DIFAMAÇÃO AGRAVADA
CONFIGURAÇÃO DA QUEIXA
LEGITIMIDADE DO ASSISTENTE
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
Sumário

I – Independentemente de como no momento da queixa o tenha configurado, a determinação da forma simples ou agravada do crime pelo assistente ulteriormente imputado ao arguido na acusação particular, há-de fazer-se em função dos factos nesta narrados.
II – Se do que se trata é de a um professor universitário fazer falsa imputação de plágio, supostamente manifestado na sua tese de doutoramento e com vista a que seja tido negativamente em conta no concurso dele a certo cargo académico, isto é, por causa das respectivas funções e no exercício delas, não cabe duvidar de que está em causa a forma agravada do crime de difamação, p. e p. pelos art. 180.º/1, 184.º, e 132.º/2-l, do CP, crime pelo qual o procedimento, nos termos do art. 188.º/1-a, também do CP, não depende de acusação particular, reclamando somente queixa, e sendo por isso semipúblico.
III – E se assim com os factos narrados se configura o crime agravado, aliás e por isso em tal acusação explicitamente referido como o imputado, então, na medida em que nessa forma agravada assume aquela natureza semipública e por ele o MP não deduzira acusação pública, falece ao assistente legitimidade para autonomamente deduzir acusação particular, o que, nos termos dos art. 50.º/1, e 285.º/1, do CPP, só por crimes particulares poderia fazer – e por conseguinte, sendo ainda assim deduzida, deve essa acusação ser rejeitada.
IV – Discordando da decisão do MP de arquivar o inquérito pelo crime agravado e nessa conformidade semipúblico, o assistente poderia ter requerido intervenção hierárquica ou abertura de instrução, sem o que aquela se consolida, assumindo uma especial firmeza de caso decidido (art. 279.º/1, e 449.º/2, do CPP).
V – E em todo o caso, o que o assistente não pode é, em face daquele arquivamento, deduzir autónoma acusação particular pelo dito crime semipúblico, certamente não lhe aproveitando, contra a rejeição dela por ilegitimidade, louvar-se de subjectivamente ter sentido ofendida apenas a honra pessoal e não a funcional para, com isso, por seu alvedrio e até contra a qualificação que ele próprio ali fizera, degradá-la afinal em acusação pelo crime simples – como se assim já lhe fosse lícito prevalecer-se do regime dos particulares para validar uma acusação que, a ser admitida a julgamento e na hipótese de os factos se provarem, sempre viria a concitar do juiz a qualificação devida.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

***


ACÓRDÃO


Acordam, em conferência, os juízes da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

1. No Juízo Local Criminal ... (J...), do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, foi a 13/10/2023 proferido despacho de rejeição da acusação particular que na sequência do arquivamento dos autos pelo Ministério Público (MP) em 24/03/2023 e nos termos do art. 277.º/3, do Código de Processo Penal (CPP), fora deduzida pelo assistente, AA, contra os arguidos BB e CC, fundando-se essa rejeição, com correlativo indeferimento do pedido cível a par dessa acusação deduzido, na assunção da ilegitimidade do assistente para, desacompanhado do MP, deduzir acusação por crimes semipúblicos, designadamente os imputados aos arguidos, de injúrias e de difamação, agravados nos termos do art. 184.º/1-a-b, e 132.º/2-f, do Código Penal (CP).

2. Inconformado, o assistente recorreu contra esse despacho, pugnando pela respectiva revogação (com os consequentes recebimento daquela acusação e prosseguimento do processo para julgamento), das motivações desse recurso extraindo a final as seguintes conclusões:

« I – O presente recurso foi interposto contra o despacho de 13/10/2023, que rejeitou a acusação particular deduzida pelo assistente por falta de legitimidade processual, uma vez que entendeu que o crime participado e que havia sido objecto de despacho de arquivamento teria uma natureza semipública e, portanto, perante o despacho de arquivamento haveria lugar à abertura de instrução e não há dedução de acusação particular.

II – Salvo o devido respeito, o aresto em recurso incorreu em erro de julgamento, podendo-se dizer que o tribunal a quo deu por assente o que estava por demonstrar e, sobretudo, não curou nem da existência de nexo funcional nem teve em consideração a qualificação jurídica que a vítima havia feito na sua participação, da qual resultava claramente que considerava tratar-se de uma ofensa simples à sua honra pessoal e que pretendia a perseguição penal dos arguidos pela prática dos crimes de difamação e injúrias simples.

III – Na verdade, o tribunal a quo interpretou o art. 184.º, do CP, no sentido de que sendo a vítima uma das pessoas referidas na al. j) do n.º 2 do art. 132.º,, do CP, a ofensa à honra é sempre um crime semipúblico, pelo que não tem legitimidade o assistente para deduzir acusação perante o arquivamento pelo MP.

IV – Contudo, essa não é seguramente a melhor interpretação da lei, uma vez que a especial qualidade da vítima não transforma necessariamente a difamação e a injúria num crime semipúblico, tudo dependendo de haver um nexo causal com as funções e da qualificação jurídica feita pela própria vítima/participante quanto à honra pessoal ou profissional que considera ter sido ofendida.

V – Com efeito, os art. 132.º e 184.º, do CP, apenas compreendem um catálogo de cargos ou funções que podem (sem que tal necessariamente ocorra, não passando de meras circunstâncias indiciadoras de um tipo de culpa agravado – neste sentido, Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, p. 41), conferir à vítima o privilégio de ver a honra acrescida de um valor funcional e que, portanto, só os actos que ataquem o estatuto funcional e “(…) essa honra acrescida ou densificada mereceriam uma maior punição (…)” e possuiriam uma natureza semipública (v., neste sentido, Faria Costa, e outros, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, pp. 652 e 654).

VI – Assim sendo, há que verificar, em primeiro lugar, como é que o participante qualificou o crime e se considerou a ofensa perpetrada pelos arguidos como atentatória do seu estatuto funcional ou, pelo contrário, se apenas a entendeu e qualificou como atentatória da sua honra pessoal enquanto pessoa e cidadão.

VII – Na verdade, se a vítima apenas participa por difamação simples por entender que apenas foi atingida na sua honra pessoal e já não no seu estatuto funcional, muito naturalmente não compete ao tribunal salvaguardar qualquer honra funcional que a vítima entendeu não ter sido ofendida, pelo que a legitimidade do assistente não se afere em abstracto, mas antes em função da concreta qualificação que efectuou e do crime pelo qual participou e quis que o arguido fosse perseguido criminalmente.

VIII – Neste mesmo sentido, recorde-se que ainda recentemente se escreveu em douto acórdão do Tribunal da relação e Guimarães que “(…) é necessário saber qual o tipo de crime que se queria imputar, para depois se verificar se, efectivamente, o assistente tinha legitimidade para tal (…)”, o que é o mesmo que dizer que para se curar da sua legitimidade “(…) deve ver-se qual o tipo por que o assistente pretendia acusar, independentemente de a acusação estar incorrectamente expressa” (v. Ac. TRG de 23/04/2018, proc. N.º 41/14.0TAMLG.G1).

IX – Consequentemente, e uma vez que a participação efectuada pelo ora recorrente era bem clara no sentido de que pretendia que os arguidos fossem perseguidos criminalmente pelos crimes de difamação e injúrias simples – como até o deixou bem claro no final da sua participação, onde até requereu de imediato a sua constituição por os crimes serem particulares –, é notório que se estava perante um crime particular e que a reacção contra o despacho de arquivamento passava pela dedução de acusação particular e não pela abertura de instrução.

X – Por isso mesmo, deveria o tribunal a quo ter interpretado o art. 184.º, do CP, no sentido de que a agravação ali prevista só opera se e quando o participante entende que o seu estatuto funcional foi objecto de uma ofensa e reclama tutela acrescida para a honra inerente a esse mesmo estatuto, mal tendo andado ao considerar que só pelo facto de ser detentor de uma categoria elencada na al. j) do n.º 2 do art. 132.º, se estava necessariamente perante um crime semipúblico e, consequentemente, perante uma situação de falta de legitimidade do assistente.

XI – Assim sendo, não só o aresto em recurso qualificou erradamente a natureza do crime, como violou a qualificação jurídica efectuada pelo participante era de um crime de difamação e injúrias simples e, como tal, estava em causa um crime particular para o qual o assistente tinha direito de deduzir acusação particular.

XII – O erro de julgamento em que incorreu o aresto em recurso decorre ainda do facto de a agravação decorrente do art. 184.º, do CP, pressupor que a vítima estivesse no exercício das suas funções ou a ofensa sobre ela praticada estivesse relacionada com o exercício das funções profissionais, o que seguramente não sucedeu no caso sub judice, uma vez que o assistente nem sequer é membro do Conselho Científico, onde ocorreu a difamação.

XIII – Para além disso, também é inegável que a dita ofensa de que foi vítima nada tem a ver com o exercício das suas funções de docente universitário, até por em causa estar uma eleição num órgão que enquanto professor nem sequer integra.  

XIV – Por isso mesmo, também não estavam preenchidos os pressupostos de que o art. 184.º, do CP, faz depender a agravação do crime, pelo que é notório o erro de julgamento em que incorreu o tribunal a quo, ao considerar que o crime participado tinha uma natureza semipública e que, como tal, o assistente não tinha legitimidade. »

3. Admitido o recurso, responderam-lhe tanto os arguidos quanto o MP, em ambos os casos pugnando por que lhe seja negado provimento, com a consequente manutenção da integral da decisão recorrida. Em síntese (nossa), e respectivamente, argumentam como segue:

3.1. Da resposta dos arguidos:

I – Os alegados crimes em causa revestem natureza semipública, sendo o assistente docente e funcionário público e tendo os factos pertinentes sido praticados por causa dessas funções.

II – E nessa medida, em face do arquivamento pelo MP, o assistente poderia ter porventura requerido intervenção hierárquica ou abertura de instrução, mas falecer-lhe-ia legitimidade para dedução de acusação particular.

3.2. Da resposta do MP

I – Sendo indubitável o preenchimento da previsão do art. 132.º/2-l, do CP, e assim por terem natureza semipública, não tinha o assistente legitimidade para deduzir contra os arguidos acusação particular pelos imputados crimes.

II – Além disso, não tendo em face do arquivamento do inquérito pelo MP requerido intervenção hierárquica nem abertura de instrução, a decisão de arquivar tornou-se definitiva, pelo que a acusação particular pelos factos correspondentes violaria o princípio ne bis in idem.

4. Subidos os autos, o Sr. procurador-geral adjunto emitiu parecer em que, acompanhando e desenvolvendo os argumentos das respostas do MP e dos arguidos ao recurso, de igual modo e nos mesmos termos conclui pela improcedência respectiva, com manutenção do decidido, após o que, cumprido o disposto no art. 417.º/2, do CPP, nada mais se acrescentou e, na sequência de exame preliminar a que se não revelaram dúvidas relevantes, e sem outras vicissitudes, colheram-se os vistos e foram os autos à conferência.

II – Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

1.1. O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, sendo assim a matéria neste caso relevante exclusivamente de direito e, muito em concreto, determinar se com efeito a rejeição da acusação particular do assistente foi indevida, em razão de contrariamente ao nele pressuposto os crimes imputados terem natureza particular, nesse plano tendo a decisão em crise incorrido em erro de qualificação jurídica dos factos acusados.

1.2. No mais, não sendo a decisão recorrida uma tal que conheça a final do objecto do processo, nos termos do art. 97.º/1-a, do CPP, e nem tido sido requerida audiência, sempre o recurso deveria ser julgado em conferência (art. 419.º/3-b-c, do CPP), como foi.   

2. A decisão recorrida e o seu contexto processual

A) Da participação/queixa

Em 16/06/2021, o recorrente apresentou participação em que, imputando aos arguidos o terem contra si lançado suspeitas de plágio, ponderadas no decurso de acto académico em que se decidiria um concurso de provimento como regente de certa cadeira a que era candidato, e que entendia lesivas da sua honra, requeria a final a instauração do correspondente processo criminal contra ambos, manifestando então o entendimento de tratar-se dos crimes de difamação e injúria, p. e p. respectivamente, pelos art. 180.º e 181.º, do CP, e a essa luz e expressamente os perspectivando como crimes particulares, logo requerendo a sua constituição como assistente (cfr. doc. 6537865, de 16/06/2021).

B) Do despacho de arquivamento do inquérito

No culminar do inquérito assim instaurado, e em 24/03/2023, foi pela magistrada do MP proferido despacho em que, contextuando os factos imputados no referido acto académico e com a qualidade profissional do recorrente, professor candidato no procedimento que ali se apreciaria, encarava a susceptibilidade de com eles ser integrada a comissão, pelos arguidos, de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos art. 180.º/1 e 184.º, do CP, a final concluía não se mostrar suficientemente indiciada a respectiva prática, e em consequência e nos termos do art. 277.º/2, do CPP, determinou a o arquivamento dos autos (cfr. doc. ref. 89953078, de 24/03/2023).

C) Da acusação particular

Em 26/05/2023, o recorrente deduziu contra os arguidos acusação particular, acompanhada de pedido de indemnização cível, naquela e não obstante mais desenvolvidos termos lhes imputando essencialmente a mesma factualidade referida na participação, mas desta feita a final concluindo que com ela teriam sido por aqueles cometidos, devendo por isso ser condenados, “um crime de difamação e um crime de injúria, nos termos agravados das als. a) e b) do n.º 1 do art. 184.º, e da al. l) do n.º 2 do art. 132º, do CP” (cfr. doc. ref. 8098688, de 26/05/2023).

D) A decisão recorrida

Sobre essa decisão incidiu por fim o despacho agora sob recurso, com o seguinte teor (cfr. doc. ref. 92306919, de 13/10/2023):

« (…)

O assistente, AA, deduziu acusação particular contra os arguidos BB, e CC, melhor identificados nos autos, imputando-lhe a prática de um crime de difamação e de um crime de injúria agravados, p. e p., pelos artigos “184º, n.º 1, als. a) e b), e 132.º, n.º 2, al. f), do Código Penal”.

Mais deduziu o assistente contra os arguidos pedido de indemnização civil, pedindo a condenação dos mesmos a pagarem-lhe a quantia de € 2.000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais por si sofridos.

Dispõe o art. 311.º/1, do CPP, que “recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer”.

A legitimidade para o exercício da acção penal, enquanto pressuposto processual, constitui uma condição de procedibilidade e da sua verificação ou existência depende a possibilidade de conhecimento do mérito ou fundo da causa.

No nosso sistema processual penal, a titularidade da acção penal, condicionada ou não à prévia dedução de queixa, pertence ao MP, como decorre dos art. 219.º/1, da Constituição da República Portuguesa [CR], e 48.º, do CPP.

Dispõe o art. 48.º, do CPP, o MP tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos art. 49.º a 52.º.

Exige o art. 49.º daquele diploma que, quando o procedimento criminal depender de queixa do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao MP para que este promova o processo.

Assim, não havendo queixa, o MP não pode promover o processo, logo não pode investigar nem deduzir qualquer acusação por lhe faltar legitimidade processual para o fazer.

De igual modo, nos termos do art. 50.º/1, do CPP, quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular.

Ou seja, também aqui, a legitimidade processual do MP está dependente da verificação destes requisitos.

Nos termos do n.º 2 do art. 50.º, o MP procede oficiosamente a quaisquer diligências que julgar indispensáveis à descoberta da verdade e couberem na sua competência, participa em todos os actos processuais em que intervier a acusação particular, acusa conjuntamente com esta e recorre autonomamente das decisões judiciais.

Com a aquisição da notícia do crime, abre-se o inquérito, no qual se investiga a existência de um ou mais crimes, se pretende determinar os seus agentes e a responsabilidade deles, bem como recolher e descobrir as provas, com vista a uma acusação. No seu final, o MP tem de decidir se tem elementos para acusar, ou não. Se tiver, deduz acusação (art. 283.º, do CPP). Caso contrário, lavra despacho de arquivamento (art. 277.º). Tal como se refere no art. 276.º/1, “o MP encerra o inquérito, arquivando-o ou deduzindo acusação (…)”.

Apenas quando o procedimento criminal depender de acusação particular do ofendido ou de outras pessoas, será a acusação deduzida por estes – art. 50.º/1, e 285.º/1, do CPP.

Temos, assim, que nos processos em que estão em causa crimes de natureza pública ou semipública, estes com a respectiva apresentação de queixa, depois de realizadas as diligências de prova, o MP deduz acusação se se verificarem os pressupostos do art. 283º, do CPP, ou deduz despacho de arquivamento se se verificarem os pressupostos do art. 277º, do CPP.

Se o MP proferir despacho de arquivamento, o assistente pode requer a abertura da instrução – art. 287.º/1-b, do CPP, assistindo ainda ao assistente ou denunciante com a faculdade de se constituir assistente, nos casos em que não seja requerida a abertura de instrução, suscitar a intervenção hierárquica, para que seja formulada pelo MP acusação ou que as investigações prossigam (cfr. art. 278.º, do CPP).

Nos processos em que estão em causa crimes de natureza particular, o MP notifica o assistente para que este deduza em dez dias, querendo, acusação particular – art. 285.º/1, do CPP, indicando, nesta notificação, se foram recolhidos indícios suficientes da verificação do crime e de quem foram os seus agentes – n.º 2 do mesmo preceito.

Da conjugação destes normativos podemos concluir que, se no que concerne aos crimes particulares a lei comete aos titulares dos interesses que a lei quis especialmente proteger com a incriminação a legitimidade para o exercício da acção penal, acompanhados ou desacompanhados do MP, já quanto aos chamados crimes semipúblicos (e públicos), tal não sucede.

Nos crimes semipúblicos e públicos, pela própria natureza dos interesses em presença, a legitimidade para deduzir acusação pertence apenas e exclusivamente ao MP (salvaguardando evidentemente, a faculdade conferida ao assistente pelo art. 284.º/1, do CPP).

Revertendo as precedentes considerações ao caso dos autos, temos que, findo o inquérito, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento contra os arguidos BB, e CC, nos termos do disposto no art. 277.º/3, do CPP, por ter concluído não se mostrar suficientemente indiciada a prática pelos mesmos de um crime de difamação, p. e p. [pelos art.] 180.º/1 e 184.º, do CP.

Notificado que foi do despacho de arquivamento, deduziu o assistente a acusação particular acima referida, na qual plasma factos que considera integrarem a prática pelos arguidos de crime de difamação e injúria agravados, nos termos das disposições conjugadas dos art. 180.º/1, 181º, 184.º, e 132.º/2-l, do CP.

Sucede, porém, que tais crimes revestem natureza semipública, e não particular.

Com efeito, tanto o crime de difamação – art. 180.º/1, do CP – como o de injúria – art. 181.º, do CP – são agravados se a vítima for uma das pessoas elencadas no art. 132.º/2-l, do CP, no exercício das suas funções ou por causa delas, tal como decorre do art. 184.º, do CP.

Ora, de harmonia com o disposto no art. 188.º, do CP, “o procedimento criminal pelos crimes previstos no presente capítulo [dos crimes contra a honra] depende de acusação particular”, ressalvando-se, porém, duas excepções, entre as quais os casos previstos no art. 184.º (difamação ou injúria agravada pela qualidade do agente), em que o procedimento criminal revestirá natureza semipública.

Conclui-se, pois, pela falta de legitimidade do assistente para dedução de acusação particular, uma vez que, revestindo aqueles crimes natureza semipública, apenas o MP estaria investido com legitimidade para prosseguir com a acção penal relativamente aos factos descritos na acusação particular, o que não sucedeu in casu. Pelo contrário, foi proferido despacho de arquivamento pelo MP nos termos do disposto no art. 277.º/3, do CPP, por ter concluído não se mostrar suficientemente indiciada a prática pelos arguidos do crime de difamação, p. e p. [pelos art.] 180.º/1, e 184.º, do CP.

Perante tal despacho de arquivamento, e com ele não concordando, poderia o assistente reagir, requerendo a abertura da instrução (art. 287.º/1-b, do CPP), ou suscitando a intervenção hierárquica, para que fosse formulada pelo MP acusação ou que as investigações prosseguissem (cfr. art. 278.º, do CPP), como aliás para tanto foi notificado, o que não fez.

E não o tendo, feito, não pode deduzir acusação particular pelos crimes semipúblicos que imputa aos arguidos, por falta de legitimidade processual para tanto.

Conclui-se, pois, pela falta de legitimidade do assistente para dedução de acusação particular, pelo que se impõe a sua rejeição.

Quanto ao pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente contra os arguidos, ante o disposto no art. 74.º, do CPP, e uma vez que acusação do assistente terá de ser rejeitada por falta de legitimidade para acusar, não poderá tal pedido prosseguir, dado que ao pedido de indemnização civil, subjaz, necessariamente, a existência de procedimento criminal pela atinente materialidade, não podendo existir na ausência desta.

Pelo exposto, e decidindo:

a) Por falta de legitimidade processual para acusar, rejeito a acusação particular deduzida pelo assistente.

b) Indefiro liminarmente o pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente contra os arguidos.

(…) »

3. Enfim apreciando

3.1. Começamos, retomando a sintética enunciação das questões em apreço que acima deixámos, por observar que não está aqui em causa saber se e em que condições, assim o entendendo, poderia o assistente, em face da decisão de arquivamento do inquérito, requerer a abertura de instrução (art. 286.º/1 e 287.º/1-b/3, do CPP). Nenhuma das hipóteses tendo sido a que com efeito seguiu, deduzindo isso sim acusação particular, o que directa e imediatamente importa é apurar se para tanto tinha legitimidade, problema este com que os da admissibilidade daquelas outras vias de reacção só reflexa ou indirectamente podem contender. E dirimi-lo passa, no contexto do referente normativo cabível, que é primacialmente o do art. 285.º/1, do CPP, por determinar se o c rime imputado é um tal pelo qual o procedimento dependa de acusação particular, uma vez que nos termos desse preceito, e da sua conjugação com o do art. 50.º/1, também do CPP, só nessa hipótese pode o assistente, fora das hipótese de acompanhamento da acusação pública (art. 284.º, do CPP), deduzir ele mesmo e autonomamente acusação por tais crimes (por que aliás e sem ela também não poderá o MP acusar – art. 285.º/4, do CPP). Além disso, digamo-lo igualmente desde já, a dita determinação sobre a natureza particular, semipública ou pública do crime em causa, há-de fazer-se, naturalmente, em face do que efectivamente é em concreto imputado, como bem sublinha o recorrente, cuja razão acaba todavia por aí, não podendo de modo nenhum acompanhar-se a respectiva argumentação nos passos em que por um lado reporta essa avaliação ao imputado na participação, e em que por outro parece postular que em todo o caso a mesma se contivesse nos limites da sua vontade de, chamemos-lhe assim, subimputação.

3.2. Desenvolvendo esta última observação, o que queremos realçar é que se a certos factos objectivamente corresponder a qualificação jurídico-penal de um crime agravado e, por isso, de natureza semipública, não é lícito ao lesado, constituído assistente, e sob invocação do que por si mesmo subjectivamente percepcionou ou sentiu, limitar a acusação à forma simples desse crime, de forma a prevalecer-se da correspondente natureza particular e, assim e por seu alvedrio, lançar mão da faculdade de dedução particular que no caso destes compete – o que, como mínimo, conduziria a um inaceitável condicionamento da liberdade de ulterior qualificação jurídica dos factos delimitadores do objecto do processo pelo próprio tribunal da hipotética instrução ou do julgamento (à margem e além dos art. 303.º/1/5, e 358.º/1/3, do CPP), ou, em a preservando, a uma não menos inaceitável “burla de etiquetas” com a qual se tivesse feito passar uma acusação particular por um crime afinal e em boa verdade semipúblico. Tosando um pouco as palavras: prefigurado um crime que a respectiva agravação torne semipúblico, nada directamente na lei consentiria ao assistente acusar apenas pela forma simples que lhe dê natureza particular, coisa aliás incompatível com a liberdade de qualificação jurídica pelo tribunal que, prevista naquelas normas sem outros limites além dos nelas definidos, em nada briga, posto que respeitados estes, com a estrutura acusatória do processo constitucionalmente imposta (art. 32.º/5, da CR). E assim, em se não se tratando de crime público, o procedimento e a ulterior submissão do arguido, por ele, a julgamento, dependerão meramente de queixa (crime semipúblico) ou em última análise também de acusação particular (crime particular), segundo a natureza que com efeito corresponder à sua precisa qualificação, e não àquela por que o próprio assistente entenda limitativamente optar.

3.3. Assente quanto antecede, cabe desenvolver agora a primeira das observações com que culminámos o precedente § 3.1. Aquele juízo, relativo à determinação do crime que os factos acusados na verdade preenchem, há-de incidir, uma vez que se trata de apurar da admissibilidade/necessidade, ou não, da acusação particular que cabe admitir ou rejeitar, sobre essa acusação com efeito deduzida, e não certamente sobre imputações, de factos e com qualificações jurídicas, que tivessem sido formuladas em fases anteriores do processo, antes de investigados os feitos e até mesmo logo na própria queixa/participação! O recorrente trilha este último caminho, o que se compreende à luz da constatação de que ali, na participação/queixa, se limitara a concluir que os factos importariam preenchimento, pelos arguidos, dos crimes simples de difamação e injúria (art. 180.º/1, e 181.º/1, do CP), de resto com expressa indicação de configurá-los como os crimes particulares que na verdade são (art. 188.º/1, do CP). Sucede, como dissemos, é que o relevante não é essa participação/queixa; saber se cabe a acusação particular passa por, isso sim, ponderar o que nesta mesma vem imputado, segundo salvo o devido respeito se nos antolha absolutamente óbvio, e em rectas contas e por isso insofismável. Pois bem, óbvio é como tem de igualmente adjectivar-se o resultado de um breve mas minucioso bosquejo pelo libelo acusatório: o que nele o recorrente imputa aos arguidos são factos que, a mais ali assim ele próprio os classificar, expressa e inequivocamente configurando com a prática deles a comissão, pelos arguidos, dos crimes agravados de difamação e injúrias (sob invocação, a somar aos art. 180.º/1, e 181.º/1, também os art. 183.º/1-a-b, 184.º, e 132.º/2-l, do CP), que são do que os acusa, com efeito os preencheriam.

3.4. De tal sorte que, bem medida, a argumentação do recorrente encerra, como sinal patognomónico da respectiva insustentabilidade, o seguinte e incontornável paradoxo: deduz contra os arguidos acusação particular por crimes que ele mesmo e nessa peça configura como sendo qualificados, e que nessa qualidade teriam natureza semipública; mas sendo a acusação particular rejeitada precisamente porque em se tratando de crimes semipúblicos lhe falece a legitimidade para deduzi-la, então passa a argumentar em recurso que os crimes são afinal simples e por conseguinte particulares, como na participação dissera; pelo que, prossegue, o tribunal deveria ter desconsiderado a qualificação por ele feita na dita acusação, mas do mesmo passo e por isso… tê-la antes recebido e por ela submetido os arguidos a julgamento! Sem querer abusar do termo, e sempre com o respeito devido, aliás muito e efectivamente nutrido, torna-se óbvia a falência de uma linha argumentativa assim indelevelmente manchada, mas independentemente do oxímoro apontado, o que em última análise releva é a substância das coisas: a factualidade descrita na acusação particular e a pertinência dela às formas agravadas dos crimes nesta imputados. E neste plano, já melhor explicitando a afirmação de que com efeito aquela os preencheria, tem de enfatizar-se que, descontados os elementos subjectivos que aqui não vêm ao caso, está objectivamente em causa a produção de afirmações, pelos arguidos, relativamente a um professor universitário e a fim de serem consideradas no contexto de um concurso para a regência de uma cadeira da respectiva faculdade, durante a pertinente apreciação pelo respectivo conselho científico e perante os seus membros, de que aquele teria cometido plágio – contexto este em que o próprio recorrente manifesta (no art. 23.º, in fine, daquela acusação), ser “absolutamente relevante olhar-se para os factos da perspectiva académica e da docência que o assistente exerce como profissão”.

3.5. Breve, na economia narrativa da própria acusação rejeitada, e sendo irrelevante se com correspondência ou não na verdade dos factos (matéria que em sede de escrutínio da legitimidade acusatória não há que escrutinar e importaria, isso sim, ao julgamento, acaso aí tivesse cabido chegar), os arguidos proferiram conscientemente afirmações falsas que, quando menos, insinuavam a comissão de plágio pelo recorrente, e isso no contexto do exercício das funções dele de professor universitário em universidade pública (a produção e apresentação de uma tese de doutoramento), e concretamente a propósito até do concurso à regência de uma cadeira, coisas ambas que são próprias da correspondente vida académica e que evidentemente caem de pleno no âmbito daquelas funções, não havendo como afastar, sempre pressuposta a dita narrativa da acusação, como para o efeito em apreço tem de ser, que a alegada actuação dos arguidos teria sido por causa do exercício dessas funções (por supostamente ter plagiado na sua tese de doutoramento e mesmo para com a insinuação afastá-lo do provimento naquele cargo); devendo dar-se de barato, por suma evidência, que a isto rigorosamente nada altera o facto de o recorrente ser ou não membro daquele conselho científico, não obstante também com esse dado cuide de no respectivo recurso tergiversar, sempre sem quebra do respeito devido. Em suma, mesmo descurando a questão da publicidade e calúnia, que contudo o recorrente também na rejeitada acusação particular esgrime (com mira na agravação resultante do art. 183.º/1-a/b/2, do CP, igualmente ali concitado de modo expresso no correspondente art. 23.º), e ainda a de que em boa verdade só o crime de difamação, não o de injúria, poderia servir aos factos, alegadamente dirigidos a terceiros que não o recorrente (cfr. art. 180.º/, e 181.º/1, a contrario, do CP), a acusação é por crime agravado, nos termos dos art. 184.º, e 132.º/2-l, do CP.

3.6. Assim o impõe concluir a consideração de que se teria tratado, mais do que da mera insinuação (que já relevaria tipicamente), verdadeiramente da imputação de facto ofensivo da honra ou consideração do recorrente (mostrar-se-ia impertinente discutir esse valor à acusação de plágio dirigida a um professor universitário e na sua tese de doutoramento!), e isso por causa das respectivas funções e ao exercê-las (a própria prolação daquela tese e o concurso a cargo académico em que ela e a mancha que se lhe insinuava seriam necessariamente factores a ponderar), com o que sempre teria de afirmar-se a verificação dos pressupostos de agravação previstos naqueles art. 184.º e 132.º/2-l, do CP (que ele mesmo naquela acusação mobiliza, reiteremo-lo). Naturalmente, cabe nisto insistir também, é irrelevante quanto o recorrente procura esgrimir a propósito de qual dimensão da sua honra, pessoal ou funcional (ainda a conceder-se na própria distinção, em si mesma e como ele a faz), teria sentido afinal atingida ou por cuja ofensa quis que fossem os arguidos criminalmente perseguidos; sobre na acusação ter ele mesmo sublinhado essa dimensão funcional (cfr., entre outros passos e explicitamente, o respectivo e já citado art. 23.º, in fine, e isso depois de se lastimar de que a conduta dos arguidos o atingira no respectivo prestígio científico e ofendera a sua honra pessoal e profissional), o que uma vez mais dizemos que releva, em face disso se tornando o mais em estéril exercício de retórica jurídica, salvo sempre o devido respeito, é a objectividade dos factos acusados e da qualificação jurídico-penal que lhes cabe, tudo resultando, tanto na formal estruturação como na material substância da peça, em acusação particular deduzida contra os arguidos, após arquivamento do inquérito pelo MP e nos termos do art. 277.º/2, do CPP (não do art. 277.º/3, como por manifesto lapso a decisão recorrida mais do que uma vez refere), por crime agravado nos termos daquele art. 184.º do CP.

3.7. E assim sendo, como temos por nada menos do que indisputável ter sido, o que de imediato se antolha é a não menor indisputabilidade de tratar-se de acusação por crime semipúblico, natureza que lhe atribui o art. 188.º/1-a, do CP, de resto em jeito terminantemente refractário à problematização. Não sendo menos seguro, nos termos agora dos art. 48.º,  50.º/1, a contrario, 53.º/2-c, 276.º/1, 283.º/1, e 285.º/1, a contrario, do CPP, que pelos crimes semipúblicos o assistente apenas pode com a respectiva acusação acompanhar a do MP, a quem compete deduzi-la ou não, e que reversamente deduzir acusação particular autónoma (que o MP acompanhará ou não – art. 285.º/4, do CPP) só lhe é lícito por crimes particulares, então revela-se manifesto o acerto da decisão recorrida ao concluir pela ilegitimidade do recorrente para, subsequentemente ao arquivamento do inquérito pelo MP, deduzir a acusação particular contra os arguidos nos termos já sobejamente referidos em que formulou, isto é, imputando-lhes crimes semipúblicos. Aliás, aquele arquivamento, nos precisos termos já igualmente referidos, isto é, nos do art. 277.º/2, do CPP, e relativamente aos ditos crimes semipúblicos (em particular o de difamação agravado), foi notificada ao recorrente, na respectiva qualidade de assistente, nos moldes e para os efeitos dos art. 277.º/3, 278.º/1/2, e 287.º/1, do CPP, isto é (e com tais menções aliás expressamente plasmadas nos termos de notificação dirigidos a ele ao respectivo ilustre mandatário – cfr. docs. ref. 91229117 e 91229138, ambos de 08/05/2023), para que querendo reagisse, já judicialmente, em vinte dias fazendo  requerimento de abertura de instrução, já requerendo intervenção da hierarquia do MP, nos vinte dias posteriores ao esgotamento do prazo de abertura de instrução ou de imediato se a essa instrução optasse por renunciar.

3.8. Agora sim, e mesmo algo marginalmente, tem utilidade referir que nessas circunstâncias, caso discordasse da decisão de arquivar e respectivos fundamentos, aquelas eram as reacções ao recorrente processualmente lícitas para, explanando as pertinentes razões substantivas, de facto e de direito, como melhor considerasse devido, obter a reversão do decidido arquivamento, fosse pela intervenção hierárquica determinante da dedução de acusação, fosse pela prolação de uma decisão judicial de pronúncia (sendo que na eventualidade de ser com efeito obtida, por determinação hierárquica, a dedução de acusação – mas já não na de ser obtida decisão de pronúncia –, o recorrente poderia ainda e na qualidade de assistente acompanhá-la, nos termos e limites do art. 284.º/1/2, do CPP). Se em lugar de reagir por uma dessas vias o recorrente cuidou foi de deduzir acusação particular por crimes semipúblicos, à inadmissibilidade processual disso, e correspondente rejeição, nenhum remédio poderia deitar a tentativa de novamente reconfigurar a forma dos crimes imputados, como que alquimicamente transmutando-os da agravada para a simples, e para mais em contradição tanto com a clara valoração que à luz da lei lhes cabe quanto com o antes por si mesmo afirmado, tudo segundo focámos já; a única consequência adveniente da referida opção, além da dita rejeição da acusação por ilegitimidade, é a de terem ficado precludidas aquelas então lícitas faculdades de requerer instrução ou intervenção hierárquica. O que nos trás, por último, a um argumento ainda contra as razões expendidas pelo recorrente, embora este em direitas contas seja de mobilização já desnecessária, face à comprovação do substancial acerto do decidido, que lhe prejudica o potencial de relevo.

3.9. É que, como refere o MP na sua resposta ao recurso, o facto de a decisão de arquivamento não ter sido colocada em crise pelos modos devidos, com os ditos requerimentos de abertura de instrução ou de intervenção hierárquica, estabilizou-a na ordem jurídica em termos de fazê-la em sentido próprio definitiva. É dizer, a apreciação judiciária dos factos em causa conduziu a um arquivamento do inquérito por eles que, mercê da falta de adequada reacção processual, se torna definitivo, de tal sorte que acusar por eles, e sendo inquestionável que, particular como seja, é sempre de uma acusação que se fala, implicaria, além dos óbices já explanados e disso impeditivos, ainda a violação do princípio ne bis in idem (art. 29.º/5, da CR), entendendo-se de forma ampla o âmbito correspondente, ou seria quando menos uma afronta à autoridade de caso decidido que, com os correspondentes efeitos preclusivos, e mesmo obviamente não sendo uma sentença, ao despacho final do inquérito proferido pelo MP é ainda assim conferida no nosso direito processual (designadamente, para o que aqui importa, nos art. 279.º/1, e 449.º/2, do CPP). Como dissemos, esta questão fica afinal prejudicada pela já postulada inadmissibilidade da dedução da acusação particular nas circunstâncias e termos em que o foi, e por isso, sem caber aqui um desenvolvimento pormenorizado dela, sempre acrescentamos que também sob a respectiva luz se evidenciaria aquela inadmissibilidade: conceder no seu recebimento, seria afinal e mediante mera troca de nomen iuris, autorizar ao assistente a obtenção, sob a forma de uma impertinente acusação particular, obter o resultado final equivalente ao da acusação pública ou da pronúncia que, por não terem sido adequadamente solicitados, já não lhe seria viável alcançar.

3.10. E com isto, e já encerrando, temos enfim que não somente se não lobriga na decisão recorrida, isto é, no despacho de rejeição da acusação particular deduzida pelo recorrente, violação ou errada interpretação alguma dos art. 184.º ou 132.º/2-l, do CP, pelo contrário sendo acertada a qualificação jurídico-penal dos factos sob o foco deles, de resto feita em linha com a que em tal peça o próprio recorrente declinara, e sem que nisso pudesse concluir-se ter havido qualquer incorrecção de expressão ou seja qual for, como ainda e em consequência que não houve desvio algum ao devido com a consideração da natureza semipública dos(s) crime(s) configurados e inerente afirmação da ilegitimidade do recorrente para por eles e na sequência do arquivamento do inquérito deduzir acusação particular autónoma, isto em sintomia com o disposto pelos art. 48.º,  50.º/1, a contrario, 53.º/2-c, 276.º/1, 283.º/1, e 285.º/1, a contrario, do CPP – deste encadeamento resultando, enfim, que a rejeição foi com efeito devida, à luz agora do art. 311.º/1, do CPP, e como questão prévia obstante à apreciação do mérito da causa e que o tribunal recorrido podia (e devia) desde logo em saneamento conhecer. O que leva, directa e derradeiramente, às conclusões de que, sendo a decisão recorrida isenta de censuras (tanto das que não sem alguma temeridade, dir-se-á, lhe vinham apontadas, como de outras quaisquer que ao conhecimento oficioso deste tribunal de recurso se impusessem), falecem em toda a linha os argumentos de recurso, a que por isso cabe negar provimento, mantendo integralmente o decidido.                       

III – Decisão

À luz do exposto, decide-se negar provimento ao recurso do assistente AA, mantendo-se nos seus precisos termos a recorrida decisão de 13/10/2023, de rejeição da acusação particular por ele deduzida contra os arguidos.

Custas pelo assistente, com taxa de justiça em quatro UC’s (art. 515.º/1-b, do CPP, e 8.º/9, e Tabela Anexa III, do RCP).


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Coimbra, 24 de Abril de 2024
Pedro Lima (relator)

Alcina Ribeiro (1.ª adjunta)

Carolina Cardoso (2.ª adjunta)

Assinado eletronicamente