CRIME DE HOMICIDIO NEGLIGENTE
ACIDENTE RODOVIÁRIO
INDEMNIZAÇÃO PELA PERDA DO DIREITO À VIDA
DANO MORTE
Sumário

I– Na indemnização pela perda do direito à vida influi o homem que tem uma prodigiosa vida intelectual, com uma expansiva vivência social, com afetividades compensadas, com ampla cumplicidade em círculos académicos e culturais, que inclusive dele dependem; e no outro extremo observemos o homem indigente, com dimensão intelectual e social reduzida, com uma grave incapacidade física, e/ou mental (cujo valor indemnizatório da perda da vida respeitaria a valores inferiores ao discutido nos autos).
II - Estas vidas, sem embargo de serem iguais em dignidade, revelam amplitudes significativas na sua intensidade, que não podem ser normativamente ignoradas.
III - Sobre o valor mínimo da vida a fixar, acrescem as componentes valorizadoras da esperança de vida e da qualidade de vida, e cada uma delas consoante a amplitude, pode orçar até 100.000€ cada.
IV- O valor a atribuir tem de ser representativo da qualidade de vida que se perdeu e dos critérios que a valorizavam, refletindo a imagem do campo de afetividades e a sua projeção social à data do decesso e pelo tempo expectável. A vivência humana sendo imaterial, por natureza, tem valor muito elevado, na sua dignidade, no exercício da liberdade, nas realizações em prol dos outros, na qualidade de vida.
V- Dimensionar a vida implica uma mensuração da esperança de vida da vítima, no caso por um período de 29 anos tendo em conta a idade daquele em 49 anos e a esperança de vida dos homens em 2020 fixada nos 78 anos, a qual era assistida por uma qualidade de vida dotada de saúde e cercado de afetos pela sua mulher e filhos, família que sustentava, este condicionalismo é valorizador da vida que se perdeu, devendo a indemnização ser representativa da qualidade de vida e dos critérios que a valorizavam, afigurando-se adequado e proporcional o montante de 130.000€.

[Sumário da responsabilidade do Relator]

Texto Integral

Proc.nº20/20.9 GALSD.P1

X X X
Acordam em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

No processo comum com intervenção de Tribunal Singular no Juízo Local Criminal de Lousada do Tribunal judicial da Comarca do Porto Este, procedeu-se a julgamento com observância das formalidades legais, após o que foi proferida sentença que julgando totalmente procedente a acção penal condenou o arguido pela seguinte forma:
Nestes termos, decido julgar procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público e, em consequência, decido:
a) Condenar a arguida AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 69.º, n.º 1 alínea a) e 137.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, a qual se suspende pelo período de 2 (dois) anos, nos termos do disposto no artigo 50.º do Código Penal;
b) Condenar a arguida pela prática do mesmo crime, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 1 (um) ano;
c) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pelos demandantes e, em consequência, condenar a demandada a pagar:
1) Aos demandantes BB, CC e DD, a importância de €90.000,00 (noventa mil euros), a titulo de indemnização por danos não patrimoniais de perda do direito à vida, a qual deverá ser repartida, nos termos do disposto no artigo 2139.º, n.º 1 do Código Civil, em três partes iguais, acrescidos de juros à taxa legal desde a data da presente decisão até integral pagamento;
2) À demandante BB a quantia de €50.000,00 (cinquenta mil euros) a titulo de danos não patrimoniais por si sofridos, acrescida de juros desde a data da presente decisão até integral pagamento;
3) Ao demandante EE a quantia de €40.000,00 (quarenta mil euros) a titulo de danos não patrimoniais por si sofridos, acrescida de juros desde a data da presente decisão até integral pagamento;
4) Ao demandante DD a quantia de €30.000,00 (trinta mil euros), a titulo de danos não patrimoniais por si sofridos, acrescida de juros desde a data da presente decisão até integral pagamento;
5) Aos demandantes a quantia de €51.793,37 (cinquenta e um mil, setecentos e noventa e três euros e trinta e sete cêntimos) pelos danos patrimoniais, dano futuro, acrescido de juros desde a data da presente decisão, até integral pagamento;
6) Aos demandantes a quantia de €1.000,00 (mil euros), por danos patrimoniais;

Absolvendo-se a demandada do demais peticionado;
d) Condenar, ainda, a arguida no pagamento da taxa de justiça que se fixa em 3 UC (art.º 513.º, n.º 3 do CPP e 8.º, n.º 9 do RCP), e nas demais custas do processo a que a sua atividade houver dado lugar (cfr. art.ºs 3.º e 16.º do RCP e 513.º, n.º 1 e 514.º, n.º 1 do CPP);
e) Condenar nas custas cíveis os demandantes e a demandada na proporção dos respetivos vencimentos (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiem.
Registe e notifique.
*
A demandada Companhia de Seguros A... veio interpor recurso da sentença, concluindo da seguinte forma:
1. O objecto primordial do presente recurso é a veemente impugnação da decisão proferida porquanto a Apelante considera que os seguintes factos não deveriam ter resultado provados:
13. Porque conduzia sem o devido cuidado e atenção à condução, a arguida não atentou ao transito que circulava no mesmo sentido ao seu;
15. A arguida podia e devia ter agido com o cuidado exigido na condução de veículos automóveis
2. Desde logo, porque se trata de juízos conclusivos que não comportam qualquer realidade factual e, nessa medida, não devem constar do elenco dos factos dados como provados.
Sem prescindir,
3. A Apelante considera que os seguintes factos 13. e 14., tal qual resultaram provados, deveriam merecer uma outra resposta, propondo a seguinte redacção:
13. Porque conduzia sem o devido cuidado e atenção à condução e porque o condutor ciclomotor circulava sem as luzes traseiras ligadas, a arguida não atentou ao transito que circulava no mesmo sentido ao seu;
14. A arguida, apesar de circular com as luzes de cruzamento ligadas, porque o condutor do motociclo circulava sem as luzes traseiras ligadas, apenas a menos de 30 metros de distância é que poderia ter visto o ciclomotor;
15. Não provado/retirado
4. A presente proposta de alteração está, naturalmente, associada aos factos 7) e 9) dados como não provado e que a Apelante presente que resultem como provados:
7) O falecido FF circulava com as luzes traseiras do veículo de matrícula..-FV-.. desligadas;
9) Atendendo à diferença de velocidades a que circulava o veículo ..-FV-.., e o veículo de matrícula ..-ZR-.., acrescendo a circunstância de o veículo de matrícula ..-FV-.. circular sem as luzes traseiras ligadas, a presença deste veículo não foi perceptível à arguida
5. Finalmente, pretende a Apelante que sejam aditados os seguintes factos:
Porque o acidente ocorreu ao anoitecer e que no local não existe iluminação pública, a visibilidade da arguida para a hemi-faixa, porque circulava com as luzes de cruzamento ligadas, não era superior a 30 metros ou, no limite, apenas que a visibilidade da arguida para a hemi-faixa não era superior a 30 metros.
Foi atribuída a BB pensão de sobrevivência no valor de 2.485,60€/ano.
6. Desde logo, no que à condução por parte do falecido FF com as luzes traseiras do veículo de matrícula ..-FV-.. desligadas, tal resulta da conjugação da seguinte prova: auto de visionamento de fls. 150 e ss., com especial enfoque nos fotogramas de fls. 151 a 154; testemunha GG (depoimento gravado no Habillus Media Studio, no dia 12 de Dezembro de 2022, nome do ficheiro áudio 20221212105631_3810426_2871660), mais concretamente aos minutos 26:20 a 27:59; testemunha HH (depoimento gravado no Habillus Media Studio, no dia 12 de Dezembro de 2022, nome do ficheiro áudio 20221212114653_3810426_2871660) aos minutos 03:10 e minutos 12:00 a 13:15
7. A análise conjunta e integrada destes meios de prova permite concluir que o falecido FF circulava com a luz traseira do ciclomotor desligada.
8. Ademais, a restante prova tida em consideração pelo Tribunal a quo não coloca em crise a conclusão vinda de referir, antes reforça tal convicção.
9. Mais concretamente, o alegado pela testemunha II, pois que a percepção que a testemunha teve no dia e hora do acidente é que, de facto, tinha passado pelo ciclomotor conduzido pelo falecido FF, o que não pode deixar de ser um importante meio auxiliar de prova, porquanto dúvida não há de que a testemunha passou por um ciclomotor que circulava sem qualquer iluminação.
10. De todo o modo, da prova produzida resultou, sem margem para qualquer dúvida, que o infeliz FF circulava sem qualquer luz à retaguarda do ciclomotor.
11. Por força do vindo de referir, entende a Apelante que se impõe a alteração da redação dos factos 13. e 14., tal qual se encontram dados como provados, pois que apresentam uma realidade que carece de ser aperfeiçoada e complementada.
12. Tanto mais que, uma e outra alteração da matéria de facto reproduzem de forma fiel toda a prova produzida e, nesse sentido, se pretende que tais factos sejam alterados.
Sem prescindir,
13. Pretende a Apelante que seja aditado o seguinte facto:
Porque o acidente ocorreu ao anoitecer e que no local não existe iluminação pública, a visibilidade da arguida para a hemi-faixa, porque circulava com as luzes de cruzamento ligadas, não era superior a 30 metros.
14. Com o presente aditamento pretende-se evidenciar a visibilidade que, in casu, era reduzida ou nula, já que o sinistro ocorreu ao anoitecer e no local não havia iluminação pública.
15. Donde, a única visibilidade era a que era dada pelas luzes de cruzamento, ou seja, 30 metros.
16. Concretos meios de prova que permitem o aditamento do supra indicado facto: Auto de
visionamento de fls. 202 a 215, e depoimento da testemunha GG (já identificada supra) aos minutos 25:40 a 25:54.
Ainda sem prescindir,
17. Pretende a Apelante que seja aditado o seguinte facto:
Foi atribuída a BB pensão de sobrevivência no valor de 2.485,60€/ano.
18. Concretos meios de prova que permitem que se dê como provado: declaração de IRS de 2018 a 2020 (fls. 560 a 565) e depoimento da Apelada BB (depoimento gravado no Habillus Media Studio, no dia 12 de Dezembro de 2022, nome do ficheiro áudio 20221212113845_3810426_2871660) minutos 06:00 a 07:05.
19. O presente facto que se pretende que seja aditado resultou da instrução da prova e tem que ver, por um lado, com o pedido formulado pelos Apelados a título de danos patrimoniais e a alegação de que ficaram sem rendimentos e, por outro lado, da alegação feita pela Apelante de que os Apelados se encontravam já a receber pensões por força do óbito do sinistrado FF.
Ainda sem prescindir,

DA MATÉRIA DE DIREITO
20. Alterando-se, como se espera, a matéria de facto, em especial, quanto à circunstância do infeliz FF circular sem qualquer luz à retaguarda do ciclomotor, entende a Apelante que se impõe alterar a douta sentença proferida quanto à culpa.
21. Isto porque, entende a aqui Apelante que o sinistro se ficou a dever, igualmente, a culpa do infeliz FF.
22. Não se colocando em causa, face à prova produzida, que a arguida é co-responsável, não menos censurável e igualmente preponderante para o sinistro está a circunstância do ciclomotor circular sem qualquer luz à retaguarda.
23. Note-se que o sinistro ocorreu numa recta, com inclinação descendente (5,8%), sem qualquer tipo de iluminação pública, com visibilidade inferior a 30 metros, com o ciclomotor a circular sem qualquer luz à retaguarda e a uma velocidade de 40km/h e o veículo conduzido pela arguida circulava a 85km/h.
24. Nesta dinâmica, é indubitável que a ausência de iluminação à retaguarda foi, também, causal do acidente, pois que se circulasse com luz à retaguarda, o ciclomotor seria visível a uma distância de cem metros, o que permitiria à condutora do veículo seguro adoptar uma outra condução e evitar o sinistro.
25. A Apelante entende, assim, que se mostra evidenciado o nexo causal entre o sinistro e a culpa do infeliz FF traduzida na circunstância de circular sem qualquer luz à retaguarda.
26. Culpa esta que, no confronto com a culpa da própria arguida/condutora do veículo seguro deverá ser dividida em partes iguais, devendo a eventual indemnização que é devida ser reduzida a metade.
Sem prescindir e mesmo que assim não se entenda,
27. Sempre será de ponderar e censurar circunstância do infeliz FF circular sem luz à retaguarda do ciclomotor na causalidade dos danos.
28. Era previsível para o homem-médio a forte probabilidade da ocorrência de qualquer circunstância fortuita que pudesse vir a originar um sinistro.
29. A conduta da vítima agravou os danos e, nessa medida, merece a censura prevista no artigo 570.º do Código Civil que, sopesando as consequências resultantes do seu comportamento, deverá a indemnização ser reduzida a metade.
Sem prejuízo,
DOS VALORES ARBITRADOS.

30. Entende a Apelante que o quantum indemnizatório fixado na Sentença de que se recorre para compensar a lesão do direito à vida e o dano não patrimonial de cada um dos Apelados, viola as normas vertidas nos artigos 483.º, 494.º, 496.º e 566.º, n.º 3 do Código Civil.
31. Uns e outros mostram-se excessivos, injustos e desproporcionais, até por confronto com os valores que têm sido atribuídos pela Jurisprudência.
32. Além de que, no que ao dano vida diz respeito, o valor arbitrado na sentença em crise não respeita os valores indemnizatórios atribuídos pelo próprio Estado nos casos de Ihor Homeniuk e das vítimas dos incêndios em Pedrógão Grande – no valor de €80.000,00.
33. Assim, deve a douta sentença ser alterada e o dano vida deverá ser reduzido para a quantia de €80.000,00 (oitenta mil euros).
34. De igual modo, os danos não patrimoniais próprios dos Apelados (€50.000,00 para a Apelada BB, €40.000,00 para o Apelado CC e €30.000,00 para o Apelado DD) constitui uma violação evidente do disposto nos artigos 483.º, 494.º, 496.º e 566.º, n.º 3 do Código Civil.
35. Tais valores, além de exagerados, não encontram equiparação na Jurisprudência.
36. Deste modo, deverá a Sentença recorrida ser alterada e fixada uma indemnização para compensação do dano não patrimonial da Apelada BB no valor de €30.000,00, €25.000,00 para o Apelado EE e €20.000,00 para o Apelado DD.
Ainda sem prescindir,
37. Entende a Apelante que a fixação de uma indemnização, que o Tribunal a quo fixou em €51.793,37, pelos danos patrimoniais dos Apelados, na modalidade de dano futuro, se mostra injustificada e manifestamente exagerada.
38. Desde logo, o Tribunal a quo teve em consideração o salário bruto, ao invés de considerar o salário líquido – tanto mais que, para este efeito, o salário líquido é o que releva já que era este o valor que, efectivamente, o infeliz sinistrado levava para casa para ser partilhado com a família e não o salário bruto.
39. Considerando a taxa de 11% de contribuição para a segurança social (635 – 11% = 69,85€), o vencimento líquido do sinistrado ascendia a 565,15€, pelo que a capacidade do falecido de gerar rendimentos anuais era de 9.066,44€, ao contrário dos 10.044,34€ tidos em consideração na sentença em crise
40. Depois, mal andou o Tribunal a quo ao considerar nos seus cálculos o valor remido da pensão.
41. Ademais, no desconto que efectuou, o Tribunal a quo apenas considerou o montante de €43.126,35 recebido pela Apelada BB e não considerou o valor recebido pelo Apelado CC de €16.079,67 – que, neste caso, se impunha.
42. Finalmente, não teve o Tribunal a quo em consideração o efeito de antecipação do capital.
Isto posto,
43. Partindo do pressuposto de que 1/3 do rendimento do falecido era gasto em despesas próprias e 2/3 era destinado a alimentos da família, dos 9.066,44€, o falecido destinaria 6.044,29€ à família.
44. Ora, se se considerar que à Apelada BB foram atribuídas pensões no valor global de 5.498,90€ (3.013,30 + 2.485,60) e se a este valor se somar o valor de 2.008,87€ atribuído ao Apelado menor CC, o valor total ascende a 7.507,77€ - valor este superior ao que o falecido destinaria à família (6.044,29€), pelo que não é devido qualquer dano patrimonial.
45. No limite, se se considerar que, entretanto, a pensão do menor CC será suspensa ao fim de 9 anos, dos 17 a considerar como sendo o período de vida profissional útil (66 anos – 49 anos), nos últimos 8 anos apenas será de considerar o valor global das pensões atribuídas à Apelada BB, ou seja, 3.013,30 + 2.485,60€ = 5.498,90€.
46. Ou seja, a diferença será, assim, de 500,00€/ano, num total de 4.000,00€.
47. Mesmo que se entenda desconsiderar o valor atribuído à Apelada BB pela Segurança Social, o que apenas se concebe por mera hipótese de raciocínio, o valor global a considerar não poderia ascender 33.000,00€.
48. Sendo certo que, em qualquer caso, sempre deverá qualquer um dos valores a considerar ser reduzido em 1/3 ou 1/4 por força da entrega antecipada do capital.
49. O Tribunal a quo na douta Sentença dos Autos, ao decidir como decidiu, violou o preceituado nos artigos 342.º, 487.º e seguintes e 570.º, todos do Código Civil e, bem assim, o disposto nos artigos 411.º, 413.º e 414.º, todos do CPC.

Nestes termos, e nos que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, julgando procedente o presente recurso e julgando de conformidade com as precedentes CONCLUSÕES, será feita uma verdadeira e sã JUSTIÇA
*
O Ministério Público em 1ª Instância veio responder ao recurso interposto pela companhia de Seguros A....
1- A arguida AA foi submetida a julgamento nesta comarca, acusada da prática, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. nos termos do Art. 137º, n.º 1 e 69º, n.º 1 al. a), ambos do CP.
Da discussão da causa resultaram integralmente provados os factos que lhes eram imputados pelo que a arguida foi condenada por tal crime na pena de um ano e dois meses de prisão, cuja execução foi suspensa pelo período de dois anos e ainda na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de um ano.
Inconformada com esta decisão dela recorre demandada cível “A... –Companhia de Seguros”, alegando em síntese no que concerne à dinâmica do acidente aqui em causa:
1. Impugna-se a decisão proferida sobre a matéria de facto, mormente os pontos 13 e 15 dados como provados, porque se trata de juízos conclusivos que não comportam qualquer realidade factual e, nessa medida, não devem constar do elenco dos factos dados como provados.
2. Os pontos 7 e 9 da matéria de facto dada como não provada, deverão constar dos factos dados como provados e alterar-se em consequência a redacção dos pontos 13 e 14 dos factos provados nos termos propostos.
3. Devem ser aditados o seguinte facto: “Porque o acidente ocorreu ao anoitecer e que no local não existe iluminação pública, a visibilidade da arguida para a hemi-faixa, porque circulava com os luzes de cruzamento ligadas, não ero superior a 30 metros ou, no limite, apenas que a visibilidade da arguida para o hemi-faixa não era superior a 30 metros”.
4. Desde logo, no que à condução por parte do falecido FF com as luzes traseiras do veículo de matrícula ..-FV-.. desligadas, tal resulta da conjugação da seguinte prova: auto de visionamento de fls. 150 ss .. com especial enfoque nos fotogramas de fls. 151 a 154, depoimento da testemunha GG e depoimento da testemunha HH.
5. Mais concretamente, o alegado pela testemunha II, pois que a percepção a testemunha teve no dia e hora do acidente é, que, de facto, tinha passado pelo ciclomotor conduzido pelo falecido FF, o que não pode deixar de ser um importante meio auxiliar de prova, porquanto duvida não há de que a testemunha passou por um ciclomotor que circulava sem qualquer iluminação.
6. Com o aditamento do facto referido em 3. pretende-se evidenciar a visibilidade que, in casu, era reduzida ou nula, que o sinistro ocorreu ao anoitecer e no local não havia iluminação pública. Donde, a única visibilidade era a que era dada pelas luzes de cruzamento, ou seja, 30 metros.
7. Isto porque, entende a aqui Apelante que o sinistro se ficou a dever, igualmente, a culpa do infeliz FF.
8. Não se colocando em causa, face à prova produzida, que a arguida é coresponsável, não menos censurável e igualmente preponderante para o sinistro está a circunstância do ciclomotor circular sem qualquer luz à retaguarda.
9. Note-se que o sinistro ocorreu numa recta, com inclinação descendente (5.8%), sem qualquer tipo de iluminação publica, com visibilidade inferior a 30 metros, com o ciclomotor a circular sem qualquer luz à retaguarda e a uma velocidade de 40km/h e o veículo conduzido pela arguida circulava a 85km/h.
10. Nesta dinâmica, é indubitável que a ausência de iluminação à retaguarda foi, também, causal do acidente, pois que se circulasse com luz à retaguarda, o ciclomotor seria visível a uma distância de cem metros, o que permitiria à condutora do veículo seguro adoptar uma outra condução e evitar o sinistro.
11. Culpa esta que, no confronto com a culpa da própria arguida/condutora do veículo seguro deverá dividida em partes iguais, devendo a eventual indemnização que é devida ser reduzida a metade.
O recurso interposto pela recorrente/demandada cível, “A... - Companhia de Seguros”, ao qual se responde apenas no que concerne à dinâmica do acidente, carece, quanto à matéria de facto e de direito, salvo melhor entendimento, de fundamento válido.
2. Da impugnação da matéria de facto
A recorrente, demandada cível, limita-se a impugnar a matéria de facto, pondo em causa no essencial a dinâmica do acidente, pugnando em ver reconhecida como verdadeira a sua versão do acidente, tal como declarou em audiência e como se encontra descrito na sua contestação.
Alega a recorrente que a decisão recorrida padece de erro na valoração e apreciação da prova, sobretudo não valoração devida dos depoimentos das testemunhas GG, HH e sobretudo do depoimento de II e que por força disso devem ser alterados os pontos 13 e 14 da matéria de facto dada como provada e eliminados os pontos 13 e 15 desta matéria e adicionados aos factos provados os pontos 7 e 9 da matéria de facto não provada.
Em contraponto, a verdade é que nenhuma testemunha foi apresentada quer pela recorrente, quer pela arguida que apresentasse uma versão dos factos ou diferente da dinâmica do acidente dada como provada na douta sentença recorrida.
De qualquer modo, sempre se dirá, que os excertos do depoimento transcritos pela recorrente, e por esta comentados de seguida, segundo a versão que melhor serve os seus interesses, não constituem o depoimento completo destas testemunhas.
Alega ainda a recorrente que as circunstâncias de tempo e de tempo e lugar em que ocorreu o acidente conjugadas com o facto de o ciclomotor não se encontrar sinalizado nem ter a luz da retaguarda em funcionamento explicam o facto da arguida não se ter apercebido, previamente ao embate, da sua presença e que a arguida apenas foi surpreendida pela “pancada” que sofreu na parte lateral direita da frente do veículo o que conjugado com o facto de inexistir qualquer travagem do veículo que arguida conduzia imediatamente antes do embate, indicia que o ciclomotor surgiu de forma súbita e inesperada impossibilitando a arguida de efectuar qualquer manobra com o objetivo de evitar o embate lateral no ciclomotor.
Também não assiste razão à recorrente quanto a tais alegações.
De facto, é a própria arguida que nas suas declarações afirma que em momento algum viu o ciclomotor e que nem com o embate se apercebe que abalroou o ciclomotor. Ora, consta da matéria dada como provada que a arguida circulava com as luzes de médios acesas e que tinha percorrido mais de 70 metros da recta em sentido descendente quando ocorreu o embate, sendo que nesta altura estava a escurecer.
Assim e tendo em consideração que a própria arguida admite que circulava com as luzes de médios acesas, tal pressupõe necessariamente que, podia avistar qualquer obstáculo a pelo menos trinta metros e que tinha por isso perfeita visibilidade do caminho que percorria nessa distância, sendo que circulava a uma velocidade de cerca de 85 km/hora, não sentido necessidade de usar as luzes de estrada (máximos) porque tinha boa visibilidade.
Ao referir que apenas nem como com o embate se apercebe da presença do ciclomoto, a própria arguida admite que circulava necessariamente distraída e desatenta ao exercício da condução que efectuava o que demonstra a negligência da sua conduta.
Como doutamente se refere no Ac. Relação de Évora de 12/5/92, in C.J. Tomo III, pág. 351 ss., “Conduta prudente de um condutor é aquele que o faz em condições de se proceder com segurança, prevendo com tempo os obstáculos razoavelmente previsíveis e regulando a marcha por forma a poder detê-la se necessário, em condições de segurança. A inconsideração resume-se na falta de cautelas aconselháveis pelo dever geral de previdência, a falta de atenção devida, que o agente podia e devia ter, de modo a evitar o resultado.” Ora, neste caso a arguida devia avistar o ciclomotor a, pelo menos, trinta metros de distância, podia e devia ter agido de modo a evitar o embate, desviando-se para a esquerda ou travando, tanto mais que inexistia trânsito em sentido inverso, evitando desse modo o embate, tendo, pois, violado as regras elementares de atenção impostas na condução de veículos motorizados.
Sempre se dirá que se dúvidas não existem é quanto ao facto de a conduta da arguida conduzir de forma desatenta e/ou distraída, até porque ela admite que nem sequer vê a vítima no momento do embate e é a partir daqui que temos de tentar compreender o acidente ocorrido.
Como refere Dario Martins de Almeida in “Manual de Acidentes de Viação”, Almedina, 3ª edição, pág. 519 e ss. “ É necessário recrear o acidente a partir de todos os elementos disponíveis, não para atingir a evidência ou a certeza integral mas para chegar àquele grau de probabilidade, bastante para consentir a crença quanto às causas desse acidente “. Ora, os factos provados permitem plenamente concluir pela dinâmica do acidente, tal como doutamente consta da sentença recorrida e bem ainda pelo comportamento contra-ordenacional da arguida, o qual foi o único causal do acidente, pelo que nesta parte, não merece qualquer censura a decisão “a quo”.
A versão do acidente acolhida pela Mm.ª Juiz nos factos dados como provados veio no fundo, confirmar a versão da dinâmica do acidente constante acusação e imputada à arguida, condutora do veículo automóvel, a qual não é a versão mais agrada à recorrente e daí que a mesma se insurja contra tal decisão.
Como se refere no douto Acórdão da Relação do Porto, relatado pelo Exmo.Sr. Desembargador Borges Martins, datado de 10/05/2017 e disponível in www.dgsi.pt:
“(…) Quanto à adesão que o tribunal fez da versão apresentada pela acusação, em detrimento
da sustentada pelo arguido na sua contestação, convém aqui lembrar que um princípio que informa o processo penal é o da livre apreciação da prova. Dispõe o art. 127.g do CPP que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é reapreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. É no equilíbrio destas duas vertentes (as regras da experiência e a livre convicção do que a prova há- de ser apreciada. (…)
A decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo
as regras da experiência, ela será inatacável já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção”.
E foi com base em todos os factos, constantes da acusação, das contestações e dos que resultaram da própria discussão da causa que se proferiu a decisão de facto e de direito, e da matéria fáctica dada como provada não se descortina que a mesma seja, por qualquer forma, insuficiente para a prolacção da decisão de direito, nem que tenha ocorrido qualquer erro na apreciação da prova, como pretende a recorrente com a sua impugnação da matéria de facto.
Em última análise o que existe é um total desacordo no que concerne matéria dada como provada, pois a mesma não é conforme à versão dos factos constantes da contestação da recorrente e sobretudo pelas implicações que tem em sede de indemnização para a demandada cível.
Ora, os factos provados permitem plenamente concluir pela dinâmica do acidente, tal como doutamente consta da sentença recorrida e bem ainda que foi a conduta da arguida AA que foi causal do acidente, pelo que nesta parte, não merece qualquer censura a decisão “a quo”, devendo, pois, a mesma ser mantida pelo Venerando Tribunal.
3- Nestes termos e em conclusão:
I. A arguida circulava com as luzes de médios acesas e percorreu mais de 70 metros da recta até ao embate no ciclomotor, na sua faixa de rodagem e que seguia à sua frente, pelo que podia e devia avistar o ciclomotor a, pelo menos, 30 metros de distância, sendo que o poderia fazer a 100 metros, (pois nada impedia que usasse as luzes de estrada- máximos- dada a inexistência de trânsito em sentido inverso) sendo que nem mesmo o viu no momento do embate, não se desviando sequer para a esquerda, nem travou, o que revela que circulava necessariamente distraída e/ou desatenta ao exercício da condução dada a velocidade a que seguia (85 km/hora), o que demonstra a negligência da sua conduta.
II. Nenhuma prova sem margem para dúvidas se efectuou em julgamento que permitisse dar como provado que a vítima seguia com as luzes traseiras do ciclomotor desligadas, como bem evidencia a Mm.ª Juíz na motivação da matéria de factos provada.
III. Os factos provados permitem plenamente concluir da dinâmica do acidente, tal como consta da douta sentença recorrida e bem ainda do comportamento negligente no exercício da condução da arguida, pelo que se não descortina qualquer insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito proferida, nem qualquer erro na apreciação da prova.
IV. A douta decisão recorrida fez pois uma correcta interpretação dos normativos legais e não violou, pois, qualquer disposição legal.
Termos em que deve ser negado provimento ao recurso interposto pela demanda cível “A...”, no que concerne à dinâmica do acidente e confirmada a decisão recorrida,
Assim se fazendo JUSTIÇA.
*
Os demandantes vêm responder à motivação do recorrente A... COMPANHIA DE SEGUROS, S.A, demandada civil no mesmo processo, nos termos e com os fundamentos seguintes:
I-QUANTO À PRETENDIDA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:
1- Pede a apelante que na matéria de facto que fundamentou a sentença recorrida passe a constar como facto provado que a vítima FF circulava com a luz traseira do seu ciclomotor desligada.
Na fundamentação de facto da sentença apelada deu-se como não provada essa matéria.
(ver nº7 da matéria de facto não provada)
Entendem os apelados que efetivamente não se fez prova suficiente de que o ciclomotor da vítima, na ocasião do acidente, transitava com a luz traseira desligada.
O mesmo se deve dizer, como se concluiu na sentença recorrida, quanto ao facto de nesse ocasião o ciclomotor da vítima circular com a luz traseira ligada.
Fundamenta-se a recorrente nos concretos meios de prova que segundo alega impõem decisão diversa daquela de que recorre.
Em 1.º lugar fundamenta-se no auto de visionamento fls 150 e ss. em que é referido com especial enfoque nos fotogramas de fls. 151 a 154, expressamente, que um dos ciclomotores visionados tem luzes à frente e a trás (fls. 152) e um outro não tem qualquer luz na retaguarda (fls. 151, 153 e 154).
Contudo, na douta sentença conclui-se, quanto a esse último ciclomotor “tal auto de visionamento não permite concluir sem margem para dúvida tratar-se do ciclomotor conduzido pelo falecido, ou sequer se o mesmo fazia utilização de luz traseira.”
Em 2.º lugar fundamenta-se no depoimento da testemunha GG, militar da GNR – NICAV, responsável pelo auto de visionamento, que refere e confirma que só verificou dois motociclos: um que era uma scooter e um outro com as características do ciclomotor conduzido pelo falecido FF e que este não tinha luz à retaguarda.
Contudo, por esse visionamento não pode o tribunal ter a certeza se o ciclomotor referido em segundo lugar era o falecido FF, pois o ciclomotor visionado, segundo essa testemunha, tinha as características do ciclomotor deste e não há certeza se era o mesmo.
Em 3.º lugar fundamenta-se no depoimento da testemunha HH que refere que, quando foi ouvido na GNR lhe foram exibidas umas fotografias e não tem dúvidas que era o Sr. FF, tanto mais que reconheceu o capacete e o saco que a infeliz vítima transportava.
Na douta sentença conclui-se quanto a essa testemunha que esta afirma ter saído do trabalho mais ou menos à mesma hora que o falecido. Mais diz conseguir afirmar que o falecido FF circulava com a luz frontal do motociclo ligada, não conseguindo afirmar com exatidão que circulava com a luz traseira ligada, uma vez que viu a parte lateral do ciclomotor, não conseguindo ver a luz traseira do local onde se encontrava.
Pelo que não é possível através do depoimento dessa testemunha, o tribunal ter a certeza se a luz traseira estava ligada ou desligada.
O recorrente perante essa fundamentação não pode concluir “sem margem para qualquer dúvida que o falecido FF circulava com a luz traseira desligada”.
Por outro lado, da restante prova produzida não se pode concluir como faz a recorrente que o falecido circulava com a luz traseira desligada, antes justificam a dúvida a esse respeito a que se alude na sentença.
Com efeito, do depoimento das testemunhas HH e JJ, não é possível ter a certeza se o ciclomotor ia ou não com a luz traseira desligada.
Na verdade, a testemunha JJ diz que não é capaz de se recordar se o falecido circulava com a luzes traseira do motociclo ligada.
Quanto ao invocado depoimento da testemunha II, como se pode ler na sentença “é incapaz de afirmar com razoável grau de certeza que o ciclomotor que viu circular não fazendo uso de qualquer iluminação é o ciclomotor conduzido pelo falecido FF.”
Acresce ainda que tal testemunha visiona um ciclomotor que não fazia uso de qualquer iluminação quando toda a restante prova é no sentido que o ciclomotor do autor circulava pelo menos com as luzes frontais ligadas, pelo que é certo que o ciclomotor visionado por essa testemunha que não era o do falecido.
Por fim, a recorrente alega que o relatório do INEGI partiu do pressuposto de que o ciclomotor circulava com a luz traseira ligada, o que foi confirmado pela testemunha KK. Além disso, a própria testemunha GG, militar da GNR – NICAV referiu que a luz à retaguarda faria toda a diferença.
Contudo, como resulta da prova produzida, é certo que a luz frontal estaria ligada e que só por isso haveria alguma iluminação em frente ao ciclomotor do falecido que a arguida poderia e deveria ter visto.
Quanto a esta alegação que a falta de luz a retaguarda faria toda a diferença, é preciso ter em conta o que está dito na sentença:
“Mais foi tida em consideração a seguinte prova testemunhal constante dos autos: a testemunha LL, militar da GNR ... que se dirigiu ao local do acidente, afirma que à sua chegada, cerca de 10 a 15 minutos depois de terem sido chamados ao local, estava ainda a anoitecer, sendo final de dia. A testemunha MM, Bombeiro ..., afirma ter chegado ao local cerca de cinco minutos depois da chamada, e que se encontrara a escurecer, na transição do dia para a noite. A testemunha NN, afirma ter sido a primeira pessoa a contactar com a arguida após a ocorrência do acidente, dizendo que estava a escurecer, mas que ainda havia alguma visibilidade, apesar de o local não ter iluminação. Foi ainda tida em consideração a prova documental de fls. 202 e ss, o auto de visionamento, elaborado três dias após a ocorrência do sinistro, do qual se extrai que à hora da sua ocorrência do sinistro ainda está a anoitecer, não sendo ainda noite escura”.
Ou seja, à hora do acidente estava a anoitecer, ainda não era noite escura havendo ainda alguma visibilidade. Acresce como resulta da sentença que a arguida afirmou que “que circulava com as luzes em modo automático (médios), não tendo tido necessidade de ligar os máximos por considerar ter visibilidade.”
Mais afirma “que não circulava trânsito em sentido oposto” (facto provado n.º11).
Da conjugação da referida prova e das declarações da arguida é possível concluir que ela teria uma visibilidade de pelo menos 30 metros, mas que pela regra da experiência comum até se poderia afirmar-se que a visibilidade era superior.
Como bem se concluiu na sentença a arguida estaria desatenta pois apesar de ter alguma visibilidade natural e ter as luzes de cruzamento ligadas, nem sequer se apercebeu da presença do ciclomotor à sua frente, não tendo feito qualquer manobra de recurso, travando ou desviando-se do mesmo, evitando dessa forma o acidente.
O que se pode concluir é que a desatenção da arguida foi de tal forma grave que, independentemente de ter ou não o ciclomotor do falecido a luz traseira desligada, teria ocorrido na mesma o acidente.
Tudo isto sem esquecer que resulta da fundamentação da sentença que as luzes da frente do ciclomotor estavam ligadas e como tal conferiam sempre alguma iluminação.
Pretende a recorrente aditar os seguintes factos:
“ Porque o acidente ocorreu ao anoitecer e que no local não existe iluminação pública, a visibilidade da arguida para a hemi-faixa, porque circulava com as luzes de cruzamento ligadas, não era superior a 30 metros . “Pelo que se disse relativamente ao facto de a prova indicar que existia alguma visibilidade no local e na hora do acidente, ao facto da arguida nem sequer ver necessidade de ligar os máximos por considerar ter visibilidade, ao facto do ciclomotor circular pelo menos com a luz frontal ligada, nunca poderia dar-se como provado que a visibilidade não era superior a 30 metros, bem pelo contrário essa visibilidade era de pelo menos de 30 metros, ou mesmo superior.
Pelo que nunca se poderia concluir, como concluiu o recorrente, que a visibilidade era reduzida ou nula.
2- Nada tem os apelados a opor a que se adite à matéria de facto provada que os à apelada BB foi atribuída uma pensão de sobrevivência de 2.488,60€ por ano.
É de notar que a vítima FF era à data do acidente o único sustentáculo, a nível de fonte de rendimentos, do seu agregado familiar, constituído por ele, por sua esposa, aqui apelada BB, e os dois filhos do casal, CC e DD.
II-QUANTO À MATÉRIA DE DIREITO:
3- Sustenta a apelante Companhia de Seguros, que o acidente em causa se ficou a dever igualmente à culpa da vítima FF.
Para assim concluir, a apelante argumentou com o facto de o acidente ter ocorrido já ao anoitecer, num troço de reta sem qualquer iluminação pública, com visibilidade inferior a trinta metros transitando o ciclomotor da vitima com a luz traseira desligada, enquanto o veículo automóvel conduzido pela arguida seguia com as luzes de cruzamento ligadas, o que não permitia a esta ter a visibilidade para a hemifaixa de rodagem superior a trinta metros.
Perante estes factos, põe-se a questão de o veículo automóvel transitar com as luzes de cruzamento (ou médios) ligados em vez das luzes de estrada (ou máximos), como impõem o artigo 60º, nº1, a) e b), e o artigo 61º, nº1, b) e c) do código da estrada, entre si conjugados.
Com efeito, na hipótese, que não se aceita, de ocorrer uma situação de existir reduzida visibilidade, não superior a trinta metros, à frente do veículo automóvel, sem luz pública, que se verificava na ocasião do acidente, impunha-se por força do dito imperativo legal e até do dever de cuidado exigível a um condutor medianamente prudente, que a arguida AA usasse as luzes de estrada (máximos) destinadas a iluminar a via à frente do veículo numa distância não inferior a 100 metros, já que não circulava trânsito em sentido contrário (ver nº11 da matéria de facto dada como provada na sentença, que não foi posta em causa).
Se assim tivesse feito e conduzisse com o devido cuidado e atenção, a arguida AA teria possibilidade de avistar o ciclomotor da vítima à sua frente, na hemi-faixa de rodagem em que este veículo e o automóvel seguiam no mesmo sentido de trânsito.
4- Posto isto, mesmo na hipótese (que se admite, sem conceder, apenas para efeito de raciocínio) de o ciclomotor circular com a luz da retaguarda desligada, a arguida tê-lo-ia avistado ou pelo menos podia avistá-lo a tempo e com espaço suficientemente para dele se desviar ou até parar, travando de forma a evitar o acidente.
Daí concluímos que a culpa da ocorrência do acidente cabe exclusivamente a arguida AA, não relevando para este efeito o facto de o ciclomotor transitar eventualmente com a luz traseira desligada.
Mesmo que se entenda que a eventual falta de luz na retaguarda do ciclomotor contribuiu para a produção do acidente ou a gravidade das suas consequências, deverá, no nosso entender, concluir-se que o grau de culpa da arguida é de tal modo superior à proporção de culpa da vítima que a indemnização em causa deverá ser totalmente concedida, conforme dispõe o art. 570.º nº1 do Código Civil.
5- Quanto a indemnização pela lesão do direito a vida da vítima:
A recorrente pugna no sentido dessa indemnização, fixada na sentença em 90.000,00€, ser reduzida para o montante de 80.000,00€.
Não se vê razão para essa redução. Pelo contrário, afigura-se ao recorridos que esse montante peca por defeito.
Conforme se diz na sentença recorrida, regista-se alguma oscilação nos tribunais quanto aos valores atribuídos a indemnização do dano de perda do direito à vida. Mas a jurisprudência vem evoluindo no sentido de uma progressiva atualização de tais indemnizações, indo mesmo nalguns dos mais recentes acórdãos para o montante da ordem dos 100.000,00€. Coaduna-se essa evolução da jurisprudência com o agravamento dos índices de inflação que vêm degradando os valores monetários.
Por isso, deve ser mantido o valor dos 90.000,00€ fixado na sentença, se não for aumentado, como se pedirá no recurso subordinado que será interposto, valor esse que deverá ser repartido igualmente pelos três demandantes civis.
6- Quanto a indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos por cada um dos demandantes:
Foi essa indemnização fixada em 50.000,00€, 40.000,00€ e 30.000,00€, respetivamente, para o cónjuge BB e os filhos CC e DD, ao abrigo do art. 496º do Código Civil.
Damos aqui por reproduzida a fundamentação constantes da fundamentação que foi explanada no ponto 5.2 da sentença recorrida, face á qual podemos seguramente concluir que não há razões para reduzir esses valores para 30.000 €, 25.000 € e 20.000 €, como pretende a apelante.
Como se diz na alegação da recorrente, a jurisprudência dos nossos tribunais vem--se encaminhando no sentido de uma progressiva atualização das indemnizações pelos danos não patrimoniais, a que não é alheio uma acentuada agravamento dos índices de inflação que afetam os valores monetários nomeadamente quanto a indemnização da lesão do direito à vida.
7- Quanto a indemnização pelos danos patrimoniais sofridos pelos apelados na modalidade de danos futuros decorrentes da morte da vítima:
Na fundamentação da sentença relativa a indemnização pelos danos patrimoniais futuros em consequência da morte da vitima, partiu-se do facto de esta auferir o salário mínimo nacional que no ano de 2020 era de 635,00€ mensais, sendo ela o único membro remunerado do seu agregado familiar (ver n.º26 e 27 da matéria de facto dada como provada na sentença).
É sabido a evolução que tem beneficiado esse salário mínimo, designadamente a partir do ano de 2020.
Por outro lado, era previsível que o salário da vítima tivesse um aumento progressivo com a evolução da sua carreira profissional, evolução dos índices de inflação, evolução dos ganhos de produtividade e a política de valorização do salário mínimo.
Estes dados de facto afetam as contas que a apelante invoca na sua alegação recurso.
Quanto à pensão de sobrevivência de 2485,60€ por ano que foi atribuída a demandante BB, tem de se considerar que se baseia nos descontos efetuados pela vítima para a segurança social ou sistema de proteção social. Nada justifica que o lesante possa beneficiar do pagamento de tal pensão, para a qual em nada contribuiu e que não foi criada em seu benefício (como se diz no acórdão da relação de Coimbra de 26/02/1992, coletânea de jurisprudência, XVII, tomo II, página 119 e seguintes).
Quanto a pensão anual de 3.013,30€ atribuída a apelada BB no âmbito do acidente de trabalho por morte do seu marido, que foi remida, tendo a mesma recebido a título de remição a quantia de 43,126,38€ (ver n.º 29 e 30 da fundamentação de facto da sentença recorrida), há que considerar, como é doutrina e a jurisprudência correntes, as indemnizações por acidente simultaneamente de viação e trabalho não se acumulam, apenas se complementam até ao ressarcimento total do dano causado.
Foi isso que na sentença recorrida se fez ao fixar a indemnização pelos danos patrimoniais futuros em 51.793,37€, ao deduzir à quantia de 111.000,00€ ( ver 5.3 da sentença) os montantes de 43.126,35€ ( ver facto provado no n.º30 ) e de 16.079,67€ (ver facto provado no n.º 31), no total de 59,206,02€.
Por esse motivo não tem a recorrente razão quando na sua alegação de recurso diz que na sentença apenas se considerou o montante de 43.126,35€ recebida pela apelada BB, não tendo considerado o valor de 16.079,67€ (a receber pelo demandado CC atá completar 18 anos de idade).
A esse montante de 51.793,37€ há que acrescentar a indemnização de 1.000,00€ pelos danos patrimoniais sofridos pelo ciclomotor da vitima, o que perfaz o total de 52.793,37€, como se decidiu na 1.º instancia (ver parte decisória da sentença n.º 5 e 6) .
Acrescem os juros de mora, a taxa legal, contados desde a data da sentença até integral pagamento, da forma aí decidida.
Pelo dano de 1.000,00€ (ver ponto c, alínea 6, da parte decisória da sentença) acrescem juros de mora, a taxa legal, contados sobre essa quantia desde a data de citação até integral pagamento.
Isto para além da indemnização pela lesão do direito a vida, no valor de 90.000,00€, da forma que se lê em c) 1, e pelos restantes danos não patrimoniais, como se decidiu em c), n.ºs 2, 3 e 4.
Pelo exposto:
Improcedem todas as conclusões da alegação da apelante, devendo consequentemente ser negado provimento ao recurso e confirmada a sentença, na parte em que foi recorrida (sem prejuízo do que for decido no recurso subordinado que irá ser interposto pelos aqui recorridos).
*
BB, por si e na qualidade de legal representante do seu filho menor CC, e DD, demandantes civis no processo acima identificado, notificados da interposição de recurso, limitado à matéria civil, pela demandada A... Companhia de Seguros, S.A, vêm, ao abrigo do disposto nos artigos 399º, 404º, n.º 2 e 411º, n.º 6 do Código Processo Penal, interpor recurso subordinado da douta sentença proferida no processo, concluindo da seguinte forma:
1.ª Está decidido na sentença recorrida que o acidente de viação em causa nos autos se deveu a culpa exclusiva da arguida AA;
2.ª A vítima FF tinha 49 anos à data do óbito, sendo uma pessoa saudável, com gosto pela vida, amada e era amado pela sua esposa BB e pelos seus filhos CC e DD, respetivamente com 9 anos e 21 anos de idade à data do óbito do pai, dedicando todos eles atenção, amor e carinho;
3.ª A esperança de vida em 2020 (ano do acidente em causa) era de 78 anos para pessoas do sexo masculino. Mas como o falecido contava com 49 anos de idade é natural que uma pessoa com essa idade a sua esperança de vida seja superior aos ditos 78 anos, uma vez que deixará de contar para a estatística a mortalidade infantil e a morte prematura;
4.ª A jurisprudência dos nossos tribunais vem decidindo que a indemnização em sede de responsabilidade civil extracontratual deve ser significativa, não se podendo esquecer as flutuações do valor da moeda designadamente nos últimos tempos;
5.ª Posto isto, afigura-se aos recorrentes que a indemnização pela lesão do direito à vida da vítima deve ser fixada substancialmente acima do montante de 90.000€ que se arbitrou na sentença recorrida, por forma a que se aproxime da quantia de 180.000€ que os demandantes indicaram no seu pedido de indemnização civil.
6.ª Uma quantia de 180.000 € a título de indemnização pela lesão do direito à vida da vítima é mais adequado aos valores atuais de inflação, e aos previsíveis valores futuros de inflação, que segundo os economistas não regressarão aos valores muito baixos, quase nulos, que existiam ainda há poucos anos atrás.
Até hoje, os valores arbitrados pelos tribunais não tiveram em conta esta nova realidade, pois essas decisões dos tribunais são anteriores a essa nova realidade.
Termos em que deve ser dado provimento ao recurso, alterando-se a decisão recorrida quanto à indemnização pela lesão do direito à vida da vítima, com a condenação da recorrida A... Companhia de Seguros a pagar aqui recorrentes, a esse título, a quantia de 180.000 €, aproximadamente, repartida em três partes iguais, nos termos do disposto no artigo 2139.º, n. º1 do Código Civil, acrescido de juros de mora à taxa legal, contados da forma como está
decidido na sentença.
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Neste Tribunal de Recurso o Digno Procurador-Geral Adjunto no parecer que emitiu, pugnou pela improcedência do recurso.
No âmbito dos presentes autos, foi superiormente determinado, na douta sentença:
a) Condenar a arguida AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 69.º, n.º 1 alínea a) e 137.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, a qual se suspende pelo período de 2 (dois) anos, nos termos do disposto no artigo 50.º do Código Penal;
b) Condenar a arguida pela prática do mesmo crime, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 1 (um) ano;
c) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pelos demandantes e, em consequência, condenar a demandada a pagar:
1) Aos demandantes BB, CC e DD, a importância de €90.000,00 (noventa mil euros), a titulo de indemnização por danos não patrimoniais de perda do direito à vida, a qual deverá ser repartida, nos termos do disposto no artigo 2139.º, n.º 1 do Código Civil, em três partes iguais, acrescidos de juros à taxa legal desde a data da presente decisão até integral pagamento;
2) À demandante BB a quantia de €50.000,00 (cinquenta mil euros) a titulo de danos não patrimoniais por si sofridos, acrescida de juros desde a data da presente decisão até integral pagamento;
3) Ao demandante EE a quantia de €40.000,00 (quarenta mil euros) a titulo de danos não patrimoniais por si sofridos, acrescida de juros desde a data da presente decisão até integral pagamento;
4) Ao demandante DD a quantia de €30.000,00 (trinta mil euros), a titulo de danos não patrimoniais por si sofridos, acrescida de juros desde a data da presente decisão até integral pagamento;
5) Aos demandantes a quantia de €51.793,37 (cinquenta e um mil, setecentos e noventa e três euros e trinta e sete cêntimos) pelos danos patrimoniais, dano futuro, acrescido de juros desde a data da presente decisão, até integral pagamento;
6) Aos demandantes a quantia de €1.000,00 (mil euros), por danos patrimoniais;
Absolvendo-se a demandada do demais peticionado;
*
De tal douta sentença recorre A... – Companhia de Seguros, S.A., pugnando:
- pela impugnação da matéria de facto apurada, e pela sua alteração;
- e bem assim pela impugnação do valor arbitrado, a título de indemnização, por excessivo.
- Entendendo, assim, que “in casu” foram violados os artigos 342.º, 487.º e seguintes e 570.º, todos do Código Civil e, bem assim, o disposto nos artigos 411.º, 413.º e 414.º, todos do CPC.
*
Responderam a tal recurso “…BB, por si e na qualidade de legal representante do seu filho menor CC, e DD, demandantes civis no processo acima identificado…”, pugnando pela manutenção do decidido.
E interpuseram recurso subordinado, discordando da douta sentença, apenas quanto ao montante de 90.000 € nela fixado para indemnização da lesão do direito à vida de vítima FF, pugnando pela alteração do montante indemnizatório para 180.000€, a repartir em três partes iguais.
*
Respondeu a Exma. Colega na primeira instância, pugnando pela manutenção “in totum” da douta sentença ora em crise.
*
Antes de mais, sempre se dirá que o que está aqui em causa é uma mera discordância entre a decisão do julgador e o entendimento dos Recorrentes (recurso principal e subordinado), carecendo estes de qualquer relevância jurídica.
Como bem refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra:
I - Através da fundamentação da matéria de facto da sentença deverá ser possível perceber como é que, de acordo com as regras da experiência comum e da lógica, se formou a convicção do tribunal.
II - O exame crítico das provas tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo.” (Cfr. Proc. nº 66/15.1GAMIR.C1, de 27.09.2017)
Tal está devidamente plasmado na douta Sentença, e cabalmente explicitado o “iter” que levou à decisão condenatória.
A convicção do Tribunal quanto aos factos dados como provados e não provados, foi obtida através da apreciação crítica da prova produzida, nomeadamente a constante no auto de noticia, em conjunto com a demais prova produzida em audiência de julgamento.
A sentença recorrida de forma coerente, lógica e devidamente fundamentada enunciou o que esteve na origem da creditação da prova.
Nas conclusões da motivação do recurso (principal) verifica-se que a recorrente apresenta a sua interpretação sobre a prova produzida e o seu entendimento sobre qual deveria ser a decisão do Tribunal.
Limita-se a atacar a convicção do Tribunal recorrido sendo que este está vinculado ao principio da livre apreciação da prova e ás regras da experiência e lógica comum.
A convicção do Tribunal, pessoal, objectiva e motivada só pode ser modificada pelo Tribunal de recurso quando a mesma violar os seus fundamentos vinculados ou então quando afronte, de forma manifesta, as regras da lógica e da experiência comum.
O principio da livre apreciação da prova e o seu exercício é indissociável da oralidade e da imediação em que decorre o julgamento contribuindo de forma essencial para a convicção do julgador aqui avultando actividade puramente cognitiva conjugada com elementos não racionalmente explicáveis e elementos de índole emocional apenas apreendidos devido aos aludidos princípios.
No caso vertente o Tribunal, de forma justificada e na sequência de apreciação critica da prova entendeu valorizar determinado depoimento, formulando-se um juízo sobre o cometimento de certos factos e de se dar como provada determinada factualidade.
Não será legítimo ao Tribunal de recurso alterar o julgamento feito em primeira instância quando a decisão encontrada, devidamente fundamentada for, face ao factualismo dado como provado, compatível com as regras da experiência comum.
Efectivamente, conforme tem vindo a ser decidido repetida e uniformemente:
Mesmo quando houver documentação da prova, a sua livre apreciação, devidamente fundamentada segundo as regras da experiência, no sentido de uma das soluções plausíveis torna a decisão inatacável. Doutro modo seriam defraudados os fins visados com a oralidade e a imediação da prova.” Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 6-3-2002, proferido no Processo nº 0111381.
Na matéria em apreço o Tribunal recorrido não expressou ou manifestou qualquer dúvida quanto a qualquer facto, resultando os factos dados como provados de um processo de avaliação critica da prova não tendo surgido no espírito do julgador qualquer dúvida quanto à sua verificação e configuração.
*
Já quanto ao cálculo do montante indemnizatório, sempre se dirá que o mesmo se mostra ajustado, atentos os parâmetros da actual jurisprudência, em casos semelhantes ao aqui em análise.
*
Importará, ainda, referir que nos louvamos nas considerações expendidas pela Exma. Colega da primeira instância, que aqui se dão por reproduzidas, e com as quais se concorda na íntegra, quanto às circunstâncias e factualidade em concreto ocorridas no acidente.
*
Em conclusão, somos de parecer que:
- a prova foi devidamente apreciada e valorada;
- a douta sentença está devida e acertadamente fundamentada, e não padece que qualquer erro ou vício;
- não houve violação de lei;
- o recurso deve ser julgado improcedente, mantendo-se a sentença nos seus precisos termos.
*
Cumprido o preceituado no artigo 417º número 2 do Código Processo Penal nada veio a ser acrescentado de relevante no processo.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
*
Objeto do recurso e sua apreciação.
O objecto do recurso está limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente (cfr. Acórdão do STJ, de 15/04/2010, in http://www.dgsi.pt: “Como decorre do artigo 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões (…)”, sem prejuízo da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95).
São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso. Se ficam aquém a parte da motivação que não é resumida nas conclusões torna-se inútil porque o tribunal de recurso só pode considerar as conclusões e se vão além também não devem ser consideradas porque são um resumo da motivação e esta é inexistente (neste sentido, Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2015, págs. 335 e 336).
*
Deste modo integram o objeto do recurso da demandada companhia de seguros a arguição:
- Impugnação da decisão da matéria de facto, com alteração do contributo causal da conduta da arguida.
- Alteração/redução da medida indemnizatória do dano vida, dos danos morais dos demandantes e dos danos patrimoniais futuros.
No recurso subordinado dos demandadas pretende-se a atribuição do valor dano vida .
*
Do enquadramento dos factos.

São os seguintes os factos dados como provados pelo Tribunal de 1ª Instância:
“O Ministério Público acusou, para julgamento em Processo Comum, com intervenção de Tribunal Singular:
AA, titular do CC Nº ..., solteira, nascida a ../../1999 e residente na Avenida ... ..., ... Lousada,
Imputando-lhe a prática de um crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelos artigos 69º, nº 1, al. a) e 137º, nº 1, ambos do Código Penal, com referência aos artigos 24º, nº 1 e 25º, nº 1, al. e) e g), estes do Código da Estrada.
Pelos demandantes BB, por si a na qualidade de legal representante do seu filho menor CC, e por DD, foi deduzido pedido de indemnização civil contra a A... Companhia de Seguros, S.A., peticionando a condenação da demandada no pagamento da quantia global de €372.793,37.
Pela Demandada A... Companhia de Seguros S.A., foi apresentada contestação do pedido de indemnização civil deduzido.
Pela arguida foi apresentada contestação e arroladas testemunhas.
Procedeu-se à realização de audiência de discussão e julgamento, com observância dos devidos trâmites legais e na presença do arguido, conforme consta da respetiva ata.
Posteriormente ao despacho que recebeu a acusação e designou dia para a audiência de julgamento não se verificam nulidades, exceções ou questões prévias que obstem à apreciação do mérito da causa, mantendo-se a validade da instância.
Procedeu-se à comunicação da alteração não substancial dos factos constantes da acusação, nos termos do disposto no artigo 358.º, n.º 1 do CPP, tendo a defesa dito nada ter a requerer, prescindindo do prazo de defesa.
II – Fundamentação de Facto
2.1 – Com interesse para a discussão da causa, resultou provado nomeadamente que:
1. No dia 13 de janeiro de 2020, pelas 18h, a vítima mortal FF conduzia o ciclomotor, de marca YAMAHA, modelo ..., com a matrícula ..-FV-.., na ..., no sentido de marcha .../..., na freguesia ..., neste município ..., desta comarca, numa reta, com inclinação descendente de 5,8%, a uma velocidade aproximada de 40 Km/h;
2. O condutor do ciclomotor de matrícula ..-FV-.. fazia uso de capacete;
3. A arguida AA, por seu turno, conduzia o veículo ligeiro de passageiros, de marca TOYOTA, modelo ..., com a matrícula ..-ZR-.., também no mesmo sentido de marcha, a uma velocidade de cerca de 85 Km/h, quando embateu, com a sua parte dianteira do lado direito, na parte traseira do ciclomotor, com a matrícula ..-FV-.., fazendo com que a vítima mortal fosse projetada e ficasse imobilizada na vegetação ali existente, a cerca de 5 metros da faixa de rodagem;
4. Como consequência, resultaram para FF as seguintes lesões:
- Cabeça: solução de continuidade com bordos irregulares, profunda, com sete centímetros de comprimento, na região parietal esquerda, escoriações lineares na hemiface esquerda e região do mento;
- Abdómen: extensa equimose com carateristicas abrasivas de vinte por quinze centímetros na região abdominal esquerda, com duas soluções de continuidade de carateristicas perfurantes;
- Membro superior esquerdo: pequenas escoriações e equimoses no dorso da mão;
- Membro inferior esquerdo: presente irregularidade/dismorfia da coxa pequenas escoriações e equimoses na face anterior da perna;
- Clavícula, Cartilagens e Costelas Direitas: presente fratura cominutiva dos arcos costais do 20 ao 70;
- EXAME DO HÁBITO INTERNO
- Cabeça: Partes moles: sinais de infiltração sanguínea, dos tecidos moles na região parietal direita e esquerda em continuidade com a solução de continuidade descrita na região parietal esquerda;
- Meninges: presença de hemorragia subaracnoidea na região cerebelosa e tronco cerebral;
- Encéfalo: hemisférios cerebrais simétricos; tecido cerebral de aspeto congestivo; ventrículos laterais sem conteúdo hemático;
- Gânglios: com sinais de infiltração sanguínea nos topos ósseos e tecidos adjacentes;
- Clavícula, Cartilagens e Costelas Esquerdas: presente fratura cominutiva dos arcos costais do 10 ao 100 com sinais de infiltração sanguínea nos topos ósseos e tecidos adjacentes;
- Coração: coração ligeiramente aumentado de tamanho. Hipertrofia ventricular esquerda concêntrica. Sem malformações aparentes dos grandes vasos. O miocárdio apresenta-se nas diferentes secções de corte congestionado, de tonalidade vermelho-acastanhada; Endocárdio liso e brilhante;
- Fígado: laceração do lobo direito do fígado, com sinais de infiltração sanguínea;
- Baço: laceração completa do baço, com sinais de infiltração sanguínea;
- Membro inferior esquerdo: fratura cominutiva do terço médio do fémur esquerdo, com sinais de infiltração sanguínea nos to os ósseos e tecidos adjacentes;
5. Tais lesões foram causa directa e necessária da morte de FF;
6. O acidente ocorreu ao anoitecer;
7. No local não existe iluminação pública;
8. As condições ambientais eram boas;
9. O piso estava limpo e seco;
10. A velocidade máxima permitida no local do acidente é de 90 km/h;
11. Não circulava transito em sentido contrário;
12. A arguida era titular de carta de condução há cerca de quatro meses;
13. Porque conduzia sem o devido cuidado e atenção à condução, a arguida não atentou ao transito que circulava no mesmo sentido ao seu;
14. A arguida não viu o ciclomotor que circulava na sua frente, quando podia e devia ter evitado o acidente, uma vez que circulando com as luzes de cruzamento ligadas a arguida poderia ter visto o ciclomotor a pelo menos 30 metros e distância e actuar de forma a evitar o seu embate, travando ou desviando-se;
15. A arguida podia e devia ter agido com o cuidado exigido na condução de veículos automóveis;
16. Sabia que o seu comportamento era proibido e punido por lei.

Do pedido de indemnização civil deduzido pelos demandantes:
17. FF nasceu a ../../1970, e faleceu a 13.01.2020, com 49 anos de idade;
18. Contraiu casamento com BB, a 20.05.1995, no regime de comunhão de bens adquiridos;
19. CC nasceu a ../../2010, e DD nasceu a ../../1998, encontrando-se registados como filhos de BB e de FF;
20. Em consequência do acidente FF sofreu as lesões melhor descritas em 4) da matéria de facto provada;
21. O falecido era uma pessoa saudável, com gosto pela vida, que amava e era amado pelos demandantes, os quais lhe dedicavam atenção, amor e carinho;
22. O falecimento de FF trouxe um grande desgosto à sua esposa, com quem vivia, partilhava a vida, sentido esta um grande desgosto em perder a pessoa do companheiro com quem viveu durante cerca de 25 anos;
23. A demandante BB sente hoje a solidão e a saudade da falta do companheiro da sua vida, dor que se perpetuará pelo resto da sua vida;
24. O falecimento de FF trouxe para os seus filhos, CC, com 9 anos de idade à data do óbito do seu pai, e DD, com 21 anos à data do óbito, com quem sempre viveram, um grande desgosto e saudade pela perda prematura do seu pai;
25. Em consequência do acidente perdeu-se o ciclomotor conduzido pelo falecido, sendo que o embate que sofreu, o seu arrastamento pela via e o posterior incêndio o deixaram destruído;
26. À data do sinistro o falecido auferia a remuneração de €635,00x14+€104,94x11;
27. No momento do falecimento FF era o único membro da família remunerado, uma vez que a esposa sempre foi doméstica e o seu filho mais velho naquela data estava desempregado e sem subsidio de desemprego;
28. Era com o salário do falecido que o casal providenciava pela sua alimentação e pela alimentação dos filhos;
29. Foi atribuída a BB no âmbito do acidente de trabalho por morte do seu marido a pensão anual de €3.013,30, devida desde 14.01.2020, calculada em função de 30% do salário do falecido, no total anual de €10.044,34;
30. A demandante civil a titulo de remição de pensão a quantia de €43.126,35;
31. Foi atribuída ao menor CC no âmbito do acidente de trabalho por morte do seu pai a pensão anual no montante de €2.008,87, devida desde 14.01.2020, calculada em função de 20% do salário do falecido, no total anual de €10.044,34, pensão que receberá até completar 18 anos de idade, no total de €16.079,67;

Da contestação da demandada A... – Companhia de Seguros, S.A.:
32. À data do sinistro, o veículo de matrícula ..-ZR-.., encontrava-se seguro pela demandada A... – Companhia de Seguros, S.A., através da apólice n.º ...;
Mais se apurou que:
33. A arguida trabalha, auferindo quantia equivalente ao salário mínimo nacional;
34. Reside em casa dos seus pais, contribuindo para as despesas com a quantia de €150,00 por mês;
35. Tem o 12.º ano de escolaridade;
36. Do certificado de registo criminal da arguida não consta qualquer condenação.

2.2 – Matéria de Facto não provada
Com relevo para a boa decisão da causa não resulta provado, nomeadamente, que:
1. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1) da matéria de facto provada, o condutor do ciclomotor de matrícula ..-FV-.., levava o sistema de iluminação ligado;
2. O acidente ocorreu à noite;
3. A arguida teve cerca de 150 metros e 12 segundos para visualizar o ciclomotor;

Do pedido de indemnização civil dos demandantes:
4) Desde a hora do acidente, cerca das 18 horas, até cerca das 18 horas e 30 minutos, hora da morte, o falecido sofreu dores resultantes das lesões sofridas, bem como medo de estar às portas da morte;
5) As lesões que FF sofreu e os momentos que precederam a sua morte provocaram-lhe dores e sofrimento;
6) O ciclomotor conduzido pelo falecido tinha à data do acidente o valor de €1000,00;

Da contestação da demandada A... – Companhia de Seguros, S.A.:
7) O falecido FF circulava com as luzes traseiras do veículo de matrícula41-FV-21 desligadas;
8) Na hora do acidente, já era noite;
9) Atendendo à diferença de velocidades a que circulava o veículo ..-FV-.., e o veículo de matrícula ..-ZR-.., acrescendo a circunstância de o veículo de matrícula ..-FV-.. circular sem as luzes traseiras ligadas, a presença deste veículo não foi perceptível à arguida;

Ao nível da fixação da matéria de facto provada e não provada o tribunal não se pronuncia sobre as afirmações contidas nos pedidos de indemnização civil e na contestação da demandada, por constituir matéria conclusiva e de direito, que não podem ser objecto de pronúncia, em termos de serem considerados “provados” ou não provados”.
2.3 – Motivação da Decisão de Facto

A convicção do tribunal quanto à factualidade considerada provada e não provada radicou na análise crítica e ponderada da prova produzida em julgamento, apreciada segundo as regras da experiência comum e o princípio da livre convicção do julgador – artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Foram tidos em consideração os depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento pelas seguintes testemunhas: GG (NICAV – GNR), BB (viúva do falecido), HH (colega de trabalho do falecido), OO (Bombeiro ...), II, JJ (colega de trabalho do falecido), LL (GNR ...).
Foi ainda tido em consideração o depoimento das seguintes testemunhas indicadas no pedido de indemnização civil: PP, QQ, RR, SS (pai da arguida).
Mais foi valorado o depoimento das testemunhas indicadas pela demandada: TT (averiguador de sinistros), KK (perito do INEGI).
Foram ainda valorados os depoimentos das seguintes testemunhas indicadas pela defesa: UU (mãe da arguida), VV (irmã da arguida).
Mais foi tida em consideração a seguinte prova documental constante dos autos: participação de acidente de viação, relatório final do NICAV da GNR.
Mais foi tida em consideração a seguinte prova pericial: relatório de autópsia, relatório do CENPERCA.
Importa antes de mais referir que em relação a determinados pontos da acusação, houve consenso entre todos os meios de prova, não tendo sido os mesmos postos em causa.
Assim, quanto à ocorrência do acidente, sua localização, estado do tempo, características da via, características e sentido de marcha dos veículos, a identificação dos intervenientes no acidente, bem como as lesões sofridas por FF, localização do corpo do falecido após o embate, ausência de iluminação pública no local, a velocidade máxima permitida, o uso de capacete pelo falecido, e o facto de a arguida à data do sinistro ser titular de carta de condução há quatro meses, não há controvérsia.
Na verdade, tais elementos ou foram admitidos pela arguida, ou os mesmos assumem caracter técnico, que tornou preponderante a prova pericial constante dos autos.
No que concerne ao facto n.º 6) da matéria de facto provada, por oposição ao facto n.º 2) da matéria de facto não provada, resultam os mesmos da conjugação dos seguintes elementos de prova:
As declarações da própria arguida prestadas no final da audiência de julgamento, ao afirmar não ter tido necessidade de ligar os máximos, circulando com os médios porque tinha visibilidade.
Mais foi tida em consideração a seguinte prova testemunhal constante dos autos: a testemunha LL, militar da GNR ... que se dirigiu ao local do acidente, afirma que à sua chegada, cerca de 10 a 15 minutos depois de terem sido chamados ao local, estava ainda a anoitecer, sendo final de dia. A testemunha MM, Bombeiro ..., afirma ter chegado ao local cerca de cinco minutos depois da chamada, e que se encontrara a escurecer, na transição do dia para a noite. A testemunha NN, afirma ter sido a primeira pessoa a contactar com a arguida após a ocorrência do acidente, dizendo que estava a escurecer, mas que ainda havia alguma visibilidade, apesar de o local não ter iluminação.
Foi ainda tida em consideração a prova documental de fls. 202 e ss, auto de visionamento, elaborado três dias após a ocorrência do sinistro, do qual se extrai que à hora da sua ocorrência do sinistro ainda está a anoitecer, não sendo ainda noite escura.
Com base em tais elementos de prova, resulta apurado o facto n.º 6) da matéria de facto provada, por contraposição com o facto n.º 2) da matéria de facto não provada.
Relativamente ao facto n.º 11) da matéria de facto provada, o mesmo resulta das declarações da arguida, prestadas em sede de audiência de julgamento, afirmando que não circulava transito em sentido contrário.
No que concerne à dinâmica do acidente, importa referir que de acordo com as declarações e depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, não há qualquer testemunha presencial, apenas seguindo a arguida no veículo por si conduzido.
Relativamente às declarações prestadas pela arguida no final da audiência de julgamento, a mesma afirma não ter visto o ciclomotor conduzido pelo falecido, não sabendo explicar como o acidente ocorreu. Mais refere não se ter apercebido de embater com o veículo por si conduzido no ciclomotor, apenas se tendo apercebido que estava a passar por cima de algo, perdendo o controlo do veículo, não conseguindo nesse momento imobilizar o seu veículo. Afirma que não seguia desatenta nem distraída.
Contudo, neste concreto ponto as declarações da arguida são contrariadas pelos demais elementos de prova constantes dos autos.
De facto, diz-nos a experiência, em regras comuns, que num acidente imperam as normas da física, o que leva o Tribunal a recorrer a outros elementos de prova que não as declarações da arguida.
Deste modo, foi tido em consideração o teor do relatório pericial de fls. 320 e ss dos autos, elaborado pelo INEGI, tendo KK, responsável pela elaboração do mesmo, prestado depoimento em audiência de julgamento na qualidade de testemunha.
De tal relatório decorre que o veículo conduzido pela arguida seguia a uma velocidade e aproximadamente 85 km/h, e o veículo conduzido por FF seguia a uma velocidade de aproximadamente 40 km/h. Tais conclusões são resultado de várias simulações computacionais, realizadas a partir dos elementos de prova documental constantes dos autos.
A completude das simulações realizadas (para cuja compreensão foram essenciais os esclarecimentos da testemunha KK), levou o Tribunal a formar convicção segura quanto à velocidade a que seguia cada um dos veículos, tal como constante das conclusões do relatório a que acima de alude. Com efeito, a posição final dos intervenientes no acidente e os danos no veículo conduzido pela arguida suportam tal conclusão.
Quanto ao local onde o embate ocorreu, foi igualmente tido em consideração o relatório pericial, em conjugação com o depoimento da testemunha KK, explicando o motivo pelo qual foi afastado o local provável de embate assinalado no croqui. Explicou a testemunha, de forma que se logrou totalmente lógica que as marcas de travagem/despiste registadas no croqui e associadas ao veículo conduzido pela arguida não são coerentes com a localização dos vestígios do veículo conduzido pela arguida e do veículo conduzido pelo falecido, concluindo-se assim que tais marcas não foram realizadas pelo veículo conduzido pela arguida, estando o local provável do embate localizado próximo do inicio dos primeiros vestígios na via.
Tal conclusão é ainda congruente com as declarações prestadas pela arguida ao afirmar não ter visto o ciclomotor, motivo pelo qual não travou, inexistindo assim marcas de travagem na via.
No que concerne à visibilidade e distância a que a arguida poderia percepcionar o veículo conduzido pelo falecido, tal como explicado em sede de audiência de julgamento pela testemunha KK, o relatório elaborado partiu do pressuposto de que o ciclomotor circulava com a luz traseira ligada.
Contudo, tal conclusão não encontra suporte da restante prova produzida em sede de audiência de julgamento. Vejamos:
- a arguida nas declarações prestadas em sede de audiência de julgamento, afirma não conseguir concretizar se o ciclomotor circulava com a luz traseira ligada;
- a testemunha HH (colega de trabalho do falecido), afirma ter saído do trabalho mais ou menos à mesma hora que o falecido. Mais afirma conseguir afirmar que o falecido FF circulava com a luz frontal do motociclo ligada, não conseguindo afirma com exactidão de circulava com a luz traseira ligada, uma vez que viu a parte lateral do ciclomotor, não conseguindo ver a luz traseira do local onde de encontrava;
- a testemunha JJ (colega de trabalho do falecido), afirma ter visto o falecido sair do local de trabalho no conduzindo o ciclomotor, não sendo capaz de se recordar se o falecido circulava com as luzes do motociclo ligadas;
- a testemunha II, afirma que talvez possa ter passado pelo falecido pouco tempo antes da ocorrência do sinistro, circulando no mesmo sentido de transito, e que os mesmo circulava com as luzes desligadas. Refere a testemunha que pouco tempo depois, quando passou em sentido oposto deparou-se com o acidente, tendo telefonado à GNR por pensar que poderia ter passado pelo ciclomotor antes do sinistro. Contudo, a testemunha é incapaz de afirmar com razoável grau de certeza que o ciclomotor que viu circular não fazendo uso de qualquer iluminação é o ciclomotor conduzido pelo falecido FF;
- foi tido em consideração o auto de visionamento de fls. 150 e ss, tratando-se das imagens das câmaras de videovigilância da empresa B.... Consta de tal auto de visionamento um ciclomotor a circular da via, no dia da ocorrência do sinistro, em hora próxima, o qual aparenta fazer uso de luz frontal, não sendo visível a utilização de luz à retaguarda. Contudo, tal auto de visionamento não permite concluir sem margem para dúvida tratar-se do ciclomotor conduzido pelo falecido, ou sequer se o mesmo fazia utilização de luz traseira.
Deste modo, confrontados todos os elementos de prova produzidos em sede de audiência de julgamento, inexiste nos autos prova suficientemente segura que permita concluir se o falecido circulava com a luz traseira do ciclomotor ligada. Pelo mesmo motivo, a prova produzida não permite igualmente concluir que o falecido FF circulava com a luz traseira do ciclomotor desligada.
Por tal motivo, resultam não provados os factos n.ºs 1) e 5) da matéria de facto não provada.
No que concerne à circulação da arguida com as luzes de cruzamento ligadas, tal como consta do facto n.º14) da matéria de facto provada, foram tidas em consideração as declarações da arguida prestadas em sede de audiência de julgamento, ao afirmar que circulava com as luzes em modo automático (médios), não tendo tido necessidade de ligar os máximos por considerar ter visibilidade.
Contudo, na conjugação dos elementos de prova constantes dos autos, a prova pericial, aliada a regras de lógica e experiência comum, o Tribunal não julga credíveis as declarações da arguida ao afirmar que não conduzia de modo desatento.
Assim o Tribunal tem em consideração as características da via onde ocorreu o sinistro, tratando-se de uma recta, com boa visibilidade, com inclinação descendente de 5,8%, com piso limpo e seco, condições ambientais boas, encontrando-se à hora do sinistro a anoitecer.
Tal circunstância, aliada às declarações da arguida ao afirmar que circulava com os médios ligados, conjugadas com regras de lógica e experiência comum, permitem concluir pela condução desatenta por parte da arguida, que levou a que a mesma não se apercebesse da presença do ciclomotor na sua frente, acabando por embater com a parte dianteira do lado direito do veículo por si conduzido, na parte traseira do ciclomotor de matrícula ..-FV-...
Note-se que circulando a arguida com luzes de cruzamento (médios), caso a mesma se tivesse apercebido da presença do ciclomotor a cerca de 30 metros, o acidente podia ser evitável efectuando uma travagem ou desviando-se. Qualquer das manobras seria possível, atendendo a que resulta das declarações da arguida que não circulava transito em sentido oposto (facto provado n.º 11).
Não resultando dos autos qualquer prova no sentido de a arguida ter, por qualquer meio, realizado uma manobra evasiva na tentativa de evitar o embate, duvidas não teve o Tribunal em considerar provados os factos n.ºs 13) e 14) da matéria de facto provada.
Os elementos subjetivos resultam provados com base no facto de a arguida ser uma condutora encartada, concluindo-se que a mesma conhece o modo como circula um condutor prudente, conhecendo as regras de circulação, podendo e devendo agir de outra forma.
Do pedido de indemnização civil dos demandantes:
Foi tida em consideração a prova documental junta aos autos, constante de fls. 484 a 501 dos autos.
Mais foi tido em consideração o contrato de seguro a fls. 552 a 555 dos autos.
No que concerne às lesões sofridas por FF, que conduziram à sua morte, foi tido em consideração o relatório de autópsia junto aos autos.
No que respeita ao estado de espirito e de saúde antes do acidente, bem como a relação com a sua esposa e filhos, foram tidos em consideração o depoimento prestado pela demandante BB, em conjugação com o depoimento das testemunhas PP, QQ e RR.
A demandante BB depôs de forma que se afigurou totalmente credível, lógica e espontânea.
Afirmou ser casada com a vítima, tendo uma relação muito próxima consigo e com os seus dois filhos. Nutriam amor uns pelos outros, tendo todos sofrido um enorme desgosto com o seu falecimento.
Afirmou que o seu marido trabalhava na empresa C... há cerca de um ou dois anos, auferindo quantia equivalente ao salário mínimo nacional. Mais afirmou que o falecido FF era o sustento da família, sendo o único que auferia rendimentos.
Mais confirmou ter auferido indemnização proveniente da seguradora por acidente de trabalho, bem como uma pensão da segurança social. Neste concreto ponto o seu depoimento foi conjugado com os documentos de fls. 494 a 496, 498, 500 e 501, 550 a 565, 583 a 588.
Demostrativo do estado de espírito vivenciado pelos demandantes foi ainda o depoimento das testemunhas PP, QQ e RR.
A testemunha PP, presidente da junta de freguesia onde o falecido FF residia com a sua família, afirmou tratar-se de uma família muito unida, tendo uma relação saudável, tendo ficado em choque e muito abalados com o seu falecimento.
Mais afirmou que a junta de freguesia auxiliou a família após o falecimento de FF, fornecendo-lhes mantimentos durante cerca de seis ou sete meses.
Elucidativo foi ainda o depoimento da testemunha QQ, vizinha da família, afirmando que o falecido, esposa e filhos se davam muito bem, tinham uma relação muito próxima, andando sempre os quatro juntos.
Refere ainda que a demandante BB era doméstica à data do falecimento do seu marido, tendo passado por muitas dificuldades.
A testemunha RR recebeu o filho mais velho do falecido em estágio durante cerca de dois anos. Afirma que se tratava de uma família muito próxima e unida, andando sempre juntos. Mais refere que sentiram um grande desgosto.
Quanto às dores sofridas por FF causadas pelo embate e pelas lesões sofridas, as mesmas resultam do impacto do embate, aliadas a regras de lógica e experiência comum.
Das condições pessoais da arguida.
Relativamente às condições pessoais da arguida foram valoradas as suas declarações, as quais mereceram credibilidade.
Quanto à ausência de antecedentes criminais foi tido em consideração o certificado de registo criminal junto aos autos.
Passemos à análise da matéria de facto não provada.
No que se reporta ao facto n.º 1) da matéria de facto não provada, em conjugação com o facto n.º 5) da matéria de facto não provada, não se apurou se o ciclomotor de matrícula ..-FV-.. circulava com as luzes traseiras ligadas ou desligadas, conforme já explicado na fundamentação da matéria de facto provada, para a qual se remete.
Do mesmo modo, o facto n.º 2) da matéria de facto provada resulta por contraposição com o facto n.º 6) da matéria de facto provada, conforme a respectiva fundamentação, para a qual se remete.
O facto n.º 3) da matéria de facto não provada não encontra fundamento na prova produzida em sede de audiência de julgamento, uma vez que o mesmo parte do pressuposto de que o ciclomotor circulava com a luz traseira ligada, o que, como já se deixou explicitado, não resultou apurado. Relativamente ao facto n.º 4) da matéria de facto não provada, nenhuma prova se produziu em sede de audiência de julgamento, nem consta dos autos qualquer elemento de prova que permita aferir o valor do ciclomotor à data do sinistro.
Por fim, o facto n.º 7) da matéria de facto não provada corresponde à versão trazida a juízo pela demandada em sede de contestação, a qual não encontra suporte na prova produzida em sede de audiência de julgamento.
III – Fundamentação de Direito
3.1 – Enquadramento jurídico – penal
Estabelecido o quadro factual apurado, importa proceder ao respetivo enquadramento jurídico-penal.
À arguida vem imputada a prática em autoria material e na forma consumada de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, com referência aos artigos 24.º, n.º 1 e 25.º, n.º 1, alíneas e) e g) do Código da Estrada.
Dispõe o artigo 137.º, n.º 1 do Código Penal que “quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até três anos, ou com pena de multa”.
Por outro lado, estabelece o artigo 15.º do Código Penal que “age com negligência quem, por não proceder com o cuidado que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz (…) representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização (…) ou não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto”.
A relevância jurídico-penal do homicídio negligente justifica-se duplamente, em virtude do bem jurídico protegido –o bem supremo da vida humana –e da carência da pena1, que se faz sentir, atenta a proliferação das situações de risco e de dano para a vida humana resultantes das inúmeras fontes de perigo imanentes à “sociedade do risco” contemporânea.
1 A expressão é de Jorge de Figueiredo Dias, em anotação ao artigo 137.º do Código Penal, no seu Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, Coimbra, 1999, página 106, § 1.
O crime de homicídio por negligência constitui um tipo legal de resultado que –que se consubstancia na morte de outrem –fazendo-se a sua imputação objetiva à conduta ou à omissão do agente de acordo com as regras gerais –artigo 10.º do Código Penal –e pressupondo, no presente caso, a violação de um dever objetivo decuidado, o qual é exigível na medida a evitar a ocorrência do resultado típico, e que é aferida caso a caso, e das normas, quando existam, que visam limitar ou diminuir o risco próprio de certas atividades, tais como as normas existentes relativamente à circulação rodoviária.
O tipo subjetivo deste tipo de ilícito criminal pressupõe assim, por parte do agente uma conduta negligente, em qualquer das modalidades previstas no artigo 15.º do Código Penal, sendo sempre necessário que o agente se encontre em condições de reconhecer as exigências de cuidado que lhe dirige a ordem jurídica e de as cumprir, bem como que àquele fosse possível atuar de outro modo (exige-se pois, um comportamento lícito alternativo).
No caso está em causa a violação dos normativos previstos nos artigos 24.º, n.º 1 e 25.º, n.º 1, alíneas e) e g) do Código da Estrada.
Dispõe o artigo 24.º do citado diploma legal, relativamente à velocidade que:
“1 -O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente. (…)”
Por seu turno, estabelece o artigo 25.º do Código da Estrada que: “1 -Sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade: (…)e) À aproximação de utilizadores vulneráveis; (…)g) Nas descidas de inclinação acentuada(…)
Importa assim analisar a matéria de facto provada à luz dos referidos princípios e das normas jurídicas chamadas à colação.
Da matéria de facto dada como provada resulta demonstrado que a arguida no dia 13 de Janeiro de 2020, pelas 18 horas, conduzia o veículo automóvel de matrícula82-ZR-54 na ..., no sentido de marcha .../..., na freguesia ..., neste município ..., tratando-se de uma reta, com inclinação descendente de 5,8%.
No momento do embate a arguida imprimia no veículo por si conduzido a velocidade de cerca de 85 km/h, sendo no local do sinistro a velocidade máxima permitida para o tipo de veículo conduzido pela arguida de 90 km/h.
Mais resulta apurado que a arguida circulava com luzes de cruzamento, médios, não circulando transito em sentido contrário.
Apurou-se que a arguida bateu com a parte dianteira do lado direito do veículo por si conduzido, na traseira do ciclomotor conduzido por FF, que seguia na sua dianteira, no mesmo sentido de marcha.
Nessa sequência foi FF projectado, ficando imobilizado na vegetação existente, a cerca de cinco metros da faixa de rodagem.
Apurou-se ainda que em consequência do embate FF sofreu as lesões melhor descritas em 4) da matéria de facto provada, as quais foram causa directa e necessária da sua morte.
Assim, face a tal factualidade apurada, conclui-se que, com a sua atuação, a arguida violou diversas normas estradais, entre elas as regras de direito estradal constante dos artigos 24.º, n.º 1 e 25.º, n.º 1 alíneas e) e g) do Código da Estrada.
Era pois, obrigação legal da arguida, em geral, como a qualquer cidadão que atua de modo a poder afetar a vida de outras pessoas e, especialmente, no exercício de uma atividade perigosa, como é a condução, fazê-lo com atenção e cuidado, e, num segundo plano, adequando a velocidade às circunstâncias que arodeavam e assim também à atenção que disponibilizava à atividade que exercia.
Tal violação de deveres de cuidado traduziu-se, no caso dos autos, na morte de FF, sendo que o resultado morte cai na previsão legal do artigo 137.º do Código Penal.
De facto, o embate foi causa direta e necessária da morte de FF, na medida em que lhes originou as lesões descritas em 4) dos factos provados, pelo que também o nexo causal entre a conduta negligente da arguida e a violação do valor protegido pela norma incriminatória se verifica in casu.
Ademais, é lícito afirmar que o embate e as lesões e sequelas subsequentes de que veio a falecer FF seriam evitáveis caso a arguida tivesse atuado com o cuidado que lhe era exigido, designadamente condução atenta do seu veículo.
Posto isto, dúvidas não restam que se verificou um comportamento negligente da sua parte.
Por seu turno, não emerge da factualidade considerada provada qualquer facto que sirvade causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
Deste modo, os elementos dados como provados permitem concluir, sem margem para dúvida, que a arguida cometeu o crime de homicídio por negligência por que vinha acusada, p. e p. pelo art.º 137.º n.º 1 do Código Penal.
IV – Da medida da pena
Dispõe o art.º 70.º, n.º 1, que “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
Ora, relativamente ao crime de homicídio por negligência imputado à arguida, a respetiva moldura penal admite a condenação em multa, como alternativa.
Assim, prevendo o preceito incriminador em causa a punição com pena de multa ou com pena de prisão, a primeira questão que se coloca é a da escolha da pena, de harmonia com os parâmetros do artigo 70.º do Código Penal – sendo ao crime aplicável, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o Tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Deve assim a pena de prisão ser reservada para situações de maior gravidade e que provoquem mais alarme social.
No momento em que elege a pena principal, o Tribunal articula as necessidades de prevenção geral e especial, atendendo a um critério de adequação e suficiência face às necessidades de punição. Ou seja, a opção por uma medida privativa da liberdade só deverá ser tomada por uma razão de prevenção especial de socialização, ligada à prevenção do cometimento de futuros crimes, ou por razões fundadas em exigências de tutela do ordenamento jurídico.
No caso em análise, as necessidades de prevenção geral são extremamente elevadas.
Na verdade, os acidentes de viação, pela sua recorrência e gravidade, representam um verdadeiro flagelo nacional, que não se compadecem com a aplicação de medidas menos gravosas, designadamente quando causam vítimas mortais, como sucedeu no caso em análise.
Por sua vez, as necessidades de prevenção especial são medianas, já que a arguida encontra-se integrada socialmente e não tem antecedentes criminais registados.
Não obstante, atentas a forte necessidade de prevenção geral que se faz sentir, o Tribunal considera que a mera condenação em multa não realizaria, de forma adequada e suficiente, as finalidades de punição, pelo que se optará, quanto ao aludido crime, por uma pena de prisão.
4.1 - Medida concreta da Pena
Cumpre neste momento apreciar qual a concreta medida da pena a aplicar para o crime em análise.
Nos termos do art.º 137.º, n.º 1, do Cód. Penal, o crime em causa é punível com pena de prisão até três anos.
Por sua vez, o art.º 41.º, n.º 1, estabelece que “A pena de prisão tem, em regra, a duração mínima de um mês e a duração máxima de vinte anos”.
Deste modo, a moldura da pena aplicável para o crime em análise vai de um mês a três anos de prisão.
Estabelece o art.º 40.º do Cód. Penal que “a aplicação das penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.
Refere o art.º 71.º, n.º 1, do Cód. Penal, que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.
É, por conseguinte, atento o binómio culpa/exigências de prevenção, sem perder de vista a reintegração do agente, que deve ser tida em conta a determinação concreta da pena.
Por seu turno, o art.º 71.º, n.º 2, do Cód. Penal dispõe que “na determinação da medida concreta da pena, o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime, e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena”.
Cotejando os factos do caso sub judice, e tendo em conta os princípios supra referidos, verificamos que:
Relativamente às necessidades de prevenção geral, o Tribunal dá como reproduzido o acima explanado aquando da determinação da pena a aplicar.
No que concerne às exigências de prevenção especial, para além do já referido aquando da determinação da pena a aplicar, tem-se ainda em consideração que a arguida não tem antecedentes criminais registados e se encontra social e familiarmente inserida;
No que respeita à ilicitude, a mesma revela-se de intensidade elevada, atendendo à violação de uma das mais elementares regras presentes no código da estrada e às graves consequências da conduta da arguida, que levaram à morte de FF;
No que concerne à culpa, a arguida agiu de forma negligente, descurando as regras relativas à circulação estradal, atuando com negligência consciente, mostrando-se, no momento do acidente, desatenta à condução que exercia.
Assim, considerando a moldura abstrata da pena para o crime em análise – um mês a três anos de prisão – os graus da ilicitude e a intensidade da culpa relativamente ao crime, as condições pessoais do arguido, a sua conduta anterior aos factos e a situação posterior aos mesmos, bem como a natureza dos crimes em causa e as necessidades de prevenção (geral e especial), é justo e adequado fixar-lhe, pela prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art.º 137.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão.
4.2 - Da substituição da pena de prisão por multa.
Tal não se aprecia atenta a medida concreta da pena em que a arguida é condenada: 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão - (cfr. art. 45º, nº1 do Código Penal).
4.3 - Da substituição da pena de prisão pela prestação de trabalho a favor da comunidade
O artigo 58.º do Código Penal, para o que ora interessa, estabelece o seguinte:
“1 - Se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. 2 – A prestação de trabalho a favor da comunidade consiste na prestação de serviços gratuitos ao Estado, a outras pessoas coletivas de direito público ou a entidades privadas cujos fins o tribunal considere de interesse para a comunidade…”.
Como supra se assinalou, as finalidades da punição concretizam-se, nos termos delimitados no artigo 40º, nº1, do Código Penal, na proteção dos bens jurídicos e na reintegração do agente na sociedade.
Relativamente a esta pena de substituição, entendemos que, face ao crime em causa nos autos, a mesma se mostra insuficiente para satisfazer as necessidades de prevenção especial, pelo que se considera que só a pena de prisão é adequada para que a arguida assimile o desvalor da sua conduta.
4.4 - Da suspensão da pena de prisão
Por sua vez, estabelece o art.º 50.º, n.º 1, do Cód. Penal, que “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Este é, pois, um poder-dever do tribunal, o qual suspenderá a execução da pena de prisão sempre que, atentos os fatores preceituados por aquele normativo, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente, ou seja, sempre que a simples censura do facto e a ameaça da pena bastarem para afastar o delinquente da criminalidade.
No caso sub judice, não se desconsideram as elevadas exigências de prevenção geral neste tipo de ilícitos, nem se olvida a gravidade dos factos de que vem acusada.
Contudo, a arguida encontra-se social e familiarmente inserida e não tem antecedentes criminais registados.
É igualmente de realçar que a reprovação pública inerente à pena suspensa e o castigo que ela envolve, aplicada num processo crime e em audiência, satisfazem o sentimento jurídico da comunidade e, consequentemente, as exigências de prevenção geral de defesa da ordem jurídica.
Mais se tem em consideração que a conduta da arguida foi negligente, não sendo, por conseguinte, de prever que cometa, no futuro, novos crimes. O Tribunal está convencido que o acidente em apreço, com as trágicas consequências daí advindas, corresponde a um caso isolado na vida da arguida pelo que são baixas as necessidades de ressocialização.
Pelo exposto, o Tribunal considera que a simples censura dos factos e a ameaça de execução da pena afastá-la-á da prática de futuros crimes e constituirá um incentivo para que não volte a praticar estes factos e adote uma conduta diligente e cuidadosa na estrada.
Assim, entende-se por adequado suspender a execução da pena de prisão pelo período de dois anos - artigo 50.º, n.º 5 do Código Penal.
V – Da pena acessória de proibição de conduzir
Dispõe o art.º 69.º, n.º 1, alínea a) do Cód. Penal que:
“É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido: a) Por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes previstos nos artigos 291.º e 292.º”.
Uma vez que a arguida foi condenada pela prática de um crime de homicídio por negligência, tendo o mesmo sido cometido em consequência do embate da viatura que conduzia, importa determinar a aplicação da pena acessória de inibição de conduzir.
Conforme consta do art.º 69.º, a inibição do período de condução é fixado por um período que varia entre três meses a três anos.
Ora, tendo em conta os critérios ponderados na determinação da medida concreta da pena principal a aplicar à arguida, entende-se ser de fixar a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados no período de 1 (um) ano.
VI – Do pedido de indemnização civil
Os familiares mais próximos de FF (esposa e filhos) formularam um pedido de indemnização civil pelos danos morais sofridos por si e pela vitima, bem como pela perda de rendimentos futuros.
Este pedido remete-nos para a temática da responsabilidade civil extracontratual (regulada no Código Civil, sendo que é o próprio art.º 129.º do C. Penal, que consagra expressamente que a indemnização de perdas e danos decorrentes da prática de crime é regulada pela lei civil), mais concretamente para a indemnizabilidade:
● da perda da vida;
● da presciência da morte, isto é, da consciência que a vítima tenha de que está na iminência de morrer, e seu sofrimento físico;
● do sofrimento dos familiares com a iminência da morte (quando esta não seja instantânea) e, depois, com a morte;
- da perda de rendimentos futuros.

Comecemos pelo art.º 483.º, n.º 1 do C. Civil, como preceito base do regime da responsabilidade civil. Nele se consagra que «aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
Desta norma retira-se que a responsabilidade civil subjetiva pressupõe uma ação ilícita, culposa e que cause danos.
O primeiro pressuposto básico da responsabilidade civil é, assim, a conduta do agente, entendida como atuação controlável ou dominável pela vontade daquele. Esta atuação não tem, assim, que ser intencional, mas apenas dominável pela vontade do seu agente.
Em segundo lugar, é necessário que aquela conduta seja ilícita, prevendo o Código Civil duas modalidades de ilicitude: a violação de direitos de outra pessoa; e a violação de normas legais destinadas a proteger interesses alheios.
Particular interesse tem, no caso, a segunda modalidade, na qual se integram os casos de violação de normas que apesar de tutelarem interesses individuais, não criam direitos subjetivos, caso de algumas normas de Direito Penal. Para designar este tipo de normas, alguma doutrina fala de «normas de proteção», entendendo que a sua verificação depende da violação da imposição prevista nessa norma, que ela se dirija à tutela de interesses particulares (e não do interesse geral) e que o dano ocorra no âmbito dos interesses particulares protegidos – segue-se, de perto, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume I – Introdução. Da Constituição das Obrigações, Almedina, página 267.
Retomando os pressupostos da responsabilidade civil, o terceiro requisito é que o comportamento ilícito seja culposo, entendendo-se a culpa como juízo de censura ao agente por ter adotado aquele comportamento. O artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil, estipula que «a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, segundo as circunstâncias do caso», pelo que, na apreciação da culpa se segue um critério abstrato.
Na configuração mais simples dos casos de responsabilidade civil, a culpa é somente do lesante. Todavia, pode acontecer que a atuação do lesado, sendo ela mesma culposa, isto é, contrária àquela que teria tido um homem mediamente zeloso e diligente, concorra com a culpa do lesante.
Fala-se aqui de um concurso de culpas, regulado no art.º 570.º do C. Civil, cujo n.º 1, estabelece que «Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída».
Assim, a contribuição do lesado tem que ser culposa, no entanto, não se exige que ela mesma seja ilícita, pois «não existe um dever jurídico de evitar a ocorrência de danos para si próprio» - Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Volume I – Introdução. Da Constituição das Obrigações, Almedina, 2013, 10.ª Edição, página 298, itálico nosso.
Retomando os pressupostos da responsabilidade civil, é necessário, em quarto lugar, que se verifique um dano, podendo o mesmo ser definido como «a frustração de uma utilidade que era objeto de tutela jurídica» - Menezes Leitão, cit., página 299. Tradicionalmente, a doutrina divide os danos em patrimoniais e não patrimoniais (também designados danos morais) - estes últimos correspondendo aos danos que não têm expressão monetária, como é o caso paradigmático do sofrimento físico ou psíquico.
Os danos podem ser presentes ou futuros.
Com efeito, no art.º 564.º, n.º 2 do C. Civil, determina-se que «na fixação da indemnização pode o Tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão posterior».
Por último, os danos têm que ser resultado daquela ação ilícita e culposa, falando-se a este propósito do nexo de causalidade. Na concretização do que é o nexo de causalidade, o nosso legislador consagrou a chamada teoria da causalidade adequada, de acordo com a qual é necessário que, em abstrato e de acordo com o curso normal das coisas, o facto seja adequado a produzir aquele dano (art.º 563.º do C. Civil).
Verificados estes requisitos, surge a obrigação de indemnizar, isto é, de tornar indemne, o que significa criar a situação que existiria se o comportamento na base da responsabilidade civil não se tivesse verificado (art.º 562.º do C. Civil).
É este o quadro global em que a responsabilidade civil tem de ser pensado, quadro esse que interessa para a apreciação dos dois pedidos de indemnização civil que foram deduzidos nos presentes autos.
Cuidando agora da especificidade do pedido de indemnização feito pela família nuclear de FF.
No pedido de indemnização civil formulado, peticionam os demandantes o pagamento dos seguintes valores:
- a todos os demandantes enquanto sucessores do falecido FF a quantia global de €200.000,00, a titulo de indemnização pelo direito à vida e danos morais sofridos entre o momento do acidente e o momento da morte;
- a demandante BB, viúva do falecido FF, a quantia de €50.000,00 a título de indemnização por danos morais por esta sofridos com a morte do falecido;
- ao demandante CC, filho menor do falecido FF, a titulo de indemnização por danos morais sofridos com a morte do seu pai a quantia de €40.000,00;
- ao demandante DD, a quantia de €30.000,00 a titulo de danos morais por este sofridos com a morte do seu pai;
- a todos os demandantes enquanto sucessores do falecido FF a quantia global de €52.793,37, a titulo de indemnização por danos patrimoniais do motociclo e perda de rendimentos.
Analisando,
5.1 – Quanto ao dano da perda da vida e danos morais sofridos entre o momento do acidente e o momento da morte
A temática da morte como dano ao longo dos anos tem gerado bastante controvérsia.
Desde logo, discute-se se a perda da vida é, em si mesma, um dano. Em segundo lugar, não há unanimidade se, a ser admissível a morte como dano, o mesmo é um dano da vítima ou dos seus familiares. Em terceiro lugar, debate-se qual o valor da indemnização devida pela morte de alguém.
Sobre a admissibilidade de atribuição de uma indemnização pela perda da vida, a doutrina divide-se, essencialmente, em duas posições.
A primeira foi sufragada por nomes como Antunes Varela - Das Obrigações em Geral, Volume I, Almedina, página 608 e seguintes – e Oliveira Ascensão – Direito civil - Sucessões, Coimbra Editora, página 243 e seguintes -, e considera que este dano não é indemnizável por dois motivos:
- o art.º 68.º, n.º 1 do C. Civil, determina que a personalidade jurídica cessa com a morte, logo com a morte a pessoa deixa de adquirir quaisquer novos direitos, designadamente pela perda da sua vida;
- a responsabilidade civil tem um cunho ressarcitório, sendo que uma indemnização pela perda da vida é puramente punitiva.
A segunda posição é defendida por Autores como Menezes Leitão, que considera que a perda da vida corresponde a um direito indemnizável, da titularidade da pessoa que faleceu, mas que, por força da morte, se transmite aos seus herdeiros, ao abrigo do art.º 2024.º do C. Civil – cit., páginas 307 e 308.
Comum a estes dois entendimentos, ainda que com fundamentos diferentes, é a ideia de que o art.º 496.º, nºs. 2, 3 e 4 do C. Civil, não trata a questão da perda da vida como um dano.
Segundo este artigo: «1 - Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. 2 - Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem. 3 - Se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes. 4 - O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores».
Ora, para a posição segundo a qual o dano da perda da vida não é indemnizável, o art.º 496.º, nºs. 2 a 4, seria relativo aos danos causados aos familiares pela morte, e não a própria morte, ou seja, estaria em causa o sofrimento causado com a morte, e já não a perda da vida em si.
A segunda posição coincide na ideia de que nesta norma estão em causa os danos reflexamente causados com a morte, mas porque entende que o dano da perda de vida se transmite aos herdeiros da pessoa que faleceu (o chamado autor da sucessão), o ao abrigo do art.º 2024.º do C. Civil.
Por seu turno, a jurisprudência portuguesa, a partir da década de 70 do século passado, tem adotado a tese da indemnizabilidade do dano da perda da vida.
Com efeito, a partir do acórdão do STJ, de 17.03.1971 (que assumiu uma posição contrária à do acórdão do mesmo Tribunal de 12.02.1969), os Tribunais portugueses passaram a aderir a este entendimento, sendo que atualmente a pouca controvérsia que existe sobre este dano está relacionada, no que aos Tribunais respeita, com a determinação do valor da indemnização, registando-se alguma oscilação nos valores atribuídos.
Aproveitando a este propósito o apanhado feito pelo acórdão do STJ, de 03.11.2016, processo n.º 6/15.5T8VFR.P1.S1, «Consolidou-se, assim, na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça o entendimento de que o dano pela perda do direito à vida, direito absoluto e do qual emergem todos os outros direitos, situa-se, em regra e com algumas oscilações, entre os € 50.000,00 e € 80.000,00, indo mesmo alguns dos mais recentes arestos a € 100.000,00 (cfr, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Janeiro de 2012, (…), de 30 de Abril de 2015 (processo 1380/13.3T2AVR.C1.S1), de 18 de Junho de 2015 (processo 2567/09.9TBABF.E1.S1) e de 16 de Setembro de 2016 (processo 492/10.OTBB.P1.S1)».
Quanto a este Tribunal dúvidas não há de que a perda da vida é um dano que deve ser indemnizado.
Sendo a vida o direito de personalidade e o direito fundamental rei, não faz sentido que a lesão de direitos menores sejam indemnizáveis e a lesão do direito à vida não o seja.
Nesta matéria, concordamos com a visão de Ana Mafalda Miranda Barbosa, para quem «não faz sentido o argumento de que o dano só seria experimentado num momento posterior à extinção da personalidade jurídica. É que, tratando-se da lesão da vida, ela própria coincide com o dano, não sendo necessário, ao contrário do que é a regra, determinar quais são as repercussões negativas que a violação do direito comporta na esfera do lesado» - Lições de Responsabilidade Civil, Principia, página 311, itálico nosso.
Em suma, a perda da vida é um dano indemnizável, que surge na esfera jurídica da pessoa que morre e que se transfere, pela via sucessória, para os seus herdeiros.
Apliquemos agora ao caso concreto tudo o que tem vindo a ser exposto.
Começamos por dizer que a conduta da arguida consubstancia um facto ilícito e culposo.
A arguida, com o seu comportamento violou a norma do Código Penal que pune a conduta de quem, por negligência grosseira, matar outra pessoa (art.º 137.º, n.º 2, deste diploma), é de considerar que a sua conduta foi ilícita, isto é, contrária à lei.
Está aqui em causa a modalidade da violação de normas que tutelam interesses (no caso, verdadeiros direitos) de outrem, concretamente a vida humana (o artigo do Código Penal tutela-a, através da punição da sua lesão, enquanto a norma do Código da Estrada antecipa essa tutela, punindo comportamentos que invariavelmente a colocam em perigo).
Dirigindo-se as normas em causa à proteção da vida humana e tendo em conta que o resultado da violação das mesmas foi a morte de uma pessoa, é de considerar preenchido o pressuposto da ilicitude.
Em terceiro lugar, a conduta da arguida é culposa. Não se ignora que a arguida não representou a possibilidade da sua conduta resultar na morte de uma pessoa. Todavia, isso não afasta a censurabilidade que se dirige ao seu comportamento.
Cremos que aqui não tem aplicação o entendimento segundo o qual a violação das regras estradais faz presumir a culpa do infrator.
Sobre esta presunção já se pronunciou o nosso Supremo Tribunal de Justiça. No acórdão de 18-03-2004 lê-se: «em matéria de responsabilidade civil por acidente de viação cujo dano haja sido provocado por uma contraordenação estradal, existe uma presunção «juris tantum» de negligência contra o autor da contravenção» - processo n.º 04B675, itálico nosso; ainda sobre esta temática vejam-se também o acórdão do TRL, de 27-02-2014, processo n.º 577/11.5YXLSB.L1-2.
Trata-se de uma presunção judicial, feita ao abrigo do art.º 351.º do C. Civil, através da qual se obsta à dificuldade que, na prática, existe quanto à prova da culpa e que resulta da regra consagrada no art.º 487.º, n.º 1 do C. Civil, segundo o qual «é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa».
Apesar de nos termos vindo a referir à violação dos artigos 24.º n.º 1 e 25.º, n.º 1 alíneas g) e e) do Código Estrada, o cerne da ilicitude do comportamento da arguida está na prática de um crime de homicídio e, portanto, na violação de uma norma penal, não tem aplicação a presunção judicial de culpa (que é relativo à violação das normas estradais), assim se explicando que o Tribunal tenha apreciado se o comportamento da arguida é culposo.
Tendo a conduta da arguida sido ilícita e culposa, considera-se que a mesma foi determinante para o resultado final, isto é, a morte de FF, considerando-se que o resultado se ficou a dever exclusivamente à imprudência da arguida, não se tendo apurado qualquer actuação por parte do falecido, enquanto lesado, que tenha contribuído para o resultado, excluindo-se assim a aplicação do concurso de culpas.
No que respeita aos danos causados pela atuação da arguida, por tudo o que já se deixou exposto, entendemos que a perda da vida de FF é um dano indemnizável, adquirido por este e que se transmitiu, pela via sucessória, para os seus herdeiros.
Relativamente ao dano sofrido pela vítima FF antes da sua morte, não se apurou que o falecido tenha estado consciente após o embate e que tenha, portanto, sofrido dores físicas para além das resultantes do próprio embate, nem que tivesse sentido angustia com o aproximar da morte, apenas se sabendo que o óbito foi declarado no local.
Deste modo, improcede o montante peticionado a titulo de indemnização pelos danos sofridos por FF antes do acidente e entre o acidente e o momento da sua morte.
Já no que concerne à indemnização pelo dano morte, dano não patrimonial de perda do direito à vida, os critérios para a sua quantificação na doutrina e na jurisprudência não são unânimes.
De acordo com uma tese deve atender-se à idade da vitima, ao seu estado de saúde e a outros factores pessoais, outros sustentam que a indemnização deve ser a mesma para todos.
Salvo o devido respeito, afigura-se que, se é certo que, tendencialmente, o valor da vida humana é igual para todas as pessoas, na medida em que um dos critérios de fixação da indemnização é o da equidade, na conformação desta deverá atender-se ao conjunto dos fatores da personalidade da vítima, entre os quais, necessariamente, o da idade, já que, em termos pragmáticos, a expetativa do número de anos de vida de uma pessoa de 30 anos é distinta da expetativa do número de anos de vida de uma pessoa de 70 ou 80 anos, conjugando esta com o situações análogas ou próximas que tenham sido objeto de ponderação em decisões judiciais proferidas pelos Tribunais Superiores, bem como, igualmente, os critérios enunciados na Portaria nº 377/08, de 26 de maio, com as alterações introduzidas pela Portaria nº679/2009, de 25 de Junho, que embora não sejam vinculativos para a decisão do Tribunal (os valores constantes do anexo II têm uma aplicação extrajudicial), afigura-se que não podem deixar de também serem incluídos, designadamente como referência ou fator de orientação, na decisão ponderada e conjugada de todos os elementos.
A vítima nos presentes autos tinha à data da sua morte 49 anos de idade. A esperança média de vida em 2020 era de 78 anos para pessoas do sexo masculino (cfr. www.pordata.pt).
“Da análise da jurisprudência do S.T.J. dos últimos anos resulta a consolidação do entendimento de que o dano pela perda do direito à vida se situa, em regra e com algumas oscilações, entre os €50.000,00 e €80.000,00, indo mesmo alguns dos mais recentes arestos a €100.000,00” (Ac. Tribunal da Relação de Guimarães, de 22-02-2018, proc. 1186/14.2T8VCT.G1”.
Deste modo, tendo em consideração que o óbito ocorreu na sequência de acidente de viação em que não houve concorrência de culpa da vitima, que a vitima era casada, tinha dois filhos, um dos quais menor de idade, era saudável e feliz, e poderia viver pelo menos mais 29 anos, afigura-se justo e equitativo fixar a indemnização de €90.000,00 (noventa mil euros), pela perda do direito à vida, o qual deverá ser igualmente repartido pelos três demandantes.
5.2 – Dos danos não patrimoniais sofridos por cada um dos demandantes
Peticiona a demandante BB a quantia de €50.000,00 a titulo de indemnização por danos não patrimoniais sofridos pela morte do seu marido.
Para a fixação de indemnização tem-se em consideração que a demandante viverá o resto da sua vida sem o seu marido com quem casou há vinte e cinco anos, com quem formou uma família, sendo ele o seu companheiro de vida.
No que concerne ao filho menor de idade, CC, à data do falecimento com apenas nove anos de idade, ficou o mesmo privado da presença do seu pai em muito tenra idade. A idade do menor à data do falecimento do seu pai privá-lo-á da sua companhia e convivo durante toda a sua vida, bem como do seu afecto.
Relativamente ao filho DD, com vinte e um anos à data do falecimento do seu pai, tem-se em consideração que a perda de um pai tem um impacto profundo na vida de um filho, tratando-se de alguém a quem estava emocionalmente ligado e com quem tinha fortes laços afectivos, vendo-se privado da presença do pai para o resto da sua vida.
Assim, fixam-se os seguintes valores indemnizatórios:
- €50.000,00 (cinquenta mil euros) para a demandante BB;
- €40.000,00 para o demandante CC;
- €30.000,00 para o demandante DD.
5.3 – Da indemnização por danos patrimoniais futuros decorrentes da morte de FF
Os demandantes peticionam a titulo de danos patrimoniais futuros a quantia global de €52.793,37.
O art.º 495.º, n.º 3, do C.C. prescreve que “Têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural”.
Como se vem entendendo, no citado n.º 3 contempla-se, em caso de morte da vítima – vertente que aos autos importa - o direito a indemnização por danos patrimoniais futuros, jure proprio, por perda de alimentos, cuja prestação incumbia à vítima
Nos termos do art.º 2009.º do C.C. estão vinculados à prestação de alimentos, pela ordem indicada, o cônjuge ou o ex-cônjuge, os descendentes, os ascendentes e os irmãos.
Compete aos pais prover ao sustento dos filhos menores (art.ºs 1877.º e 1878.º, n.º 1, do C.C.), mantendo-se tal obrigação mesmo depois da maioridade ou emancipação quando os filhos não houverem completado a sua formação profissional, na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete (art.º 1880.º do C.C.).
O referido direito de indemnização deve ser apurado com base no prejuízo derivado da perda de direito a exigir alimentos que teria o lesado se o obrigado vivo fosse, nos termos dos artigos 562.º, 564.º e 566.º do CC; não sendo o seu cálculo feito em função restrita da própria medida de alimentos.
O direito de indemnização atribuído aos lesados indiretos na hipótese prevenida no n.º 3 do art. 495.º tem, como qualquer outro, a medida estabelecida nos arts. 562.º e ss., devendo o quantum dessa indemnização repor a situação que existia no momento da lesão, conforme artigos 562.º, 564.º e 566.º, do CC.
O cálculo da indemnização em análise não pode dispensar o recurso à equidade (cfr. o disposto no artigo 566°, n° 3, do Código Civil).
A indemnização neste âmbito visa ressarcir o interessado pela perda dos proventos que a fonte de rendimentos que cessou (pela lesão ou morte do obrigado) lhe proporcionaria. A medida da indemnização será determinada (tendencialmente) pelo cômputo da perda do montante global de alimentos que o interessado poderia receber do lesado.
Tal como resulta da matéria de facto apurada, o rendimento do agregado familiar composto pelos demandantes e pelo falecido, provinha exclusivamente do trabalho da vitima, que trabalhava auferindo o valor mensal equivalente ao salário mínimo nacional, fixado no ano de 2020 no montante de €635,00.
Ficou demostrada a capacidade do falecido FF gerar rendimento de trabalho, auferindo o valor total anual de €10.044,34 (€635 x 14 + (104,94 x 11).
Assim, tem-se em consideração a idade do falecido (49 anos de idade), a capacidade de gerar rendimentos cujo total anual rondaria os €10.044,34, o tempo provável de vida activa até aos 66 anos de idade, as despesas próprias que seriam assumidas por um terço do seu vencimento, ponderando uma capacidade de poupança residual que se presume.
Como acentuam a doutrina e a jurisprudência, o cálculo dos danos futuros é sempre uma operação delicada, de solução difícil, porque obriga a ter em conta a situação hipotética em que o lesado estaria se não houvesse sofrido a lesão, o que implica uma previsão, pouco segura, sobre dados verificáveis no futuro. por isso é que tais danos devem calcular-se segundo critérios de verosimilhança ou de probabilidade, de acordo com o que é normal e natural acontecer, com o que em cada caso concreto, poderá vir a acontecer, pressupondo que as coisas seguem o seu curso normal, estando-se perante cálculo feito de acordo com o "id quod plerumque accidit"; e se, mesmo assim, não puder apurar-se o seu valor exato, o tribunal deve julgar, segundo a equidade.
No caso dos autos os filhos tinham à data da morte do pai nove anos e vinte e um anos de idade e tinham legitimamente a expetativa, de serem alimentados e receberem alimentos, durante a sua menoridade (até aos 18 anos) e a partir daí, durante a sua formação escolar (previsivelmente até aos 26 anos de idade), data em que adquirirem autonomia pessoal e financeira em relação ao progenitor.
Daqui decorre que, até perfazer 26 anos, os descendentes tinham uma expetativa de continuarem a serem alimentados pelo progenitor, durante os 17 e 5 anos, respetivamente, seguintes ao falecimento deste, estimando-se, tendo em conta os rendimentos do falecido, que os menores poderiam beneficiar, nesse período, de alimentos.
Assim, visando a indemnização neste âmbito ressarcir o interessado pela perda dos proventos que a fonte de rendimentos que cessou (pela lesão ou morte do obrigado) lhe proporcionaria, a obrigação de alimentos não se mede apenas em função do indispensável ao sustento, habitação e vestuário do titular (cfr. art.º 2003.º do Código Civil), mas antes “implica de algum modo a igualação do seu trem de vida económico e social” (Pires de Lima e Antunes Varela in Código Civil anotado, vol. IV, 2ª edição, Coimbra 1992, pág 265).
Assim, os menores sofreram um dano patrimonial futuro, de valor equivalente aos alimentos que poderiam receber do pai, se ele fosse vivo, previsivelmente até perfazerem 26 anos.
Deste modo tendo em consideração que o falecido tinha 49 anos de idade, a sua capacidade de gerar rendimentos num total anual de €10.044,34, o tempo provável de vida activa até, possivelmente, aos 66 anos de idade, as despesas próprias que seriam assumidas por um terço do seu vencimento, ponderando uma capacidade de poupança residual que se presume, os lucros cessantes dos demandantes, a sua esposa e os seus filhos receberiam 2/3 do valor do seu rendimento, no montante global de €111.000,00.
Tendo em consideração que a demandante civil foi remida tendo recebido o montante de €43.126,35, deverá a demandada ser condenada no pagamento da quantia global de €51.793,37.
5.4 – Da indemnização por danos patrimoniais pela perda do ciclomotor
Peticionam ainda os demandantes a condenação da demandada no pagamento da quantia de €1.000,00, equivalente ao valor do ciclomotor do falecido à data do sinistro
No que concerne ao valor do ciclomotor à data do sinistro, nada foi apurado em sede de audiência de julgamento.
Porém, o art.º 566.º, n.º 3, do Cód. Civil determina que: “Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.”
Atendendo às características do ciclomotor, tal como constantes da matéria de facto provada, o Tribunal entende que se mostra adequado, segundo um juízo de equidade, o valor peticionado de €1000,00 pela perda do veículo.
No que diz respeito aos juros de mora, os demandantes peticionaram juros legais vencidos desde a notificação até integral pagamento.
Estabelece o art.º 805.º, n.º 3, do Código Civil que: “se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número".
Considerando o teor do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ n.º 4/2002, de 09/05/2002, os valores indemnizatórios devem considerar-se atualizados nos termos do art.º 566.º, n.º 2, Código Civil, com referência à data desta decisão quanto aos danos patrimoniais futuros e aos danos não patrimoniais.
Estabelece este dispositivo legal que, sem prejuízo do preceituado noutras disposições, a indemnização em dinheiro tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos.
No caso dos autos, a indemnização pelos danos patrimoniais futuros e pelos danos não patrimoniais determinados, compreende já o valor devido pela demandada nesta data, e por isso, já está atualizada, sendo apenas devidos juros, como se disse, desde a data desta sentença.
Os juros de mora são os civis, à taxa supletiva de 4% nos termos da Portaria 291/03, de 08/04, e dos art.ºs 806.º e 559.º do Código Civil, sendo aplicável qualquer alteração posterior da mesma enquanto não ocorrer o pagamento da indemnização.
VI – Dispositivo:
Nestes termos, decido julgar procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público e, em consequência, decido:
a) Condenar a arguida AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 69.º, n.º 1 alínea a) e 137.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, a qual se suspende pelo período de 2 (dois) anos, nos termos do disposto no artigo 50.º do Código Penal;
b) Condenar a arguida pela prática do mesmo crime, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 1 (um) ano;
c) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pelos demandantes e, em consequência, condenar a demandada a pagar:
1) Aos demandantes BB, CC e DD, a importância de €90.000,00 (noventa mil euros), a titulo de indemnização por danos não patrimoniais de perda do direito à vida, a qual deverá ser repartida, nos termos do disposto no artigo 2139.º, n.º 1 do Código Civil, em três partes iguais, acrescidos de juros à taxa legal desde a data da presente decisão até integral pagamento;
2) À demandante BB a quantia de €50.000,00 (cinquenta mil euros) a titulo de danos não patrimoniais por si sofridos, acrescida de juros desde a data da presente decisão até integral pagamento;
3) Ao demandante EE a quantia de €40.000,00 (quarenta mil euros) a titulo de danos não patrimoniais por si sofridos, acrescida de juros desde a data da presente decisão até integral pagamento;
4) Ao demandante DD a quantia de €30.000,00 (trinta mil euros), a titulo de danos não patrimoniais por si sofridos, acrescida de juros desde a data da presente decisão até integral pagamento;
5) Aos demandantes a quantia de €51.793,37 (cinquenta e um mil, setecentos e noventa e três euros e trinta e sete cêntimos) pelos danos patrimoniais, dano futuro, acrescido de juros desde a data da presente decisão, até integral pagamento;
6) Aos demandantes a quantia de €1.000,00 (mil euros), por danos patrimoniais;

Absolvendo-se a demandada do demais peticionado;
d) Condenar, ainda, a arguida no pagamento da taxa de justiça que se fixa em 3 UC (art.º 513.º, n.º 3 do CPP e 8.º, n.º 9 do RCP), e nas demais custas do processo a que a sua atividade houver dado lugar (cfr. art.ºs 3.º e 16.º do RCP e 513.º, n.º 1 e 514.º, n.º 1 do CPP);
e) Condenar nas custas cíveis os demandantes e a demandada na proporção dos respetivos vencimentos (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiem.

Registe e notifique.
Notifique, sendo a arguida expressamente para, no prazo de 10 (dez) dias após o trânsito em julgado da presente sentença, proceder à entrega da sua carta de condução e de quaisquer outros documentos que o habilitem à condução de veículos motorizados na Secretaria deste Tribunal ou em qualquer esquadra de polícia, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência (AUJ nº 2/2013).
Após trânsito, remeta boletim e comunique a presente decisão à ANSR, nos termos do art.º 500.º, n.º 1 do C. P. Penal e art.º 69.º, n.º 4 do C. Penal.”
*
Cumpre apreciar.
Sendo o recurso da demandada companhia de seguros centrado na impugnação da decisão da matéria de facto, primeiramente cabe os termos do art.412º nº3 do CPP e os pressupostos dos poderes de cognição do Tribunal Superior.
Como realçou o STJ, no acórdão de 12-06-2008, Proc. nº 07P4375 (in www.dgsi.pt) a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, restrita á indagação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b), do nº 3, do citado artº 412º).
Com efeito, no Acórdão da Relação de Évora, de 1 de Abril do corrente ano (processo n.º 360/08-1.ª, www.dgsi.pt) sustentou-se «Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente
Não basta ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para que o tribunal de recurso tenha fazer «um segundo julgamento», com base na gravação da prova.
O poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação. O recurso com esses fundamentos apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância [cfr. Germano Marques da Silva, in Forum Iustitiae, Ano I, Maio de 1999].
Com efeito, «o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros» [cfr, neste sentido, Ac. do STJ de 15-12-2005, Proc. nº 05P2951 e Ac. do STJ de 9-03-2006, Proc. nº 06P461, acessíveis em www.dgsi.pt]
O Tribunal de recurso apreciando os fundamentos da impugnação da matéria de facto e os meios de prova indicados nos termos do art.412º nº3 do CPP (quando conste do objecto de recurso), deve aferir se o Tribunal “a quo” apreciou e interpretou os meios de prova conforme os padrões e as regras da experiência comum (a regra da experiência expressa aquilo que normalmente acontece, é uma regra extraída de casos similares), não extraindo conclusões estranhas ou fora dos depoimentos, subsistindo sempre um plano de convencimento do Tribunal a quo, segundo a livre convicção do julgador que não cabe a este Tribunal de recurso reformular.
Em sede de apreciação da prova rege o princípio da livre apreciação, expressamente consagrado no artigo 127.º do C.P.P.
Este princípio impõe que a apreciação da prova se faça segundo as regras da experiência comum e em obediência à lógica. E se a convicção do Tribunal “a quo” se estribou nestes pressupostos, como já se enfatizou, o Tribunal “ad quem” não pode sindicar ou sobrepor outra convicção.
Com as limitações que decorrem da falta de mediação e da impugnação parcelar dos factos, o Tribunal de recurso somente poderá alterar a decisão de facto quando se “imponha” (usando a expressão legal), ou seja, quando o processo decisório de reconstituição do acontecer histórico da 1ª Instância se fundou fora da razoabilidade em juízos destituídos de lógica, ou distintos dos padrões da experiência comum.
Sobre as concretas divergências suscitadas pela recorrente quanto à circunstância do motociclo não ter ligada a iluminação traseira, o que condicionou a sua visibilidade pela arguida, a ponto de pretender a recomposição dos contributos para a causalidade do sinistro de ambos os condutores, a recorrente visa a alteração da redação dos pontos 13, 14 e 15 dos factos provados, e que os pontos 7 e 9 do factos não provados passem a constar do elenco dos factos provados; mais pretende a adição de novos factos conforme as conclusões 5 e 13 do recurso.
De fundamental a este respeito e quanto à visibilidade em causa, o Tribunal “A Quo” referiu
“Mais foi tida em consideração a seguinte prova testemunhal constante dos autos: a testemunha LL, militar da GNR ... que se dirigiu ao local do acidente, afirma que à sua chegada, cerca de 10 a 15 minutos depois de terem sido chamados ao local, estava ainda a anoitecer, sendo final de dia. A testemunha MM, Bombeiro ..., afirma ter chegado ao local cerca de cinco minutos depois da chamada, e que se encontrara a escurecer, na transição do dia para a noite. A testemunha NN, afirma ter sido a primeira pessoa a contactar com a arguida após a ocorrência do acidente, dizendo que estava a escurecer, mas que ainda havia alguma visibilidade, apesar de o local não ter iluminação.
Foi ainda tida em consideração a prova documental de fls. 202 e ss, auto de visionamento, elaborado três dias após a ocorrência do sinistro, do qual se extrai que à hora da sua ocorrência do sinistro ainda está a anoitecer, não sendo ainda noite escura.”.
Todos estes depoimentos são relevantes, particularmente o da testemunha da GNR WW, os quais referem ter comparecido no local cerca de 5 a 15 minutos depois de ter sido dado o alerta, e considerando que o sinistro ocorre por volta das 18.00 horas (demorando sempre algum tempo entre o sinistro e o acionamento do socorro), as referidas testemunhas quando chegam ao local, segundo referiram ainda “estava a anoitecer”, “estava a escurecer”, “existindo alguma visibilidade”, significando que estando o sol “baixo”, ainda existia visibilidade embora em declínio, o que motivou a arguida a ligar as luzes de cruzamento (chamados médios), mas não ligou os máximos (que teriam o alcance mínimo de 100 metros) dado que não circulavam veículos em sentido contrário. Também o depoimento de II que passou no local por volta das 18 horas menos 10/15 minutos (portanto, a 10/15 minutos antes do sinistro) a cerca de 50/60 km/hora, seguindo com os seus “médios” ligados, referiu que passou por um motociclo na berma, que seguia muito devagar, e o mesmo via-se perfeitamente (viu-o com bastante antecedência “lá ao fundo”, “talvez a 50 metros” e aproximando-se, viu bem ser um motociclo que circulava muito devagar), havia essa visibilidade, embora fosse fim de tarde, já a escurecer, “nunca tendo usado os máximos”, não conseguindo precisar se visibilidade que tinha nesse local, teve algum contributo da iluminação que vem da lixeira ali perto existente. Ora, este quadro probatório impossibilita que se integre no elenco dos factos provados, os factos que a recorrente pretende aditar sob as conclusões nº5 e 13, dado que, manifestamente, não se apura que a visibilidade era limitada a 30 metros, embora fosse reduzida.
A circunstância da arguida não ter visto o motociclo à sua frente, associado à ausência de rastos de travagem, num condicionamento de tempo com alguma visibilidade embora em declínio, mas com a visibilidade de pelo menos 30 metros disponíveis à sua frente, evidencia a sua completa distração naquele instante, associada a uma velocidade excessiva de 85 km/hora (no limiar do limite máximo), em condições de visibilidade condicionada.
Sobre a relevância dos depoimentos invocados das testemunhas, o agente da GNR GG que fez o relatório e o croquis, 2 dias depois do acidente fez uma gravação sobre as condições de visibilidade no local, mas nesse dia estava mais escuro por o tempo estar nebulado, acresce que das imagens que solicitou a uma empresa privada onde se visiona um motociclo mais ou menos “compatível” ao da vítima FF (mas sem que possa dizer ser o veículo da vítima) e que traria as luzes dianteiras ligadas e as traseiras desligadas; a testemunha HH refere ter-se apercebido que o ciclomotor da vítima levava as luzes da frente ligadas, mas não se apercebeu se a parte traseira do veículo tinha a iluminação a funcionar; do mesmo modo a testemunha II confirma que naquela estrada passou pelo local às 6 menos 15 ou menos 10 minutos, e passou por um ciclomotor que seguia pela berma, muito devagar, seguindo sem luzes, nem na retaguarda, nem à frente (não podendo identificar se seria a vítima). Ou seja, destes depoimentos não existe prova de que o ciclomotor “FV” tinha a iluminação traseira desligada, desde logo, porque não foi o mesmo identificado a conduzir nessas condições de falta de iluminação.

O Tribunal “A Quo” fundou a sua convicção em premissas válidas, apoiando-se no relatório pericial (com valor probatório qualificado) que, em questões fundamentais coincidem, quer quanto à velocidade, e ausência de rastos de travagem, quer quanto à velocidade prosseguida pelo ciclomotor. E o conjunto de juízos probatórios que elaborou, encontram-se bem estruturados, não assentando em premissas pouco seguras, fora da lógica ou da experiência comum. O Tribunal “A Quo” bem explicitou criticamente o raciocínio probatório. Este Tribunal de recurso aceita e considera perfeitamente admissível dentro da lógica a dinâmica do sinistro explicada pelo Tribunal “A Quo”, porquanto, existindo parâmetros de visibilidade condicionados pelo escurecimento progressivo, a arguida manteve uma velocidade excessiva para as condições do local circulando com evidente falta de atenção.
E não se detectando falha no exame crítico realizado pelo Tribunal a quo, a convicção formada por este, como se viu, torna-se insindicável, não podendo este Tribunal de recurso sobrepor uma outra convicção.
Contudo, atento o acordo entre a recorrente demandada companhia de seguros e os recorridos demandantes quanto ao facto “Foi atribuída a BB pensão de sobrevivência no valor de 2.485,60€/ano.”, defere-se o seu aditamento ao elenco dos factos provados.
Face ao conjunto da prova produzida, este Tribunal de recurso concorda com o juízo de prova que foi realizado pelo Tribunal a quo, não existindo qualquer erro manifesto, ditado em qualquer desconformidade na formulação lógica ou pelas regras da experiência comum, que imponham alteração de convicção, devendo deste modo improceder a impugnação movida à decisão a matéria de facto, exceto quanto à matéria Foi atribuída a BB pensão de sobrevivência no valor de 2.485,60€/ano”, que deverá ser aditada como ponto 37 dos factos provados.
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Sobre a causalidade do sinistro, cabe sublinhar quer a arguida AA circulando no limiar da velocidade máxima permitida com visibilidade condicionada pelo seu declínio, apenas com os médios ligados, prosseguia com velocidade excessiva, o que associado à sua manifesta falta de atenção, por não ter visto o ciclomotor que circulava à sua frente, colidindo com o mesmo, sem que esboçasse uma travagem prévia, dada a inexistência dos respetivos rastos, são circunstâncias que incrementando as probabilidades implicam um agravamento do risco com eficácia causal do delito em 100%.
Na vida acontece sempre o que é mais provável acontecer, e acaso a arguida houvesse cumulativamente empregue atenção ao seu ato de condução, e moderado a velocidade que imprimia ao seu veículo entre os 65 e os 75 Km/hora, minimizaria as probabilidades de vir a colidir com o ciclomotor, colocando-se, nesse caso, fora das linhas da causalidade do sinistro.
Como sustenta o Professor Alemão Urs Kindhauser sobre a imputação objectiva “..causas são aquelas circunstâncias que, segundo o parâmetro das leis empíricas às quais se recorre, têm de ser necessariamente consideradas como dados antecedentes para que a modificação em questão possa ser explicado de modo correto. (…) Deve ser vista como risco a situação em que a produção de um resultado é (ao menos) tida em conta dentro de uma certa probabilidade. (…) pode ser caracterizada como fator de risco toda a condição que faz com que pareça provável a produção de um resultado. Ao invés, a circunstância que não é relevante para o prognóstico, tão pouco será um fator de risco.” (ver “Aumento de risco e diminuição de risco” in “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, nº20, pág.18 e 20, Coimbra, 2010). Claus Roxin sobre a imputação objectiva escreve “Um resultado causado pelo agente só pode imputar-se ao tipo objectivo, se a conduta do agente haja criado um perigo para o bem jurídico não coberto por um risco permitido e esse perigo também se tenha realizado num resultado concreto.” (in Derecho Penal, Parte General” tomo I, pág.363, Madrid, 1997)
Conclui-se que quanto à causalidade do acidente, a conduta da arguida representa uma força causal exclusiva, também aqui improcedendo as conclusões do recurso da demandada.
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Sobre os parâmetros da indemnização colocada em causa por ambos os recursos cabe aferir o dimensionamento dos danos provados.
Dispõe o art.566º do Cód.Civil que a indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
Como ensinava o PROF. VAZ SERRA: "O dano é todo o prejuízo, desvantagem ou perda que é causado nos bens jurídicos, de carácter patrimonial ou não. Também há danos quando se diminui o património (dano patrimonial) como quando se afecta o corpo, a saúde, a vida, a honra, o bem-estar, o crédito, etc. (...) (dano não patrimonial)." (Ver "OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO" in, "B.M.J.", nº84, pág. 8 e 9).
Importa aferir a indemnização do dano-vida; e pelos danos decorrentes do sofrimento e desgostos padecidos pelos familiares.
Quanto à reparação do dano pela perda do direito à vida, na pessoa de FF, na querela já longa sobre se a indemnização do direito a vida é um direito próprio, ou se opera pela via sucessória, ou como sustenta o Prof.Antunes VARELA (in "REV.LEG.JURISPRUDÊNCIA", Ano 123), (embora existam acórdãos em sentido contrário v.g.o vetusto Ac.S.T.J. de 27/11/91 in B.M.J. 411, p.457), quando sustenta que o disposto no art.496º nº2 confere um direito próprio ao cônjuge sobrevivo e filhos, uma vez que contém em si uma lógica distinta dos institutos sucessórios, os quais determinariam uma operação diversa. Porém, como assinala Menezes Cordeiro pelo dano-morte só o próprio pode ser indemnizado, embora a indemnização passe aos sucessores do falecido (in “TRATADO DE DIREITO CIVIL” VIII, pág.517, Coimbra, 2014). Podemos concluir que o disposto no art.496º nº2 do CC não deixa de ser uma disposição sucessória especial, mas apenas no que concerne à indemnização que decorre dos danos morais padecidos pelos familiares aí previstos e pelo próprio de cuiús antes do decesso e por causa da morte deste. Já quanto à indemnização pelo dano-morte (perda da vida) ele será operado através das regras gerais das sucessões e não por intermédio do disposto no nº2 do art.496 do CC.
Ainda sobre o direito à vida e da sua perda representar um dano ressarcível, como resulta do art.496º nº1 (é grave a lesão da perda da vida e merece tutela do direito, cujo ordenamento não cessa de a proteger e preservar), têm existido posições insólitas que defendem soluções estranhas ao nosso ordenamento e à tradição jurídica, questionando a existência de dano na morte. Ninguém duvidará do direito à vida, onde a vida se assume como o bem jurídico supremo e dos mais tutelados, por isso, como dano, de per si, é indemnizável (neste sentido ver novamente Menezes Cordeiro in Op. Cit p.516 e 517). As normas dirigidas à preservação da vida multiplicam-se em todos os domínios da Ordem jurídica. Para o direito à vida, enquanto dano infligido ao próprio, aquelas posições invocam a lógica, dizendo que com esse dano é suprimido o próprio centro de imputação de normas, contudo, como todo e qualquer bem do "de cuiús” “isso não impede, no entanto, o funcionamento dos esquemas de imputação de danos, uma vez que, nos termos gerais do artigo 2024º do Código Civil, as indemnizações que ao morto devam assistir, passam aos seus sucessores.” (Menezes Cordeiro in OP.Cit.p.518).
O valor a atribuir tem de ser representativo (e não compensatório para a vítima) da qualidade de vida que se perdeu e dos critérios que a valorizavam. Como se viu, os herdeiros herdam sucessoriamente o valor indemnizatório do dano vida, o que nada tem de compensatório para estes, daí que esse valor, embora não vise uma reconstituição integral nos termos do art.562º do CC, sendo dano não patrimonial, antes deve traduzir e representar a expressão da vida cessada e essa projeção deve refletir a imagem do campo de afetividades e a sua dimensão social à data do decesso e pelo tempo expectável. Com efeito, a vivência humana nos mais diversos aspetos, sendo imaterial, por natureza tem sempre um valor muito elevado, na sua dignidade, no exercício da liberdade, nas realizações em prol dos outros, na qualidade de vida (o que se expressa bem no dimensionamento dos danos morais decorrente de incapacidades sofridas), por isso, a imagem da perda da vida, expressa no contínuo do tempo expectável, projeta tendencialmente valores extraordinários, face aos critérios comuns de reparação de danos morais. Esta indemnização não pode assumir valores menores, com efeito, como sustenta Nuno Alexandre Pires SALPICO A preocupação da efetividade dos bens jurídicos toma como aliado o raciocínio consequência lista na interpretação, no sentido em que se devem evitar os sentidos interpretativos possíveis de uma norma que levem a perdas de efetividade, de observância e proteção dos bens jurídicos (…) As fixações equitativas do dano que tomam lugar em contexto de incerteza ou impossibilidade de quantificação dos danos devem "respeitar a efetividade da proteção dos bens jurídicos" in Cálculo de Danos e Equidade, Coimbra, Almedina, 2023 pp. 246-247.
Na valorização do dano pela perda do direito à vida existe quem se norteie por padrões rígidos, abstratos, a exemplo do que outrora se fixou como limite mínimo desse valor, como não podendo ser inferior ao custo de um automóvel médio no nosso mercado, cfr.Ac.S.T.J. in "COL.JUR.", 1992, Tomo IV, p.29; e ainda no âmbito dos critérios abstratos na fixação do valor mínimo do dano morte para vítimas que não tenham fatores valorizadores (não ponderável “in casu”, dadas as componentes valorizadoras do falecido FF), deve sublinhar-se que o montante a atribuir não respeitará ao valor tipológico, pré–estabelecido para a vida biológica, mas antes à concreta projeção pessoal e social que o indivíduo vivia no seu presente, assim como as vivências que tinha por realizar até ao termo da esperança de vida (na dimensão do dano importa a vida da vítima à data da morte, mas também no seu tempo vindouro, ainda que seja reduzido, no caso de vítimas com doenças graves), incluindo o grau satisfatório das relações que tinha com amigos e familiares. E é todo este "capital" nas dimensões de realização pessoal, profissional e social que se perde com o decesso, realidades ônticas que não podem ser desvalorizadas.
Assim, na aferição do dano pela perda do direito à vida, o caminho a prosseguir deve obediência a um juízo de equidade que concretize e dimensione a vida concretamente em discussão, o que implica uma operação mensurável que necessariamente incidirá na esperança de vida da vítima, no caso por um período de 29 anos tendo em conta a idade daquele em 49 anos e a esperança de vida dos homens em 2020 fixada nos 78 anos, diretamente associada à qualidade de vida do sinistrado, aferida em conjunto com a projeção funcional da vítima na sociedade e família (conforme síntese jurisprudencial elaborada pelo Juiz Desembargador DR.JOAQUIM SOUSA DINIS, onde se destacam os critérios das funções: normal; excecional e específica da vítima no meio social (in "DANO CORPORAL EM ACIDENTES DE VIAÇÃO" in "COL.JUR.S.T.J.", 1997, Tomo II, p.13).
Assim, na ótica desses critérios, segundo cremos, criar-se-ão os padrões de fixação do valor de indemnização pela perda da vida. Como se antevê, essa aferição será ponderada caso a caso, pois todas as vidas são diversas nas suas dimensões, complexidades íntimas e sociais, basta ver o homem que tem uma prodigiosa e fecunda vida intelectual, com uma expansiva vivência social, com afetividades equilibradas e compensadas, com ampla e profusa cumplicidade em círculos académicos e culturais, que inclusive dele dependem (cujo valor indemnizatório pela perda da vida respeitaria a valores muito mais elevados ao discutido nos autos); e no outro extremo observemos o homem, relativamente indigente, com dimensão intelectual e social muito reduzida, e por-desventura com uma grave incapacidade física, e/ou mental (cujo valor indemnizatório da perda da vida respeitaria a valores inferiores ao discutido nos autos).
Estas vidas, sem embargo de serem absolutamente iguais em dignidade, revelam amplitudes significativas na sua intensidade, que não podem ser normativamente ignoradas, até porque a perda de uma pessoa especialmente afetuosa, e com especiais méritos e contributos na vida em sociedade, provoca um dano muito superior, a uma outra onde a vítima é um idoso, com deficiências, ou com escassa esperança de vida por doença, devendo essa diferença ser computada na gravidade do ilícito, quanto mais não seja para desempenhar a função de punição a que alude ANTUNES VARELA quando escreve: "..a lei tem sempre um pressuposto ético na base da imposição da obrigação de indemnizar - que é o da sanção da conduta culposa do agente." (in "REV.LEG.JURISPRUDÊNCIA", Ano 123, p.280).
Ao invés desta perspetiva, como se viu, existe uma outra, onde o valor-vida para a vítima enquanto ser, e como prejuízo, é igual para todos os homens, defendendo-se que a indemnização deve ser a mesma para todos, por se basear no valor da dignidade da pessoa humana. Porém, nesta conceção, lavra-se no erro de basear o cálculo da perda da vida apenas no critério da dignidade da pessoa humana, que, por ser de aferição abstrata, é por isso, insuscetível de ser mensurável.
Também devem ser considerados na medida do valor a atribuir, os critérios enunciados nos arts.496º nº3 e 494º do Cód.Civil, onde interessará salientar a culpa do lesante, a situação económica do lesado e a condição económica em que ficaram a filha e mulher. Neste sentido ANTUNES VARELA refere que "A compensação pecuniária prevista na lei visa cobrir um dano, que é a perda da vida, causada pela lesão, embora na determinação do seu montante, o julgador não possa, como resulta do disposto no nº3 do artigo 496.º, e no artigo 494.º do Cód.Civil, abstrair do grau de culpa do agente, do reflexo económico-social que o facto tem na vida dos familiares do lesado..."[sublinhado nosso] (in Op.Cit.p.279).
No caso concreto pode dizer-se que o autor tinha uma relevante qualidade de vida, sendo saudável, com gosto pela vida, que amava e era amado pelos demandantes, os quais lhe dedicavam atenção, amor e carinho, onde os afetos que expandia à sua mulher e filhos, eram retribuídos, constituindo esse fator de comunhão social, elemento valorizador da vida. A circunstância de estar a trabalhar, embora modesto, provia às necessidades do seu agregado familiar, melhorando a qualidade de vida de sua mulher e filhos, representa uma dimensão que afetava o familiar e social de modo significativo, igualmente valorizando a sua vida.
Pelo exposto, considerando a sua esperança de vida ainda por um período expectável de 29 anos de vida, a qual era assistida por uma qualidade de vida dotada de saúde e cercado de afetos pela sua mulher e filhos, este condicionalismo é valorizador da vida que se perdeu, devendo ser superior ao montante de 90€, o qual redutor, fica aquém e não é representativo nem tem tradução na apurada concreta dimensão de vida da vítima, perspetivada pela esperança de vida, com a aludida qualidade de vida, parecendo mais adequado e proporcional o montante de 130.000€, o qual será repartido em partes iguais pela mulher e seus dois filhos, nessa medida, respetivamente, procedendo parcialmente o recurso subordinado dos demandantes, e improcedendo o recurso da demandada companhia de seguros nestas conclusões.
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Relativamente à dor sofrida pela mulher e filhos, porque a ligação afetiva que os unia em vida era intensa, maior se tornou o prejuízo com a perda, sendo de realçar que a angústia e o desgosto se tem prolongado no tempo, sendo indubitavelmente um dano não patrimonial suscetível de tutela atento o disposto nos nºs3 e 2 do art.496, onde a existência de um pai e de um marido integra parte essencial da esfera emotiva e afetiva dos demandantes (cfr.art.70º do Cód.Civil), que, no caso dos autos, saiu significativamente lesada, apurando-se que “O falecido (…) era amado pelos demandantes, os quais lhe dedicavam atenção, amor e carinho” e o seu falecimento “trouxe um grande desgosto à sua esposa, com quem vivia, partilhava a vida, sentido esta um grande desgosto em perder a pessoa do companheiro com quem viveu durante cerca de 25 anos; A demandante BB sente hoje a solidão e a saudade da falta do companheiro da sua vida, dor que se perpetuará pelo resto da sua vida.” e “trouxe para os seus filhos, CC, com 9 anos de idade à data do óbito do seu pai, e DD, com 21 anos à data do óbito, com quem sempre viveram, um grande desgosto e saudade pela perda prematura do seu pai”.
Relativamente à demandante BB, como se apurou, a perda de um marido, a par de ser suscetível de grande desgosto e sofrimento, pelo destroçar de um lar, considerando a idade do casal, dificultando a reconstituição desse espaço emotivo e o próprio lar.
Assim, perante as diferenças assinaladas, e em face do sofrimento analisado, considera-se equitativo e correta a compensação em 50.000€ à demandante XX a título de indemnização pelo seu sofrimento pela perda do marido (a fim de aportar a esta meios que compensem a sua perda); relativamente aos demandantes filhos considera-se igualmente equitativa a fixação operada pelo Tribunal “A Quo” de 40.000€ pelo sofrimento causado ao filho CC e 30.000€ ao filho DD, justificando-se a diferença entre ambos por a perda ser superior para o menor CC, à data com 9 anos de idade, nesta parte se confirmando a sentença recorrida, improcedendo as conclusões.
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Quanto aos danos patrimoniais futuros atendíveis no disposto no art.564º nº2 do Cód.Civil, na modalidade de lucros cessantes a respetiva indemnização corresponderá ao capital necessário para garantir a quantia que o sinistrado entregaria aos demandantes, se fosse vivo, para o sustento, e na satisfação de todas as necessidades que lhe prestava.
Nos termos do art.495º nº2 do Cód.Civil " Têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.".
O Ac.Rl.Lx de 4/10/90 in "COL.JUR.", Tomo IV, p.139 sustenta-se "Para alguém ter direito a indemnização por morte..não é necessário que já esteja a receber das vítimas uma prestação alimentícia, bastando a qualidade de que depende a possibilidade legal do exercício de alimentos." (neste sentido ver Ac.S.T.J. de 24/09/1998 in "COL.JUR.S.T.J.", Tomo III, p.177).
A medida dos benefícios a ressarcir à viúva e filhos (quanto a estes na sua proporção em medida temporal mais curta), por força do previsto no art.495º nº3, a indemnização deverá, no essencial, computar-se como equivalente aos benefícios recebidos em vida da vítima, não fazendo o menor sentido condicioná-los à estrita necessidade de alimentos, até porque um dos critérios aferidores da medida de alimentos são influenciados pelos meios daquele que houver de prestá-los, ou seja, as possibilidades económicas do obrigado [critério corrector da estrita necessidade de alimentos, fazendo incluir no cômputo dos alimentos a transmissão da qualidade de vida do obrigado ao alimentando] nos termos dos arts.2004º nº1 (cfr.arts.1879º, 1880º), 2004º nº1, 2015º, todos do Cód.Civil, sob pena de violação grosseira do disposto no art.495º nº3.
A fixação da indemnização pelos danos futuros, provenientes da perda de um rendimento que se repercute em prejuízos a sofrer no futuro por aqueles que viviam na sua dependência económica (cfr.art.564º nº2 do Cód.Civil - danos futuros), será calculada, tendo em atenção o tempo provável de benefício pela vida da vítima.
Porque quaisquer das fórmulas de cálculo (não obstante a sua importantíssima utilidade), não atendem à necessidade de introdução de um ajustamento neste tipo de indemnizações globais, que são atribuídas por inteiro, onde os lesados recebem de uma só vez aquilo que, em princípio deveriam receber em frações anuais, devendo, por regra, esse capital sofrer uma redução, de modo a evitar um enriquecimento injusto que advém do recebimento antecipado de todas as prestações anuais correspondentes a um período mais ou menos longo, enriquecimento esse potenciado em aplicações financeiras e económicas que não seriam possíveis de outro modo, ao mesmo tempo, que representa contrapartida negativa de idêntico sinal para o responsável pelo pagamento, que de uma vez só é privado de uma soma elevada de capital.
Nesta linha o Juiz Desembargador Drº JOAQUIM DINIS no estudo já apontado, teve em conta uma dedução na capitalização do rendimento na ordem de 1/4 do produto da mesma, equivalente a 25% (Ver "DANO CORPORAL EM ACIDENTES DE VIAÇÃO" in "COL.JUR.S.T.J.", 1997, Tomo II, p.15), porém, há mais de uma década que a colocação dos juros situa-se em valores atualmente tão reduzidos, que a antecipação do capital não permitiria não só uma remuneração pelos demandantes tida por injusta, como a transferência do património da demandada por essa disposição do valor de uma só vez, não representaria igualmente essa perda, assim, segundo um juízo de equidade, para evitar as injustiças que decorrem do recebimento antecipado de todas as prestações, somente uma dedução de 15% do valor global indemnizatório apurado a final poderia fazer sentido, embora, in casu, caiba ponderar a revisão dessa dedução, como infra veremos.
Assim, na elaboração da expressão matemática haverá que fixar o período de tempo da variável N, e que no caso do cálculo referente à demandante mulher, se deve nortear pelo tempo médio de esperança de vida da vítima, que deveria situar-se pelo tempo médio de vida de 78 anos (neste sentido ver Ac.Rel.Lx de 7/07/92, in "COL.JUR.", Tomo IV, p.197; Ac.de 4/01/95 in "Colectânea de Jurisprudência", Tomo I, pág.299).
Por fim, interessa ter em conta os rendimentos auferidos anualmente pelo sinistrado, que se apuraram, sendo 635€ mensais correspondendo ao salário minino nacional em 2020 (aos quais deve operar o desconto de 11% das contribuições para a segurança social), fixando-se em 565,15€ x 14 + + (104,94 x 11) correspondendo ao valor anual de 9.066,44€ (acresce que este valor é suscetível de sofrer diversos ajustamentos, designadamente constitui critério Jurisprudencial, a dedução do rendimento anual bruto em 1/3 correspondente àquilo que em princípio, a vítima gastaria consigo mesma (Ac.do S.T.J. de 15/05/1986 in "B.M.J.", nº357, p.412 a 417; Ac.S.T.J.de 2/02/93, in "COL.JUR.S.T.J.", Tomo I, p.31)) portanto àquele valor deve operar a mencionada dedução de 1/3, fixando-se em 6.044,26€ x 17 anos (período que se fixa desde a sua idade de 49 anos até à esperança de vida ativa nos 66 anos), o que corresponde à soma de 102.752,98€, a que devem ser deduzidos os valores recebidos pelo capital remido da demandante e filho, ou seja, o valor de 43.126,35€ (contrariamente ao que sustenta o recorrente não há que ponderar as pensões anuais da demandante BB dado que o respetivo capital foi remido e só este será deduzido) recebido pela Apelada BB e o valor recebido pelo Apelado CC de €16.079,67, somando o montante de 59.206,02€, que deduzido ao valor de 102.752,98€ (dedução que fora igualmente realizada pelo Tribunal A Quo, contrariamente ao sustentado pela recorrente), encontra o montante de 43.546,96€.
Acresce que no cálculo do Tribunal “ A Quo” aferiu-se a perda de rendimentos durante o tempo de vida ativa, mas igualmente, também devem contar-se os rendimentos após a reforma (o que não se fez), recebendo a vítima o correspondente valor dessa pensão (mais reduzida que o salário), continuando a demandante a beneficiar desses rendimentos aferidos até à esperança de vida dos homens, que à data do sinistro situava-se em 78 anos, portanto, entre os 66 e estes 78 anos, haverá que contar os correspondentes 12 anos de pensão por velhice. Daí, considerando-se a regra jurídica para o cálculo das pensões por velhice, deve assumir-se o valor equitativo de 30 anos de descontos (variável “n”), na remuneração de 635€ (valor muito abaixo do devido, face à evolução entretanto já verificada do salário mínimo, assim como a expectável no futuro), segundo a fórmula legal - “RR (remuneração de referência) = TR (total de remunerações em toda a carreira) : (n x 14)” - , o cálculo da pensão de reforma correspondendo à formula - “Pensão = RR x 2% x n” - , determina o valor equitativo da pensão de reforma de 381€, do qual se contará 2/3 pelo período de 12 anos (compreendido entre os 66 e os 78 anos), ou seja, 254€ x 13 meses x 12 anos, correspondendo o valor de 39.624€, o que somado aos rendimentos da vida ativa supra apurados no valor de 43.546,96€, resulta o valor global de 83.170,93€.
Como estes cálculos encontram-se realizados muito por defeito, ou seja, bem abaixo dos valores expectáveis, dado que o incremento do salário mínimo nacional tem sido de tal ordem que já no presente ano de 2024, corresponde ao valor líquido de 729,80€, portanto, muito longe dos 565,15€ de 2020, não deve operar a dedução dos 15%, decorrentes como fator corretivo desse incremento, como supra se anunciou.

Acresce que, sobre este montante reportado a lucros cessantes, porque a lógica das prestações da segurança social é substituir-se provisoriamente ao responsável pelo evento danoso, assegurando a proteção ao beneficiário, ou de seus familiares em caso de morte daquele (sem prejuízo de caber à segurança social o direito de exigir o valor das prestações pagas, como adiante veremos), desempenhando a segurança social uma função supletiva nas relações com o lesante, que tem de ser integralmente compensada através do direito de reembolso (neste sentido ver “Col.Jur.”, Ano III, Tomo I, p.165; e Ac.Rel.E. de 28/10/97 in “COL.JUR.”, 1997, Tomo IV, p.294), porque a demandante recebeu do Centro Nacional de Pensões a pensão de sobrevivência atribuída pela segurança social à demandante no valor de 2.485,60€/ano, dada a natureza desta prestação, dado que o decesso do cônjuge implica a perda do acesso aos rendimentos deste na proporção de 2/3, mas ao mesmo tempo, por esse decesso a segurança social atribuiu a referida pensão de sobrevivência pela mesma perda de rendimentos, razão porque em relação a este valor, constituindo um adiantamento da segurança social, o dano em causa deverá ser reduzido na mesma proporção. Neste sentido, apenas fará sentido operar a dedução dos três anos de 2021, 2022 e 2023 de pensão de sobrevivência, correspondendo um total de 7.456,8€, dado que, não só se não podem deduzir prestações ainda não efetuadas, como o fundamento para a atribuição da pensão de sobrevivência pela segurança social ante a presente indemnização, virá a cessar.
Assim, apurando-se o montante de 75.714,13 a título de danos patrimoniais futuros por este Tribunal de recurso, porque é francamente superior ao arbitrado pelo Tribunal “A Quo”, a pretensão da recorrente demandada a este respeito soçobra, devendo manter-se o montante indemnizatório fixado em primeira instância, dado que no resultado do recurso da demandada não poderá a sua posição ser agravada.

De notar por fim que, a lógica destes cálculos seguidos pelo Tribunal “A Quo”, pela recorrente demandada e por este Tribunal de recurso nem sequer será a mais apropriada, pois, segundo a melhor jurisprudência nestes danos patrimoniais futuros a indemnização deve corresponder a um capital produtor do rendimento que se extinga no final do período provável de vida do lesado, ou seja, que represente um capital produtor de rendimento que será necessário deter no ano inicial para obter em cada um dos N anos seguintes uma prestação constante, considerando que é possível fazer uma aplicação financeira à taxa anual líquida (i). Nessas condições, o capital (C) será o necessário para permitir o levantamento de (P) ao longo de cada um dos N anos, esgotando-se totalmente no final. Ou na noutra formulação, o cálculo deverá representar um capital que se extinga no fim da sua vida activa e seja susceptível de garantir, durante esta, as prestações periódicas correspondentes à sua perda de ganho (cfr.Ac.S.T.J.de 9/1/79 in "B.M.J.", nº283, p.260; Ac.S.T.J.de 19/05/81 in "B.M.J.", nº307, p.247). Ora, a "ratio" desta forma de cálculo visará apurar uma indemnização aferida com base nos rendimentos que a vítima recebia na data do acidente, e segundo o índice de longevidade, tendo de ser reduzida em termos de equidade, por forma a evitar a acumulação desse montante com os juros futuros dessa capitalização.
Portanto, o cálculo matemático a adotar deverá servir o propósito de encontrar um total indemnizatório que "produza, no período que houver de ser considerado, o rendimento correspondente à perda económica que ela sofreu, mas de tal modo que, no fim desse período essa quantia se ache esgotada; só assim não haverá injusto enriquecimento da lesada à custa do lesante responsável pela satisfação da indemnização." (Ac.S.T.J.de 5/05/1994 in "COL.JUR.S.T.J.", Tomo II, p.86).
Ao cálculo matemático desta lógica, serve na perfeição a fórmula expressa no Acordão atrás citado, que não obstante a sua antiguidade, mantém a plena atualidade que a matemática possibilita.
C - será o capital a depositar logo no 1º ano (no ano 1);
P - é a prestação a pagar anualmente;
i - é a taxa de juro, onde se atenderá a 2%;
N - o número de anos que beneficiariam previsivelmente a demandante viúva.
Sendo a fórmula a seguinte expressão matemática:
_________________________________________
1 1+i
C= P x [ ___ – _________ ] + P x (1 +i)-N
i (1+i)N x i
______________________________________
No Acordão da Rel.C. de 4/04/1995 in "COL.JUR.", Tomo II, p.23 (estes anos de 1994 e 1995 corresponderam ao tempo em que a melhor jurisprudência fixou as fórmulas mais ajustadas para o cálculo destes anos), por sua vez, introduziu-se um cálculo com a mesma lógica matemática, com outras variáveis, atinentes aos fatores de crescimento dos salários como sejam a inflação; ganhos de produtividade em cerca de 1% ao ano; promoções profissionais, tudo com vista a evitar que os rendimentos futuros perdidos pelos demandantes, sejam constantes durante o período previsível em que beneficiariam desses rendimentos, antes sujeitando-os aos referidos factores de crescimento.
No caso dos autos, o apuramento da indemnização segundo esta fórmula ainda apresentaria valores superiores, mesmo aos que o Tribunal de recurso assim encontrou, motivo que face aos limites e objeto do recurso, tornou desnecessário o uso da referida fórmula matemática.
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Deste modo, improcedem todas as conclusões da recorrente demandada, assim como procede parcialmente o recurso subordinado dos demandantes.

DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso da demandada, embora se adite aos factos provados o ponto 37 com a redação supra mencionada.
Mais se julga o recurso subordinado dos demandantes parcialmente provido, condenando a demandada seguradora a pagar aos demandantes BB, CC e DD, a importância de €130.000,00 (cento e trinta mil euros), a titulo de indemnização por danos não patrimoniais de perda do direito à vida, a qual deverá ser repartida, nos termos do disposto no artigo 2139.º, n.º 1 do Código Civil, em três partes iguais, acrescidos de juros à taxa legal desde a data da presente decisão até integral pagamento”, assim se alterando o ponto C.1) do dispositivo da sentença, no mais, se mantendo a decisão do Tribunal A Quo, nos seus termos.

Custas do recurso da demanda companhia de seguros a seu cargo.

Notifique.

Sumário:
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Porto, 10 de Abril 2024.
Nuno Pires Salpico.
Paula Natércia Rocha.
Luís Coimbra [Vota vencido:
Voto vencido no tocante ao montante da indemnização pela perda do direito à vida agora fixado, porquanto manteria o montante de €90.000,00 que, a tal respeito, havia sido fixado pela 1ª instância.
Assentando a determinação dessa indemnização em critérios de equidade (art. 496º do Código Civil), como referido, a dado passo, no recente acórdão do STJ de 06-02-2024 (proc. 2012/19.1T8PNF.P1.S1, relator Pedro de Lima Gonçalves «A utilização de critérios de equidade não impede que se tenham em conta as exigências do princípio da igualdade, sendo que a prossecução desse princípio implica a procura de uma uniformização de critérios, naturalmente incompatível com as circunstâncias do caso (Acórdão do STJ, de 4 de junho de 2015, acessível em www.dgsi.pt).
Ora “os tribunais não podem nem devem contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito privado e, mais precisamente, na área da responsabilidade civil que a afirmação desses vetores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha reta à efetiva concretização do princípio da igualdade consagrado no artº 13º da Constituição” (Acórdão do STJ, de 21 de fevereiro de 2013, acessível em www.dgsi.pt), cumprindo não nos afastarmos do equilíbrio e do valor relativo das decisões jurisprudenciais mais recentes (Ac. do STJ, de 4 de junho de 2015, acessível em www.dgsi.pt)»
E como também referido no acórdão do STJ de 03-03-2021 (proc. 3710/18.2T8FAR.E1.S1, relatora Maria do Rosário Morgado, in www.dgsi.pt) ”O recurso à equidade não afasta, todavia, a necessidade de observar as exigências do princípio da igualdade (cf. art. 13º, nº 1, da CRP), o que implica a procura de uma uniformização de critérios, não incompatível, naturalmente, com a devida atenção às circunstâncias do caso. Quer isto significar que as decisões judiciais devem ter em consideração os critérios jurisprudenciais adotados em casos idênticos por forma a obter, tanto quanto possível, uma interpretação e aplicação uniforme do direito (cf. art.º 8.º, n.º 3, do CC).
Tecidas estas parcas considerações sobre o tema, e sem as olvidarmos, permitimo-nos transcrever aqui a uma pequena parte da resenha jurisprudencial do STJ efetuada num acórdão de 08/06/2021, no processo nº 2261/17.7T8PNF.P1.S1, Relatora Maria João Vaz Tomé:
- no acórdão de 19 de dezembro de 2018 (Távora Victor), proc. n.º 1178/16.7T8VRL.L1, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que “(…) III - Na fixação da indemnização decorrente da perda do direito à vida pesam as circunstâncias de cada caso, sendo que, no caso de uma vítima de 61 anos de idade, estimada e inserida no meio em que vivia e susceptível de ganhar o seu sustento, mostra-se adequado fixar a indemnização a título do dano morte no montante de € 60 000,00.
- segundo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de junho de 2018 (Salreta Pereira), proc. n.º 370/12.8TBOFR.C1.S2, “(…) II - Os valores de € 65 000 e de € 30 000 fixados a título de indemnização pelo dano morte e pelos danos não patrimoniais sofridos por cada um dos filhos da vítima, estão em consonância com os critérios praticados pelo STJ. (…)” - no caso apreciado por este acórdão, a vítima tinha, à data da morte, 44 anos de idade;
Para além destes, podemos ainda citar outros arestos, mais atualizados, todos do Supremo Tribunal de Justiça, e acessíveis em www.dgsi.pt:
- Acórdão de 11/02/2021 (processo 625/18.8T8AGH.L1.S1, relator Abrantes Geraldes), vítima com 7 anos de idade, com culpa exclusiva do lesante mantendo-se a indemnização em €100.000,00, e onde se refere:
«Destaca-se para o caso a apreciação que foi feita no Ac. do STJ, de 3-11-16, 6/15, no qual foi considerado que a quantia de € 100.000,00 constituía um valor equitativo, nele se fazendo uma resenha de outros acórdãos anteriores nos termos que se reproduzem:
“Consolidou-se, assim, na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça o entendimento de que o dano pela perda do direito à vida, direito absoluto e do qual emergem todos os outros direitos, situa-se, em regra e com algumas oscilações, entre os € 50 000,00 e € 80 000,00, indo mesmo alguns dos mais recentes arestos a € 100.000,00 (cf., entre outros, os Acs. do STJ, de 10-5-12 (451/06), de 12-9-13 (1/12), de 24-9-13 (294/07), de 19-12-14 (1229/10), de 9-9-14 (121/10), de 11-2-15 (6301/13), de 12-3-15 (185/13), de 12-3-15 (1369/13), de 30-4-15 (1380/13), de 18-6-15 (2567/09) e de 16-9-16 (492/10), todos acessíveis através de www.dgsi.pt”.»
- Acórdão de 03/03/2021, proferido no processo 3710/18.2T8FAR.E1.S1, relatora Maria do Rosário Morgado, atribui-se € 80.000,00 a uma vítima com 33 anos de idade.
- Acórdão de 10/11/2022 (processo 239/20.2T8VRL.G1.S1, Relatora Maria da Graça Trigo), mantiveram-se os € 70.000,00 fixados pela Relação a uma vítima com 63 anos.
- Acórdão de 27/09/2022 (processo 253/17.5T8PRT-A.P1.S1, Relator Isaías Pádua), mantiveram-se os € 95.000,oo fixados em 1ª instância (a Relação havia reduzido para 85 mil) a uma vítima com 41 anos de idade, na sequência de acidente de viação para o qual não contribuiu (…) sendo então uma pessoa saudável, feliz/alegre, com família constituída, com um agregado familiar composto pelo seu marido e uma filha menor, e estabilizada ainda profissionalmente.
- Acórdão de 15/09/2022, processo 2374/20.8T8PNF.P1.S1, relatora Fátima Gomes, mantiveram-se os € 85.000,00 fixados pela Relação (a 1ª instância havia fixado 130 mil), a uma vítima com 33 anos e 2 filhos menores.
- Acórdão de 13/05/2021, processo nº 10157/16.3T8LRS.L1.S1 – vítima com “45 anos de idade e um bom relacionamento com o seu único filho” -, o STJ manteve os € 80.000,00 atribuídos pela Relação.
- Acórdão do STJ, de 25-02-2021 (processo nº 4086/18.3T8FAR.E1.S1, relatora Rosa Tching) no qual, a dado passo, é referido ”ponderando as circunstâncias em que decorreu o acidente, a idade da vítima mortal (53 anos), o facto de não ter dado causa ao acidente e atendendo, numa perspetiva de satisfação das exigências do princípio da igualdade plasmado no art. 13º, nº 1 da CRP, aos parâmetros seguidos pela jurisprudência mais atualista deste Supremo Tribunal, seja de considerar, por um lado, excessivo o montante de € 100.000,00 reclamado pelos recorrentes a título de indemnização pela perda do direito à vida de CC e, por outro lado, insuficiente o montante arbitrado pelo Tribunal da Relação, tendo-se, antes, por mais razoável e equitativa a compensação de € 80.000,00 arbitrada pela 1.ª instância.
- Acórdão do STJ, de 07.05.2020 (processo nº 952/06.7TBMTA.L1.S1, relator Olindo Geraldes) no qual a dado passo é referido que “atendendo às particularidades do caso sub judice, nomeadamente aos 29 anos de idade que a vítima tinha, à data da morte, à elevada expetativa de vida, considerando a esperança de vida dos homens em Portugal, o casamento contraído há cerca de dois anos antes da morte e ter sido pai também há cerca de um ano, afigura-se adequada a indemnização de € 85 000,00, fixada pelas instâncias” (em acidente de viação com culpa exclusiva do lesante).
Em suma, nesta confluência de critérios oriundos destes recentes acórdãos do STJ, por considerar justo e adequado o montante da indemnização atribuída pela 1ª instância (€90.000,00) a título de perda do direito á vida de FF, negaria também provimento ao recurso subordinado interposto pelos demandantes BB, CC e DD.]