulo Costa
Pedro Vaz Pato
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[1] Neste sentido, Ac.R.Évora de 7/4/2015,proc. n.º 1080/13.4TBALR.E1, Ac.R.Porto de 15/12/2021, proc. n.º 3185/20.6T9AVR.P1, Ac. R.Coimbra de 27/10/2021, proc. n.º 3530/20.4T8CBR.C1, Ac. R.Évora de 25/5/2023, proc. n.º 660/22.1T8ABF.E1, todos in www.dgsi.pt.
[2] António de Oliveira Mendes e José dos Santos Cabral, in “Notas o Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas”, pág.41
[3] in Direito Criminal, II, Almedina, Coimbra, 1971, p. 203,
[4] Proc. n.º 29/12.6TBARL.E1, relatado pela hoje Conselheira Ana Barata Brito
[5] Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág.292
[6] Ac.STJ de 5/6/2012, proc. n.º 202/05.3GBSXL.L1.S1, relatado pelo Conselheiro Oliveira Mendes, in www.dgsi.pt