ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONDUÇÃO
ÁLCOOL
DIREITO DE REGRESSO
NEXO DE CAUSALIDADE
Sumário

- O facto de não ter havido (ainda) condenação no processo de contra-ordenação por condução sob o efeito do álcool, ou o facto de, eventualmente, tal processo estar prescrito, não põe em causa o especial valor probatório dos aparelhos ou instrumentos oficialmente aprovados utilizados para medir o teor de álcool no sangue em processos onde se discuta a responsabilidade civil;
- O princípio do in dubio pro reo não participa nos princípios da apreciação da prova em processo civil;
- É na acção cível que o R. deve infirmar o valor probatório prima facie do facto obtido através do instrumento de medição do teor de álcool no sangue, através da prova do facto contrário que pusesse em causa a validade do referido teste;
- Com o regime legal introduzido pelo art.º 27º, nº 1, c) do DL nº 291/2007, para que o direito de regresso da seguradora proceda, exige-se tão só que se alegue e prove a culpa do condutor na produção do acidente e que este conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à permitida por lei, não sendo necessário que demonstre o nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.

Texto Integral

ACORDAM NA 8ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I- RELATÓRIO
A sociedade A [… Companhia de Seguros, S.A ]., com sede na Rua …, n.º 39, no Porto, instaurou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum de declaração, contra B, peticionando, além do mais, a condenação do réu a pagar à autora o montante de €37.316,54, a título de direito de regresso, acrescido dos juros de mora vencidos desde 17 de Janeiro de 2022 e vincendos até efectivo e integral pagamento.
Alegou a A., para tanto, que celebrou com o R. um contrato de seguro do ramo automóvel, através do qual este transferiu para a A. a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo automóvel matrícula 64-…-25. Mais alega que, no dia 07 de Março de 2020, pelas 20h40, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o veículo de matrícula 64-...-25, conduzido pelo R. e outros dois veículos. Acontece que o R. seguia a uma velocidade manifestamente excessiva para o local, desatento à configuração da via, alheado ao processamento do trânsito em seu redor e com os reflexos e sentidos tolhidos pelo consumo do álcool, perdeu o controlo da viatura e, não logrando manter a distância de segurança necessária dos veículos que o precediam, foi embater com a dianteira do veículo que conduzia na traseira da viatura terceira de matrícula 107-…823, que seguia à frente, na mesma via e no mesmo sentido; esta viatura foi então projectada, vindo a embater com a lateral direita na lateral esquerda da viatura terceira de matrícula 91-....-42. Acresce que o R., submetido ao teste de pesquisa de álcool no sangue acusou uma TAS de 0,584 g/l, correspondente à TAS registada de 0,63 g/l. Não havendo dúvidas de que o R. foi o único culpado no acidente, a A. veio a assumir as suas obrigações emergentes do contrato de seguro, pelo que veio a pagar à proprietário do veículo matrícula 107-…823 a quantia correspondente aos danos sofridos, no valor de €34.534 e o valor de €1.119,30 pelo custo de uma viatura de substituição; pagou ainda a quantia de €1.663,24 pela reparação do veículo matrícula 91-...-42.
Regularmente citado para o efeito, o réu apresentou contestação, por impugnação, concluindo pela improcedência da acção e a sua absolvição do pedido e, subsidiariamente, a corresponsabilidade no sinistro numa percentagem não superior a 25%.
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Em sede de audiência prévia, a Srª juiz a quo indeferiu a prova pericial requerida pelo R. ao “aparelho medidor da taxa de alcoolemia referida nos autos”.
Notificado, o R. não reagiu a este despacho.
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Procedeu-se à realização da audiência final com a prolação de sentença que julgou totalmente procedente a acção e, em consequência, condenou o R. a pagar à A. a quantia de €37.316,54, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal de 4%, desde 17 de Janeiro de 2022 e até efectivo e integral pagamento, com custas a cargo do R.
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Inconformado com a sentença, o R. veio interpor recurso, finalizando com as seguintes conclusões:
“a) A Sentença a quo, ora recorrida, faz uma errada interpretação dos meios de prova produzidos nos autos;
b) A Sentença recorrida baseia a sua fundamentação num auto que, conforme supra exposto, não pode sustentar os factos nele alegados;
c) Tendo sido tempestiva e legalmente impugnado,
d) Não tendo ocorrido decisão a negar essa impugnação,
e) Estando prescrito o procedimento contraordenacional, jamais poderá ser imputado ao Réu (arguido no referido auto) os factos ali indicados.
f) A prova documental junta nos autos (auto de contraordenação e respetiva impugnação) permitem, facilmente, concluir como acima se expôs.
g) Não havendo prova objectiva e legal de que o Réu conduzia com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente admissível, não pode proceder o direito de regresso da Autora.
h) Devendo a ação ser julgada improcedente.
Com as alegações, juntou dois documentos (ref. citius 36237183).
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A A. contra-alegou, pugnando pela rejeição do recurso, apresentando as seguintes conclusões:
“I. O Apelante labora em diversos erros, não havendo qualquer censura a ser feita à douta sentença proferida pelo Tribunal a quo;
II. A douta sentença, proferida pelo Tribunal a quo, não merece qualquer reprovação, tendo sido feita uma análise crítica de todos os pontos essenciais, bem como uma correta aplicação das normas jurídicas que lhe serviram de fundamento;
III. A decisão por parte da ANSR em nada contribui para a procedência ou improcedência da presente acção, pois ficou provado nos presentes autos que o Apelado conduzia com uma taxa de álcool no sangue superior à legalmente admissível;
IV. facto este sustentado pela prova junta pela Apelada, designadamente, a Participação de Acidente de Viação;
V. A participação de acidente de viação é um documento autêntico, por ter sido emitido por uma autoridade pública, dotado de fé pública, que faz prova plena no que à realidade fática nele exposto diz respeito;
VI. A decisão da ANSR não secunda a tese de que o valor apurado para a TAS que o Apelante era portado, foi obtido de forma incorreta;
VII. Não há alegação ou prova que o Apelante pudesse usar para se defender junto da entidade administrativa que não pudesse ser produzida nos presentes autos;
VIII. Era em sede judicial e não administrativa que o Apelante se deveria ter procurado defender condignamente, o que não fez, bastando-se com a inercia da entidade administrativa;
IX. A título de exemplo o Apelante aceitou a decisão de indeferimento da perícia ao aparelho medidor de ar, sem qualquer reação.
X. Deve, assim, a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo ser confirmada na integra, não merecendo, pois, qualquer reparo, tendo sido proferida com ponderada e crítica apreciação dos factos devendo assim manter-se inalterada”.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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Questão prévia:
Como já se referiu, o Réu/Recorrente apresentou com as suas alegações dois documentos. Um deles, endereçado ao Senhor Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, constitui a defesa apresentada pelo R. no processo de contra-ordenação nº 936476591, o qual já se encontrava nos autos quando foi proferida a sentença sob recurso, junto pela ANSR (ref. citius 34520205, datado de 21/12/22). O outro, igualmente dirigido ao Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, no mesmo processo de contra-ordenação, é um requerimento em que o R. pede a declaração da prescrição do procedimento contra-ordenacional. Este segundo documento não se encontrava nos autos na data em que foi proferida a decisão sob recurso, nem dele consta qualquer data.
Resulta do artigo 423º, nº 1 do CPC que “Os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da acção ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes”. “Se não forem juntos com o articulado respetivo, os documentos podem ser apresentados até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final, mas a parte é condenada em multa, exceto se provar que os não pôde oferecer com o articulado” – nº 2 do mesmo artigo. Por fim, de acordo com o nº 3 “Após o limite temporal previsto no número anterior, só são admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento, bem como aqueles cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior”.
Em fase de recurso, a título excepcional, as partes ainda podem juntar outros documentos cuja apresentação não tenha sido possível até ao encerramento da discussão, como resulta do nº 1 do artigo 651º do CPC.
Conforme se escreve no Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 30/4/2019, disponível em www.dgsi.pt, “Determina o artigo 651.º, n.º 1, do CPC que “as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância”.
Por sua vez, dispõe a norma remetida – o artigo 425º do CPC – que “depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.
Da leitura articulada destas normas decorre que as partes apenas podem juntar documentos em sede de recurso de apelação, a título excepcional, numa de duas hipóteses: superveniência do documento ou necessidade do documento revelada em resultado do julgamento proferido na 1ª instância.
Relativamente à primeira hipótese, há que distinguir entre os casos de superveniência objectiva e de superveniência subjectiva: aqueles devem-se à produção do documento depois do encerramento da discussão em 1ª instância; estes ao conhecimento posterior do documento ou ao seu acesso posterior pelo sujeito. Constituem exemplos de superveniência subjectiva o caso em que o documento se encontra em poder da parte ou de terceiro, que, apesar de lhe ser feita a notificação, nos termos do artigo 429º ou 432º do CPC só posteriormente o disponibiliza, o caso em que a certidão de documento arquivado em notário ou outra repartição pública, atempadamente requerida, só posteriormente é emitida e o caso de a parte só posteriormente ter conhecimento da existência do documento.
Em qualquer caso cabe à parte que pretende oferecer o documento demonstrar a referida superveniência, objectiva ou subjectiva.
Como se disse, um dos documentos juntos já se encontrava nos autos ao tempo em que foi proferida a decisão. O segundo documento, requerimento dirigido à ANSR em que pede a declaração da prescrição do procedimento contra-ordenacional, o Apelante não justifica, minimamente, a superveniência objectiva ou subjectiva de tal documento.
Tão pouco se verifica a hipótese da necessidade revelada em resultado do julgamento proferido na 1ª instância.
Pelo exposto, não se admite a junção do referido documento, determinando-se o seu desentranhamento e entrega ao apresentante.
Custas do incidente pelo Recorrente, fixando em 1 UC a taxa de justiça (arts. 534º do CPC, 7º, nº 8 do RCP).
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
São estas as questões a apreciar:
- Se deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto;
- Se, em face dos factos provados, a sentença recorrida fez uma correcta aplicação do direito.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
1. Os factos
Na primeira instância foram considerados factos provados e não provados os seguintes factos:
1. A autora exerce a indústria de seguros em vários ramos.
2. No exercício da sua atividade, a autora firmou com F… um acordo denominado "contrato de seguro do ramo automóvel", titulado pela apólice n.º 0045.11.804666, cuja cópia se encontra junto aos autos e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, através do qual transferiu para a autora a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo de matrícula 64-....-25.
3. No dia 7 de março de 2020, pelas 20,40 horas, na Autoestrada n.º 5, na Ajuda, em Lisboa, ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes os seguintes veículos automóveis:
a) o veículo de matrícula 64-...-25, conduzido pelo réu no momento do acidente;
b) o veículo de matrícula 107-…823, conduzido por J… e pertencente à Embaixada da República de Moçambique e
c) o veículo de matrícula 91-...-42, conduzido por T…
4. O local referido em 3) configura uma reta com boa visibilidade, sendo possível avistar a faixa de rodagem em toda a sua largura numa extensão de, pelo menos, 50 (cinquenta) metros.
5. No local referido em 3), a faixa de rodagem comporta dois sentidos de trânsito, com quatro vias de circulação para cada sentido de marcha.
6. O piso é asfaltado e, na data referida em 3), encontrava-se sem lombas ou buracos.
7. Aquando do descrito em 3) era noite.
8. No dia e hora referidos em 3), o réu tripulava o veículo de matrícula 64-...-25, na autoestrada A5, na Ajuda, em Lisboa, no sentido de marcha Cascais/Lisboa, na segunda via a contar da direita para a esquerda.
9. O veículo de matrícula 107-…823 circulava à frente do veículo de matrícula 64-...-25, na mesma via e sentido de trânsito.
10. O réu embateu com a dianteira do veículo de matrícula 64-...-25, na traseira do veículo de matrícula 107-…823.
11. Na sequência do descrito em 10), o veículo de matrícula 107-…823 foi projectado e foi embater com a lateral direita na lateral esquerda do veículo de matrícula 91-...-42, que circulava na via mais à direita da A5, sentido Cascais/Lisboa.
12. Em momento anterior ao descrito em 3), o réu ingeriu bebidas alcoólicas.
13. O réu atuou conforme o descrito em 8) e 10) desatento à configuração da via.
14. O réu atuou conforme o descrito em 8) e 10) alheado ao processamento do trânsito e da circulação automóvel em seu redor.
15. O réu não logrou manter a distância de segurança do veículo de matrícula 107-…823 que circulava à sua dianteira, na mesma via e sentido de trânsito, para que, em caso de paragem súbita deste, pudesse imobilizar a viatura que tripulava no espaço livre à sua frente.
16. Após o descrito em 3), o réu foi sujeito ao teste de pesquisa de álcool no sangue, tendo acusado uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 0,584 gramas por litro de sangue, correspondente à taxa de álcool no sangue registada de 0,63 gramas por litro de sangue, não tendo pedido contraprova.
17. Na sequência do descrito em 16), foi elaborado pelas autoridades de polícia um auto de contraordenação com o número 936476591.
18. O auto de contraordenação referido em 17) deu origem ao processo de contraordenação que corre termos sob o n.º 936476591 na Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, no qual ainda não foi proferida decisão administrativa.
19. O descrito em 3) ocorreu em virtude da atuação do réu descrita em 13), 14) e 15).
20. Ao atuar conforme o descrito em 10), 13), 14) e 15), o réu agiu com falta de cuidado, zelo, precaução e prudência a que estava obrigado.
21. Em consequência do descrito em 3), o veículo de matrícula 107-…823 sofreu danos sob a traseira e lateral direita, mormente sob o para-choques traseiro, farolim, painel lateral direito, longarina, porta bagageira, emblema da mala, disco do travão da retaguarda, catalisador, cablagem.
22. O veículo de matrícula 107-…823 foi alvo de uma peritagem, nos termos da qual se concluiu que a reparação dos danos verificados por ocasião do acidente referido em 3) ascendia a €31 958,51 (trinta e um mil, novecentos e cinquenta e oito euros e cinquenta e um cêntimos) (com possibilidade de agravamento, uma vez que a viatura não foi desmontada.
23. Mais se apurou que o valor venal do veículo de matrícula 107-…823 ascendia à quantia de €40.600,00 (quarenta mil e seiscentos euros) e o valor do salvado a €6.066,00 (seis mil e sessenta e seis euros).
24. Face aos valores apurados no âmbito da peritagem levada a cabo ao veículo de matrícula 107-…823, este foi considerado perda total.
25. A autora comunicou à Embaixada da República de Moçambique a perda total do veículo de matrícula 107-…823, colocando à sua disposição a título de indemnização pela perda total da viatura a quantia de €34.534,00 (trinta e quatro mil, quinhentos e trinta e quatro euros).
26. A autora liquidou à Embaixada da República de Moçambique a quantia de €34.534,00 (trinta e quatro mil, quinhentos e trinta e quatro euros), a título de indemnização pela perda total da viatura.
27. Desde o momento do acidente, da peritagem da viatura e da conclusão pela perda total até ao momento do pagamento da indemnização referida em 26), a Embaixada da República de Moçambique esteve privada do uso do veículo de matrícula 107-…823.
28. A autora disponibilizou à Embaixada da República de Moçambique uma viatura de substituição, tendo incorrido no custo inerente, no valor de €1.119,30 (mil, cento e dezanove euros e trinta cêntimos), montante liquidado à Sado Rent - Automóveis de Aluguer sem Condutor, S.A.
29. Em consequência do descrito em 3), o veículo de matrícula 91-...-42 sofreu danos materiais, mormente sob a lateral esquerda, ao nível da porta da retaguarda, painel lateral, jante, cada da roda, pneus da retaguarda.
30. O veículo de matrícula 91-...-42 foi alvo de uma peritagem, nos termos da qual se concluiu que a reparação dos danos verificados por ocasião do acidente referido em 3) ascendia a €1.663,24 (mil, seiscentos e sessenta e três euros e vinte e quatro cêntimos).
31. O autor liquidou a quantia de €1.663,24 (mil, seiscentos e sessenta e três euros e vinte e quatro cêntimos) à Auto Caxiense - Reparação e Comércio de Automóveis, Lda, a título de reparação do veículo de matrícula 91-...-42.
32. Com a regularização do sinistro, a autora despendeu a quantia total de €37.316,54 (trinta e sete mil, trezentos e dezasseis euros e cinquenta e quatro cêntimos).
33. No dia 17 de janeiro de 2022, a autora, por via dos seus ilustres mandatários, interpelou o réu para proceder ao reembolso do montante que havia despendido.
34. A autora e o réu não lograram chegar a um entendimento quanto à resolução extrajudicial do litígio.
B – Factos não provados
Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a boa decisão da causa, designadamente, que:
a) o veículo de matrícula 64-...-25 tenha embatido no veículo de matrícula 91-...-42;
b) o veículo de matrícula 64-...-25 seguisse a uma velocidade superior a 120 km/h;
c) o réu tenha atuado conforme o descrito em 8) e 10) com os reflexos e sentidos tolhidos e diminuídos pelo consumo de álcool;
d) chegado ao km 2,100 da A5, o réu tenha perdido o controlo do veículo de matrícula 64-...-25 que tripulava, mercê da taxa de álcool no sangue de que era portador;
e) o réu tenha atuado conforme o descrito em 8) e 10) devido à concentração de álcool que possuía no sangue;
f) o descrito em 3) tenha ocorrido em virtude da atuação do réu descrita em 12);
g) o réu soubesse que a ingestão de bebidas alcoólicas na quantidade em que conscientemente o fez o poderia influenciar negativamente na condução automóvel do veículo de matrícula 64-...-25;
h) o réu tenha agido deliberada e conscientemente, bem sabendo que ao iniciar a condução nas circunstâncias em que o fez colocava em causa a segurança rodoviária, fazendo perigar a integridade física e a vida de todos os restantes utentes da via em que seguia;
i) o veículo de matrícula 107-…823 tenha efetuado uma paragem súbita e repentina;
j) o acidente referido em 3) tenha ocorrido por causa do descrito em i);
k) o descrito em i) tenha ocorrido sem que houvesse qualquer tipo de obstáculo a obstruir a via do veículo de matrícula 107-…823;
l) o veículo de matrícula 64-...-25 e o veículo de matrícula 107-…823 seguissem em aceleração, numa velocidade idêntica, não superior a 100 km/h;
m) estivesse desimpedido o trânsito na faixa de rodagem;
n) não fosse previsível a travagem súbita e repentina do veículo de matrícula 107- …823;
o) o réu tenha sido surpreendido pela travagem brusca e inesperada do veículo de matrícula 107-…823;
p) não tenha sido a condução do réu que deu azo ao acidente referido em 3);
q) o réu conduzisse com todas as suas capacidades e sem qualquer limitação;
r) o réu jamais tenha considerado como possível a condução sob o efeito do álcool;
s) por jamais ter havido decisão condenatória, o réu estivesse perfeitamente convicto que a margem pequeníssima de taxa de álcool superior à legalmente admitida se enquadrava dentro da margem de erro que, para efeitos formais, formariam irrelevante a mesma;
t) o descrito em s) tenha sido transmitido ao réu pelos militares da Guarda Nacional Republicana;
u) o réu não tenha pedido contraprova por causa do descrito em t)”.
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2. O direito
2.1. Da modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto
Existem requisitos específicos para a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, os quais, se não observados, conduzem à sua rejeição.
Assim, o artigo 640º, do Código de Processo Civil, impõe ao recorrente o ónus de:
a) especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) especificar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
É hoje indiscutível a inadmissibilidade de recursos que se insurgem em abstracto contra a decisão da matéria de facto: o recorrente tem que especificar os exactos pontos que foram, no seu entender, erroneamente decididos e indicar também com precisão o que entende que se deve dar como provado.
Impõe-se que nas conclusões o recorrente indique concretamente os pontos da matéria de facto que impugna, apresentando a sua pretensão de forma inequívoca, de forma a que se possa, com clareza, separar a mera exposição da sua apreciação sobre a prova da reivindicação da alteração da matéria de facto.
Com a imposição destas indicações pretende-se impedir “recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto, tendo o legislador optado por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente” - Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 2022, 7ª ed. p.195.
Por estes motivos, o recorrente, além de ter que assinalar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, tem também que especificar os meios de prova constantes do processo que determinam decisão diversa quanto a cada um dos factos, evitando-se que sejam apresentados recursos inconsequentes, não motivados, com meras expressões de discordância, sem fundamentação que possa ser perceptível, apreciada e analisada.
Quanto a cada um dos factos que pretende que obtenha diferente decisão da tomada na sentença, tem o recorrente que, com detalhe, indicar os meios de prova deficientemente valorados e ponderar criticamente os mesmos.
Relativamente ao ónus de especificar os concretos meios probatórios, particulariza o nº 2 do artigo 640º, que: “Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Não obstante não indicar o ponto concreto dos factos provados, atenta a simplicidade da matéria factual em causa, só pode estar a referir-se ao ponto 16 dos factos provados, onde consta que: “Após o descrito em 3), o réu foi sujeito ao teste de pesquisa de álcool no sangue, tendo acusado uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 0,584 gramas por litro de sangue, correspondente à taxa de álcool no sangue registada de 0,63 gramas por litro de sangue, não tendo pedido contraprova”.
Perscrutando a contestação apresentada pelo R., verifica-se que o mesmo, nega que conduzia sob efeito do álcool e que os seus reflexos e sentidos estavam tolhidos pelo consumo de álcool, sendo certo que jamais recebeu qualquer decisão condenatória no processo de contra-ordenação e jamais pagou coima por esse facto ou qualquer outra sanção, impugnando a veracidade dos dados registados pelo aparelho medidor da taxa de alcoolemia, “requerendo a respectiva prova pericial quanto ao seu bom funcionamento”.
Em sede de recurso, defende que a Srª juiz a quo errou ao considerar como essencial na motivação da matéria de facto o teste de álcool realizado, pois este só seria relevante se pudesse fazer prova irrefutável e incontestável dos factos que atestam. No fundo, segundo sustenta, só assim seria se o auto de contra-ordenação e o talão em causa não tivessem sido impugnados ou, tendo sido, já houvesse decisão definitiva que atestasse a veracidade desses mesmos factos, sendo que “a presunção de inocência deverá sempre presumir-se não podendo haver condenação antecipada” (ponto 16 das alegações).
Mais alega que impugnou o referido auto de contra-ordenação em Março de 2020 e, não tendo havido decisão condenatória, já prescreveu, atento o disposto no art.º 188º do CE e, sendo assim, “o auto de notícia que acusa o arguido (aqui Réu e Recorrente) jamais poderá ser considerado para efeitos de prova do que quer que seja” (ponto 37 das alegações).
Na sentença sob recurso, a Sra. juiz escreveu o seguinte na motivação da matéria de facto: “Para demonstração da factualidade provada referida em 12), 16), 17) e 18), foram determinantes as declarações de parte do réu, o teor do auto de participação de acidente de viação oferecido com a petição inicial sob o doc. 2 e o teor do e-mail e respectiva documentação constantes da referência 34520205, designadamente, o auto de contraordenação e o talão n.º 539 - atestando que o réu foi submetido ao teste de álcool através do alcoolímetro Drager - Alcotest 9510 PT, série ARJK n.º 0029, aprovado por Despacho n.º 2960/2016 DR 26 de fevereiro verificado pelo IPQ em 15 de julho de 2019, acusando uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 0,584 gramas por litro de sangue, correspondente à taxa de álcool no sangue de 0,63 gramas por litro de sangue, deduzido o valor do erro máximo admissível - e o depoimento da testemunha M…, em conjugação com as regras da experiência comum”.
Na contestação, o R. além de pôr em causa veracidade e fiabilidade do teste de alcoolemia, cuja realização não contesta, requereu a realização de uma perícia ao bom funcionamento do aparelho, a qual foi rejeitada em sede de audiência prévia, sem que o R. tivesse reagido a tal despacho. Ou seja, nesta acção não foi realizada prova que pusesse em causa o resultado obtido pelo aparelho Drager - Alcotest 9510 PT, série ARJK n.º 0029, aprovado por Despacho n.º 2960/2016 DR 26 de Fevereiro verificado pelo IPQ em 15 de Julho de 2019
Debrucemo-nos, agora, quanto ao argumento esgrimido em sede de recurso, ou seja, se o referido resultado só poderia ter sido considerado pelo tribunal se o auto de contra-ordenação e o talão em causa não tivessem sido impugnados ou, tendo-o sido, já houvesse decisão definitiva que atestasse a sua veracidade, sob pena de a decisão proferida estar a violar o principio da presunção de inocência.
Como se escreve no Ac. da RC de 26/9/2023, proc. nº 746/22, relatado por Henrique Antunes, disponível em www.dgsi.pt, que aqui seguimos de perto “Em processo civil é sobre as partes que recai o risco de condução do processo em matéria probatória. Daí que se qualquer delas não produzir meios de prova necessários à fundamentação das suas situações jurídicas, recaem sobre si as consequências desvantajosas correspondentes: é o princípio do ónus da prova, com os consequentes problemas que lhe estão ligados da sua repartição entre as partes (art.°s 342.° e 346.° do Código Civil e 414.º do Código de Processo Civil).
Não assim no processo penal, no qual - como consequência do princípio estruturante da investigação - não existe um qualquer verdadeiro ónus da prova que recaia sobre a acusação ou sobre o arguido. Por isso que a falta de provas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido e, portanto, um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a seu favor. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo, conhecido também como presunção de inocência - presunção que, enquanto tomada como equivalente do princípio in dubio pro reo, pertence, sem dúvida, aos princípios fundamentos do Estado de Direito e, portanto, á constituição processual penal (art.° 32.°, n.° 2, da Constituição da República Portuguesa).
Apesar de a norma constitucional se limitar a impor a aplicação aos processos de contraordenação dos direitos de audiência e de defesa, a jurisprudência constitucional tem entendido que as garantias dispostas na constituição processual criminal se aplicam no domínio contraordenacional, embora devidamente reconformadas, por se considerar que, no tocante aos ilícitos de mera ordenação social, o legislador dispõe de uma margem mais ampla de apreciação. Assim sucederá com o princípio da presunção de inocência e com o princípio in dubio pro reo - seja qual for o modo como ambos os princípios se articulam - que, enquanto constitutivos do Estado de Direito democrático, são extensíveis a todo o direito sancionatório público e, portanto, também ao processo contraordenacional (art.º 32.º, n.º 10, da Constituição da República Portuguesa). Nestes termos, no processo contraordenacional, como em qualquer outro processo sancionatório, o arguido presume-se inocente até se tornar definitiva a decisão condenatória contra si proferida ou qualquer decisão que conclua pela sua responsabilidade por um facto qualificado como contraordenação. Mas é igualmente claro - com base também em jurisprudência constitucional pacífica - que a extensão das garantias do processo criminal ao domínio contraordenacional não obsta a que os interesses por elas salvaguardados sejam graduados na proporção da - menor - intensidade ablativa das sanções nesse domínio e que, com consonância com esse facto, nele se reconheça ao legislador uma liberdade de conformação legislativa significativamente mais ampla. Não existe, realmente, um paralelismo automático entre os regimes próprios do processo penal e do processo contraordenacional não sendo, por conseguinte, directamente aplicáveis a este todos os princípios constitucionais próprios do processo criminal. O conteúdo das garantias processuais é, assim, diferenciado consoante o domínio do direito punitivo em que se situe a sua aplicação; no âmbito contraordenacional, atendendo à diferente natureza do ilícito de mera ordenação social e à sua menor ressonância ética, por comparação com o ilícito criminal, e o menor peso do regime garantístico, determina que as garantias constitucionais previstas para os ilícitos qualificados como crime não sejam necessariamente aplicáveis aos ilícitos contraordenacionais - ou não o sejam em toda a sua extensão ou sem limitações, dado que a inexigibilidade da estrita equiparação entre o processo contraordenacional e o processo criminal não invalida a necessidade de serem observados determinados princípios que o legislador contraordenacional é chamado a concretizar, no interior de um poder de conformação mais aberto do que aquele lhe se reconhece em matéria de processo penal.
O auto de notícia levantado, designadamente, por órgão de polícia criminal que, no exercício das suas funções, presencie contraordenação rodoviária, faz fé sobre todos os factos presenciados pelo seu autor, até prova em contrário; a mesma eficácia é reconhecida aos elementos de prova obtidos através de aparelhos os instrumentos aprovados nos termos da lei ou de regulamento (art.º 170.º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada).
O auto de notícia e os elementos de prova obtidos através de aparelhos ou instrumentos oficialmente aprovados gozam, assim, de um especial valor probatório - mas de modo algum definitivo, antes só prima facie ou de interim - atribuído a certa comprovações materiais feitas, presencialmente, por certa autoridade pública. Estas comprovações ou verificações materiais valem exclusivamente em relação aos factos presenciados pela autoridade ou obtidas através daqueles instrumentos, seja qual for a natureza do processo no qual se discuta a veracidade daqueles mesmos factos e a sua relevância jurídica. O valor probatório do auto de notícia não acarreta qualquer presunção de culpa nem, muito menos, envolve qualquer manipulação arbitrária do princípio in dubio pro reo e, portanto, não vulnera o direito de defesa do autuado. E o caso não muda de figura quando esse especial valor probatório é atribuído a elementos colhidos através de aparelhos ou instrumentos - desde que previamente aprovados e cabalmente identificados no auto, caso em que também se não pode dizer que seja desrespeitado o direito de defesa nem infringido o princípio do contraditório. Na verdade, sendo a taxa de álcool no sangue medida através de um aparelho técnico especializado, há-de esse elemento merecer especial credibilidade, desde logo porque o resultado obtido tem carácter objectivo; depois, porque é de presumir que tal resultado seja correcto uma vez que o aparelho foi oficialmente aprovado e, finalmente, porque é também de presumir que o resultado em causa foi fielmente registado no auto - sendo certo que o autuado sempre poderá questionar, quer no processo contraordenacional, quer, e sobretudo, perante o juiz em qualquer processo - ainda que meramente civil - em que se debatam os elementos recolhidos através dos aparelhos ou instrumentos, o seu correcto funcionamento e a sua correcta utilização e, bem assim, a fidelidade dos dados registados. Decerto que o aparelho ou instrumento pode estar avariado ou não ser preciso, apesar da sua aprovação oficial. Mas nem mesmo neste caso o direito de defesa e o direito de contraditório são violados: o autuado sempre poderá questionar a medição efectuada e, assim, contradizer o meio de prova. O aparelho não é, certamente, o único meio de mensurar a taxa de alcoolemia - mas é seguramente o mais eficaz para tal medição. Ora, não sendo possível repetir tal medição no processo, outra coisa não resta ao legislador que atribuir especial valor probatório à medição feita pelo aparelho. (…). Tudo isto decorre da jurisprudência constitucional que tirada a propósito do processo criminal e contraordenacional, vale a fortiori, para o processo civil. Realmente, se deve ter-se por correcta a aplicação a todos os processos sancionatórios públicos do princípio probatório in dubio pro reo - que, como se notou, não é incompatível com o especial valor probatório reconhecido a elementos obtidos através de instrumentos técnicos especializados, aprovados nos termos da lei ou de regulamento - também deve ter-se por segura a sua inaplicabilidade ao processo civil, ainda que o objecto do processo seja constituído por um facto de relevância dupla, i.e., do qual derivem consequências jurídicas que relevem, simultaneamente, no plano contraordenacional e no plano estritamente civil. Tratando-se de valorar consequências ou situações jurídicas exclusivamente na sua estrita vertente jurídico-privada, valem, para a prova dos factos correspondentes, as regras de direito probatório formal - que regulam a actividade probatória que, e na medida em que se desenrola no processo - e material - i.e., as normas reguladoras da admissibilidade e valoração da prova - do processo civil, regras de valoração da prova entre as quais se não conta, garantidamente, o princípio probatório in dubio pro reo (art.°s 410.° a 526.° do CPC e 341.° a 346.° do Código Civil). Aplicação da qual decorre também a regra de que toda a prova relevante é admissível, ou seja, a de que toda a prova adequada a demonstrar um facto deve, em princípio, ser admitida”.
Significa isto que o facto de não ter havido (ainda) condenação no referido processo de contra-ordenação ou o facto de, eventualmente, tal processo estar prescrito (o que não foi comprovado nos autos), não põe em causa, de forma alguma, o especial valor probatório dos referidos aparelhos ou instrumentos oficialmente aprovados utilizados para medir o teor de álcool no sangue em processos onde se discuta a responsabilidade civil (sendo que o referido princípio probatório, como referido, não participa nos princípios da apreciação da prova em processo civil).
No caso em apreço, o Apelante não conseguiu afastar o valor probatório prima facie do facto obtido através do instrumento de medição do teor de álcool no sangue, através da prova do facto contrário, sendo certo que, tendo sido demandado pela A. que pretende exercer o seu direito de regresso, era nesta acção que o R. se devia defender, alegando factos, dependentes de prova, que pusessem em causa a validade do referido teste.
Assim, é de concluir que foi acertada a conclusão do tribunal recorrido, tendo em conta os elementos de prova considerados para o efeito (e a que este tribunal teve acesso, a saber, as declarações de parte do R., o depoimento do militar da GNR que elaborou o auto de participação,  e o teste de álcool realizado junto com a p.i. e com o email da ANSR de 21/12/2022, cujo valor prima facie não foi infirmado), ao dar como provado que a condução do veículo automóvel levada a cabo R. foi realizada depois de este ter ingerido álcool, apresentando uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 0,584 gramas por litro de sangue, correspondente à taxa de álcool no sangue registada de 0,63 gramas por litro de sangue (ponto 16 dos factos provados).
Deste modo, é improcedente o recurso quanto à matéria de facto, pelo que se mantém a matéria de facto dado como provada.
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2.2. Finalmente, cumpre analisar se, em face dos factos provados, a sentença recorrida fez uma correcta aplicação do direito.
O pedido de revogação da decisão sob recurso assentava essencialmente na alteração da matéria de facto conforme pugnado pelo Apelante, no sentido de que não podia ter sido dado como provado que no momento do acidente conduzisse com uma taxa de alcoolemia superior à admitida por lei. 
Como se viu, o recurso de impugnação relativo à decisão de facto foi improcedente.
O condutor do veículo matrícula 64-....-25, aqui Apelante, tal como se veio a concluir na sentença recorrida, agiu de forma negligente, pois sem que nada o legitimasse, veio a embater no veículo de matrícula 107-…823, infringindo, além do mais, o disposto nos artigos 3º, nº 2, 11º, nº 2, 18º, nº 1 e nº 2 e 24º, nº 1 do CE, revelando uma condução imprudente e desatenta, violando o dever de diligência que sobre ele recaía, aferido pela diligência exigível a um “bonus pater familias”.
Por outro lado, não se surpreende no acto de condução dos restantes intervenientes, tendo em conta os factos provados, qualquer infracção às regras de trânsito e do dever de cuidado no exercício da sua condução que os façam contribuir para a produção do acidente de forma culposa.
Deste modo, sendo o acidente imputável exclusivamente ao R./Apelante, a título de mera culpa, fica prejudicada qualquer parcela de responsabilidade pelo risco na colisão inerente à circulação dos restantes veículos, de harmonia com o preceituado no artigo 506º, nº 1, 1ª parte do Código Civil.
Como se refere na sentença recorrida, está igualmente demonstrado o nexo de causalidade adequada entre a condução do R. e os danos sofridos pelos veículos matrículas 107-…823 e 91-...-42 e as despesas suportadas pela autora.
Isto posto, passemos para a análise do direito de regresso.
Estipula o artigo 27º, n.º 1, alínea c), do DL 291/2007, de 21/08, que satisfeita a indemnização, a empresa de seguros tem direito de regresso contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida.
A controvérsia à volta da exigência ou não de um nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente vigorou de forma acesa na vigência do DL nº 522/85, de 31/12 tendo dado lugar ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 6/2002, mantendo-se ainda alguma divisão na jurisprudência após a nova redacção do art.º 27º do DL nº 291/2007.
 A jurisprudência divide-se entre os que defendem que circulando o condutor com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida e dando causa ao sinistro, a seguradora tem direito de regresso sem que tenha de provar o nexo de causalidade entre a ocorrência desse sinistro e a condução com tal taxa de alcoolemia, e os que consideram que não basta o condutor etilizado ter dado causa ao acidente, sendo necessário que esta causa tenha emergido da própria etilização.
Após a redacção do art.º 27º, do DL nº 291/2007, cremos ser maioritária a posição que defende a inexigibilidade do pressuposto do nexo causal (cfr. nesse sentido, entre outros, os Acs. do STJ de 9/10/2014, 10/5/18, 10/12/20, 28/4/21, os Acs. da RL de 13/12/12, 2/5/19, os Acs. da RP de 27/11/14, de 11/10/2016, o qual cita abundante jurisprudência neste sentido, de 16/1/2018, os Acs. da RC de 8/5/2012, 18/2/2014, 23/3/23, 26/9/23 e os Acs. da RE de 26/10/2017, de 20/12/2018, 14/1/20, 14/9/2023, todos disponíveis em www.dgsi.pt). É também esse o entendimento que perfilhamos e o entendimento que foi perfilhado na sentença sob recurso.
O “antigo” art.º 19º, al. c) do DL nº 522/85, de 31 de Dezembro dizia que satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tinha direito de regresso contra o condutor, se este tiver agido sob a influência do álcool.
Actualmente, o art.º 27º, al. c) do DL nº 291/2007, dispõe que satisfeita a indemnização, a empresa de seguros tem direito de regresso contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida.
Cremos haver razão para a diferente redacção do citado artigo. Apesar do legislador poder ter sido mais claro com a mudança legislativa e perante a controvérsia até então existente, deixou mostras de que não era sua vontade que a situação decorrente da interpretação anterior se mantivesse. Nesse sentido, eliminou a expressão “tiver agido sob a influência do álcool”. Antes, a justificação para a necessidade da prova do nexo de causalidade residia nos próprios termos da norma da alínea c) do artigo 19º. Era necessário que agisse sob a influência do álcool e não apenas que conduzisse etilizado. A expressão usada na lei, “agido sob a influência do álcool”, era considerada uma exigência relativa à actuação do condutor que não tinha de ligar-se ao regime considerado legalmente susceptível de condenação penal. Ou seja, agir sob a influência do álcool não era o mesmo que estar sob a influência do álcool.
A redacção do art. 27º, nº 1, al. c) do Dec. Lei nº 291/2007, suprimiu a expressão “tiver agido sob a influência do álcool” e substituiu-a por “conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”. Tal alteração, assente numa enunciação em termos diversos do requisito da alcoolemia, outra coisa não visou que a desconsideração da influência do álcool na condução, em termos de relação de causa e efeito.
Com efeito, legislador não ignorava a divergência jurisprudencial existente na vigência do anterior diploma sobre a questão do nexo de causalidade entre a condução sob o efeito do álcool e a produção do acidente e que resultou mesmo na prolação do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 6/2002. Assim, se fosse intenção do legislador manter a solução aí consagrada, tê-lo-ia dito expressamente, mantendo a redacção do texto legal e esclarecendo mesmo o seu sentido em conformidade com acórdão uniformizador. Mas não o fez. Decidiu, ao invés, alterar o texto legal, dando-lhe uma redacção mais objectiva: “conduzir com TAS igual ou superior à legalmente admitida”.
Deste modo, tal como se escreveu no Ac. do STJ de 28/11/2013, disponível em www.dgsi.pt, “O elemento filológico de exegese tirado do teor das locuções que integram o texto do preceituado no artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007 (…) cinge o intérprete a discorrer que, no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil, o direito de regresso conferido à seguradora ser-lhe-á irrestritamente concedido sempre que o condutor, julgado culpado pela eclosão do acidente, conduza a viatura com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida”.
Assim, com o regime legal introduzido pelo art.º 27º, nº 1, c) do DL nº 291/2007, para que o direito de regresso da seguradora proceda exige-se tão só que se alegue e prove a culpa do condutor na produção do acidente e que este conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à permitida por lei, não sendo necessário que demonstre o nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.
Por fim, diremos que à condução sob a influência do álcool está associado um juízo de censura pela conduta dolosa ou gravemente negligente, estando associado com uma grande carga de reprovação social. Daí que, a ratio da norma contida no art.º 27º, al. c) do DL. nº 291/2007 está integrada numa política de prevenção geral e especial de acidentes com carácter moralizador e, simultaneamente, com efeito dissuasor e repressivo, de modo a contribuir para a redução da sinistralidade rodoviária ligada à condução com álcool (vd. Mário Luís Fernandes Dos Santos, in “Direito de Regresso da Seguradora no Contrato de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel – Condução sob a influência do álcool (art. 19.º, c) do DL 522/85 de 31/12 e 27.º, c) do DL 291/2007 de 21/8)”.
Posto isto e voltando ao caso dos autos, tendo sido dado como provado que o R./Apelante foi o causador do acidente a título de mera culpa e que conduzia com uma taxa de alcoolemia no sangue de 0,584 gramas de álcool por litro de sangue (superior à legalmente admitida), estão verificados os pressupostos do direito de regresso da seguradora recorrida.
Termos em que, por improceder a apelação, deve manter-se a decisão recorrida.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 16/5/2024
Carla Figueiredo
Amélia Puna Loupo
Rui Oliveira