AMNISTIA
LEI N.º 38-A/2023
IDADE DO AGENTE
CONSTITUCIONALIDADE
Sumário


I. Inexiste uma definição unívoca de "jovem" pela legislação constitucional ou ordinária nacional, variando conforme as realidades a que se destina.
II. A limitação etária fixada no art. 2.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, está devidamente justificada pelo legislador na Exposição de Motivos da Proposta de Lei que serviu de base a tal Lei, porque idêntica limitação se aplica aos destinatários das Jornadas Mundiais da Juventude.
III. Aquele art. 2.º, n.º 1, não viola o princípio da igualdade do art.º 13.º da Constituição da República Portuguesa.
IV. O Estado assume uma posição de neutralidade em relação às convicções religiosas dos seus cidadãos: por um lado, confere a estes a liberdade de as ter e, por outro, não é um Estado doutrinal (art. 41.º da Constituição).
V. Desde 25 de Abril de 1974, houve três leis de amnistia por motivos seculares e estritamente nacionais e uma lei, embora limitada a perdões parciais e medidas similares, destinada à protecção da saúde pública dos reclusos.
VI. No mesmo período, duas outras leis de amnistia foram aprovadas por ocasião de duas vindas do Papa João Paulo II a Portugal (em 1982 e em 1991), mas tiveram lugar mais três visitas papais (em 2000, 2010 e 2017) sem que existisse lei similar (à semelhança do que já tinha ocorrido em 1967, com a visita do Papa Paulo VI).
V. O órgão legislativo máximo da República Portuguesa não considera, de forma automática ou acrítica, que qualquer visita de um Papa determina a aprovação de uma lei de amnistia, assim como entende haver outros fundamentos, totalmente laicos, para ir nesse sentido.
VI. A Lei n.º 38-A/2023 não padece de inconstitucionalidade por violação do princípio da laicidade do Estado; mesmo que assim se entendesse, o efeito seria a sua não aplicabilidade como um todo.

Texto Integral


Neste processo n.º 441/22.2GCVCT.G1, acordam em conferência os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I - RELATÓRIO

No processo comum singular n.º 441/22...., a correr termos no Juízo Local Criminal (J...) de ..., dessa Comarca, em que é arguido AA, foi proferida sentença que o condenou, pela prática de dois crimes de desobediência, p. e p. pelo art. 348.º, n.º 1, b), do Código Penal, numa pena de 40 dias de multa e noutra pena de 60 dias de multa; em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 70 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, num total de € 350,00.
Inconformado, recorreu o arguido, apresentando as seguintes conclusões[1]:

«II. A decisão revidenda julgou inaplicável ao caso vertente o disposto no artigo 2º, nº 1 da Lei nº 38º-A/2023, de 02 de Agosto, que, por ocasião da realização em Portugal das Jornadas Mundiais da Juventude, impôs uma amnistia (ou perdão de pena) “(…) aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º”, sustentando que, como o recorrente nasceu a ../../1970, aquando da prática dos factos contava com idade superior à prevista naquele normativo, desatendendo a invocada inconstitucionalidade daquela norma, relativamente à restrição do âmbito subjetivo da amnistia ou perdão de pena aos infratores que, à data da prática do facto, tenham entre 16 e 30 anos.
III. Quando confrontado com a questão da inconstitucionalidade que ora se invoca, o Tribunal a quo decidiu que a referida restrição etária é conforme à nossa Constituição, designadamente porque dedica uma norma de proteção da juventude, no seu artigo 70º, e porque existem disposições legais que discriminam positivamente os jovens, como é o caso do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de setembro.
IV. No modesto entender do impetrante, a norma do artigo 2º, nº 1 da Lei nº 38º-A/2023, de 02 de Agosto, ao restringir a amnistia e perdão de penas aos infratores dentro daquele arco etário, é materialmente inconstitucional, por violação dos Princípios da Igualdade e da Laicidade do Estado, previstos, respetivamente, nos artigos 13º, nº 1 e 2 e 41º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa.
V. A dita norma viola o Princípio da Igualdade porque a restrição etária nela prevista resulta, pura e simplesmente, de uma opção legislativa que não vem sustentada em critérios objetivos e com assento constitucional, conforme se infere da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª, de 19 de Junho de 2023, na qual o legislador norteia o âmbito subjetivo da Lei nº 38º-A/2023, de 02 de Agosto pela idade de admissão dos participantes das Jornadas Mundiais da Juventude.
VI. Ainda que a nossa Lei Fundamental tutele a infância e a juventude, a verdade é que não foi esse o critério que orientou o legislador, mas sim a mera realização de um evento religioso que, em si, não consubstancia qualquer princípio jusconstitucional.
VII. Ademais, não existe uma definição unívoca (constitucional ou legal) de “jovem” ou de “juventude” – como ressalta dos diversos diplomas legislativos que circunscrevem o conceito de “jovem” com limites etários diferentes - o que também propicia a arbitrariedade legislativa quanto à definição da faixa etária dos destinatários do diploma acima referido.
VIII. Se o legislador dispõe de alguma discricionariedade na definição das medidas de graça e clemência, essa margem de manobra tem como limite os Princípios Constitucionais vigentes, designadamente os da Igualdade e da Laicidade do Estado, que, neste caso, não foram respeitados.
IX. O Princípio da Igualde impõe que se trate de forma igual o que é igual, e diferente o que é diferente, mas, no caso vertente, a diferenciação de tratamento dos “jovens” infratores em relação à demais população penalmente imputável não foi objetivamente sustentada e delimitada, com base em critérios jurídico-constitucionais.
X. É, aliás, no sentido vindo de referir que propendem os Pareceres do Conselho Superior do Ministério Público 29/06/2023 e do Conselho Superior da Magistratura, de 03/07/2023, relativamente à proposta legislativa que originou a Lei nº 38º-A/2023, de 02 de Agosto e para os quais, data venia, se remete.
XI. Por fim, dir-se-á outrossim que, como a restrição etária estabelecida no artigo 2º, nº 1 da Lei nº 38º-A/2023, de 02 de Agosto se atém, exclusivamente, na idade dos participantes nas Jornadas Mundiais da Juventude - organizadas e promovidas pela Igreja Católica Romana - acaba por infringir, também, o Princípio da Laicidade do Estado, com assento no artigo 41º, nº 4 da Constituição da República, que impõe uma separação entre o Estado as confissões religiosas.
XII. Em face do que antecede, a única interpretação da norma prevista no artigo 2º, nº 1 da Lei nº 38º-A/2023, de 02 de Agosto conforme aos Princípios Constitucionais referidos supra é aquela que estende o âmbito subjetivo das medidas de graça previstas na Lei nº 38º-A/2023, de 02 de Agosto a todos os infratores, independentemente da idade (“todos, todos, todos”, diria o Sumo Pontífice…) dentro dos demais condicionalismos impostos pela referida Lei, nomeadamente dos respetivos artigos 3º, 4º e 7º, o que ora se invoca e requer,
XIII. O que redundará na absolvição do recorrente dos crimes desobediência por que vem condenado, por força da amnistia prevista no artigo 4º daquela Lei, já que o caso vertente – aparte da injusta restrição etária – observa todos os demais requisitos de aplicabilidade do referido diploma.
XIV. A título subsidiário, e ressalvado o respeito que é devido, sempre se dirá que as penas parcelares concretamente aplicadas se afiguram demasiado severas, pois que o arguido não tem antecedentes criminais, está familiar e socialmente bem inserido, pelo que as penas deveriam aproximar-se, ambas, (sobretudo a primeira) mais do mínimo legal, determinando, por isso, a aplicação da pena única de concurso mais reduzida.
XV. Assim, a decisão a quo deveria ter aplicado ao caso vertente a amnistia prevista nos artigos 2º, nº 1 e 4º da Lei nº 38º-A/2023, de 02 de Agosto, por ser a única interpretação conforme do primeiro daqueles preceitos aos Princípios dos 13º, nºs 1 e 2 e 41º, nº 4 da Lei Fundamental, e como postergou as normas constantes dos artigos 40º, 47º e 71º do Código Penal, deverá ser revogada por esta Relação.»
Pugna o recorrente pela revogação da sentença.
O recurso foi admitido.
O Ministério Público na 1.ª instância apresentou resposta, revendo-se no entendimento da sentença recorrida, quer relativamente à invocada inconstitucionalidade quer quanto à pena aplicada ao recorrente, pelo que defende a improcedência do recurso.
Nesta Relação, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta assume posição idêntica, aduzindo recente jurisprudência no sentido da não inconstitucionalidade da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto e entendendo não ser de censurar a medida da pena.
Cumprido o contraditório, o recorrente reiterou na íntegra o recurso interposto.
Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO

A. Delimitação do objecto do recurso

Nos termos do art. 412.º do Código de Processo Penal[2], e face às conclusões do recurso, são três as questões a resolver:

- se o art. 2.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, sofre de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade;
- se o mesmo artigo viola o princípio constitucional da laicidade do Estado;
- se as penas aplicadas ao recorrente são excessivas.

B. Decisão recorrida

1. Questão prévia

«Da Invocada Inconstitucionalidade do artigo 2.º, n.º 1, da Lei 38-A, de 2 de Janeiro por violação do princípio da igualdade
Pugna o arguido pela extinção do procedimento criminal por entender que o artigo 2.º, n.º 1, da Lei 38-A, de 2 de Janeiro ao restringir o benefício do perdão e da amnistia aos factos praticados por pessoas com idade entre os 16 e 30 anos à data da sua prática, enferma de inconstitucionalidade por violação do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa, devendo por isso o arguido beneficiar da amnistia do procedimento criminal independentemente da sua idade à data da prática dos factos.

Decidindo.

Sob a epigrafe “Princípio da Igualdade”, dispõe o artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa o seguinte:
“1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”.
A Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude (art. 1.º).
O referido diploma legal entrou em vigor no dia 1 de Setembro de 2023 (cfr. artigo 15.º).
O âmbito da sua aplicação encontra-se previsto no seu art.º 2.º:
1 – Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 anos e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos arts. 3.º e 4.º. (…)”.

A referida Lei abrange as sanções penais relativas a determinados ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19/6/23, por pessoas com idades compreendidas entre os 16 e os 30 anos à data da prática dos factos - art. 2º..
Dispõe o artigo 4.º da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto (Lei do Perdão de Penas e Amnistia de Infracções) que “São amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa.”
Os crimes imputados ao arguido são puníveis com pena de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias.
Do que se acabou de expor, resulta que o arguido não poderá beneficiar da amnistia por força da sua idade à data dos factos, e por isso o mesmo defende a inconstitucionalidade do artigo 2.º, n.º 1, Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto por violação do princípio da igualdade.
Discordamos, respeitosamente, do seu entendimento.
O legislador esclareceu na proposta de lei as razões do âmbito subjectivo da aplicação da referida lei, fazendo constar da exposição de motivos o seguinte:
Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ.
Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina.”.
O Ministério Público quando emitiu parecer sobre a referida proposta de lei identificou numerosas decisões proferidas pelo Tribunal Constitucional – as quais poderão ser facilmente consultadas - a propósito de anteriores diplomas legais que consagraram medidas de graça, onde aquele Tribunal abordou o princípio da igualdade sob diversos prismas. 
A ideia que trespassa em todas as referidas decisões é sempre a mesma: firma-se uma jurisprudência reiterada no sentido de que o princípio da igualdade obriga a que se trate por igual o que for necessariamente igual e como diferente o que é essencialmente diferente, não impedindo as diferenciações de tratamento mas apenas as que sejam arbitrarias, irrazoáveis, meramente subjectivas e sem fundamento material bastante.
De resto, as normas que discriminam positivamente os jovens não são inéditas no nosso ordenamento jurídico, começando desde logo pelo artigo 70.º da Constituição da República Portuguesa, que estabelece uma protecção especial dos jovens, e artigo 9.º do Código do Código Penal, que consagra disposições especiais para jovens. Aliás, foi em obediência a esta última disposição que surgiu o Regime Penal Aplicável a Jovens Delinquentes, aprovado pelo DL n.º 401/82, de 23 de Setembro, cujos destinatários são pessoas com idade até 21 anos à data da prática do facto delituoso.
Tendo em consideração esta jurisprudência sedimentada e constante do Tribunal Constitucional, em relação à qual não temos motivos para dela divergirmos, entendemos que o âmbito subjectivo de aplicação da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto, diferenciando positivamente os “jovens” (as aspas justificam-se por não existir uma inteira coincidência com o conceito de jovens previsto neste diploma legal e em outros diplomas, incluindo o Código Penal), encontra uma justificação racional, razoável e materialmente válida, e está compreendida na protecção especial dos jovens prevista no artigo 70.º da Constituição da República Portuguesa, não sendo arbitrário, tratando de modo igual os que se encontrem na mesma situação.
Em suma, pelas razões vindas de referir, conclui-se que o artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto, não enferma de inconstitucionalidade, designadamente por violação do princípio da igualdade previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa.»

2. Factos provados[3]

«1 - No âmbito do processo por contra-ordenação nº ...19, elaborado pela GNR ..., em 02.04.2022, foi apreendido ao arguido o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ..-..-EC, pelo facto de circular na via pública sem estar abrangido por seguro obrigatório de responsabilidade civil.
2 - Tal veículo é propriedade do arguido e encontrava-se a ser conduzido pelo mesmo no dia supra referido.
3 - Nessa ocasião, foi o arguido nomeado fiel depositário do veículo e advertido nos seguintes termos: “fica com a obrigação de o entregar quando lhe for exigido, não podendo remover, alterar o estado, utilizar, alienar, destruir, danificar ou inutilizar, total ou parcialmente, ou por qualquer outra forma, subtrair ao poder público a que está sujeito, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência e/ou descaminho ou destruição de objectos colocados sob o poder público, previsto e punível nos termos dos artigos 348º e 355º do Código Penal”.
4 - Não obstante saber que o referido veículo se encontrava apreendido à ordem daquele processo de contra-ordenação e que não o podia utilizar, no dia 01.10.2022, cerca das 10h50m, o arguido conduzia tal viatura na Avenida ..., freguesia ..., concelho ..., quando foi fiscalizado por agentes da Polícia de Segurança Pública de ....
5 - Posteriormente, não obstante saber que o referido veículo se mantinha apreendido à ordem do mesmo processo de contra-ordenação, no dia 29.10.2022, pelas 19h15m, o arguido conduzia tal viatura na Estrada Nacional ...03, ao Km 3,300, em ..., concelho ..., quando foi fiscalizado por militares da Guarda Nacional Republicana de ....
6 - O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente. 
7 - Bem sabendo que ao conduzir o veículo de matrícula ..-..-EC, nos referidos dias 01.10.2022 e 29.10.2022, desrespeitava a ordem legítima que lhe fora regularmente transmitida pelas autoridades policiais que procederam à apreensão do mesmo e que, com tal comportamento, incorria na prática do crime de desobediência, uma vez que disso foi devidamente advertido.
8 - Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Mais se provou:
9 - O arguido confessou os factos de forma ilegal e sem reservas e demonstrou arrependimento.
10 – O arguido é casado, não tem filhos, e vive com a sua mulher e seu progenitor em casa própria deste último.
11 – Encontra-se desempregado e não aufere qualquer rendimento.
12 – A sua mulher é reformada e aufere uma pensão mensal no valor de 375,00€.
13 - O seu progenitor encontra-se reformado e aufere uma pensão de valor não concretamente apurado.
14 - Tem como habilitações literárias o 6.º ano de escolaridade.
15 - Não tem créditos contraídos.
16 - O arguido não tem antecedentes criminais.»

3. Enquadramento jurídico dos factos provados

«Vem o arguido acusado da prática de um crime de desobediência, previsto e punível pelo artigo 348º, nº 1, al. b) do Código Penal.

Dispõe o art. 348.º do Código Penal que:

“1- Quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.
2- (…).”

O bem jurídico protegido pela presente incriminação é, tal como nos demais crimes contra a autoridade pública, a autonomia intencional do Estado.

Constituem elementos objectivos integrantes deste concreto tipo legal de crime:
a) a existência de uma disposição legal, ordem ou mandado; 
b) a legalidade substancial e formal da ordem ou mandado, que tem que se basear numa disposição legal que autorize a sua emissão ou decorrer dos poderes discricionários do funcionário ou autoridade emitente;
c) a competência da autoridade ou funcionário para a sua emissão, isto é, que aquilo que pretendam impor caiba na esfera das suas atribuições;
d) a regularidade da sua transmissão ao destinatário, por forma a que aqueles tenham conhecimento do que lhes é imposto ou exigido;
e) o incumprimento da ordem; e
f) que uma disposição legal comine a punição da desobediência qualificada (para o tipo do n.º 2).

Na ausência de disposição legal que comine, no caso, a punição da desobediência, o preenchimento do tipo exige ainda a existência de uma “cominação funcional”.
Como elemento subjectivo, exige-se a verificação do dolo, em qualquer das suas modalidades (directo, necessário ou eventual).
(…) inexistindo causas de exclusão da culpa ou da ilicitude, dúvidas não restam de que estão verificados todos os elementos constitutivos do tipo legal de crime em apreço, pelo que se impõe a condenação do arguido pela prática dos crimes de desobediência.»

4. Escolha e determinação da medida da pena

«O arguido cometeu, em autoria material e na forma consumada, dois crimes desobediência, previsto e punido pelo art. 348, nº1, alínea b) do Código Penal.
O ilícito criminal em apreço é punido com pena de prisão até 1 (um) ano ou com pena de multa até 120 (cento e vinte) dias.
A determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigo 71º, n.º 1 do Código Penal).
Nos termos do artigo 40º, n.º 1, “a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. Segundo ANABELA MIRANDA RODRIGUES, “ao apontar-se in positivo uma finalidade à pena – protecção de bens jurídicos e, portanto, prevenção, que tanto pode ser geral como especial – foi o eclipse da sua justificação retributiva que se deu”.
Sendo certo que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa (artigo 40º, n.º 2 do Código Penal).
As exigências de prevenção reportam-se, quer à prevenção geral positiva ou de integração (primordialmente, a finalidade visada pela pena há-de ser a da tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto, com um significado prospectivo, traduzido pela necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada), quer à prevenção especial positiva ou de socialização (nos termos da qual deve procurar-se uma recuperação do delinquente para a sociedade e lutar para que a intervenção estatal seja desprovida, tanto quanto possível, de um carácter dessocializador).
Por fim, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (artigo 40º, n.º 2 do Código Penal).

***
Escolha da pena

O ordenamento jurídico-penal português assenta na concepção básica de que a pena privativa da liberdade deve constituir a ultima ratio da política criminal, prescrevendo o artigo 70º do Código Penal que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda, sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”,
Face às circunstâncias que se provaram, cumpre determinar qual a pena adequada a punir a conduta do arguido, considerando os elementos atinentes à prevenção geral positiva e à prevenção especial positiva.
No que respeita às exigências de prevenção geral, as mesmas assumem particular relevo tendo em consideração a actual conjectura, em que se vive uma crise de autoridade, pois frequentemente são desrespeitadas as decisões das autoridades competentes, pondo-se desse modo em causa um dos pilares do Estado de Direito e desvirtuando-se por completo as finalidades de tais ordens. Nessa medida, urge afastar condutas que, como aquela que foi adoptada pela arguida, desrespeitam a autoridade funcional do Estado.
Do ponto de vista da prevenção especial, as exigências assumem reduzida relevância, visto que o arguido não tem antecedentes criminais.
Sopesando as exigências de prevenção geral e especial a que acima aludimos, entendemos que a aplicação da pena de multa satisfaz de forma adequada as necessidades de prevenção e da punição.

Determinação Concreta Medida da Pena

Quanto à determinação da concreta medida da pena, regem os critérios contidos nos artigos 40.º e 71.º, ambos do Código Penal.
Passemos então à determinação da pena a aplicar em concreto à arguida, sendo que, como já se avançou, as exigências de prevenção geral são elevadas.
Há a considerar na determinação da medida concreta da pena o que se segue.

Milita contra o arguido os seguintes factores:

- O grau mediano da ilicitude da sua conduta, afigurando-se maior na segunda ocasião pela repetição do ilícito, mesmo depois de ter sido abordado a conduzir o veículo que se encontra apreendido no mesmo mês;
- O modo de execução dos factos revela censura, mas não extravasa a normalidade deste tipo de situações;
- O dolo directo com que actuou.
A favor do arguido:
- A confissão integral e sem reservas que, no crime de desobediência, considerando todos os seus elementos, não deixa de se traduzir num contributo válido para a descoberta da verdade material dos factos;
- O arguido demonstrou arrependimento sincero, o que traduz a ideia de que interiorizou de forma plena a censura cabível ao seu comportamento.
- Não tem antecedentes criminais, o que o favorece. 
- Vive segundo os padrões normais vigentes na sociedade.
- Pondera-se nesta sede todas os restantes factos relativos às suas condições pessoais, como as suas habilitações literárias.
Sopesados todos os elementos acima mencionados e atendendo à moldura penal referida, decide-se condenar o arguido, respectivamente, na pena 40 dias de multa peloa factos de 01.10.202, e 60 dias de multa, pelos factos de 29.10.2022, fixando-se a taxa diária em diária de 5,00€, em face das suas precárias condições económicas.
*
Do cúmulo de Pena

Uma vez que o arguido praticou ambos os crimes na mesma ocasião, importa apurar se há lugar à realização do respectivo cúmulo jurídico das penas aplicadas nos termos do artigo art. 77º do Cód. Penal.
Ao abrigo do n.º 1 daquela disposição legal, o agente que tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
A moldura abstracta da pena única compreende-se entre 60 e 100 dias de multa.
Considerando a imagem global do ilícito, a personalidade do arguido neles demonstrada e as suas condições pessoais, fixa-se a pena única em 70 dias de multa à taxa diária de 5,00€.»

C. Apreciação do recurso

1. Da inconstitucionalidade do art. 2.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, por violação do princípio da igualdade

Esta Lei, de 2 de Agosto, estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infracções (art. 1.º) e definiu o seu âmbito objectivo e subjectivo de aplicação no art. 2.º, n.º 1: “Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º”.

Há dois parâmetros base para apreciar a aplicabilidade da amnistia ao caso concreto:

- o recorrente vinha acusado – e veio a ser condenado pelo Mm.º Juiz a quo – pela prática de dois crimes de desobediência, p. e p. pelo art. 348.º, n.º 1, b), do Código Penal, o primeiro datado de 1 de Outubro de 2022 e o segundo de 29 do mesmo mês; e
- o recorrente nasceu a ../../1970.

Tal significa que, pese embora os ilícitos criminais dos autos tenham sido praticados antes daquela data limite, não podem abranger o recorrente do ponto de vista subjectivo, porque, em Outubro de 2022, o arguido tinha 52 anos.
Insurge-se o requerente contra a não aplicação da amnistia, por entender aquele limite de idade como sendo uma violação do princípio da igualdade, previsto no art. 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa: “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”.
Integrando os direitos fundamentais, este “é um princípio estruturante do Estado de direito democrático e do sistema constitucional global (cfr., neste sentido, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 1.º vol., 2.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1984, p. 198), que vincula directamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (cfr. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição Anotada, 1.º vol., cit., p. 151, e Jorge Miranda, «Princípio da Igualdade», in Polis/Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, vol. III, Lisboa, São Paulo, Verbo, 1985, pp. 404 e 405). (…)
Princípio de conteúdo pluridimensional, postula várias exigências, entre as quais a de obrigar a um tratamento igual das situações de facto iguais e a um tratamento desigual das situações de facto desiguais, proibindo, inversamente, o tratamento desigual das situações iguais e o tratamento igual das situações desiguais.  Numa fórmula curta, a obrigação da igualdade de tratamento exige que «aquilo que é igual seja tratado igualmente, de acordo com o critério da sua igualdade, e aquilo que é desigual seja tratado desigualmente, segundo o critério da sua desigualdade».
Na sua dimensão material ou substancial, o princípio constitucional da igualdade vincula em primeira linha o legislador ordinário (…). Todavia, este princípio não impede o órgão legislativo de definir as circunstâncias e os factores tidos como relevantes e justificadores de uma desigualdade de regime jurídico num caso concreto, dentro da sua liberdade de conformação legislativa.
Por outras palavras, o princípio constitucional da igualdade não pode ser entendido de forma absoluta, em termos tais que impeça o legislador de estabelecer uma disciplina diferente quando diversas forem as situações que as disposições normativas visam regular.[4]
A questão é, portanto: a fixação do limite de idade dos agentes de crime nos 30 anos viola o princípio da igualdade[5]?
Nos termos do art. 161.º, f), da Constituição, é da competência exclusiva da Assembleia da República conceder amnistias e perdões genéricos.
Tal direito de graça – herdeiro dos perdões régios – “subverte princípios estabelecidos num moderno Estado de direito sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais, porquanto permite a intromissão de outros poderes na administração da justiça, tarefa para a qual só o poder judicial se encontra vocacionado, sendo por muitos consideradas tais medidas como instituições espúrias que neutralizam e até contradizem as finalidades que o direito criminal se propõe.[6]
Para o recorrente, houve arbitrariedade legislativa ao fixar o limite de aplicação nos 30 anos, inexistindo uma definição única de “jovem” para efeitos legais e constitucionais.
Como bem refere o Mm.º Juiz a quo, a própria Constituição tem uma norma (art. 70.º) – mais programática, uma vez que se enquadra no Título III (relativo aos direitos e deveres económicos, sociais e culturais) e, dentro deste, no Capítulo II (dos direitos e deveres sociais) – que tem por epígrafe “Juventude” e prevê a protecção especial dos jovens em vários domínios desses direitos; é uma das “normas determinadoras de fins e tarefas (…) que, de uma forma global e abstracta, fixam essencialmente os fins do Estado e as tarefas prioritárias do mesmo”.[7] Porém, dela não resulta definido o que seja um jovem, em termos etários.
Já o art. 9.º do Código Penal é mais concreto, remetendo para legislação especial[8] normas a aplicar em exclusivo aos agentes de crimes maiores de 16 anos e menores de 21.
No que respeita à definição de criança ou jovem no âmbito da mais geral noção de vítima – art. 67.º-A, n.º 1, d) –, refere-se “uma pessoa singular com idade inferior a 18 anos”.
Mesmo quando se sai do âmbito do Direito Penal e Processual Penal, e só a título de exemplo, são diversificados os conceitos de “jovem”: para ser titular de Cartão Jovem, a idade mínima é de 12 anos, e a máxima de 29 (inclusive)[9]; o desconto jovem da CP vai até aos 25 anos[10]; é-se jovem agricultor entre os 18 e os 40 anos[11].
Cabe, assim, apreciar o fundamento que levou o legislador a optar pelo máximo de 30 anos para aplicação da Lei que ora se analisa.
Tal resulta cristalino da exposição de motivos da respectiva Proposta de Lei (n.º 97/XV/1.ª)[12], citada pelo Mm.º Juiz a quo: as Jornadas Mundiais da Juventude, que se realizaram em Lisboa no início de Agosto de 2023, têm os jovens como protagonistas, abarcando nesse conceito as pessoas até aos 30 anos (idade limite para a participação).
Logo, tendo a Lei directa relação com esse evento, que contou com a presença do “representante máximo da Igreja Católica Apostólica Romana”, o Papa Francisco, o mesmo limite foi estabelecido para a abrangência da Lei.
E, acrescenta-se na referida exposição de motivos, a propósito do Papa Francisco, que o seu “testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal”.
Quer dizer, o legislador não só explica o fundamento desta escolha, como o vai buscar ao evento que, na sua óptica, o justifica; inexiste qualquer arbitrariedade ou falta de razoabilidade – não se excluem, por exemplo, os agentes com idade entre os 16 e os 30 anos que professem qualquer outra fé que não a católica, sejam agnósticos ou ateus, que estivessem ou não inscritos no evento, nem os nacionais (por contraponto aos estrangeiros residentes em Portugal) ou aqueles que não falem português (casos que constituiriam flagrantes violações do art. 13.º, n.º 2, da Constituição e, portanto, do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei – “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”)
Não se criou, portanto, qualquer situação de desigualdade arbitrária. Como se pode ler no acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 2/2023[13], que por sua vez cita decisões do Tribunal Constitucional, “qualquer medida de amnistia, entendida em sentido amplo, pode remeter, necessariamente, para uma certa derrogação do princípio da igualdade (…), uma vez que há sempre um grupo limitado de delitos que deixa de ser punido, ou um conjunto de penas que deixam de ser cumpridas, mantendo-se os demais.
"Todavia, no domínio das medidas de clemência, o princípio da igualdade deverá ser entendido num sentido específico: ele não impede a lei de aprovar regras especiais, dirigidas a certas categorias de ilícitos e de penas, mas sim de aprovar regras diferentes para situações objectivamente iguais. O problema consiste, pois, em avaliar as situações que poderão ser consideradas especiais".
Assim (…), «a diversidade de tratamento que se exprime em leis especiais e excepcionais é admissível se, e enquanto, seja possível afirmar, objectiva e racionalmente, que a sua previsão, ainda que em via concreta, surja como um carácter de tal modo próprio que a permita destacar "da disciplina geral"».
Desta forma, «a jurisprudência do Tribunal Constitucional afirma que o princípio da igualdade nas leis de amnistia e de perdão genérico "só recusa o arbítrio, as soluções materialmente infundadas ou irrazoáveis" (Acórdão n.º 42/95), entendendo que as diferenças de tratamento legal traduzem uma diferenciação arbitrária apenas quando não sejam concretamente compreensíveis ou quando não seja possível encontrar uma justificação razoável para a diferenciação, ligada à natureza das coisas (Acórdão n.º 152/95)"»”.
Ora, essa fundamentação existiu claramente por parte do legislador.
Aliás, no sentido de não violação do princípio da igualdade constitucional têm ido os tribunais superiores até agora chamados a pronunciar-se[14].
Conclui-se, portanto, pela inexistência desta inconstitucionalidade invocada pelo recorrente.

2. Da inconstitucionalidade do art. 2.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, por violação do princípio da laicidade do Estado

A laicidade do Estado está ligada à tradição republicana[15], assentando em três princípios: “secularização do poder político, neutralidade do Estado perante as Igrejas, liberdade de consciência, religião e culto. (…) A Constituição de 1976, embora herdando alguns dos princípios republicanos de 1910, não adjectivou a República Portuguesa como “República laica”, e deslocou os problemas fundamentais do “laicismo” para o âmbito dos direitos fundamentais. (…) considerou que, verdadeiramente, o que estava em causa eram problemas relativos a direitos, liberdades e garantias[16].
Assim, prevê o art. 41.º da nossa Constituição, com a epígrafe “Liberdade de consciência, de religião e de culto”, no seu n.º 4: “As igrejas e outras comunidades religiosas estão separadas do Estado e são livres na sua organização e no exercício das suas funções e do culto.
O Estado assume, desta forma, uma posição de neutralidade em relação às convicções religiosas dos seus cidadãos: por um lado, confere a estes a liberdade de as ter e, por outro, não é um Estado doutrinal. É que “qualquer forma de dirigismo cultural fere o bem comum e mina os alicerces do Estado de direito. O Estado não pode, pois, impor aos cidadãos quaisquer formas de concepção do homem, do mundo e da vida.”[17]
Não é, porém, insensível a grandes eventos que podem trazer a Portugal altos dignitários das igrejas, momentos congregadores de uma boa parte da população e em que as leis de amnistia e perdão vão de encontro ao efeito pretendido com aquelas visitas: tal já ocorreu, antes das JMJ, por ocasião de duas vindas a Portugal do Papa João Paulo II, em 1982 (Lei n.º 17/82, de 2 de Junho) e em 1991 (Lei n.º 23/91, de 4 de Julho).
Ora, houve outras três leis semelhantes por motivos seculares e estritamente nacionais: a Lei n.º 16/86, de 11 de Junho, após a eleição de Mário Soares como Presidente da República – o primeiro civil a exercer tal cargo em democracia com sufrágio universal –, e as Leis n.º 15/94, de 11 de Maio, e n.º 29/99, de 12 de Maio, para assinalar, respectivamente, os 20 e os 25 anos da Revolução de 25 de Abril de 1974.
Embora com contornos diversos, porque restrita a perdões parciais, indultos, saída administrativa de condenados e antecipação extraordinária da colocação em liberdade condicional, ocorreu ainda a aprovação de uma lei (n.º 9/2020, de 10 de Abril) cuja determinante fundamental foi a protecção da saúde pública, também nos estabelecimentos prisionais, por causa da pandemia de Covid-19.
E também ocorreram quatro outras visitas papais – Paulo VI em 1967, João Paulo II em 2000, Bento XVI em 2010 e Francisco em 2017 – sem que existisse qualquer lei similar. Em relação a esta última, foi até apresentada à Assembleia de República a petição n.º 323/XIII/2.ª, no sentido da concessão de amnistia, sem o resultado pretendido[18].
Portanto, é patente que o órgão legislativo máximo da República Portuguesa não considera, de forma automática e acrítica (o que seria, isso sim, manifestação confessional), que qualquer visita de um Papa – máximo representante da Igreja Católica, cuja fé 80,2% dos residentes em Portugal afirmaram recentemente professar[19] – determina a aprovação de uma lei da amnistia, assim como entende haver outros fundamentos, totalmente laicos, para ir nesse sentido.
Entende-se, por isso, que o art. 2.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023 não é inconstitucional por violação do princípio da laicidade do Estado.
Mas, ainda que assim fosse, uma nota merece esta arguição feita pelo recorrente: a haver esta inconstitucionalidade, não afectaria apenas aquele artigo, mas a Lei como um todo, porque se reporta aos seus fundamentos, pelo que não se aplicaria a ninguém (e, portanto, também não ao recorrente…).
Por tudo isto, não lhe assiste razão nesta parte do recurso.

3. Medida concreta da pena

Resulta do art. 40.º do Código Penal que a aplicação das penas tem um duplo objectivo – a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (n.º 1) – e um limite – a medida da culpa de quem comete o crime (n.º 2).
Desta forma se expurga daquela aplicação quaisquer resquícios de vingança, imprópria de um Estado de Direito democrático, onde o princípio da dignidade da pessoa humana deve prevalecer (art. 1.º da Constituição).
A citada protecção de bens jurídicos inclui “todas as finalidades que, sendo preventivas, se não confundam com a prevenção especial positiva, ou seja, com a reinserção social do delinquente. Desde logo, portanto, as outras modalidades de prevenção especial: negativa, enquanto intimidação do próprio agente do crime, e neutralizadora, como afastamento do delinquente da sociedade por certo período, para que, pelo menos durante esse tempo, não cometa mais crimes.
Depois, haverá evidentemente que prosseguir as finalidades geral-preventivas. Não está excluída do preceito [art. 40.º, n.º 1] um efeito de prevenção geral negativa, como intimidação de todos os potenciais delinquentes, mas, de acordo com a doutrina mais autorizada, importa assinalar, como fim essencial da pena, a prevenção geral positiva ou de integração.
É sabido que com a prevenção geral positiva se almeja, antes de mais, a criação de um sentimento de confiança no sistema, por parte da população em geral. A segurança das pessoas resulta também da convicção de que o direito é mesmo para ser respeitado.
Mas, numa perspectiva de prevenção geral positiva, a pena tem ainda um efeito pedagógico. O auto-refreamento de eventuais solicitações para o crime que assaltem os não delinquentes é compensado com a satisfação moral de não se sofrer qualquer pena, facto contraposto à pena que se vê aplicada ao delinquente. Finalmente, assinala-se à prevenção geral positiva, um efeito de coerência lógica: a coercibilidade do direito em geral, e do direito penal, em particular, impõe que o desrespeito das respectivas normas tenha consequências efectivas.[20]
Quanto à determinação concreta da pena, deve ser feita “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, levando-se em conta “todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele” (art. 71.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal), cuja enumeração exemplificativa consta deste último, a saber:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
No caso, cada crime de desobediência cometido pelo recorrente é punível com pena de prisão até 1 ano ou pena de multa até 120 dias; seguindo o critério orientador do art. 70.º do Código Penal, o Mm.º Juiz a quo aplicou ao recorrente pena de multa em ambos os crimes, respectivamente de 40 dias e de 60 dias.
Entende o recorrente que as duas penas deviam ser reduzidas – ficando mais próximas do mínimo legal –, redundando numa pena única mais baixa; para tal, invoca a ausência de antecedentes criminais, bem como a sua inserção familiar e social (conclusão XIV).
Ora, na sentença recorrida não deixou de se considerar, e bem, estas duas circunstâncias a favor do arguido, acrescentando-se-lhe ainda, também com acerto, a confissão integral e sem reservas dos factos e o arrependimento sincero do recorrente.
Porém, o Mm.º Juiz a quo aduziu, como factores que militam contra o arguido, o dolo directo da sua actuação e a mediana censura do modo de execução dos factos, bem como da ilicitude da conduta, que considerou «maior na segunda ocasião pela repetição do ilícito, mesmo depois de ter sido abordado a conduzir o veículo que se encontra apreendido no mesmo mês».
E percebe-se bem esta última afirmação, muito adequada para justificar a diferença do doseamento das duas penas de multa, incrementando a duração da segunda: apesar de saber, desde ../../2022 – quando o veículo foi apreendido por falta de seguro obrigatório de responsabilidade civil e, no mesmo acto, nomeado fiel depositário daquele, que não o podia utilizar (entre outros fins), sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência –, o recorrente conduziu o veículo no dia 1 de Outubro desse mesmo ano, em ... (altura em que foi fiscalizado pela PSP) e, 28 dias depois, noutra freguesia do concelho ..., a de ... – onde o recorrente reside, conforme a sua identificação na decisão recorrida – desta vez detectado pela GNR. A sabedoria popular diria: “à primeira quem quer cai, à segunda cai quem quer”.
É evidente que das duas vezes o arguido sabia exactamente o alcance do seu acto, mas na segunda, e em curto espaço de tempo, voltou a praticá-lo, o que denota uma maior ilicitude na conduta.
Na ausência de fixação concreta do mínimo da pena de multa no art. 348.º do Código Penal, rege o n.º 1 do art. 47.º do mesmo Código: está, por isso, em causa uma pena de multa cujo mínimo é de 10 dias.
Ora, tendo em conta que o termo médio desta pena é de 55 dias (metade do intervalo que vai do mínimo ao máximo, 110 dias), o peso que tiveram na fixação das penas os elementos que desfavorecem o arguido – levando o Mm.º Juiz a quo a optar, no primeiro dos crimes, por uma pena equivalente a 1/3 do máximo legal e, no segundo, por apenas cinco dias acima daquele termo médio – está inteiramente justificado.
Note-se que o dolo é directo, o mais grave previsto na lei (art. 14.º, n.º 1, do Código Penal), e o grau mediano quanto à ilicitude da conduta e ao modo de execução do facto não são de desprezar; por outro lado, além de as penas não ultrapassarem a medida da culpa do recorrente, também não podem deixar de constituir para este um sacrifício real, sob pena de perderem a sua eficácia punitiva.
A propósito, importa lembrar que, também na fixação da pena, o Tribunal de 1.ª instância beneficia da imediação de que sempre carece o de recurso (e por isso funciona também aqui como remédio jurídico): “o Tribunal da Relação somente altera o quantum da pena fixada pela 1ª Instância se, e apenas, detectar incorrecções ou distorções no respectivo processo aplicativo, ou na interpretação e emprego das normas legais e constitucionais que regem em matéria de pena. Ou seja, não pode proceder como se o fizesse ex novo; como se inexistisse uma decisão de 1.ª instância.[21]
Ora, na fixação das penas pelo Tribunal a quo, não se vislumbra que tenha sido violada qualquer disposição legal, nem que a pena tenha sido estabelecida com desrespeito pelos respectivos critérios legais; não merecendo reparos essa operação no tribunal recorrido, inexistem motivos para as alterar (ficando, consequentemente, prejudicada a questão da pretendida redução da pena única de 70 dias de multa, a qual, dentro dos poderes do Mm.º Juiz a quo, se revestiu de uma certa benevolência para com o arguido, apenas 10 dias superior à pena concreta máxima mais alta).
Inexistem, por isso, fundamentos para acolher, também nesta parte, a pretensão do recorrente.

III - DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, confirmando-se integralmente a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente, com 3 UC de taxa de justiça.
Guimarães, 7 de Maio de 2024
(Processado em computador e revisto pela relatora)

Os Juízes Desembargadores

Cristina Xavier da Fonseca
António Teixeira
Isilda Maria Correia de Pinho


[1] Opta-se por manter os negritos e sublinhados de origem, omitindo-se a primeira conclusão por reproduzir os termos da condenação.
[2] Diploma legal donde provêm as normas a seguir citadas sem indicação de origem.
[3] Inexistem factos não provados.
[4] Ac. TC n.º 186/90, de 6.6, in DR II de 12.9.90 e https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19900186.html, seguido e citado por inúmeros acórdãos posteriores (por exemplo, o n.º 488/2008, de 7.10, também versando a aplicação de um perdão – vide https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20080488.html).
[5] Não vindo ao caso, do ponto de vista constitucional, os apelos à inclusão por várias vezes formulados pelo Papa Francisco ao longo das Jornadas Mundiais da Juventude, como pretende o recorrente (conclusão XII).
[6] Assento n.º 2/2001, in DR n.º 264, I-A, de 14.11.2001, in https://files.dre.pt/1s/2001/11/264a00/72207227.pdf.
[7] Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, pág. 207.
[8] Concretizada no D.L. n.º 401/82, de 23 de Setembro.
[9] In https://www.cartaojovem.pt/Informacao/FAQ.
[10] In https://www.cp.pt/passageiros/pt/descontos-vantagens/descontos/jovem.
[11] In https://ajap.pt/jovem-agricultor/.
[12] Cf. https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=173095.
[13] De 1.2, in https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao-supremo-tribunal-justica/2-2023-206800919.
[14] Cf. Cruz Bucho, in Amnistia e Perdão (Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto): Seis meses depois (elementos de estudo), 1 de Março de 2024, https://www.trg.pt/#gsc.tab=0.
[15] Note-se que um dos limites materiais da revisão constitucional é a “separação das Igrejas do Estado” (art. 288.º, c), da Constituição).
[16] Gomes Canotilho, ibidem nota 7, págs. 414/415.
[17] Ac. TC n.º 174/93, de 17.2, in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19930174.html.
[18] Cf. https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalhePeticao.aspx?ID=13004.
[19] Cf. https://agencia.ecclesia.pt/portal/sociedade-censos-2021-mostram-80-2-de-catolicos-em-portugal/.
[20] Souto de Moura, José (2010), A Jurisprudência do S.T.J. sobre Fundamentação e Critérios da Escolha e Medida da Pena, in https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/soutomoura_escolhamedidapena.pdf, págs. 10 e 11, mantendo-se os destaques de origem.
[21] Ac. Rel. Lisboa de 8.2.23, in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRL:2023:303.21.0PDCSC.L1.3.66/.