TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
NULIDADE DA BUSCA
NOMEAÇÃO DE INTÉRPRETE
Sumário

I. A realização de busca nos termos do art. 251º, n.º 1, al. a), do C.P.P. tem uma natureza eminentemente cautelar, voltada para situações de urgência em que a suspeita de existência de prova de um crime não se compadece com demoras, sob pena de desaparecerem, bastando-se com a suspeita, seja ela anterior ou concomitante à intervenção da autoridade judiciária, desde que suportada em fundamento razoável e que, pela natureza das coisas, nem sequer carece de ser isenta de toda a dúvida.
II. No caso, a realização da diligência probatória em apreço, no momento em que ocorreu, permitiu recolher elementos de prova de que o suspeito se dedicava à atividade de tráfico, elementos probatórios esses que poderiam ter-se perdido, caso a autoridade policial não tivesse optado por atuar de imediato nos termos em que atuou, ou seja, procedendo à busca e apreensão sem prévia autorização da autoridade judiciária.
III. A lei processual penal não exige a assistência de defensor e de intérprete a arguido estrangeiro que não domine a língua portuguesa no decurso de busca realizada por iniciativa de órgão de polícia criminal, nem na constituição do arguido e na prestação de TIR ocorrida na sequência da detenção do arguido, por estar na posse de substância suspeita de ser estupefaciente e de existirem fundadas suspeitas da prática de ilícito criminal.

Texto Integral

*



Relatora: Cândida Martinho

Adjuntos: Jorge Jacob
Fátima Sanches


*

Acordam, em conferência, os Juízes da 4ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra

I.Relatório

1.

No processo comum, com intervenção do tribunal singular, com o número 20/20.... que corre termos no Tribunal da Comarca de Castelo Branco – Juízo de Competência Genérica de ... - foi proferida sentença que decidiu, para além do mais:

1. Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º, al. a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, conjugado com o artigo 21º, n.º 1, com referência à Tabela I-C, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;

2. Suspender a execução da pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão aplicada ao arguido AA pelo mesmo período de tempo.

3. Absolver o arguido BB da prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º, al. a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro.

4. Condenar o arguido BB, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de consumo, p. e p. pelo artigo 40.º, n.ºs 1 e 2 do Decreto-lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-C, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de €6,00 (seis euros), no montante global de €540,00 (quinhentos e quarenta euros).

5. Declarar a perda a favor do estado dos Estado do produto estupefaciente apreendido à ordem dos presentes autos, as substâncias estupefacientes apreendidas nos presentes autos que compõem as amostras cofres existentes no LPC e os sacos plásticos, balanças, moinho, caixas e baldes apreendidos (referidos no relatório pericial de fl. 1178, 1179, 1182, 1188, 1189, 1190, 1193 e 1202) e determina-se a sua destruição, em conformidade com o preceituado nos artigos 35.º, n.ºs 1 e 2 e 62.º, n.ºs 5 e 6, todos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro e 109.º do Código Penal;

2.

            Não se conformando com o decidido, veio o arguido AA, interpor o presente recurso, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):

            1ª

A entrada da GNR na propriedade privada do arguido foi ilegal, pois da forma como foi o início do processo nem sequer se pode falar em flagrante delito (todo o crime que se está cometendo ou se acabou de cometer.)

Nesta sequência os actos que se seguiram, tais como constituição de arguido, detenção, TIR, comunicação dos factos, estão eles todos maculados de ilegalidade, já que ninguém traduziu nem foi nomeado intérprete ao arguido por forma a entender o que se passava no terreno.

Desde o primeiro momento deveria ao arguido ter estado acompanhado de um defensor e de um interprete, já que foi detido na sua propriedade, transportado para o posto da GNR, local onde lhe foram apresentados uma série de documentos em idioma que desconhece.

Assim, verifica-se a nulidade insanável dos meios de obtenção de prova, a invalidada da sua constituição de arguido, da sua detenção e do TIR.

A decisão da GNR que tolheu a liberdade do arguido (detenção), a descrição dos factos da participação, o auto de apreensão que lhe foi apresentado pela GNR, a constituição de arguido e o TIR sem a mínima explicação e na ausência de um defensor, sem que o arguido dele prescindisse tratam-se de falhas imputadas ao estado insusceptíveis de suprir, pois são actos inválidos e eficazes.

Todos os actos praticados em 29/09/2020 são inválidos, nulos e insanáveis o que inquina todos os demais actos processuais e/ou pelo menos as provas obtidas nesse espaço/tempo, designadamente 11 plantas com 740 g; as fotos; etc

A nulidade resultando de uma proibição de prova, absoluta ou relativa, não se confunde com o sistema de nulidades insanáveis e sanáveis a que aludem os arts. 118.º a 122.º do CPPenal, constituindo, antes, um regime autónomo de sancionamento cujo resultado, uma vez verificada a inerente violação dos direitos e liberdades fundamentais afectados, é a não utilização do meio de prova ou de obtenção de prova trazido ao processo por meio de expedientes ou recursos não permitidos, como se nunca tivesse existido.

No caso em apreço a intimidade da vida privada, casa de morada de família, e a propriedade privada foram devassadas pela GNR a coberto de uma chamada anónima. Sendo realizadas buscas e revistas sem um consentimento claro, inequívoco e causa provável, que já se viu não ocorreu nos autos. O que é altamente perigoso em sede processual e claramente violador da intimidade da vida priva e familiar.

Não houve lealdade por parte dos órgãos de polícia criminal nos meios empregues para a obtenção de prova o que os inquina e às provas de nulidade.

Mais, a junção aos autos das apreensões em causa ocorreu totalmente à margem de qualquer autorização legal, por não se integrar nos casos previstos na lei, ou de consentimento do arguido, estando-se também nesta perspectiva mais adjectiva perante método proibido de prova.

Interpretar o art.126º conjugado com 119º, 120º do CPP, tal como o fez o tribunal “a quo” considerando-se a nulidade dos autos sanável, padece de inconstitucionalidade.

Assim, conclui-se pela invalidade das buscas realizadas na propriedade e edifícios do recorrente em 29/09/2020 e das provas aí recolhidas.

(…)

Pois, a acusação e a sentença são omissas quanto ao grau de pureza de tal material.

A indicação do grau de pureza da droga revela -se essencial para as situações em que está em causa a toxicodependência e a determinação sobre se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente excede a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias (art. 40º do Decreto-Lei 15/93 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Uniformização de Jurisprudência n.º 8/2008, de 25.6.2008, in DR IA Série, de 5.8.2008).

O que na verdade se discute no caso em concreto.

Face ao exposto, a falta de indicação do grau de pureza da cannabis, quer na acusação, quer na sentença, é um facto essencial à subsunção jurídica, pelo que tais factos não podem ser considerados na condenação do arguido/recorrente.

O que reforça a tese de que o recorrente deveria ter sido absolvido do crime de tráfico de menor gravidade em que foi condenado.

Nestes termos requer a V.Exªs se dignem considerar procedente e provado o presente recurso e em consequência absolverem o arguido.

            3.

            O Ministério Público na primeira instância veio responder ao recurso, concluindo pela sua improcedência nos seguintes termos:

            (…)

4.

Neste tribunal da Relação, o Exmo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, no sentido da improcedência do recurso.

5.

Cumprido o art. 417º,nº2, do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.

6.

Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art.419º,nº3,al.c), do diploma citado.

II. Fundamentação


A)Delimitação do Objeto do Recurso

Como é consensual, quer na doutrina quer na jurisprudência, são as conclusões extraídas pelo recorrente da motivação, sintetizando as razões do pedido, que definem e determinam o âmbito do recurso e os seus fundamentos, delimitando para o tribunal superior as questões a decidir e as razões por que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo do conhecimento oficioso de certos vícios e nulidades, ainda que não invocados ou arguidas pelos sujeitos processuais.

No caso que nos ocupa, são as seguintes as questões a decidir:

- Nulidade das buscas e de todos os demais atos praticados no dia 29/09/2020

- Não verificação dos pressupostos do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p.e p. pelo artigo 25º,al.a), do DL15/93, de 22/1.


B)Com vista à apreciação das questões supra enunciadas importa ter presente o seguinte segmento da sentença recorrida:

“(…)

II. SANEAMENTO

O Tribunal é competente.

O Ministério Público tem legitimidade.

- Das nulidades invocadas

Sustenta o arguido que não autorizou, no dia 29 de Setembro de 2020, a entrada das autoridades policiais na sua propriedade, onde reside, nem a realização de quaisquer buscas e/ou revistas, nem tinham mandado do Ministério Público nem do Juiz.

Mais referiu que o arguido não fala português não tendo percebido nada do lhe era dito e/ou comunicado verbalmente ou por escrito.

De igual modo, em sede de alegações orais, as defesas dos arguidos suscitaram a nulidade das buscas realizadas nos dias 29.09.2020 e 01.10.2020.

Dispõe o artigo 174.º do Código de Processo Penal, que:

1 - Quando houver indícios de que alguém oculta na sua pessoa quaisquer animais, coisas ou objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova, é ordenada revista.

2 - Quando houver indícios de que os animais, as coisas ou os objetos referidos no número anterior, ou o arguido ou outra pessoa que deva ser detida, se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público, é ordenada busca.

3 - As revistas e as buscas são autorizadas ou ordenadas por despacho pela autoridade judiciária competente, devendo esta, sempre que possível, presidir à diligência.

4 - O despacho previsto no número anterior tem um prazo de validade máxima de 30 dias, sob pena de nulidade.

5 - Ressalvam-se das exigências contidas no n.º 3 as revistas e as buscas efectuadas por órgão de polícia criminal nos casos:

a) De terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade de qualquer pessoa;

b) Em que os visados consintam, desde que o consentimento prestado fique, por qualquer forma, documentado; ou

c) Aquando de detenção em flagrante por crime a que corresponda pena de prisão.

(…)

7 - Nos casos referidos na alínea a) do n.º 5, a realização da diligência é, sob pena de nulidade, imediatamente comunicada ao juiz de instrução e por este apreciada em ordem à sua validação.

Por seu turno, dispõe o artigo 177.º do Código de Processo Penal:

1 - A busca em casa habitada ou numa sua dependência fechada só pode ser ordenada ou autorizada pelo juiz e efectuada entre as 7 e as 21 horas, sob pena de nulidade.

2 - Entre as 21 e as 7 horas, a busca domiciliária só pode ser realizada nos casos de:

a) Terrorismo ou criminalidade especialmente violenta ou altamente organizada;

b) Consentimento do visado, documentado por qualquer forma;

c) Flagrante delito pela prática de crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos.

3 - As buscas domiciliárias podem também ser ordenadas pelo Ministério Público ou ser efectuadas por órgão de polícia criminal:

a) Nos casos referidos no n.º 5 do artigo 174.º, entre as 7 e as 21 horas;

b) Nos casos referidos nas alíneas b) e c) do número anterior, entre as 21 e as 7 horas.

4 - É correspondentemente aplicável o disposto no n.º 6 do artigo 174.º nos casos em que a busca domiciliária for efectuada por órgão de polícia criminal sem consentimento do visado e fora de flagrante delito.

No caso dos autos, estamos, desde logo, perante uma situação de detenção em flagrante por crime a que corresponde pena de prisão, pelo que o órgão de polícia criminal podia realizar as buscas em causa, sem prévia emissão de mandados de detenção.

Por sua vez, dispõe o artigo 178.º do Código de Processo Penal:

1 - São apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os animais, as coisas e os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova.

2 - Os instrumentos, produtos ou vantagens e demais objetos apreendidos nos termos do número anterior são juntos ao processo, quando possível, e, quando não, confiados à guarda do funcionário de justiça adstrito ao processo ou de um depositário, de tudo se fazendo menção no auto, devendo os animais apreendidos ser confiados à guarda de depositários idóneos para a função com a possibilidade de serem ordenadas as diligências de prestação de cuidados, como a alimentação e demais deveres previstos no Código Civil.

3 - As apreensões são autorizadas, ordenadas ou validadas por despacho da autoridade judiciária.

4 - Os órgãos de polícia criminal podem efectuar apreensões no decurso de revistas ou de buscas ou quando haja urgência ou perigo na demora, nos termos previstos na alínea c) do n.º 2 do artigo 249.º

5 - Os órgãos de polícia criminal podem ainda efetuar apreensões quando haja fundado receio de desaparecimento, destruição, danificação, inutilização, ocultação ou transferência de animais, instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos ou coisas provenientes da prática de um facto ilícito típico suscetíveis de serem declarados perdidos a favor do Estado.

6 - As apreensões efectuadas por órgão de polícia criminal são sujeitas a validação pela autoridade judiciária, no prazo máximo de setenta e duas horas.

No caso, as apreensões efectuadas foram validadas pelo Ministério Público, fls. 44 e 194.

Ainda que assim não se considerasse, as nulidades que agora vêm a ser invocadas, são nulidades dependentes de arguição e, como tal, sanáveis, se não arguidas atempadamente.

Vejamos.

Dispõe o artigo 119.º do Código de Processo Penal:

Constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal forem cominadas em outras disposições legais:

a) A falta do número de juízes ou de jurados que devam constituir o tribunal, ou a violação das regras legais relativas ao modo de determinar a respectiva composição;

b) A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do artigo 48.º, bem como a sua ausência a actos relativamente aos quais a lei exigir a respectiva comparência;

c) A ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência;

d) A falta de inquérito ou de instrução, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade;

e) A violação das regras de competência do tribunal, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 32.º;

f) O emprego de forma de processo especial fora dos casos previstos na lei.

Nenhuma das nulidades invocadas configura uma nulidade insanável.

Por sua vez, dispõe o artigo 120.º do Código de Processo Penal:

1 - Qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte.

2 - Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais:

a) O emprego de uma forma de processo quando a lei determinar a utilização de outra, sem prejuízo do disposto na alínea f) do artigo anterior;

b) A ausência, por falta de notificação, do assistente e das partes civis, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência;

c) A falta de nomeação de intérprete, nos casos em que a lei a considerar obrigatória;

d) A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos

legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.

3 - As nulidades referidas nos números anteriores devem ser arguidas:

a) Tratando-se de nulidade de acto a que o interessado assista, antes que o acto esteja terminado;

b) Tratando-se da nulidade referida na alínea b) do número anterior, até cinco dias após a notificação do despacho que designar dia para a audiência;

c) Tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito;

d) Logo no início da audiência nas formas de processo especiais.

As nulidades invocadas consubstanciam, assim, nulidades dependentes de arguição, sendo que, podiam ter sido arguidas no próprio acto ou tratado-se de eventual nulidade do inquérito, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo inquérito até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito.

Deste modo, qualquer arguição de nulidades relacionadas com as buscas efectuadas no dia 29 de Setembro de 2020 (arguido AA) ou 01 de Outubro de 2020 (arguido BB), ficou sanada por não ter sido tempestivamente sanada.

A este propósito, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 14.01.2009, Processo n.º 275/08.7GBVNO-A.C1:

II. – A falta de nomeação de intérprete é sancionada com nulidade dependente de arguição.

III. - Não sendo razoável que a invocação desta nulidade tenha que ser efectuada até ao termo do acto a que o visado assistiu sem intérprete [sob pena de completo esvaziamento da tutela pretendida], no caso de o arguido estar assistido defensor, nomeado ou constituído, deve aceitar-se, a aplicação da regra geral de arguição das nulidades sanáveis ou seja, a arguição no prazo de 10 dias (art. 105º, nº 1, do C. Processo Penal), a contar daquele em que o interessado foi notificado para qualquer termo posterior do processo ou teve intervenção em acto nele praticado (cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, 3ª Ed., 85).

De igual modo, veja-se, ainda, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora de 17.09.2009, Processo n.º 549/08.7PBBJA-A.E1:

1. A validade da realização da busca domiciliária basta-se com o consentimento da pessoa afectada ou seja daquela que tenha a livre disponibilidade, quanto ao local onde a diligência é efectuada e que possa ser por ela afectado, nomeadamente o seu quarto.

2. Tendo sido buscado, sem prévia autorização da autoridade competente, o quarto onde o arguido vinha pernoitando, e não tendo aquele, enquanto visado pela diligência em causa, dado o consentimento à realização da busca, foi cometida uma nulidade (art. 177.º n.º1 e 6 do CPP). Trata-se, contudo, de nulidade sanável e que só pode ser conhecida mediante arguição do sujeito processual interessado, nos termos do art. 120.º n.º3 do CPP

Em face do exposto, e sem necessidade de maiores considerações, julgam-se improcedentes as nulidades suscitadas quanto às diligências efectuadas nos dias 29.09.2020 e 01.10.2020.

Não existem outras nulidades, excepções, questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A) Dos Factos Provados

Após a audiência de discussão e julgamento, resultaram provados os seguintes factos:

Da Acusação Pública:

1. Em datas não apuradas, mas no decorrer dos anos de 2019 e 2020, o arguido AA plantou no terreno agrícola, sito em ... – ..., diversas plantas de cannabis.

2. No dia 29 de Setembro de 2020, pelas 12h00, no referido terreno agrícola pertencente ao arguido AA, mais concretamente, no quintal, aquele detinha 11 pés de plantas de cannabis, com vários tamanhos, no estado de verde, e no interior de um anexo parcialmente em ruínas, existente naquele terreno, foram ainda encontradas três mangas em rede, utilizadas para a secagem da cannabis, contendo no seu interior cerca de 740,00 gramas de sumidades floridas de cannabis (cabeços).

3. Tais sumidades floridas de cannabis têm um peso líquido de 570,200 gramas, com percentagem de grau de pureza de THC 7,0 % e suficiente para 798 doses.

4. No dia 01 de Outubro de 2020, pelas 13h00, no terreno agrícola, sito ..., pertencente ao arguido BB, este detinha 5 plantas de cannabis e, no interior da sua residência, um frasco de vidro contendo no seu interior 36,600 gramas de sumidades floridas já secas.

5. As plantas têm um peso líquido de 1814,900 gramas e foram identificadas como cannabis (folhas e sumidas floridas ou frutificadas), com percentagem de grau de pureza de THC 12,9 % e suficiente para 4682 doses, enquanto que o demais produto estupefaciente tem um peso líquido de 36,568 gramas e foi identificado como cannabis (folhas e sumidas floridas ou frutificadas), com percentagem de grau de pureza de THC 14,9 % e suficiente para 108 doses.

6. No dia 17 de Outubro de 2021, o arguido AA detinha na sua residência e terreno agrícola:

Hall de Entrada:

- Sacos plástico e papel individuais (dentro de saco verde tropa)

- Sacos plástico individuais (gavetas no chão)

- Cadernetas bancárias;

- “Ipad” Tablet

-Cozinha e sala de estar:

- Carteira preta com valor monetário, 5 notas de 100 euros, 1 nota de cinquenta euros, 1 nota de vinte euros, 2 notas de dez euros e uma nota de cinco euros (595,00 euros no total);

- Moinho com resíduos de canábis;

- Um caderno com apontamentos;

- Cartões Multibanco (2) no nome de AA;

- Cartão memória;

- Telemóvel Iphone;

- Passaporte americano;

- Caixa com diversos produtos entre os quais:

Dentro de caixa de papelão com inscrição “CANNA SEEDS:

- 2 (duas) saquetas marca “Barneys farm” contendo no seu interior 2 sementes de “Cannábis” com estirpe “Blue gellato 41 Femenized” ;

- 1 (uma) saqueta da marca “Expert Seeds, California Orange”, “Sativa Line”;

- 1 saqueta contendo sementes de canábis de marca “Royal Queen Seeds”, com estirpe

“Tatanka Pure CBD”;

- 1 Saqueta vazia de sementes de cannabis, marca “Zamnesia”, com designação “Girl Scout Cookies”;

- 1 Saqueta vazia de sementes de cannabis, marca “Zamnesia”, com designação

“Quick caramel XL”;

- 1 caixa de cor preta com designação “DINAFEM”, contendo no seu interior um invólucro com duas sementes de canábis;

- 1 caixa de cor preta com designação “DINAFEM”, contendo no seu interior um invólucro vazio;

- 1 envelope contendo um “tester”, que se presume ser utilizado para verificar qualidade/potência de produtos de canábis;

Sala de Arrumos:

- Vários baldes de diversos tamanhos;

- Caixa com diverso material de acondicionamento nomeadamente frascos em plástico, tubos de ensaio de vários tamanhos vazios;

- Um Telemóvel da marca Alcatel;

Corredor junto à escadaria:

- Um Telemóvel Iphone;

Cave:

- Moinho manual usado para separação de produtos de cannabis;

Quarto da criança:

- Um Disco Externo rígido;

- Um Telemóvel Iphone;

- Um Computador portátil;

Quarto de casal:

- Um Telemóvel “Iphone”;

- Um Telemóvel “Fairphone”;

- Um Telemóvel “Samsung”;

- Um computador portátil;

- Um Tablet;

Armazém exterior

– Celeiro:

- Balde plástico contendo 11 sacos de sumidades floridas no seu interior (enterrado em caixa de cimento na garagem), com o peso total de 1199,3 gramas;

- 1 caixa de plástico contendo dez sacos com “Blisters” vazios de vários tamanhos, acondicionados a vácuo e alguns abertos, acompanhados por 4 (quatro etiquetas em madeira) com as seguintes siglas: “C16 SC”; “C13 QK”; “B02 S.C.” e “C08 QK”;

Casa em Pedra:

- 7 (sete) Baldes em plástico;

Terreno Florestal:

- uma caixa metálica de armazenamento de munições, contendo no seu interior 2 sacos com sumidades floridas de canábis com o peso total de 258,7 gramas.

7. No dia 17 de Outubro de 2021, o arguido BB detinha na sua residência:

Cozinha:

- Arma de Ferrolho para abate de animais;

- Uma lata chumbos de arma pressão de ar;

- Duas latas de munições para a arma de abate de animais;

- Balança digital.

Quarto:

- CPU de cor preta 850W, Bronze edition;

- Um telemóvel de marca Samsung em tom de rosa;

- Um telemóvel de cor preta marca Sony Ericson;

- Um tablet de cor preta marca Meberry e o respetivo carregador de cor branca e preta;

- Frasco de geleia contento no interior 5,2 Gramas de Cannabis;

- Um frasco de geleia contendo no seu interior 19 Gramas de Cannabis;

- Computador marca DELL cor preta com o respetivo carregador;

- Computador marca DELL cor cinza sem carregador;

Quarto 1:

- Computador ACER de cor preta com carregador.

8. As plantas têm um peso líquido de 5,248 gramas e foram identificadas como cannabis (folhas e sumidas floridas ou frutificadas), com percentagem de grau de pureza de THC 11,6 % e suficiente para 12 doses, enquanto que o demais produto estupefaciente tem um peso líquido de 19,147 gramas e foi identificado como cannabis (folhas e sumidas floridas ou frutificadas), com percentagem de grau de pureza de THC 8,1 % e suficiente para 31 doses.

9. Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de cultivar, colher as folhas, secá-las e delas obter cannabis activa, não obstante conhecerem a natureza e características daquelas.

10. Conheciam os arguidos as características das referidas plantas cannabis, sabendo que o cultivo, a preparação, a detenção, oferta e venda das mesmas são proibidas por lei, sendo certo também que não estavam habilitados com qualquer autorização que lhe permitissem ter tais plantas na sua posse.

11. Sabiam os arguidos que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal, não se abstendo, contudo, de as praticar.

Mais ficou provado:

12. O arguido BB utilizava o produto estupefaciente supra referido para seu consumo exclusivo.

13. O arguido AA utilizava as plantas supra identificadas, designadamente, para fins medicinais.

 (…)”.


A) Apreciação do recurso

 

- Nulidade da busca ocorrida no terreno agrícola e dos demais atos que se seguiram (constituição de arguido, detenção, TIR).

Começa o recorrente por alegar que a busca ocorrida no dia 29/9/2020, no terreno do qual é proprietário, padece de nulidade, pois, para além de não poder falar-se em flagrante delito, tendo em conta a forma como se iniciou o presente processo, não ocorreu qualquer consentimento claro e inequívoco da sua parte para a entrada na sua propriedade e realização da busca, nem qualquer ordem judicial prévia, sendo, consequentemente, inválidos todos os meios probatórios obtidos através da mencionada busca.

Ainda com vista a sustentar nulidade de tal diligência, veio o recorrente defender que deveria ter estado acompanhado desde o início de um defensor e de um intérprete pois tem nacionalidade alemã, não dominando a língua portuguesa, razão pela qual são também inválidos todos os atos que no dia 29/9/2020 se seguiram a tal diligência – constituição de arguido, detenção, TIR -  já que ninguém os traduziu nem foi nomeado intérprete por forma a entender o que se passava.

Mais defende que o tribunal a quo decidiu erradamente na apreciação das apontadas nulidades, por ter considerado que as mesmas são nulidades sanáveis e que, não tendo sido arguidas no prazo de 10 (dez) dias a contar daquele em que o interessado foi notificado para qualquer termo posterior do processo ou teve intervenção em ato nele praticado, ficaram sanadas.

Para o efeito, trouxe à liça as Diretivas 2010/64/EU de 20/10 e 2012/13/EU de 22/12, que regulamentam o direito à nomeação de intérprete e à disponibilização de tradução dos atos processuais aos arguidos estrangeiros e ao direito à informação em processo penal, salientando que impondo as mesmas uma obrigação positiva de facere sobre os tribunais nacionais, desde logo sobre a necessidade de nomeação de intérprete e/ou tradutor, até ao controlo da qualidade da interpretação/tradução, tal implica a revogação de todas as normas do direito nacional – existentes ou a existir - que sejam contrárias ao estabelecido nas Diretivas e que consagrem imperativamente um regime comunitário comum, onde se inclui um sistema de invocação de invalidades que vise suprir as falhas imputáveis ao Estado.

Nesse seguimento, entende o recorrente que não se está perante irregularidade ou nulidade sanável, considerando que tais figuras são revogadas sempre que exista uma “obrigação positiva” a onerar o Estado, provinda de norma comunitária imperativa.

Vejamos.

Resulta dos autos de notícia, de busca e apreensão, que no dia 29 de setembro de 2020, pelas 12.00 horas, na sequência de uma denúncia anónima que dava conta que num terreno agrícola sito em ... - ... - existia uma plantação de canábis, elementos do NIC de ... deslocaram-se ao local no intuito de verificar a veracidade da informação, tendo, após algumas diligências, localizado o referido terreno, o qual se situava numa zona rural rodeada de vegetação alta, encontrando-se nele plantadas diversas plantas de cannabis.

Mais dele resulta que ao constatar a veracidade dos factos, a mencionada brigada deslocou-se a uma residência que se situava nas imediações, onde contactaram o proprietário que se identificou como AA, o qual tendo confirmado ser o proprietário do terreno questão, informou que tinha plantadas em tal terreno plantas de canábis e que as mesmas se destinavam a fins medicinais, após o que se disponibilizou acompanhar a equipa até ao terreno em questão.

Resulta ainda do auto que já no referido terreno agrícola, após o mencionado AA ter reafirmado que as plantas eram canábis, nomeadamente 11 pés, lhe pertenciam, foram as mesmas apreendidas, tendo ainda num anexo, parcialmente em ruínas  sido encontradas três mangas em rede, utilizadas para a secagem da canábis, contendo no seu interior 740 gramas de sumidades floridas de canábis (cabeços), mangas e sumidades estas que foram também objeto de apreensão, após o que, informado o mencionado AA que tal cultivo constituía crime, foi-lhe dada voz de detenção pelas 14.00 horas, tendo vindo depois a ser constituído arguido e sujeito a TIR.

Aqui chegados, face ao circunstancialismo em que ocorreu a busca e posteriores apreensões que vieram a ter lugar, pode já concluir-se que tais diligências ocorreram no âmbito das medidas cautelares e de polícia e previamente à detenção do arguido.

Deste modo, e inexistindo qualquer dúvida que não estamos perante uma busca domiciliária, será à luz dos artigos 249º e 251º, nº1,al.) do CPP, e não dos invocados na decisão recorrida, designadamente do artigo 174, nº5 do CPP que tal questão levantada tem de ser apreciada.

Como refere Eduardo Maia Costa, in Código de Processo Penal, Comentado, edição 2014, Almedina, pág.939, prevê-se no citado artigo 251º “a prática de revistas e buscas, como medidas cautelares urgentes, a que os órgãos de polícia criminal devem proceder em ordem à aquisição ou conservação da prova. Integram-se, pois, estas medidas na competência para a prática de providências cautelares por parte dos órgãos de polícia criminal.

Distinguem-se da previsão da alínea c), do nº5, do art.174º que pressupõe o flagrante delito”.

Como também acentua Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal, 13ªed., 2002, pág.528, “cada uma das normas tem o seu campo de aplicação específico: o periculum in moram, pressuposto da regulamentação daquela alínea c) do nº4 do artigo 174 é apenas aceitável no caso de haver lugar a detenção em flagrante delito, enquanto que como pressuposto do artigo 251º, basta a fuga iminente de um suspeito, o que não é recondutível ao conceito de flagrante delito(pode nem haver delito), ou que haja razões para crer que os revistados ocultam armas ou outros objetos com os quais possam praticar atos de violência.

No caso deste artigo 251º, trata-se de uma nítida medida cautelar, de uma actividade típica de polícia, visando evitar a perda de um meio de prova que poderá desaparecer se não forem tomadas cautelas imediatas por parecer iminente a fuga de um suspeito ou por existir fundada razão de que o lugar onde ele se encontra oculta objetos relacionados com o crime, suscetíveis de servir de prova, e que de outra forma poderiam perder-se».

Por conseguinte, de acordo com o citado artigo 251º,nº1, al.a), para além dos casos previstos no artigo 174º,nº5, os órgãos de polícia criminal podem proceder, sem prévia autorização da autorização judiciária “à revista de suspeitos em caso de fuga iminente ou de detenção e às buscas no lugar em que se encontrarem, salvo tratando-se de busca domiciliária, sempre que tiverem fundada razão para crer que neles se ocultam objetos relacionados com o crime, suscetíveis de servirem a prova e que de outra forma poderiam perder-se”.

“São portanto medidas urgentes que importa adotar em face das circunstâncias do caso, com vista a evitar, nomeadamente, a perda das provas presumivelmente albergadas pelo objeto da busca e cuja execução eficaz é incompatível, por isso mesmo, com qualquer dilação, nomeadamente a condição de imposição de prévia autorização judicial” (Ac. do STJ de 4/1/2005, em que foi relator Pereira Madeira, disponível in dgsi.pt).

E, para estas medidas cautelares, nas quais se incluem as buscas e apreensões, os órgãos de polícia criminal têm competência originária, o que decorre do artigo 249º, nº1 e 2, do CPP.

Resta agora saber se in casu se encontravam preenchidos os pressupostos exigidos pelo artigo 251º, nº1, al.a) do CPP e justificativos para que a autoridade policial em apreço tivesse decidido proceder à busca e respetiva apreensão em apreço, sem prévia autorização judicial.

Tratando-se este dispositivo legal, como vimos referindo, de uma disposição processual de natureza eminentemente cautelar, voltada para situações de urgência em que a suspeita de existência de prova de um crime não se compadece com demoras, sob pena de desaparecerem, cremos que o seu âmbito de aplicação basta-se com a suspeita, seja ela anterior ou concomitante à intervenção da autoridade judiciária, desde que suportada em fundamento razoável e que, pela natureza das coisas, nem sequer carece de ser isenta de toda a dúvida.

No caso vertente, após a denúncia anónima de que no terreno em apreço existiria uma plantação de plantas de canábis, só após a deslocação ao local e uma vez neste foi possível a confirmação de que tal plantação efetivamente existia e daí a necessidade de proceder de imediato às diligências em apreço, sob pena de a demora na sua realização pudesse levar à perda dos meios de prova. 

E, de facto, a realização da diligência probatória em apreço, no momento em que ocorreu, permitiu recolher elementos de prova de que o suspeito se dedicava à atividade de tráfico, elementos probatórios esses que poderiam ter-se perdido, caso a autoridade policial não tivesse optado por atuar de imediato nos termos em que atuou, ou seja, procedendo à busca e apreensão sem prévia autorização da autoridade judiciária.

A diligência tinha de ser efetuada, como foi, logo que confirmada a plantação no terreno em questão e a sua ligação ao suspeito.

A lei permite-o e o bom senso sempre exigiria.

Por conseguinte, verificando-se os pressupostos do citado artigo 251º,nº1,a) e tendo  sido também dado cumprimento ao disposto no artigo 178, nº6, do CPP, conforme despacho proferido no dia 30/9/2020 pelo Ministério Público, não vislumbramos, por aqui, que a busca ao terreno em causa enferma do vício invocado.      

Mas será que tal diligência se encontra inquinada pelo facto de ao arguido não ter sido nomeado um defensor e um intérprete?

Será que existia tal obrigatoriedade?

Adiantando a nossa conclusão, cremos que não, conforme entendimento que já perfilhamos num acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães,  prolatado pela ora relatora, no âmbito do processo nº234/19.4JELSB.

Como aí referimos, parece-nos até que seria impraticável a investigação criminal se o OPC perante o circunstancialismo em que atuou tivesse de pedir a nomeação de defensor e intérprete.

A realidade é incontornável e há momentos irrepetíveis se o OPC não age no momento apropriado.

Estatui o artigo 64º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Penal que, é obrigatória a assistência de defensor “Em qualquer ato processual, à exceção da constituição de arguido, sempre que o arguido for cego, surdo, mudo, analfabeto, desconhecedor da língua portuguesa, menor de 21 anos, ou se suscitar a questão da sua inimputabilidade ou da sua imputabilidade diminuída.”.

Por sua vez, resulta do artigo 92º, nº 2, do Código de Processo Penal, que “Quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao acto ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada.”.

A falta de defensor, quando ela é obrigatória, gera nulidade insanável, nos termos do estatuído no artigo 119º, alínea c), do Código de Processo Penal e a falta de nomeação de intérprete é sancionada como nulidade dependente de arguição, ou seja, sanável, como preceituado no artigo 120º, nº 2, alínea c), do mesmo diploma legal.

Percorridas as normas processuais penais que disciplinam as formalidades das buscas não vislumbramos nas mesmas a exigência de assistência de defensor, nem de intérprete.

Também no que que respeita ao preceituado nos citados artigos 64º e 92º, o primeiro invocado pelo recorrente, não retiramos também dos mesmos a obrigatoriedade de tal assistência.

Começando pela assistência de defensor, tal obrigatoriedade, à luz do citado preceito legal, mostra-se afastada, desde logo, pelo simples facto de a busca não configurar qualquer ato processual.

Como se referiu no Ac. da Relação do Porto, de 23/10/2019, proferido no âmbito do processo 38/19.4PAMAI, que a aqui seguimos:

      “Uma busca domiciliária não configura um ato processual, tanto mais que a lei processual penal é clara ao admitir as diligências de revista e busca efetuadas por órgão de polícia criminal, enquanto medidas cautelares urgentes admitidas no artigo 251.º, n.º 1, alínea a) do Código Processo Penal, que permite a realização de revistas de suspeitos e buscas nos locais onde se encontrem, mesmo antes da abertura do inquérito, sem estarem autorizadas ou ordenadas pela autoridade competente, quando seja iminente a fuga e haja fundada razão para crer que neles se ocultam objetos relacionados com o crime ou suscetíveis de servirem de prova e que de outra forma poderiam perder-se. Podendo ter lugar antes mesmo de ser aberto um inquérito, tal exclui a sua natureza de ato processual que, por definição, pressupõe um processo.

Não tendo a busca a natureza de “ato processual”, tal conclusão torna inaplicável a exigência de assistência por defensor no decurso da realização de uma busca domiciliária, por não se verificar o pressuposto enunciado “ab initio” na alínea d) do nº 1 do artigo 64º do Código de Processo Penal.

A lei processual penal apenas prevê a possibilidade de nomeação de defensor ao arguido, a pedido do tribunal ou do arguido (artigo 64º, nº 2, do Código de Processo Penal), sempre que as conveniências do caso revelarem a necessidade ou a conveniência do arguido ser assistido - o que não sucedeu no caso em apreço”.

Também quanto à obrigatoriedade de assistência de intérprete, entendemos não assistir qualquer razão ao recorrente.

Trazendo novamente à liça o acórdão citado, cujos argumentos neste particular também sufragamos, nele se escreveu a respeito da diligência da busca que “não configurando a busca domiciliária um ato processual “qua tale” e não existindo intervenção processual do arguido no decurso da realização da busca domiciliária efetuada por iniciativa de órgão de polícia criminal, sem necessidade consentimento do visado, também não existe a exigência de nomeação de intérprete a arguido estrangeiro que não domine a língua portuguesa nessa diligência, por não se verificar o pressuposto enunciado “ab initio” no nº 2 do artigo 92º, ainda do mesmo Código.

Interessa também recordar que esse artigo diz respeito à língua utilizada nos “atos processuais”. A nomeação de intérprete só se justifica quando um ato processual implica comunicação verbal ou escrita com um suspeito ou arguido que não domine a língua nacional e, por isso mesmo, deverá compreender o que lhe está a ser transmitido.

Não havendo lugar a qualquer intervenção processual do arguido recorrente no decurso da efetivação da busca, percebe-se, imediatamente, a razão pela qual a lei processual penal não exige a presença de defensor, nem de intérprete, podendo o arguido exercer o contraditório em relação à efetivação da busca, já assistido por defensor e intérprete, no decurso do primeiro interrogatório judicial (…)”.

No mesmo sentido se pronunciou o Ac. da Relação de Lisboa, de 15/6/2021, no âmbito do proc.5/19.8ZCLSB-C.L1-9, disponível in dgsi.pt.

Por conseguinte, concluindo-se que a lei processual penal não exige a assistência de defensor e de intérprete a arguido estrangeiro que não domine a língua portuguesa no decurso de busca realizada por iniciativa de órgão de polícia criminal, nos termos previstos no respetivo quadro legal, improcede, por aqui, a invocada nulidade de tal diligência, bem como de todos os meios probatórios obtidos na sequência da mesma.

      Vejamos agora se os atos de detenção, constituição de arguido e prestação de TIR estão feridos nulidade, como alega o recorrente.

Ora, o que está em causa no direito à nomeação de intérprete e no direito à tradução é o direito a compreender o processo e o direito a neste ser compreendido, visando observar a exigência constitucional do processo equitativo, consagrado no art. 20º, nº 4 da Lei Fundamental é, deste modo, assegurar o efetivo direito de defesa (cfr. Tiago Caiado Milheiro, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, obra colectiva, Tomo I, 2021, Almedina, pág. 1000 e seguintes).

Pese embora o acento tónico se coloque nas garantias de defesa do arguido, os direitos à nomeação de intérprete e à tradução têm um campo mais vasto de aplicação. Com efeito, também outros sujeitos processuais, v.g., assistente, vítima, demandante civil, são titulares destes direitos, para exercerem eficazmente os seus interesses processuais, o mesmo sucedendo com os intervenientes processuais, v.g., testemunha, perito, na perspectiva de entenderem o que é perguntado e/ou é respondido (cfr. aut., op. e loc., citados).

Contudo, a lei não impõe, para a efetivação destes direitos, que todo o processo seja traduzido, mas apenas os atos em que tenha que intervir cidadão que não domine a língua portuguesa, tais como, interrogatórios, depoimentos, audiência, sendo certo que, quando se trata do arguido, o direito a intérprete terá lugar em todas as diligências em que tenha que estar presente, e o direito a tradução, quanto a documentos escritos, terá lugar quanto aos documentos essenciais ao exercício do direito de defesa (cfr. aut., op. e loc., citados e Henriques Gaspar, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 320 e seguintes).

No caso vertente, tendo em conta o circunstancialismo que já trouxemos à liça, a constituição do arguido e a prestação de TIR ocorreram na sequência da detenção do arguido, por estar na posse de substância suspeita de ser estupefaciente e de existirem fundadas suspeitas da prática de ilícito criminal, detenção que veio a ser validada pelo Ministério Público e no decurso da qual a lei não exige a presença de defensor, nem de intérprete.

No que tange ao primeiro ato, o arguido foi constituído como tal mediante a comunicação ao mesmo dos direitos e deveres que lhe assistem, através de documento que lhe foi entregue, redigido em língua inglesa, ainda que se tenha recusado a assiná-lo (fls.27/28), língua essa que certamente escolheu no momento na prática do referido ato, e pela qual veio também a optar quando instado pelo tribunal, no dia da leitura da sentença, sobre se preferia a sua tradução em língua alemã ou inglesa.

Para este ato de constituição de arguido, a lei exceciona expressamente a obrigatoriedade de defensor (al.d), do artigo 64º, do CPP), não tendo também de estar necessariamente presente tradutor/intérprete, se ao arguido forem comunicados os direito e deveres que decorrem desse estatuto, por escrito redigido na sua língua materna ou outra que entenda e pela qual opte (como foi o caso). O que realmente importa é que o arguido compreenda os direitos e deveres que lhe advêm com o estatuto que passou a ter, para o que o documento em língua inglesa a que se aludiu se mostra suficiente.

O mesmo acontece relativamente ao Termo de Identidade e Residência que foi prestado na mesma ocasião, através de documento que lhe foi também entregue, redigido em língua inglesa (fls.31/32).

E compulsados os autos a partir do mencionado dia 29/9 (no qual acabou por ser libertado e mandado comparecer no tribunal no dia 30, pelas 10 horas), não vislumbramos que o arguido, em momento algum, não tenha compreendido quais os direitos e deveres que lhe advieram de tais atos. Atente-se que o arguido logo no dia 30 constituiu mandatário, tendo feito chegar aos autos, através deste, um requerimento, no qual dando conta da impossibilidade de comparência no tribunal, em virtude de prévio agendamento de consulta por videochamada de planeamento neonatal para esse dia, pelas 11 horas, conforme e-mail que juntou (dirigido à sua companheira e redigido em língua inglesa), requereu prazo para defesa e novo agendamento de interrogatório, o que lhe foi deferido.

Em suma, sem necessidade de outras considerações, porquanto despiciendas, não vislumbramos, pois, quaisquer nulidades em tais atos, os quais não violaram quaisquer preceitos processuais penais ou constitucionais, estando também em conformidade com as diretivas da União Europeia trazidas à liça pelo recorrente.

- Não verificação dos pressupostos do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p.e p. pelo artigo 25º, al. a), do DL15/93, de 22/1.

Pugna o recorrente pela sua absolvição do crime pelo qual foi condenado, por não se verificarem os elementos objetivos e subjetivos do tipo.

Defende o mesmo que  a  decisão do tribunal “a quo” é claramente contraditória, pois, por um lado, concluiu que não se provou a venda e/ou cedência a terceiros e que o arguido destinava o produto a fins medicinais (óleos e cremes), e, por outro, concluiu que não resultou dos autos que se destinasse ao seu consumo exclusivo.

Compulsada a sentença recorrida evola da mesma a respeito do enquadramento jurídico-penal da conduta do ora recorrente, o seguinte:

“(…)

Dispõe o artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro que “quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos”.

O bem jurídico protegido pela norma incriminadora é a saúde pública, no seu sentido mais amplo, nas suas componentes física e mental, de modo a garantir um desenvolvimento são, seguro e livre dos cidadãos e da sociedade. Na verdade, trata-se de um ilícito criminal capaz de ofender múltiplos bens jurídicos, como sejam a vida, a integridade física, a liberdade de determinação, o próprio património e a vida em sociedade (v. neste sentido, Fernando Gama Lobo, Droga, Notas-Doutrina-Jurisprudência-Legislação conexa, 2.ª edição, Almedina, pág. 56).

Trata-se de um crime de perigo abstracto, pelo que não exige para a consumação do crime que a actividade ilícita produza um concreto resultado danoso, bastando que essa actividade constitua potencial para atingir o bem jurídico protegido.

São elementos objectivos do tipo de crime de tráfico de estupefaciente:

i) a verificação da prática não autorizada de qualquer das actividades descritas no preceito legal, a saber: o cultivo, produção, fabrico, extracção, preparação, oferta, colocação à venda, venda, distribuição, compra, cedência, recepção, oferta/cedência a outrem, transporte, importação, exportação, trânsito ou detenção de plantas, substâncias ou preparações previstas nas tabelas I a III;

ii) a não verificação de actividade de cultivo, aquisição ou detenção, com finalidade de consumo próprio exclusivo, nos termos previstos no artigo 40.º;

iii) a verificação da existência de plantas, substâncias ou preparações, compreendidas nas tabelas anexas I, II, III.

As condutas descritas no tipo desdobram-se em hipóteses alternativas, pelo que basta o preenchimento de qualquer uma dela para preencher objectivamente o tipo legal, sendo certo que quanto mais modalidades de acção preencher o agente, mais elevado será o seu grau de culpa.

De relevar, nesta sede, a atitude interna do agente, ou seja, o seu propósito ou fim a que se destinava o produto, atento o elemento negativo do tipo – “fora dos casos previstos no artigo 40.º”, pelo que existindo prova de qualquer outra actividade típica, que não cultivo, aquisição ou detenção para consumo exclusivo do agente, imediatamente fica excluído o consumo, caindo-se no tráfico.

É por referência ao artigo matricial – artigo 21.º - que deve ser entendido o artigo 25.º, alínea a) do mesmo diploma, o qual sob a epígrafe “Tráfico de menor gravidade”, enuncia os elementos que operam uma desqualificação ou privilegiamento daquele crime em função de uma menor gravidade do facto.

Com efeito, estabelece o referido preceito que:

Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as  circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:

a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparaçõescompreendidas nas tabelas I a III, V e VI;

b) Prisão até 2 anos ou multa até 240 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.

Na distinção entre o âmbito de aplicação de ambos os tipos incriminatórios, haverá que ter em conta que:

“I. O privilegiamento do crime do artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, epigrafado de tráfico de menor gravidade, não resulta de um concreto elemento típico que acresça à descrição do tipo fundamental do artigo 21.º do mesmo diploma, mas sim de uma avaliação global da situação de facto que permita fundamentar um juízo de ilicitude mitigada.

II. Assumem particular relevo na identificação de uma situação de menor gravidade: a quantidade e a qualidade dos estupefacientes, a dimensão dos lucros obtidos e a sua influência no modo de vida de agente, o grau de adesão a essa actividade como modo de vida, a afectação ou não de parte dos lucros ao financiamento do consumo pessoal de drogas, a duração e a intensidade da actividade desenvolvida, o número de consumidores contactados, a extensão geográfica da actividade do agente, a sua posição no circuito de distribuição dos estupefacientes, o modo de execução do tráfico, nomeadamente se praticado isoladamente ou antes com colaboradores dependentes e pagos pelo agente” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.09.2014, Processo n.º 56/13.6PFEVER.E1.-S1).

O elemento típico subjectivo exigível é o dolo genérico (directo, necessário ou eventual – artigo 14.º do Código Penal). Deste modo, exige-se que o agente actue com vontade de desenvolver sem autorização legal e sem ser para consumo próprio e exclusivo, as actividade descritas no tipo e a representação e o conhecimento por parte do agente da natureza e características estupefacientes do produto objecto da acção e uma actuação deliberada, livre e consciente da proibição da sua conduta.

O tipo não prevê qualquer elemento subjectivo específico, como seja a intenção lucrativa.

Por sua vez, sob a epígrafe “Consumo”, o artigo 40.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 15/93, de 22/01, preceitua:

1 - Quem consumir ou, para o seu consumo, cultivar, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias.

2 - Se a quantidade de plantas, substâncias ou preparações cultivada, detida ou adquirida pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 3 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias.

Com a incriminação prevista no artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01 pretendeu o legislador acautelar interesses colectivos e individuais e, em primeira linha, o bem jurídico da saúde pública, procurando protegê-la do perigo da circulação de estupefacientes.

Ora, o referido artigo encontra-se revogado, por força do artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29.11, que consagrou o Regime Jurídico Aplicável ao Consumo de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, excepto quanto ao cultivo, tendo o consumo passado a ser punido enquanto ilícito contra-ordenacional.

No entanto, paralelamente, resulta do disposto no artigo 2.º, n.º 2, do mesmo diploma legal que a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.

Deste modo, a questão levanta-se quando se detecta ao arguido uma quantidade superior a 10 dias de dose média individual.

O Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 8/2008, de 25.06.2008 veio dar resposta a esta questão, uniformizando jurisprudência nos seguintes termos :

            “Não obstante a derrogação operada pelo artigo 28.º da Lei n.º 30/2000 de 29-11, o 40º-2 do DL 15/93, de 22-01 manteve-se em vigor não só quanto ao cultivo como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.

A este propósito refere Fernando Gama Lobo que: “Aceitou-se no acórdão que o consumo é um vício e o consumidor é um doente. Só que, quando o doente tem droga superior ao necessário para mais de 10 dias de consumo, constitui um perigo a combater e transforma-se num agente de um crime (in Droga, pág. 223).

Assim, o artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro pune o consumo, cultivo, a aquisição e a detenção de droga para fins de consumo. Assim, a distinção entre o consumo e o tráfico assenta no destino que o agente dá ao produto.

A norma exige, para a sua correcta aplicação, uma determinação da quantidade da droga necessária para o consumo diário individual, pois que apenas se pune como crime o agente que detenha quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.

Nesta sede, importa ter presente que o Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, estabeleceu, no artigo 71.º, n.º 1, al. c) que: “os Ministros da Justiça e da Saúde, ouvido o Conselho Superior de Medicina Legal, determinam, mediante portaria, os limites quantitativos máximo do princípio activo para cada dose média individual diária das substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV, de consumo mais frequente”.

O n.º 3 do mesmo preceito refere que “o valor probatório dos exames periciais e dos limites referidos no n.º 1 é apreciado nos termos do artigo 163.º do Código de Processo Penal”.

Por sua vez, a Portaria n.º 94/96, de 26.03 estipulou, no seu artigo 9.º, que “os limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro,  de consumo mais frequente, são os referidos no mapa anexo à presente portaria, da qual faz parte integrante”.

A jurisprudência tem sufragado o entendimento de que tais valores são meramente indicativos, isto é, não são de aplicação automática, podendo o Tribunal afastar a sua aplicação, desde que essa desaplicação seja devidamente fundamentada.

Também corrente, na doutrina e na jurisprudência, é o entendimento de que os limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária são definidos por referência ao princípio activo do produto estupefaciente em causa, havendo que acentuar a importância dos exames periciais que indicam a concentração do princípio activo, como sucede no caso em apreço.

Ora, na verdade, importa atentar ao especial valor da prova pericial, em que o juízo pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador, exigindo-se um especial dever de fundamentação caso o julgador divirja do juízo pericial (artigo 163.º, n.º 1 e n.º 2 do Código de Processo Penal).

Quanto ao elemento subjectivo, exige-se que o agente conheça as características e natureza da substância estupefaciente, que a destine para o seu consumo próprio não autorizado, sabendo que a sua conduta é punida criminalmente.

Volvendo ao caso em apreço.

- Quanto ao arguido AA

Ficou provado que em datas não apuradas, mas no decorrer dos anos de 2019 e 2020, o arguido AA plantou no terreno agrícola, sito em ... – ..., diversas plantas de cannabis.

Assim, no dia 29 de Setembro de 2020, pelas 12h00, no referido terreno agrícola pertencente ao arguido AA, mais concretamente, no quintal, aquele detinha 11 pés de plantas de cannabis, com vários tamanhos, no estado de verde, e no interior de um anexo parcialmente em ruínas, existente naquele terreno, foram ainda encontradas três mangas em rede, utilizadas para a secagem da cannabis, contendo no seu interior cerca de 740,00 gramas de sumidades floridas de cannabis (cabeços).

Ora, tais sumidades floridas de cannabis têm um peso líquido de 570,200 gramas, com percentagem de grau de pureza de THC 7,0 % e suficiente para 798 doses.

Ademais, ficou provado que o arguido utilizava as plantas identificadas, designadamente, para fins medicinais.

Contudo, o mesmo não detinha qualquer autorização para deter aquelas plantas na sua posse.

Ora, como a nossa jurisprudência teve oportunidade de se pronunciar:

“O cultivo de canábis sem a devida autorização é proibido.

O atraso na resposta da DGAV, ou os «entraves» colocados por tal entidade à concessão da autorização solicitada, não legitimam que se avance com o cultivo, caso em que se cometerá o crime de tráfico de substâncias estupefacientes, previsto no artigo 21.º, § 1.º da Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência à Tabela I-C anexa a tal diploma legal”. – Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 08.02.2022, Processo n.º 44/20.6T9TMR.E1.

Ademais, no dia 17 de Outubro de 2021, o arguido AA detinha na sua residência e terreno agrícola, entre o mais:

- Balde plástico contendo 11 sacos de sumidades floridas no seu interior (enterrado em caixa de cimento na garagem), com o peso total de 1199,3 gramas;

- uma caixa metálica de armazenamento de munições, contendo no seu interior 2 sacos com sumidades floridas de canábis com o peso total de 258,7 gramas.

Mostram-se, assim, preenchidos os elementos objectivos do tipo legal imputado ao arguido, posto que, mesmo que não se tenha provado a cedência ou venda a terceiros, ficou provado o cultivo e a detenção daquele produto estupefaciente pelo arguido.

De igual modo, encontra-se preenchido o elemento subjectivo, tendo o arguido actuado com dolo directo.

Com efeito, ficou provado que o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de cultivar, colher as folhas, secá-las e delas obter cannabis activa.

Ora, o arguido conhecia as características das referidas plantas cannabis, sabendo que o cultivo, a preparação, a detenção, oferta e venda das mesmas são proibidas por lei, não se abstendo, contudo, de as praticar.

Não resultou dos autos que o arguido cultivasse e detivesse as plantas cannabis para seu consumo exclusivo.

Posto isto, resta concluir que, atenta a matéria de facto que resultou provada, o arguido AA incorreu na prática de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º, al. a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, conjugado com o artigo 21º, n.º 1, com referência à Tabela I-C”.

Adiantando a nossa conclusão, temos para nós que não só inexiste a contradição invocada, como a sentença recorrida não merece qualquer reparo quanto ao enquadramento jurídico - penal a que procedeu.

Como resulta da factualidade provada, a qual não foi objeto de impugnação, “o arguido AA utilizava as plantas supra identificadas, designadamente, para fins medicinais”.

Dela não consta, nem do mencionado facto se pode extrair, que o arguido as utilizasse exclusivamente para o seu consumo, e daí que, por aqui, estava já votada ao fracasso um possível enquadramento à luz do artigo 40º, nº1 e 2, como ocorreu relativamente ao arguido BB.

A circunstância de o tribunal ter dado como não provada “a venda e cedência a terceiros” das sumidades de cannabis que lhe foram apreendidas, não afasta o enquadramento à luz do tráfico de menor gravidade, como parece defender o recorrente, pois, como saberá, a mera detenção, sem mais, de produto estupefaciente, integra a tipicidade objetiva do ilícito pelo qual o recorrente foi condenado.

De igual modo não afasta tal enquadramento, a circunstância de o tribunal não ter declarado perdida a favor do Estado a quantia em dinheiro apreendida ao ora recorrente, o que se deveu ao facto de o tribunal não ter estabelecido relação entre a mesma e a atividade de tráfico que logrou provar, a qual se traduziu na mera detenção das sumidades floridas de canábis. 

Por fim, no que tange à circunstância de na sentença recorrida não constar a percentagem do grau de pureza e o número de doses do produto estupefaciente que lhe foi apreendido no dia 17 de outubro de 2021 (11 sacos de sumidades floridas de canábis com o peso total de 1199, 3 gramas que se encontravam no interior de um balde plástico e dois sacos com sumidades floridas de canábis que se encontravam numa caixa metálica de armazenamento de munições, com o peso de 258,7gramas), também não vislumbramos como questionar  o enquadramento jurídico-penal a que procedeu o tribunal recorrido, atento o que a respeito do destino de tal produto estupefaciente e do que lhe havia sido apreendido no dia 29/9/2020  já consta da factualidade provada e não foi objeto de impugnação, ainda que reconheça que o tribunal deveria ter concretizado, em consonância com o resultado do exame pericial junto aos autos a fls. 1977, os respetivos  pesos líquidos, grau de pureza e número de doses, elementos que nele se encontram descriminados.

Em suma, mostrando verificados, em face da factualidade provada, os elementos objetivo e subjetivo do tipo legal de crime imputado ao arguido, improcede também neste segmento o recurso interposto pelo arguido.

III. Dispositivo

           

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 4ªsecção penal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a quatro unidades de conta (arts. 513º, nº1 do C.P.P. e 8º, nº9, do Regulamento das custas Processuais e Tabela III, anexa a este último diploma).

(Texto elaborado pela relatora e revisto pelos signatários – art.94º, nº2, do C.P.P.)