CONTRAORDENAÇÃO
NULIDADE DA DECISÃO ADMINISTRATIVA
ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO
MOTORISTA
DECLARAÇÃO DE ATIVIDADE
PRESUNÇÃO DE CULPA DO EMPREGADOR
ILISÃO DA PRESUNÇÃO
INFRAÇÃO CONTINUADA
Sumário

I – Constando da decisão administrativa sancionadora de contraordenação que “a arguida não procedeu com o cuidado a que segundo as circunstâncias, estava obrigada e de que era capaz, bem sabendo que a descrita conduta era punida por lei. De facto, sendo da responsabilidade dos motoristas a requisição da declaração de atividade, sendo igualmente estes que organizam os tempos de condução e repouso, constata-se que não há controlo, planeamento do trabalho, logo a arguida não agiu com a diligência devida”, é de ter por descrito o elemento subjetivo dos tipos de contraordenação imputados.
II – Compete ao empregador demonstrar que organizou o trabalho de modo a que o condutor possa cumprir o disposto no Regulamento (CEE) n.º 3821/85, do Conselho, de 20 de dezembro, e no capítulo II do Regulamento (CE) n.º 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março.
III – Não fazendo essa prova, fica preenchido o elemento subjetivo do tipo da infração contraordenacional.
IV – É aplicável no âmbito das contraordenações o regime da continuação criminosa do art.º 30.º, n.º 2, do CPen..

Texto Integral

Acordam[1] na Secção Social (6ª Secção) do Tribunal da Relação de Coimbra:

 I – Relatório

A arguida A..., SA, com sede na Zona Industrial ..., ..., veio impugnar a decisão administrativa que lhe aplicou a coima única de € 11.500,00 pela prática de:

- cinco contraordenações muito graves, previstas e punidas pelos artigos 19.º, n.º 1, c) e 14.º, n.º 4, a) da Lei n.º 27/2010, de 30/08;

- uma contraordenação leve, prevista e punida pelos artigos 19.º, n.º 1, a) e 14.º, n.º 2, a) da Lei n.º 27/2010, de 30/08;

- uma contraordenação grave, prevista e punida pelos artigos 19.º, n.º 1, b) e 14.º, n.º 3, a) da Lei n.º 27/2010, de 30/08 e

- uma contraordenação muito grave, prevista e punida pelos artigos 25.º, n.º 1, b) e 14.º, n.º 4, a) da Lei n.º 27/2010, de 30/08.

                                                             *

Recebido o recurso, procedeu-se à realização da audiência de julgamento.

                                                             *

De seguida foi proferida a sentença de fls. 216 e segs. com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, julgando parcialmente procedente o RIJ, o Tribunal decide:

1) Manter a condenação da Arguida/Recorrente “A...,S.A. como responsável pelas seguintes contra-ordenações praticadas, a título de negligência, por um seu condutor:

1.1) Uma contra-ordenação muito grave, como reincidente, praticada no dia 30-06-2022, prevista e punida pelos art.os 19.º/1/c) e 14.º/4/a) da Lei n.º 27/2010, de 30/08, na coima de €.2.800,00;

1.2) Uma contra-ordenação muito grave, como reincidente, praticada no dia 01-07-2022, prevista e punida pelos art.os 19.º/1/c) e 14.º/4/a) da Lei n.º 27/2010, de 30/08, na coima de €.2.800,00;

1.3) Uma contra-ordenação muito grave, como reincidente, praticada no dia 05-07-2022, prevista e punida pelos art.os 19.º/1/c) e 14.º/4/a) da Lei n.º 27/2010, de 30/08, na coima de €.2.750,00;

1.4) Uma contra-ordenação muito grave, como reincidente, praticada no dia 23-06-2022, prevista e punida pelos art.os 19.º/1/c) e 14.º/4/a) da Lei n.º 27/2010, de 30/08, na coima de €.2.750,00;

1.5) Uma contra-ordenação leve, praticada no dia 28-06-2022, prevista e punida pelos art.os 19.º/1/a) e 14.º/2/a) da Lei n.º 27/2010, de 30/08, na coima de €.250,00;

1.6) Uma contra-ordenação muito grave, como reincidente, praticada no dia 22-06-2022, prevista e punida pelos art.os 19.º/1/c) e 14.º/4/a) da Lei n.º 27/2010, de 30/08, na coima de €.2.850,00;

1.7) Uma contra-ordenação grave, praticada no dia 21-06-2022, prevista e punida pelos art.os 19.º/1/b) e 14.º/3/a) da Lei n.º 27/2010, de 30/08, na coima de €.650,00;

1.8) Uma contra-ordenação muito grave, como reincidente, praticada no dia 06-07-2022, prevista e punida pelos art.os 25.º/1/b) e 14.º/4/a)  da Lei n.º 27/2010, de 30/08, na coima de €.2.750,00;

1.9) Em cúmulo jurídico, na coima única de €.10.000,00.

2) Condenar a Arguida/Recorrente no pagamento das custas, fixando-se a taxa de justiça em 3UC [art.os 59.º RJCOLSS, 94.º/3 RGCO, 8.º/7 RCP (Tabela III)].”

                                                             *

A arguida, notificada desta decisão, veio interpor o presente recurso que concluiu da forma seguinte:

(…).

                                                         *

O Ministério Público apresentou a sua resposta concluindo nos seguintes termos:

(…).

*

O Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu o parecer de fls. 256, no sentido de que deverá ser negado provimento ao recurso, por manifestamente infundado.                                                                           *

Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

                                                             *

II – Saneamento

A instância mantém inteira regularidade por nada ter entretanto sobrevindo que a invalidasse.

                                                             *

                                                             *

III – Fundamentação

a)- Matéria de facto provada constante da decisão recorrida:

1. No dia 06-07-2022, pelas 17h40m, a Arguida/Recorrente A..., S.A. mantinha em circulação, no IC..., ao Km 199, sentido S/N, ..., concelho ..., um seu veículo pesado de mercadorias com a matrícula ..-RQ-.., equipado com Tacógrafo Digital”, que foi objeto de fiscalização rodoviária.

 2. O veículo era conduzido pelo Condutor AA, trabalhador da Arguida/Recorrente, com a categoria profissional de motorista, titular do Cartão de Condutor n.º ...00....

 3. Obtidos os registos de atividade do Condutor por consulta ao Cartão de Condutor”, verificou-se que:

 3.1. No dia 30-06-2022, o Condutor iniciou às 08h55m um Período de condução que terminou às 19h42m, no qual se incluíram 06h43m de condução;

 3.2. No dia 01-07-2022, o Condutor iniciou às 09h37m um Período de condução que terminou às 18h53m, no qual se incluíram 06h29m de condução;

 3.3. No dia 05-07-2022, o Condutor iniciou às 06h23m um Período de condução que terminou às 16h52m, no qual se incluíram 06h44m de condução;

 3.4. No dia 23-06-2022, o Condutor iniciou às 06h23m um Período de condução que terminou às 15h46m, no qual se incluíram 06h10m de condução;

 3.5. No dia 28-06-2022, o Condutor iniciou às 11h47m um Período de condução que terminou às 21h46m, no qual se incluíram 04h42m de condução;

 3.6. No dia 22-06-2022, o Condutor iniciou às 06h48m um Período de condução que terminou às 17h21m, no qual se incluíram 07h19m de condução;

 3.7. No dia 21-06-2022, o Condutor iniciou às 06h26m um Período de condução que terminou às 19h53m, no qual se incluíram 05h38m de condução.

 4. Por via da fiscalização, verificou-se que do Cartão de Condutor”, em relação ao período em fiscalização, não constava nenhuma inscrição referente aos dias 08 a 20 Junho de 2022.

 5. Interpelado o Condutor sobre a existência de qualquer justificação para o período de ausência de inscrições no Cartão de Condutor”, o mesmo declarou que nesse período tinha conduzido um veículo ligeiro de mercadorias da Arguida/Recorrente, mas não apresentou qualquer Livrete Individual de Controlo (LIC) ou qualquer outro registo manual.

 6. O Condutor sabia que após um período de condução de quatro horas e meia estava obrigado a gozar uma Pausa de, pelo menos, 45 minutos; e a acionar/discriminar os seus tempos de atividade de modo a que do seu Cartão de Condutor constassem as inscrições [incluindo as entradas efetuadas manualmente] de toda a sua atividade do dia em curso e dos 28 dias anteriores; ou que, quando tal não fosse possível por razões objetivas, fosse portador e apresentasse à autoridade fiscalizadora folhas de registo ou declaração justificativa para os períodos não inscritos; tendo agido sem o cuidado que o dever geral de prudência aconselha, assim vindo a produzir resultados que devia e podia prever e evitar.

 7. O Condutor foi trabalhador da Arguida/Recorrente entre 03-02-2020 e 31-08-2022, sendo titular de CAM (Certificado de Aptidão para Motorista) emitido a 29-01-2020.

 8. Ao Condutor”, a 16-04-2022, foi ministrada formação profissional contínua sobre tacógrafos e regulamentação social com a duração de 8 horas.

 9. Está afixado no hall de entrada da sede da Arguida/Recorrente um aviso assinado pela gerência a dizer que os motoristas devem efetuar o preenchimento dos discos ou tiques de tacógrafo e cumprir escrupulosamente os tempos de descanso.

 10. A Arguida/Recorrente apresentou em 2021 um volume de negócios de 12.741.663€, conforme RU entregue em 2022.

 11. A Arguida/Recorrente tem os antecedentes contraordenacionais descritos a fls.203v. [cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido].

                                                                       *

                                           *

b) - Discussão

Questões prévias

1. Inadmissibilidade do recurso

Alega o Ministério Público que o recurso não deve ser admitido na parte em que a sentença condenou a recorrente nas coimas parcelares de € 250,00 e € 650,00, uma vez que o valor de cada uma dessas coimas é inferior a 25 UC.

E tem razão.

Na verdade, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da sentença quando for aplicada ao arguido uma coima superior a 25 UC`s, ou seja, a € 2.550,00 (€ 102,00x25) – artigo 49.º, n.º 1, a), da Lei n.º 107/2009 de 14/09.

Acresce que, <<se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infracções ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infracções ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso sobe com esses limites>> - n.º 3, do mesmo normativo. 

Assim sendo, uma vez que foram aplicadas à arguida duas coimas parcelares: uma de € 250,00 pela prática de uma contraordenação leve p. e p. pelos artigos 19.º, n.º 1, a) e 14, n.º 2, a), ambos da Lei nº 27/2010, de 30/08 e outra de € 650,00 pela prática de uma contraordenação grave p. e p. pelos artigos 19.º, n.º 1, b) e 14, n.º 3, a), ambos da Lei nº 27/2010, de 30/08, tendo em conta o disposto no citado artigo 49.º da Lei n.º 107/2009 de 14/09, não é admissível recurso no que respeita a estas contraordenações e que, como tal, se rejeita nesta parte.

                                                             *

Cumpre, assim, apreciar as seguintes questões suscitadas pela arguida:

1ª – Se a decisão administrativa é nula por ausência de factos que sustentem a imputação subjetiva da infração à recorrente.

2ª – Se a arguida ilidiu a presunção a que alude o artigo 13.º, n.º 2, da Lei n.º 27/2010, não sendo responsável pela prática das contraordenações que lhe são imputadas.

 3ª – Se a arguida devia ter sido condenada pela prática de uma única contraordenação.

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1ª questão

Se a decisão administrativa é nula por ausência de factos que sustentem a imputação subjetiva da infração à recorrente.

Alega a recorrente que:

- Não constam da decisão administrativa os elementos necessários à aplicação de uma coima, como é a de arguida ter agido de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que deveria cumprir as normas legais em causa.

- E sobretudo não consta da mesma decisão que a arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

- A falta de factos reveladores do elemento subjetivo gera a nulidade da decisão administrativa, nos termos do artigo 283.º, n.º 3, do CPP.

A este propósito consta da decisão recorrida o seguinte:

“A Arguida/Recorrente, ao deduzir RIJ nos termos do art.º 59.º RJCOLSS, manifesta a pretensão de que o objecto do procedimento contra-ordenacional, delimitado pela Decisão administrativa condenatória, seja submetido a apreciação jurisdicional;

Caso a Autoridade Administrativa não proceda à revogação da sua Decisão, remete os autos ao Ministério Público (art.º 36.º RJCOLSS);

O Ministério Público, não obstante a letra do art.º 37.º RJCOLSS, pode exercer as faculdades processuais previstas na Directiva n.º 4/2021 da Procuradora Geral da República, arquivando o procedimento ou devolvendo os autos à Autoridade Administrativa caso detecte vícios sanáveis no procedimento contra-ordenacional ou na Decisão administrativa condenatória;

Não sendo caso de arquivamento ou de devolução dos autos à Autoridade Administrativa, o Ministério Público apresenta os autos ao Tribunal, equivalendo essa opção do Ministério Público à dedução de uma acusação em processo penal e transformando a fase administrativa do procedimento numa fase instrutória da agora “Decisão-Acusação” (art.º 37.º RJCOLSS);

Entrado no Tribunal o processo com a “Decisão-Acusação”, cumpre ao Juiz rejeita o RIJ feito fora do prazo ou sem respeito pelas exigências de forma;

Porém, cumpre-lhe também, ao abrigo do art.º 311.º CPP, “ex vi” art.º 41.º/1 RGCO e “ex vi” art.º 60.º RJCOLSS, efectuar o saneamento do processo.

Neste saneamento do processo, distinguimos entre os vícios procedimentais e os vícios da “Decisão-Acusação” que o Ministério Público optou por apresentar;

Em caso de vícios procedimentais ainda não sanados e que sejam sanáveis [neste ponto concordamos com a posição de Paulo Pinto de Albuquerque], não obstante a diversa posição assumida pelo Ministério Público traduzida na apresentação da “Decisão-Acusação”, devem ser anulados os actos necessários e devolvidos os autos à Autoridade Administrativa [por exemplo, à luz do Assento n.º 1/2003 do Supremo Tribunal de Justiça] para completar o procedimento e proferir nova Decisão final;

Em caso de vícios da “Decisão-Acusação” [neste ponto concordamos com a posição de JOÃO SOARES RIBEIRO], os mesmos devem ser apreciados à luz do art.º 311.º CPP, isto é, arquivando o processo em caso de vícios formais [art.º 311.º/3/a)/b)/c) CPP] ou absolvendo a Arguida/Recorrente caso os factos constantes da “Decisão-Acusação” não constituam contra-ordenação.

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Toda a demasiado longa “supra” exposição serve para concluir que, ao contrário do defendido pela Arguida/Recorrente, em nosso entender, e sempre salvo o devido respeito por diferente e melhor juízo, a alegada falta de inclusão na “Decisão-Acusação” dos factos (objectivos ou subjectivos) que integram as contra-ordenações não configura qualquer nulidade [caso existisse nulidade, a mesma seria sanável e implicaria a devolução dos autos à Autoridade Administrativa para a prolação de nova Decisão final], não sendo aplicável o art.º 379.º CPP, o qual apenas se aplica a Decisões judiciais, mas sim causa de improcedência da “Decisão-Acusação” (ou, no seu reverso, causa de procedência do RIJ), seja no âmbito do Despacho de saneamento (art.º 311.º CPP), seja por simples Despacho ou por Sentença após audiência de julgamento (art.º 39.º RJCOLSS).”– fim de citação.

Vejamos:

Conforme resulta do disposto nos artigos 36.º e 37.º do RPCLSS, enviados os autos ao Ministério Público, após o recebimento da impugnação judicial da decisão administrativa, aquele torna-os presentes ao juiz, valendo este ato como acusação.

Compete ao juiz rejeitar a impugnação judicial nos casos previstos no artigo 38.º da mesma Lei n.º 107/2009, de 14/09 ou, caso contrário, proceder ao saneamento do processo, por força do disposto no artigo 311.º do CPP (ex vi do artigo 60.º da mesma lei).

Assim, o juiz deve rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada, nomeadamente, quando não contenha a narração dos factos (artigo 311.º, n.º 2, a) e n.º 3, b), do CPP).

Por outro lado, conforme resulta do artigo 25.º da Lei n.º 107/2009, de 14/09, sob a epígrafe “decisão condenatória”:

<<1– A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias contém:

a) A identificação dos sujeitos responsáveis pela infração;

b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas;

c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão;

d) A coima e as sanções acessórias.

2 – Da decisão consta também a informação de que:

a) A condenação se torna definitiva e exequível se não for judicialmente impugnada nos termos dos artigos 32.º a 35.º;

b) Em caso de impugnação judicial, o tribunal pode decidir mediante audiência ou, caso os sujeitos responsáveis pela infração, o Ministério Público e o assistente, quando exista, não se oponham, mediante simples despacho.

3 - A decisão contém ainda a ordem de pagamento da coima no prazo máximo de 10 dias após o carácter definitivo ou o trânsito em julgado da decisão.

(…)

5 – A fundamentação da decisão pode consistir em mera declaração de concordância com fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas de decisão elaboradas no âmbito do respetivo processo de contraordenação.>>

Resulta deste normativo que da decisão administrativa deve constar a indicação dos factos imputados ao arguido.

Como se decidiu no acórdão do STJ, de 21/12/2006, disponível em www.dgsi.pt:

<<I - A indicação dos factos imputados com menção das provas obtidas é uma exigência do art.58.°, n.º 1, do RGCO, em tributo aos mais elementares princípios que devem reger um direito de carácter sancionatório e que têm a ver sobretudo com garantias mínimas relacionadas desde logo com o direito de defesa, por muito sumário e expedito que se apresente o processo contra-ordenacional, pois a própria Constituição estende a este tipo de processos essas garantias (art. 32.°, n.º 10).

II - Entre essas garantias mínimas de defesa, avulta, a de “serem conhecidos os factos que são imputados ao arguido, pois sem que os mesmos estejam estabelecidos não é possível avaliar a justiça da condenação, fica inviabilizado o direito ao recurso e não há salvaguarda do ne bis in idem” - cf. Ac. deste STJ de 21-09-2006, Proc. n.º 3200/06 - 5.ª.

III - Nesse aspecto, a decisão condenatória em matéria contra-ordenacional, apresentando alguma homologia com a sentença condenatória em processo penal, tem uma estrutura semelhante a esta última, se bem que mais concisa, por menos exigente devido à sua menor incidência na liberdade das pessoas, devendo conter a identificação dos arguidos, a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas, a indicação das normas aplicáveis e a fundamentação da decisão.

IV - Na fase de recurso, valendo a apresentação dos autos ao juiz pelo MP como acusação (art.62.°, n.º 1, do RGCO), torna-se necessário, no que toca aos elementos imprescindíveis a que nos vimos reportando, o recurso ao art. 283.°, n.º 3, al. b), do CPP, aplicável subsidiariamente ao processo das contra-ordenações (art. 41.º, n.º 1, do mesmo diploma legal). E segundo este dispositivo, a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.

V - A sanção para o incumprimento da al. b) do n.º 1 do referido art. 58.º do RGCO é a nulidade da decisão impugnada, nos termos dos arts. 283.°, n.º 3, 374.°, n.º 2, e 379.°, n.º 1, al. a), do CPP, aplicável subsidiariamente.

VI - Tal nulidade é sanável e pode ser suprida pela autoridade que inicialmente tramita o processo - no caso a CNE -, inclusive com recurso a diligências probatórias indispensáveis para apuramento dos elementos em falta.>>

Pois bem, basta ler a decisão administrativa para se concluir que da mesma consta, além do mais, a descrição dos factos imputados à arguida bem como a imputação subjetiva.

Na verdade, na decisão administrativa pode ler-se: “são de considerar provados: a arguida não atuou com a diligência devida e de que era capaz, porquanto não organizou as escalas de trabalho do seu motorista (…); a arguida não atuou com a diligência devida e de que era capaz na organização, planeamento e vigilância da atividade, porquanto não assegurou que o condutor se fizesse acompanhar da totalidade dos registos relativos aos 28 dias anteriores ou de qualquer documento idóneo (…)”.

Mais se refere na decisão administrativa que: “a arguida não procedeu com o cuidado a que segundo as circunstâncias, estava obrigada e de que era capaz, bem sabendo que a descrita conduta era punida por lei. De facto, sendo da responsabilidade dos motoristas a requisição da declaração de atividade, sendo igualmente estes que organizam os tempos de condução e repouso, constata-se que não há controlo, planeamento do trabalho, logo a arguida não agiu com a diligência devida.

A arguida agiu assim com negligência (…).”

Assim sendo, facilmente se conclui que, ao contrário do alegado pela recorrente, a decisão administrativa contém a descrição do elemento subjetivo dos tipos de contraordenação imputados à arguida.

Aliás, mesmo que assim não fosse, sempre a arguida poderia ser condenada pela prática das contraordenações que lhe foram imputadas a título de negligência, posto que, resulta do artigo 13.º da Lei n.º 27/2010 de 30/08 que: <<1 – A empresa é responsável por qualquer infração cometida pelo condutor, ainda que fora do território nacional.

2 – A responsabilidade da empresa é excluída se esta demonstrar que organizou o trabalho de modo a que o condutor possa cumprir o disposto no Regulamento (CEE) n.º 3821/85, do Conselho, de 20 de Dezembro, e no capítulo II do Regulamento (CE)n.º 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março. (…)>>.

Esta lei estabelece o regime sancionatório aplicável à violação das normas respeitantes aos tempos de condução, pausas e tempos de repouso e ao controlo da utilização de tacógrafos na atividade de transporte rodoviário, transpondo a Diretiva n.º 2006/22/CR, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de março, alterada pelas Diretivas n.ºs 2009/4/CE, da Comissão, de 23 de janeiro e 2009/5/CE, da Comissão, de 30 de janeiro e veio consagrar <<uma presunção iuris tantum de imputação da violação de um dever de comportamento à entidade patronal dos condutores de transporte rodoviário>>[2] ou, nas palavras de Soares Ribeiro[3], “uma imputabilidade subjetiva presumida, uma presunção iuris tantum de culpa, e de consequente responsabilidade do empregador”.

<<Ou seja, a Lei 27/2010 veio consagrar uma das soluções previstas pelo art. 10º, nº 3, do Regulamento, qual seja uma forma mitigada da responsabilidade objectiva ou presumida, pois que, consagrando embora a responsabilidade da empresa transportadora com base numa presunção de culpa, veio, contudo, permitir que esta alegue e prove não ter sido responsável pelo seu cometimento, para o que deverá demonstrar que organizou o trabalho de modo a que seja possível o cumprimento das imposições legais>>[4].  

Na verdade, como se decidiu no acórdão desta Relação de 23/04/2021, disponível em www.dgsi.pt:

Só é punivel o facto praticado como dolo ou nos casos especialmente previstos na lei, com negligência (artº 8 do RGCO).

Para que seja possível imputar à arguida o ilícito contraordenacional é necessário apurar se houve culpa (no caso negligência) por parte daquela no cometimento da infracção.

(…)

Ora, a integração do tipo subjectivo de um determinado ilícito não pode ser levada a efeito em termos factuais directos, pois que o que aí está em causa é verdadeiramente uma questão de direito, não uma questão de facto.

A afirmação de um juízo de censura há-de extrair-se da globalidade dos factos descritos como sendo integradores da prática daquele ilícito, designadamente na sua dimensão objectiva.

Na verdade, os elementos subjectivos dos tipos de ilícito têm de ser inferidos dos factos materiais que, provados, apreciados segundo a livre convicção do julgador e em conjugação com as regras da experiência comum, apontam para a sua existência.

A prova dos elementos subjectivos dos tipos de ilícito terá de fazer-se indirectamente por ilações, a partir de outros factos provados, através de uma leitura do comportamento exterior e visível do agente.

Pelo exposto, a decisão administrativa não sofre do vício que lhe é assacado pela arguida.

Improcedem, por isso, estas conclusões da recorrente.

2ª questão

Se a arguida ilidiu a presunção a que alude o artigo 13.º, n.º 2, da Lei n.º 27/2010, não sendo responsável pela prática das contraordenações que lhe são imputadas.

Alega a recorrente que:

- Resulta dos factos provados que a arguida tinha planeado o trabalho do seu condutor de forma a incluir os períodos de pausa e de descanso e os locais em que tais pausas e descansos deveriam ocorrer, bem como ministrou a formação profissional ao condutor e que este sabia da obrigatoriedade dos períodos de pausa e sua duração, de acionar os tempos de atividade, de ser portador de folhas de registo ou de declaração justificativa.

- Assim, a arguida ilidiu a presunção que sobre si recai, não podendo ser responsável pelas contraordenações.

Vejamos:

Conforme resulta do n.º 1 do artigo 551.º do CT, <<o empregador é o responsável pelas contraordenações laborais ainda que praticadas pelos seus trabalhadores no exercício das respetivas funções, sem prejuízo da responsabilidade cometida por lei a outros sujeitos>>.

Significa isto que é a própria lei que, no âmbito da relação laboral, imputa a responsabilidade das citadas contraordenações ao empregador, sendo que, não estamos perante uma verdadeira presunção de culpa mas antes perante a consagração da responsabilidade por atuação em nome de outrem assente na culpa in eligendo ou in vigilando[5].

E conforme resulta da Lei n.º 27/2010 de 30/08:

<<Artigo 13.º

1 – A empresa é responsável por qualquer infração cometida pelo condutor, ainda que fora do território nacional.

2 – A responsabilidade da empresa é excluída se esta demonstrar que organizou o trabalho de modo a que o condutor possa cumprir o disposto no Regulamento (CEE) n.º 3821/85, do Conselho, de 20 de dezembro, e no capítulo II do Regulamento (CE)n.º 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março. (…)>>.

Esta lei estabelece o regime sancionatório aplicável à violação das normas respeitantes aos tempos de condução, pausas e tempos de repouso e ao controlo da utilização de tacógrafos, na atividade de transporte rodoviário, transpondo a Diretiva n.º 2006/22/CR, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de março, alterada pelas Diretivas n.ºs 2009/4/CE, da Comissão, de 23 de janeiro e 2009/5/CE, da Comissão, de 30 de janeiro e veio consagrar <<uma presunção iuris tantum de imputação da violação de um dever de comportamento à entidade patronal dos condutores de transporte rodoviário>>[6] ou, nas palavras de Soares Ribeiro[7], “uma imputabilidade subjetiva presumida, uma presunção iuris tantum de culpa, e de consequente responsabilidade do empregador”.

<<Ou seja, a Lei 27/2010 veio consagrar uma das soluções previstas pelo art. 10º, nº 3, do Regulamento, qual seja uma forma mitigada da responsabilidade objectiva ou presumida, pois que, consagrando embora a responsabilidade da empresa transportadora com base numa presunção de culpa, veio, contudo, permitir que esta alegue e prove não ter sido responsável pelo seu cometimento, para o que deverá demonstrar que organizou o trabalho de modo a que seja possível o cumprimento das imposições legais>>[8].

Como se refere no citado acórdão do Tribunal Constitucional 45/2014, <<se uma construção deste tipo pode ser problemática no domínio do direito penal, já em sede de direito de mera ordenação social em que apenas está em jogo a aplicação de coimas, não suscita qualquer reserva, tanto mais que, neste caso, se permite que a entidade patronal afaste a sua responsabilidade contraordenacional, demonstrando que organizou o serviço de transporte rodoviário de modo a que o seu condutor pudesse ter cumprido a norma que inobservou, ilidindo assim aquela presunção>>.

Ora, compulsada a matéria de facto provada, facilmente se conclui que a arguida não logrou provar, como lhe competia, que organizou o trabalho do condutor, controlou concretamente a sua atividade, de modo a que aquele pudesse cumprir os períodos de pausa legalmente previstos e respeitar a obrigação de apresentação imediata ao agente de fiscalização dos registos de atividade referentes aos 28 dias anteriores e, por isso, não procedeu com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigada e de que era capaz, sendo certo que, como já ficou dito, a integração do tipo subjetivo de um determinado ilícito não pode ser levada a efeito em termos factuais diretos, pois que o que aí está em causa é verdadeiramente uma questão de direito; a afirmação de um juízo de censura há de extrair-se da globalidade dos factos descritos como sendo integradores da prática daquele ilícito, designadamente na sua dimensão objetiva.

Na verdade, da matéria de facto provada resulta que a arguida não atuou com a diligência devida e de que era capaz, na medida em que, não resultou provado qualquer facto que demonstre a organização do serviço nos termos suprarreferidos, pelo que, facilmente se conclui que a arguida não logrou provar, como lhe competia, que organizou o trabalho de modo a que o condutor pudesse cumprir o disposto no Regulamento (UE) n.º 165/2014, do Parlamento e do Conselho, de 04 de fevereiro e, consequentemente, ao contrário do alegado pela recorrente, a arguida não ilidiu a presunção a que alude o citado artigo 13.º, n.º 2, da Lei nº 27/2010.

O facto de se ter apurado que “o condutor” sabia que estava obrigado a gozar uma pausa, a acionar os tempos de atividade, apresentar as folhas de registo ou declaração justificativa e que lhe foi ministrada formação profissional contínua sobre tacógrafos e regulamentação social com a duração de 8 horas, não belisca em nada o que ficou dito, na medida em que, ao contrário do alegado pela recorrente, tal não significa que tenha planeado o trabalho do seu condutor de forma a incluir os períodos de pausa e de descanso e os locais em que tais pausas e descansos deveriam ocorrer.

Posto isto, uma vez que a arguida, como já referimos, agiu com negligência, encontram-se preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo e, por isso, todos os pressupostos de que depende a sua responsabilização e, consequentemente, a arguida encontra-se incursa na prática da contraordenação que lhe foi imputada.

Neste sentido, cfr. o acórdão desta Relação, de 23/04/2021, no qual se decidiu que:

<<Deste modo, no que tange ao elemento objectivo da infracção em causa (p. e p. pelo artº 25º, nº 1, al b) da Lei 27/2010 e do artigo 36º nº 1 do Regulamento 165/2014 do Parlamento Europeu e do Conselho), esta secção social do Tribunal da Relação de Coimbra, dando aqui por integralmente reproduzidos os argumentos jurídicos expendidos pelos outros Tribunais de 2ª instância, passará a entender e a decidir de acordo com o que, sinteticamente, se consignará de seguida:

(i) Não apresentando um condutor de veículo pesado que conduza viatura equipada com tacógrafo todas ou algumas das folhas de registos do dia em curso da fiscalização e dos 28 dias anteriores, deve esse condutor apresentar um documento comprovativo que justifique a ausência dos registos nos dias em falta.

(ii) Não é necessário para o preenchimento do tipo objectivo que se prove que nos 28 dias anteriores ao dia da fiscalização o condutor tenha exercido condução profissional nos dias relativamente aos quais não exibiu registos tacográficos.

(iii) A não apresentação das folhas de registos do dia em curso da fiscalização e dos 28 dias anteriores deve ser justificada, com vista a afastar a ilicitude da conduta, no acto da fiscalização, perante os agentes fiscalizadores, mediante a apresentação de uma declaração justificativa que confirme as razões dessa não apresentação o que pode ser feito através da denominada “declaração de actividade”[9] ou por qualquer outro documento idóneo.

(iv) O tipo objectivo da infracção fica preenchido com a não apresentação imediata ao agente fiscalizador dos registos exigíveis pelo REG 165/201415

(v) A declaração de actividade ou qualquer outro documento idóneo não integra o elemento típico objectivo, o qual se basta com a falta de apresentação dos registos exigidos pelo artigo 36º do REG (CEE) 164/2014

(vi) O nº 3 do artº 36º do Regulamento 164/2014 reporta-se a meios de prova das causas de justificação para a não apresentação das folhas de registo.

Neste seguimento, a matéria dada como provada é suficiente para fazer preencher o elemento objectivo do tipo da infracção.

E isto porque se provou que no dia 6 de Março de 2018, pelas 12 horas e 2 minutos, a arguida mantinha em circulação na rotunda da Rua ... com a EN ...11, na ..., ..., o veículo pesado tractor de mercadorias, matrícula ..-TD-.., conduzido por BB e que este não era detentor dos registos de tacógrafo referentes aos dias 10, 11, 12, 13, 15, 16, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 25, 27, 28 de Fevereiro de 2018 e 1, 2, 3 e 4 de Março de 2018, não se mostrando justificada a não apresentação das folhas de registo e, portanto, afastada a ilicitude, por o condutor não ter exibido no acto da fiscalização aos agentes da autoridade a declaração de actividade, registos manuais, diagramas de registo de tacógrafo ou qualquer outro documento idóneo equivalente[10].

Pese embora esta Relação tenha decidido não considerar parte da matéria consignada no facto 5 a que acima se fez referência, nem por isso deixa de estar verificado o elemento subjectivo da infracção

Conforme resulta do n.º 1 do artigo 551.º do CT, “o empregador é o responsável pelas contra-ordenações laborais ainda que praticadas pelos seus trabalhadores no exercício das respectivas funções, sem prejuízo da responsabilidade cometida por lei a outros sujeitos”.

É, assim, a própria lei que, no âmbito da relação laboral, imputa a responsabilidade das citadas contraordenações ao empregador, sendo que, não estamos perante uma verdadeira presunção de culpa mas antes perante a consagração da responsabilidade por actuação em nome de outrem assente na culpa in eligendo ou in vigilando[11].

(…)

Importa, deste modo, apurar se a recorrente logrou ilidir a “presunção de culpa” ou seja, se demonstrou ter organizado trabalho de modo a que o condutor pudesse cumprir o disposto nos Regulamentos Comunitários.

(…)

Pelo que a matéria de facto é insuficiente para se poder concluir ter sido ministrada ao motorista formação na área relativa aos tempos de condução, pausas e tempos de repouso e ao controlo da utilização de tacógrafos na actividade de transporte rodoviário e mais especificamente sobre a obrigação de apresentação a que alude o artº 36º do Reg. (EU) 165/2014.

Acresce que a emissão da declaração de actividade ou de documento idóneo é da responsabilidade do empregador, sendo que a matéria de facto não permite sequer perceber se essa emissão ocorreu e se a empregadora dotou o trabalhador daqueles documentos aptos a justificar a ausência dos discos de tacógrafo relativamente a dias em que não tenha havido condução.

Por outro lado, a mesma matéria de facto não permite perceber como era organizada e praticada a actividade exercida pela empregadora, designadamente, na posse de quem ficavam os discos de tacógrafo relativos aos dias em que se tenha eventualmente registado condução e compreendidos nos 28 dias anteriores, não sendo de excluir que no final de cada jornada de condução os trabalhadores devessem entregar esses discos ao empregador ficando os mesmos na posse da empregadora, com a consequente impossibilidade dos mesmos serem apresentados às entidades fiscalizadoras pelo condutor.

(…)

Tudo isto para dizer que a “presunção” não se mostra ilidida não se encontrando, por isso, excluída a responsabilidade da arguida/empregadora.

Assim, cometeu a arguida/recorrida a infracção por cuja prática foi absolvida em 1ª instância.>>

Face a tudo o que ficou dito improcedem as conclusões da recorrente.

3ª questão

Se a arguida devia ter sido condenada pela prática de uma única contraordenação.

Alega a recorrente que:

- A arguida teria que ser absolvida ou, quando muito, condenada numa única contraordenação.

- Estamos perante uma única infração continuada por aplicação subsidiária do artigo 30.º, n.º 2, do CP.

Decidiu-se na sentença recorrida, a este propósito, o seguinte:

Entende a Arguida/Recorrente que estamos perante uma única infracção contra-ordenacional continuada por aplicação subsidiária do art.º 30.º/2 do Código Penal.

Sobre o tema, embora seja questão não totalmente pacífica, acompanhamos a posição de Paulo Pinto de Albuquerque [“Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações”, 2011, páginas 91 e 92]:

“Não é aplicável o regime da continuação criminosa dos artigos 30.º, n.º 2, e 79.º do CP no âmbito das contra-ordenações. Com efeito, não se verifica no direito das contra-ordenações o efeito de diminuição da culpa ética inerente à construção clássica do crime continuado, pela razão simples de que o juízo de culpa no direito das contra-ordenações se funda apenas na atribuição ao agente da responsabilidade social pelo facto (também nestes termos, FARIA COSTA, 2001: 8 a 11, que acrescenta: "cada conduta encerra um desvalor eu se traduz na violação da ordenação ou da potenciação da ordenação. Não se nega que, em muitas circunstâncias, haja também solicitação exterior que impulsione à realização plúrima. Sucede que, na lógica da neutralidade axiológica inerente à conduta de ordenação ou de potenciação de ordenação, tal quadro exterior não pode deixar de ser ignorado."). Aliás, o legislador deu um sinal claro nesse sentido, na revisão de 1995, ao rejeitar a consagração de uma norma expressa sobre a contra-ordenação continuada, que constava do parecer pedido pelo secretário de estado da presidência do Conselho de Ministros a FERNANDA PALMA e PAULO OTERO sobre a revisão do RGCO em 1993 (precisamente neste sentido também, FARIA COSTA, 2001: 9, que afasta a aplicação analógica in bonam partem do artigo 30.º do CP, uma vez que esta "só tem sentido jurídico-penalmente relevante se a lacuna, para lá de toda a dúvida razoável, for efectivamente uma lacuna e não uma ausência normativa querida legislativamente. Ora, acontece, como vimos, que este pressuposto se não verifica no caso que se acaba de estudar", e também assim, SOARES RIBEIRO, 2003: 97, podendo ainda invocar-se a passagem de FERNANDA PALMA e PAULO OTERO, 1996: 576, e, no direito alemão, também assim a generalidade da doutrina, como apontam KK-BOHNERT, anotação 59. ao § 19.º, e GÖHLER, anotação 13.ª antes do § 19.º, mas contra, desconsiderando este precedente histórico, SIMAS SANTOS e LOPES DE SOUSA, 2011: 190, anotação 6.ª ao artigo 18.º, e anotações 4.ª e 6.ª ao artigo 19.º, FERREIRA ANTUNES, 2005: 129 e 130, anotação 7.ª ao artigo 19.º, OLIVEIRA MENDES e SANTOS CABRAL, 2009: 64, anotação 5.ª ao artigo 19.º, sendo certo que a questão não era líquida desde o início da vigência do RGCO, como já notava MARIA JOÃO ANTUNES, 1991: 468, que admitia a figura com restrições, pois "devido à índole do direito de mera ordenação social, que apenas contempla interesses de carácter funcional ou organizatório, a figura da contra-ordenação continuada nunca poderá incidir sobre valores pessoais, cuja sede exclusiva se situa na esfera do direito criminal"). Por isso, pratica as contra-ordenações dos n.º 1 e 2, al. b) da portaria n.º 30/91 de 11.1, e do artigo 10.º, n.º 3, do CE, a proprietária de uma veículo pesado de mercadorias que, num dia de feriado nacional, permite que ele circule, efectuando a tracção de um semi-reboque, em itinerário interdito à circulação desse tipo de veículos das 7 às 24 horas de domingo e feriado nacionais, sem dispor de licença especial, e que reiniciou a marcha depois de interceptado por agentes da GNR que lavraram um auto de contra-ordenação (acórdão do TRC, de 17.10.1996, in CJ, XIX, 4, 71). Esta é, aliás, uma situação de facto semelhante à do acórdão do TRC, de 30.1.1991, que esteve na base da anotação de MARIA JOÃO ANTUNES. Neste acórdão decidiu-se, e bem, que não há infracção continuada quando o agente prossegue a conduta infractora depois de sucessivas autuações da administração pública.

A questão é particularmente clara nos regimes contra-ordenacionais especiais em que se consagra expressamente a regra do cúmulo material das infracções (como no CE e no RGIT), o que tem o efeito concomitante de vedar a aplicação do artigo 30.º, n.º 2, do CP.”.

*

Em conclusão, não é aplicável subsidiariamente ao regime contra-ordenacional a figura do crime continuado prevista no art.º 30.º/2 CP, pelo que estamos perante a prática de uma pluralidade material e jurídica de infracções contra-ordenacionais.

Apreciando:

Não acompanhamos a sentença recorrida no entendimento de que não é aplicável ao regime contraordenacional a figura do crime continuado prevista no artigo 30.º, n.º 2, do CP.

Na verdade, como refere Maria João Antunes[12], <<assim, de acordo com o artigo 30º, nº 2, do CP, aplicável subsidiariamente nos termos do artigo 32º do Decreto-Lei nº 433/82, podemos apontar como requisitos da contra-ordenação continuada os seguintes: a existência de várias violações de um tipo contra-ordenaciobal ou de tipos contra-ordenacionais que, no essencial, protejam o mesmo interesse jurídico, através de condutas idênticas ou homogéneas; que as diversas infracções ocorram no quadro de uma mesma situação exterior, que, por objectivamenete facilitar ou “precipitar” a prática do ilícito, diminui de forma sensível a culpa do agente; que entre as diversas infracções não tenha decorrido um intervalo de tempo tão longo que desfaça a “unidade de motivação” que há-de subjazer a todas elas.>>

E, como se decidiu no acórdão da Relação do Porto, de 15/10/2012, disponível em www.dgsi.pt:

<<Dispõe o art. 30º, nº 2, do Cód. Penal, transponível para a responsabilidade contraordenacional (art.32º do DL 433/82), que “[C]onstitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.”.

“O crime continuado tem por fundamento a menor culpa do agente, já que a situação (de facilitação – o quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente, a que se refere o nº 2 do artigo 30º, CP) em que ele atenua as resistências naturais à prática de crimes.” – Ana Prata e José Manuel Vialonga, Dicionário Jurídico, Vol II, 2ª Edição, pág. 127.

Ou seja, para que exista infração disciplinar continuada é necessário que se verifiquem cumulativamente os seguintes elementos:

a) que as várias condutas infracionais visem o mesmo bem jurídico;

b) sejam efetuadas de forma homogénea;

c) que se enquadrem numa mesma situação exógena, que leve à diminuição da culpa do agente.

A não verificação cumulativa de um dos pressupostos da infração continuada impõe o seu afastamento, devendo reconduzir-se à cumulação real de infrações.

No Acórdão do STJ, de 30.04.2008, in www.dgsi.pt (processo nº 08S241), que passamos a transcrever, diz-se que:

“(…) o crime continuado pressupõe uma pluralidade de resoluções, uma vez que se traduz na realização de várias condutas criminosas. O que justifica que as diversas condutas criminosas sejam aglutinadas numa só infracção é a considerável diminuição da culpa do agente, devido a um conjunto de circunstâncias exteriores que, de forma significativa, facilitaram a repetição da actividade criminosa, com a consequente diminuição do grau de culpa do agente.

Como dizia Eduardo Correia (Direito Criminal, reimpressão, 1971, páginas 208-209), a acentuada diminuição da culpa do agente que justifica que se tomem, unitariamente, como um só crime o conjunto de actividades criminosas do agente e o fundamento dessa diminuição da culpa encontra-se “no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto”, pelo que pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, “a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito”.>>

Regressando ao caso dos autos, e tendo em conta a matéria de facto provado, sempre poderíamos dizer que estamos perante normas que tutelam o mesmo bem jurídico e que existe uma certa homogeneidade, tendo em conta a proximidade temporal das condutas, no entanto, já não vislumbramos a existência de qualquer causa exógena passível de tornar menos exigível à arguida a adoção de um diferente comportamento e, por isso, determinar uma acentuada diminuição da culpa relativamente à prática das infrações.

Assim sendo, não se verificando todos os enunciados pressupostos da infração continuada, impõe-se o seu afastamento, consubstanciando o comportamento da arguida uma cumulação real de contraordenações.

Improcedem, por isso, as conclusões da recorrente.

                                                             *

Pelo exposto, impõe-se a manutenção da sentença recorrida, pese embora quanto à terceira questão com diferente fundamentação.

                                                                        *

                                                             *

  V – DECISÃO

  Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se, em conferência, na improcedência do recurso, em manter a decisão recorrida.

                                                 *

                                                 *

Custas a cargo da arguida, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC`s.

                                                             *

                                                             *                                                                                                                                                                  Coimbra, 2024/05/03


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(Paula Maria Roberto)

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 (Jorge Loureiro)

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(Mário Rodrigues da Silva)


                

         
[1] Relatora – Paula Maria Roberto
  Adjuntos  – Jorge Loureiro
– Mário Rodrigues da Silva
[2] Acórdão do TC 45/2014, de 11/02/2014, disponível em www.dgsi,pt.
[3] Revista do Ministério Público, n.º 124, pág. 163.
[4] Acórdão da Relação do Porto de 05/12/2011, disponível em www.dgsi.pt.
[5] A este propósito, cfr. o acórdão do TC 359/01, disponível em www.dgsi.pt.
[6] Acórdão do TC 45/2014, de 11/02/2014, disponível em www.dgsi,pt.
[7] Revista do Ministério Público, n.º 124, pág. 163.
[8] Acórdão da Relação do Porto de 05/12/2011, disponível em www.dgsi.pt.
[9] Apesar desta não ser obrigatória.
[10] Factos provados 1 a 3.
[11] A este propósito, cfr. o acórdão do TC 359/01, disponível em www.dgsi.pt.
[12] Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 1º, Tomo III, pág. 468.