TRANSACÇÃO JUDICIAL
HOMOLOGAÇÃO
VENDA EXECUTIVA
Sumário

Estando em causa um imóvel validamente vendido a outrem há vários anos, na base de decisão tomada conjuntamente pelos dois membros do extinto casal que o habitava, carece de fundamento continuar a rotular o mesmo como casa de morada de família, podendo, apenas, sustentar-se que o mesmo se vem mantendo como casa de habitação de um dos ditos membros.

Texto Integral

Apelação n.º 446/09.9TMFAR-A.E4
Tribunal Judicial da Comarca de Faro – Tribunal de Família e Menores de Faro - Juiz 2
Apelantes: (…) e (…)
Apelada: (…) – Auditoria e Consultoria Fiscal, Lda.
Apelante: (…) – Auditoria e Consultoria Fiscal, Lda.
Apelados: (…) e (…)
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Acordam em conferência os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora no seguinte:
1 – No presente recurso de apelação foi proferida no dia 22/02/2024 pelo relator decisão singular, ao abrigo do disposto no artigo 652.º, n.º 1, b), do CPC, com o teor que de seguida se transcreve:
“I – RELATÓRIO
Em 08/09/2022 (…) e (…) requereram junto do Tribunal a quo a homologação da seguinte transacção/acordo que carrearam aos autos subscrito por ambos:
“1. A Verba relativa ao imóvel, prédio urbano, inscrito na respectiva matriz sob o n.º (…) e descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra sob o n.º (…), da freguesia de (…), concelho de Coimbra, é adjudicado à Requerida, (…).
2. A adjudicação é efectuada pelo preço correspondente ao valor matricial constante na caderneta predial, sendo as tornas liquidadas nos 90 dias após trânsito em julgado da sentença homologatória do presente acordo.
3. Acordam ainda em excluir todas as restantes verbas constantes da relação de bens, passando estas a integrar apenas o imóvel ora adjudicado.
4. Custas judiciais a cargo da Requerente (…), sem prejuízo do eventual apoio judiciário.”
*
A interveniente acidental/compradora (…), Lda. e o encarregado da venda pronunciaram-se no sentido do indeferimento da homologação da transação.
Em 16/10/2022 foi proferido nos presentes autos pelo Tribunal a quo despacho com o seguinte teor:
“Transacção:
Por meio de requerimento datado de 8.9.2022 (com a ref. Citius 10432667) veio (…) requerer a homologação judicial de uma transação com (…), de forma a extinguir os autos, com a concordância do cabeça de casal que à mesma aderiu na mesma data (vide ref. Citius 10432669), invocando a natureza de jurisdição voluntária desta jurisdição.
Com vista à observância do princípio do contraditório foram todos os intervenientes processuais notificados para se pronunciarem quanto a esta questão vindo opor-se à homologação da transação.
Resumidamente, a “(…), Lda.” veio invocar não ser aceitável, que depois do trânsito em julgado da decisão de venda judicial, ratificada pelos tribunais superiores, e depois de ter pago o preço acordado há três anos, período durante o qual os inventariados não procuraram celebrar qualquer acordo entre eles, não concebe que o Tribunal possa aceitar a pretensão do requerente e da requerida, solicitando se decida no sentido de não acolher a pretensão dos requerentes (ref. Citius 10479896).
E em 22.9.22 (ref. Citius 10479896) o Encarregado de Venda (…), veio expender o seguinte:
1.- Nos subjacentes autos de inventário para partilha dos bens comuns em consequência do divórcio decretado entre os inventariados / Requerente e Requerida, foi ordenada a venda do imóvel identificado sob a Verba n.º 1 da respetiva relação de bens na modalidade de proposta em carta fechada e, caso tal se frustrasse, deveria essa venda judicial ser realizada por negociação particular – o que se verificou – sendo que o despacho a determiná-la foi proferido em 23.01.2017, tendo o mesmo transitado em julgado.
2.- Em 31.03.2019 foi proferido um outro despacho, fixando o valor mínimo da venda em 144.500,00 €uros.
3.- Em 01.10.2019 foi emitida certidão judicial destinada à realização da escritura de venda e compra do referido imóvel a favor da proponente ‘(…) – Auditoria e Consultoria Fiscal, Lda.’, devidamente identificada nos autos para o efeito.
4.- Em 16.10.2019 foi celebrado o correspondente contrato de compra e venda a favor da aludida Proponente, sendo o imóvel vendido pelo preço de 144.800,00 €uros.
5.- Em 12.06.2020 vieram os inventariados / (…) e (…) requerer a anulação da predita venda judicial realizada mediante a modalidade da negociação particular, alegando para tanto a falta de comunicação da proposta e da data da venda.
6.- Em 02.07.2020 vieram os mesmos inventariados informar que se encontravam naquela altura ‘a ultimar as negociações – que estariam a levar a cabo – com vista a celebrar transação nos autos’, sendo que, mais acrescentaram, que ‘tal transação … só poderia ser concretizada após o trânsito em julgado da decisão que viesse a declarar nula a venda efetuada’ [sic].
7.- Por despacho proferido em 17.06.2020 foi o mencionado pedido de anulação da venda judicial indeferido nos termos dele constantes.
8.- Emergindo ainda da parte final desse mesmo despacho que, como a perspetivada transação só poderia ser concretizada após o trânsito em julgado da decisão que viesse a declarar nula a venda efetuada, nada então havia que ordenar.
9.- Do mesmo despacho veio a inventariada (…) interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora.
10.- Recurso esse que foi julgado improcedente, sendo por isso confirmada e mantida a decisão recorrida constante do aludido despacho de 17.06.2020, sem voto de vencido.
11.- Notificados que foram os referidos inventariados do correspondente acórdão do Tribunal da Relação de Évora que julgou improcedente a apelação, interpuseram os mesmos, inconformados, revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça, não obstante, por força do disposto no artigo 671º., nºs 1, 2 e 3, do C.P.C., se afigurar desde logo que tal expediente era inadmissível.
12.- Por acórdão proferido em 27.04.2021 pelo citado S.T.J., sob a forma de decisão sumária, não foi admitido o aludido recurso interposto do acórdão proferido pelo T.R. Évora.
13.- Subsequentemente requereram os inventariados em 13.05.2021 que sobre a matéria do antecedente acórdão recaísse novo acórdão, mediante submissão à conferência nos termos do artigo 652.º, n.º 3, do C.P.C..
14.- Dessa conferência resultou proferido novo acórdão, de acordo com o qual mais uma vez foi rejeitado o recurso.
15.- Em face deste último acórdão interpuseram os inventariados em 23.09.2021 um novo recurso para o Tribunal Constitucional nos termos dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b) e 75.º-A da LTC, recurso este que passou a ser objeto de análise por despacho proferido em 10.12.2021.
16.- Por decisão sumária sob o n.º 70/2022 proferida pelo mesmo T.C. em 27.01.2022 nos termos do artigo 78.º-A, n.º 1, da citada LTC, não foi tomado conhecimento do recurso interposto, porque legalmente inadmissível.
17.- Dessa decisão sumária reclamaram os inventariados para a conferência, sendo mantida em 31.03.2022 a decisão de não admissão do recurso de constitucionalidade pelos mesmos suscitado.
18.- De forma obstinada apresentaram os inventariados em 26.04.2022 requerimento, pedindo a reforma do sobredito acórdão e ainda quanto a custas, por entenderem que estas foram fixadas em excesso – pedido esse que também foi indeferido através do acórdão n.º 372/2022 proferido em 12.05.2022.
19.- Em 26.05.2022 eis que os inventariados decidiram apresentar uma nova reclamação contra o aludido acórdão n.º 372/2022, arguindo desta vez a respetiva nulidade por falta de fundamento da decisão em matéria de custas.
20.- Em 09.06.2022 foi proferido novo acórdão sob o n.º 449/2022, indeferindo a arguição da nulidade referida no item anterior.
21.- Porém, não obstante os indeferimentos em série proferidos no âmbito dos subjacentes autos, apresentaram os inventariados um novo pedido de reforma do citado acórdão n.º 449/2022 – porém, revelando-se aquele pedido vazio de conteúdo, e ‘chateados’ que ficaram os Srs. Juízes Conselheiros do T.C. em face dos expedientes dilatórios perpetrados pelos impetrantes, ao fazerem do processo um uso manifestamente reprovável com o fim de entorpecerem a ação da justiça, protelando, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão final, …… enfim foi proferido o acórdão n.º 493/2022 nos termos do qual foi determinada a remessa imediata dos autos ao Tribunal recorrido, considerando-se para todos os efeitos TRANSITADO EM JULGADO O ACÓRDÃO N.º 449/2022, DE 9 DE JUNHO DE 2022, sendo assim colocado em definitivo um ponto final na subjacente relação material controvertida.”
Em 29.09.2022 (ref. Citius 10505526 e 10505528) os inventariantes vieram alegar que, em primeiro lugar, não assiste razão à alegada compradora porquanto conforme dispõe o artigo 283.º, n.º 2, do C.P.C, que é lícito às partes, em qualquer estado da instância, transigir sobre o objeto da causa. O processo não se encontra findo, mas pendente, sendo que, a decisão proferida relativamente à anulação da venda, e com fundamento na argumentação aí vertida (que não é impeditiva de invocação de outros vícios em sede própria), constitui uma decisão relativamente a um incidente da causa, e não ao processo em si. Em segundo lugar, alegam que a alegada venda não produziu os seus efeitos típicos e nem em relação a terceiros, uma vez que não se encontra registada, já que face ao registo prévio e obrigatório não só da anulação, como por não suprimento das deficiências indicadas pela conservatória, o mesmo ficou provisório por dúvidas, tendo caducado após 6 meses. Acrescentam que aquando da promoção da venda pelo EV, o mesmo actuou com falta de legitimidade, já que à data se encontrava em recurso a decisão que ordenou o prosseguimento da venda (11/09/2019), sendo que, a entidade que titulou o acto (solicitador) não analisou a documentação de forma adequada, pois não detinha nenhuma certidão do tribunal nesse sentido, como também não advertiu os compradores desse condicionalismo, pelo que a todo tempo enferma o acto de nulidade, que aqui invocam, razão pela qual não foi possível efectuar o registo e suprir as deficiências apontadas. Alegam que a venda, tão só e apenas teria uma eficácia inter partes, in casu, Requerentes e compradores, sendo que os Requerentes perderam o interesse na venda, o que é legítimo. Assim, concluem, estão em causa direitos disponíveis das partes e no âmbito de um processo de jurisdição voluntária, competindo a estas declarar e acordar na forma como pretendem por termo à causa. O que foi o caso, já que o processo não se encontra findo. Assim, entendem que a transacção constitui um negócio jurídico válido, do qual resulta que as partes desistiram da venda, que, reafirmam, não produziu qualquer efeito em relação a terceiros (não se encontra registada), e nessa medida, manteve-se na disponibilidade das partes, e, portanto, na desistência livre dos Requerentes, improcedendo toda a argumentação apresentada pelo EV e pela compradora. Por fim, alegam que, a compradora, logo em 2019 face, não só, ao não registo do imóvel, como às circunstâncias do processo, podia e devia a todo tempo solicitar a restituição do preço, como aliás foi devidamente esclarecida pelo tribunal sob cominação (09/07/2020). E, tratando-se de uma sociedade que certamente não desconhece, ou pelo menos não devia desconhecer, as vicissitudes que podem surgir e surgem nas vendas no âmbito de processos judiciais, só a esta é imputável a sua situação que não é de todo prejudicada. Reiteram que aos Requerentes assiste, a salvaguarda do seu património familiar para os seus descendentes, se assim o desejarem, sendo que a Requerida (…), habita no imóvel, tratando-se da sua única habitação, não lhe sendo exigível o seu abandono aos 84 anos, com problemas de saúde, quando esta e seu ex-marido chegaram acordo, num processo com mais de 13 anos e o qual não pretendem continuar a perpetuar. Assim, requerem que o acordo submetido a juízo (e que já foi apresentado a registo ao abrigo do artigo 92.º, n.º 1, j), do CRP), seja homologado, ordenando-se consequentemente a devolução do preço ao interveniente acidental, “(…), Lda.”.
A esta argumentação respondeu o Sr. Encarregado de venda – cuja legitimidade para intervir nos autos é colocada em causa pelos Inventariantes – nos seguintes termos:
a) O despacho proferido em 23.01.2017 que determinou a realização da venda judicial do imóvel identificado sob a verba n.º 1 da relação de bens por negociação particular, transitou em julgado conforme reconhece o douto despacho proferido em 11.09.2019.
b) Paralelamente, também o despacho proferido em 17.06.2020 que indeferiu o pedido de anulação da venda judicial foi confirmado pelo Tribunal da Relação de Évora, tendo este efeito transitado em julgado em 09.06.2022 atenta a rejeição do recurso de revista interposto pelos inventariados para o S.T.J., rejeição essa que foi posteriormente corroborada pelo Tribunal Constitucional ao decidir por último não tomar conhecimento do derradeiro recurso interposto pelos mesmos, nomeadamente por considerar inadmissível tal expediente.
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3.- Donde resulta que tendo sido indeferido o incidente de nulidade da venda efetuada em 16.10.2019, com trânsito em julgado, constitui argumentário manifestamente falacioso por parte dos inventariados referirem no seu precedente requerimento [vide artigo 16] apresentado em 29.09.2022 que o pretenso acordo submetido a juízo ‘já foi apresentado a registo ao abrigo do artigo 92.º, n.º 1, alínea j), do C.R.P.’, quando é certo que desde 08/11/2019 se encontra registado o pedido de nulidade da venda efetuada em 16.10.2019, nos termos da alínea a) do citado normativo, cuja aliás inconsequência será necessariamente objeto de oportuno registo por efeito da decisão final nos termos do item 4º seguinte – logo, também por aqui se afigura inaceitável que os inventariados / impetrantes tencionem nesta altura recorrer à citada alínea j) daquele dispositivo com o intuito de levarem a cabo o seu ilícito propósito, pois que se desta alínea se aproveitarem passarão então a incorrer em redobrada má-fé, cuja conduta processual não poderá ficar impune”.
Decidindo:
Nos presentes autos estão sem dúvida em causa direitos disponíveis das partes e o processo de inventário constitui um processo de jurisdição voluntária, competindo a estas declarar e acordar na forma como pretendem por termo à causa, e o processo não se encontra findo, faltando ainda decidir quanto aos bens móveis. Sucede que os inventariantes pretendem transigir relativamente ao bem imóvel relacionado (já vendido) e excluir da relação de bens os demais bens, de natureza móvel.
Nestes termos, sendo jurisdição voluntária, os aqui inventariantes não estavam obrigados, por força de lei, a proporem o presente inventário, tal era algo que estava no domínio da sua disponibilidade, mas resolveram fazê-lo: pretenderam dividir o seu património há cerca de 13 anos, e, mais ainda, decidiram em juízo na conferência de interessados realizada há cerca de 10 anos em pôr à venda o bem imóvel que compunha a relação de bens, não obstante a idade da Inventariada, que aí residia. Na verdade, o tribunal não é insensível aos sentimentos que movem os Requerentes e que os faz “mover céus e terra” e só por essa razão não os sanciona em multa por má-fé processual, porquanto pretendem agora salvar o património para os seus descendentes e garantir o direito da Requerida, actualmente com 84 anos, que ainda aí reside (não tendo sido trazido aos autos a ausência de alternativas).
Ora, recorde-se que tudo isto é obra dos inventariantes e é fruto da vontade dos mesmos, que assim o quiseram, tendo eles mesmos decidido a venda judicial, não tendo a tanto sido obrigados por ninguém, muito menos pelo tribunal. E assim, tendo declarado perante a Mma Juíza na conferência de interessados que pretendiam vender o bem imóvel que constituía o seu património e dividir entre ambos o produto da venda “sibi imputet”: só se podem arrepender da sua própria conduta, talvez precipitada, de que claramente já se arrependeram... O que não podem fazer é, penitentes que estão, atropelar os direitos alheios, quando podiam e deviam tê-lo feito quando foram notificados de que havia uma proposta de aquisição e lhes foi comunicado o valor e, ambos silenciaram, aceitando-o.
A venda judicial tem uma eficácia inter partes, in casu, Requerentes e compradora, como os Requerentes eles próprios afirmam no requerimento datado de 29.9.2022, pelo que, podendo ser legítimo que os Requerentes tenham perdido o interesse na venda, o que já não é válido é que a sua perda de interesse afecte a compradora, pois que não afecta. Não voltando aqui a transcrever a análise do histórico da venda judicial, como o fez o Sr. Encarregado da Venda, a mesma foi considerada válida por decisão já transitada em julgado e, como tal, os Requerentes têm de respeitar tal contrato e o direito de propriedade sobre o imóvel, o qual se transferiu para a compradora, encontrando-se o produto da venda depositado a favor do processo, enquanto que a (…) se encontra desapossada quer do imóvel quer do dinheiro que despendeu pela aquisição do mesmo.
Concorda-se que a transacção – seja ela judicial ou extrajudicial – é um negócio jurídico (contrato) que, naturalmente, está submetido às normas substantivas que regulam essa matéria, esclarecendo-se que não é a homologação judicial da transacção que decide a controvérsia substancial trazida a juízo pelas partes, mas destina-se tão-só fiscalizar a regularidade e a validade de tal pacto. Sendo o litígio resolvido por vontade exclusivamente das partes e não ex vi da sentença homologatória proferida pelo Juiz, deste contexto fica excluída qualquer aproximação ao conceito de sentença referenciado no n.º 1 do artigo 671.° do CPC (619º NCPC). Tem sido entendimento jurisprudencial que a transação exarada no processo põe termo ao litígio entre as partes, e constitui um contrato processual, concretizando um negócio jurídico efetivamente celebrado pelas partes intervenientes na ação, correspondente àquilo que estas quiseram e conforme o conteúdo da declaração feita.
A decisão judicial corporizada na homologação da transação, constituindo um ato jurídico, deve analisar a legitimidade das partes, a validade do negócio e a disponibilidade do objecto. Ora, no caso dos autos, o imóvel em causa – prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo (…), descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra, com o n.º (…), da freguesia de (…) – já não está mais na esfera da disponibilidade dos Requerentes, por ter sido vendida em acto de venda judicial à interveniente acidental (…) em resultado duma decisão tomada pelos próprios requerentes, tendo transitado em julgado a decisão que declarou a venda por negociação particular válida do ponto de vista formal.
Conforme se disse, a transacção constitui um negócio jurídico válido, mas tão-só e apenas quanto aos bens móveis por partilhar, não tendo qualquer efeito juridicamente relevante que os requerentes tenham desistido da venda do imóvel, já que, produziu efeitos entre as partes no processo, isto é, os Requerentes e a compradora.
Nestes termos, uma transação que inclua o bem imóvel, para que seja válida, tem de incluir a compradora, actual detentora do direito de propriedade sobre o mesmo.
Pelo interesse para a decisão aqui se deixa o sumário do Ac. de 16.4.04 do Tribunal da Relação de Guimarães proferido o processo 939/04-1 e relatado pela Sra. Desembargadora Teresa Albuquerque:
I- Num inventário facultativo em que a única verba a partilhar foi licitada por um interessado por um determinado valor, e em que, com trânsito em julgado, foi decidido que essa licitação não podia ser anulada por erro vício na vontade desse interessado, tornou-se indisponível, mesmo para a totalidade dos interessados, a situação jurídica em causa, não podendo trazer aos autos para homologação, transacção em que alterem o decidido na conferência de interessados.
II- Decorre, aliás, do artigo 300.º/1, do CPC, na redacção da Reforma de 1995, não fazer sentido que um inventário, mesmo facultativo, possa terminar por transacção, já que a transacção extra-judicial relativa à partilha, só pode alcançar-se, via do disposto no artigo 1250.º do CC, por escritura pública.
III- Ora, se os interessados alcançam acordo para formalizarem a partilha deste modo extra-judicial, já não necessitam do inventário, que se extinguirá por inutilidade superveniente.
IV- O caso julgado relativamente à decidida não anulação da licitação, impede que se designe data para nova conferência de interessados para nela fazer valer a actual e unânime vontade dos interessados.
V- O erro em que incorreu o licitante, porque não houve, então, vontade unânime dos interessados em reconhece-lo, tratou-se de um erro pessoal e não objectivo e material, e, por isso, sempre se mostraria insusceptível de justificar a emenda da partilha”.
Por considerar que as partes não têm legitimidade para dispor do objeto em causa e que o negócio é substantivamente inválido não homologo a transacção apresentada em juízo por (…) e (…).
Notifique.
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Req. de 22.9.22 (com a ref. Citius 10479896):
Veio a “(…) – Auditoria e Consultoria Fiscal, Lda.” requerer que o tribunal condene a Requerida (…) no pagamento de uma indemnização pelo período em que ocupou o imóvel (lançando mão de recurso atrás de recurso com o intuito de obter vantagens injustificadas relativas ao uso do mesmo, quando era do seu perfeito conhecimento que tinha sido comprado legalmente e de boa fé, pelo valor correspondente a € 750,00 de renda mensal (valor que reputam de abaixo do valor de mercado uma vez que existem apartamentos T2, embora novos, a arrendar por € 750,00 a € 850,00 em … – Coimbra), multiplicada pelo prazo de 35 meses completos decorridos desde a data da compra ao Tribunal (dia 16/10/2019) corresponde ao valor total de pedido de indemnização de € 26.250,00, sem prejuízo de solicitarem posteriormente atualização ou aumento deste valor de indemnização, pelos custos adicionais ou pela perda de rendimento em que venha a incorrer deste esta data até ao momento em que efetivamente o imóvel seja entregue livre de pessoas e bens pela Requerida.
Sucede que, independentemente do mérito do pedido, sendo este um tribunal de competência especializada, tal pedido terá de ser formulado perante um tribunal de competência cível e seguindo a tramitação do processo comum, razão porque se indefere o requerido.
Notifique.
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Req. de 21.9.22 com a (Ref. 10477377):
Certifique, como requerido, com vista ao registo da aquisição do imóvel definitivamente a favor da “(…) – Auditoria e Consultoria Fiscal, Lda.”, nos termos do artigo 3.º, alínea c), do C.R.P..
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Dê pagamento ao Sr. Encarregado de Venda da comissão devida, correspondente a 5% do valor da venda, face ao disposto no artigo 17.º, n.º 6, do R.C.P., a adiantar, e a entrar em regra de custas.
Notifique a Requerida (…) para deixar o imóvel vendido nestes autos livre de pessoas e bens e no exato estado de uso em que o mesmo se encontrava há 3 anos, no prazo máximo de 10 dias, e fazer a entrega das chaves à nova proprietária “(…) – Auditoria e Consultoria Fiscal, Lda.”.
O mencionado despacho foi notificado às partes e encarregado da venda em 18/10/2022, tendo em 07/11/2022 (…) e (…) apresentado requerimento de recurso do mesmo alinhando as seguintes conclusões:
“Nestes termos, e em conclusão:
I. Deixando de parte a questão relativa à qualidade das partes, por não relevar para os autos, importa detalhar os aspectos relativos ao objecto da transacção, dispondo o artigo 1249.º do Código Civil, que desde logo delimita, pela negativa, quais as matérias insuscetíveis de transacção: as partes não podem transigir sobre direitos de que não lhe é permitido dispor, nem sobre questões respeitantes a negócios jurídicos ilícitos.
II. Pode-se falar numa disponibilidade objectiva do direito, em contraposição com uma disponibilidade subjectiva.
Quanto à objectiva, a disponibilidade está desde logo sujeita aos limites do reconhecimento da vontade negocial pela lei, tal como emerge do artigo 405.º, n.º 1, do Código Civil. Depois, há que atender às regras do direito substantivo, que permitem apurar se estamos ou não perante situações juridicamente disponíveis. A lei processual acolhe a matéria da indisponibilidade objectiva no artigo 289.º, n.º 1, do CPC, ao estabelecer que não é permitida, além do mais, uma transacção que importe a afirmação da vontade das partes relativamente a direitos indisponíveis (4). Grande parte dos direitos indisponíveis situam-se no campo do direito da família.
A disponibilidade subjectiva do direito afere-se através da averiguação sobre se aquela concreta parte tem capacidade e poder de disposição sobre o mesmo.
III. No caso dos autos, a transacção não incidiu sobre direitos, relativa ou absolutamente, indisponíveis nem respeita a negócio jurídico ilícito. Estão exclusivamente em causa situações jurídico-privadas disponíveis.
IV. Diferentemente do que parece a orientação do tribunal a quo, a transação não contraria qualquer decisão judicial, relativas ao respetivo objeto, já transitada em julgado e que vinculam as partes. Em primeiro lugar, a decisão relativa à nulidade da venda por preterição do contraditório, na medida em que as partes não foram notificadas da data e hora da alegada venda, não influi na apreciação da validade ou não do negócio jurídico e da sua eficácia, não produzindo qualquer efeito sobre a sua validade substancial e material.
V. Estando a causa no âmbito da disponibilidade das partes, o facto de existir uma decisão judicial transitada em julgado a resolver um litígio em determinado sentido não impede à partida que as mesmas partes venham a dispor sobre a situação substantiva, designadamente modificando os seus efeitos, extinguindo-os ou criando outros. O mundo não se imobiliza só pelo facto de existir uma tal decisão.
VI. De facto, as concessões recíprocas das partes tanto podem incidir exclusivamente sobre o objeto do litígio (transação simples), como sobre direitos diversos do direito controvertido (transação complexa), ainda que acordadas com a finalidade de resolver – ou de prevenir – o litígio. Para esse efeito, as partes têm ampla margem de estipulação dessas concessões, podendo não apenas reconhecer, constituir, modificar ou extinguir o direito em litígio, mas também determinar a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido, situação esta que origina uma grande atipicidade dos efeitos da transação, que ficam na disponibilidade das partes (vide Ac. da Relação de Guimarães - 449/21.5T8VCT.G1):
Certos requisitos mínimos de validade, a transacção poderá operar como que uma substituição da obrigação primitiva por outra de contornos não coincidentes e até mais alargados; e na verdade, desde que a transacção não enferme de nulidade – e é desde logo o que dispõe o artigo 1249.º do CC – não pode o juiz recusar-se a homologá-la com fundamento em que as respectivas cláusulas extravasam o objecto da causa (11) – (vide Ac. R. Guimarães - 449/21.5T8VCT.G1).
VII. As partes apenas não podem transigir sobre direitos que não lhes é licito dispor, nem sobre questões respeitantes a negócios ilícios (artigo 1249.º do CC e artigo 289.º do CPC). Não será assim admitida transação sobre direitos em relação aos quais falte legitimidade ao disponente (13), coisas fora do comércio (artigo 202.º, n.º 2, do CC), direitos de personalidade e direitos familiares, bem como relativamente a questões relativas a negócios em contrariedade com a lei, a ordem pública ou os bens costumes (artigos 280.º e 294.º do CC).
No caso concreto, as partes têm legitimidade, o objecto, não está fora do comércio jurídico, não respeita a direito de personalidade e direitos familiares, bem como a questões relativas a negócios em contrariedade da lei.
VIII. A sentença homologatória “não conhece do mérito da causa, mas chama necessariamente a si a solução de mérito para que aponta o contrato de transação, acabando por dar, ela própria, mas sempre em concordância com a vontade das partes, a solução do litígio. A transação judicial «substitui a incerteza sobre a questão controvertida pela segurança que para cada uma das partes resulta do reconhecimento dos seus direitos pela parte contrária, tal como ficam configurados depois da transação». E traduz-se num negócio bilateral de auto-composição do litígio, que subtrai ao tribunal o poder de decidir a causa mediante a aplicação do direito substantivo aos factos provados.
IX. Por outro, a transacção – seja ela judicial ou extrajudicial – é um negócio jurídico (contrato) que, naturalmente, está submetido às normas substantivas que regulam essa matéria, esclarecendo-se que a transacção judicial como um "contrato processual", não é a homologação judicial da transacção que decide a controvérsia substancial trazida a juízo pelas partes, mas tão-só fiscalizar a regularidade e a validade de tal pacto. Sendo o litígio resolvido por vontade exclusivamente das partes e não "ex vi da sentença homologatória proferida pelo Juiz, deste contexto fica excluída qualquer aproximação ao conceito de sentença referenciado no n.º 1 do artigo 671.º do C.P.Civil (619.º NCPC) e dele nos teremos de arredar no enquadramento da definição de caso julgado.
X. No entender dos Recorrentes, andou mal o tribunal a quo ao não homologar a transacção submetida ao processo, pois, a sentença homologatória não retira à transação o carácter de instrumento de auto-composição, já que o juiz não julga a validade e eficácia substancial dos seus termos, a não ser que incida sobre relações jurídicas indisponíveis, que não é o caso.
Pelo que, os interessados que pretendem discutir e ver declarada a validade/eficácia substancial das cláusulas da transação, devem intentar a competente ação.
Sem prescindir,
XI. Como argumentado anteriormente, a venda não produziu os efeitos típicos, mas tão só, os efeitos meramente obrigacionais entre as partes, sendo que existe um desfasamento entre o momento da celebração do contrato e o momento da produção de determinados efeitos.
XII. Nos direitos reais – ou nos direitos das coisas – convencionalmente estabelecidos, para a produção do efeito real é condição necessária e suficiente um título, mas tal título há-de existir, ser válido e eficaz: o mesmo é dizer, não pode padecer de causas de inexistência, ser inválido ou inapto a produzir efeitos reais (vide, neste sentido, Mónica Jardim (2013); Efeitos substantivos do Registo Predial, Terceiros para Efeitos de Registo; Coimbra: Almedina, pág. 477).
XIII. O conservador não é mero subordinado à lei; o conversador é um “guardião da legalidade”, ou o “crivo” por onde só passam os actos que o ordenamento jurídico consente. Assim, na sua função qualificadora, o conservador deve atender ao artigo 68.º do CRPredial: “A viabilidade do pedido de registo deve ser apreciada em face das disposições legais aplicáveis, dos documentos apresentados e dos registos anteriores, verificando-se especialmente a identidade do prédio, a legitimidade dos interessados, a regularidade formal dos títulos e a validade dos actos neles contidos”.
XIV. Assim, tendo os Recorrentes perdido o interesse na venda, e estabelecido outro negócio jurídico relativamente ao imóvel, igualmente válido, e, entretanto, apresentado a registo, não só gozam da prioridade do mesmo, ainda que fique provisório por natureza, como o não cumprimento do anteriormente estabelecido, terá de ser resolvido em sede de incumprimento contratual.
Pois ainda que o negócio jurídico da eventual venda fosse válida, a mesma já se mostra ineficaz relativamente aos Recorrentes, que validamente, transacionaram sobre o objecto da causa/litígio, e, portanto, sobre o imóvel.
Nessa medida, resta aos eventuais adquirentes, que pretendem discutir a validade da transação ou ser ressarcidos pelo incumprimento contratual, intentar a competente ação.
Subsidiariamente,
XV. Ainda que seja esse o entendimento, sem consentir, não pode o tribunal a quo, ordenar uma entrega de chave do imóvel, casa de habitação de um dos Recorrentes, sem investir na autoridade para o efeito, com respectiva designação, oficial de justiça, ou, eventualmente agente de execução, com poderes para o acto, sem atempar prazo adequado, em total desrespeito, pela condição habitacional e humana, e, ainda, porque, ao abrigo do artigo 6.º-E, n.º 7, b), do DL n.º 1-A/2020, de 19/03, as diligências judiciais de entrega de casa da morada da família e habitacional se encontra suspensa.
XVI. Com respeito por opinião diversa, o tribunal a quo toma as dores de intervenientes acidentais, substituindo-os às partes, detentores do processo, o que in casu, é inadmissível e constitui uma violação crassa aos princípios consagrados nos artigos 13.º, 20.º, n.º 4, 25.º e 65.º da CRP, imanentes dos princípios da igualdade; garantia de um due processo of law (processo equitativo), como alicerce estruturante do Direito democrático; o livre desenvolvimento da personalidade e integridade pessoal e o direito à habitação, como matrizes radiculares da tutela da dignidade da pessoa humana, consagrada no artigo 1.º, n.º 1, da CRP, que se deixa expressamente invocado.
XVII. Há, por isso, erro de julgamento, na interpretação e aplicação do direito e, sequência do nosso modesto raciocínio, consideramos que o Senhor Juiz a quo violou os artigos 280.º, 281.º, 294.º, 405.º, 1294.º do C.C., 277.º, 283.º, 284.º, 285.º, 290.º C.P.C. e 13.º, 20.º, n.º 4, 25.º e 65.º da CRP, entre outros.
Termos em que nos Doutamente supridos e nos mais de Direito, devem Vossas Excelências julgar procedente o presente Recurso, e proferir Douto Acórdão que revogue a Decisão Recorrida, e homologue a transacção dos Recorrentes, sem subsidiariamente, prescindir do pedido subsidiário, assim se fazendo Justiça!!!”
Não foi apresentada resposta ao recurso em apreço.
Em 27/12/2022 foi proferido despacho de admissão do aludido recurso interposto com o seguinte teor:
“Apresentadas as alegações de recurso e a respectiva resposta cumpre proferir o despacho a que alude o artigo 641.º do Código de Processo Civil.
Porque tempestivo, admito o recurso interposto por meio do requerimento datado de 7.11.2022 com a Ref.ª Citius 10636318, despacho proferido em 16.10.2022 com Ref.ª Citius 125710495, por terem os recorrentes (…) e (…), Requerida e Requerente nos presentes autos – notificados da decisão de não homologação da transacção e consequente entrega da chave do imóvel – legitimidade e sendo a decisão recorrível, o qual é de apelação, com efeito suspensivo (artigo 647.º, n.º 1, alínea c), do CPC), subida imediata e nos próprios autos.
Notifique.
Após, subam os autos ao Tribunal da Relação de Évora.”
*
Nos mesmos autos foi igualmente proferido despacho em 23/11/2022 com o seguinte teor:
“Tomei conhecimento de que no próximo dia 24.11.22, pelas 10:00 horas, o Sr. EV irá investir a adquirente ‘(…), Lda.’ na posse do imóvel objeto da venda judicial [verba n.º 1 da relação de bens] tendo solicitado o auxílio das forças policiais de acordo com o teor constante do despacho proferido em 16.11.2022, sob a Referência 126270740.
Sucede que em 22.11.2022 a Inventariante (…), Requerida nos presentes autos, notificada do despacho proferido, que consubstancia uma ordem de entrega coerciva do imóvel que constitui a casa de habitação da mesma, veio requerer ao abrigo do artigo do artigo 6.º-E, n.º 7, alínea b), na redacção dada pela Lei n.º 13-B/2021 de 05.04, e actualmente vigente, a sustação do acto de investidura ordenado.
Termos em que, determino a sustação da entrega do imóvel que constitua a habitação daquela, como requerido por (…), por força do artigo 6.º-E, n.º 7, alínea b), na redacção dada pela Lei n.º 13-B/2021, de 05.04, e actualmente vigente, se refere à Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, pois não foi alterado pela sua versão mais recente (Lei n.º 91/2021, de 17/12), ficando suspensos no decurso do período de vigência do regime excecional e transitório previsto no presente artigo, os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência relacionados com a concretização de diligências de entrega judicial da casa de morada de família (cfr. Ac. do Tribunal Constitucional n.º 227/2022, de 31.3.2022).
Notifique.
Cumpra de imediato.”
Notificadas as Partes e o encarregado da venda do mencionado despacho logo a 23/11/2022 veio (…) – Auditoria e Consultoria Fiscal, Lda. apresentar requerimento de recurso entrado a 07/12/2022, alinhando as seguintes conclusões:
“- IV – CONCLUSÕES
A. - Tendo os Recorridos / inventariados decidido proceder à partilha do imóvel em causa, com a subsequente venda judicial, encontrando-se o respetivo preço depositado à ordem do Tribunal, deixou de fazer qualquer sentido invocar a existência de “casa de habitação” da Recorrida / (…), constituindo um manifesto absurdo caracterizá-la como “casa de morada de família” conforme exorbita a Mm.ª juiz a quo como pressuposto do seu douto despacho recorrido que determina a sustação da entrega do referido imóvel à Recorrente.
B. A invocação do artigo 6º.-E, n.º 7, alínea b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03, por parte dos Recorridos, constitui um novo expediente doloso, para além dos demais anteriormente perpetrados, com o intuito de entorpecer e denegrir a ação da justiça, prejudicando a Recorrente, quando é verdade que não existe casa de morada de família absolutamente nenhuma, sendo que o argumento da casa de habitação da Recorrida / (…), a favor da qual não existe qualquer direito real de habitação, nunca foi suscitado, nem antes, nem depois do despacho proferido em 23.01.2017, o qual determinou a realização da venda judicial do imóvel em causa.
C. Tendo a Mm.ª Juiz a quo ordenado reiteradamente a investidura da Recorrente na posse do imóvel, autorizando se necessário o arrombamento, sabendo bem que a casa de morada de família deixou de existir por efeito da partilha e do despacho por si proferido em 23.01.2017 que determinou a realização da venda judicial do mesmo imóvel, …… encerra tal decisão de sustação uma contradição insanável, dado que os seus fundamentos estão em manifesta oposição com os efeitos da partilha, estando, portanto, ferida de nulidade com as legais consequências.
D. Os Recorridos, tentando falaciosamente ignorar que o valor do preço estabelecido no âmbito da venda judicial do imóvel se encontra depositado à ordem do Tribunal, não requereram a suspensão da entrega judicial com fundamento no prejuízo para a sua subsistência.
E. A Mm.ª Juiz a quo não observou as disposições gerais dos incidentes da instância [artigos 292.º e seguintes do C.P.C.], sendo inequívoco que não ouviu a parte contrária / Recorrente face ao incidente suscitado pelos Recorridos.
F. Logo, não se encontram preenchidos os requisitos de que possa depender a suspensão da entrega do imóvel à Recorrente.
G. A decisão recorrida que determinou a sustação da entrega do imóvel violou o disposto nos artigos 292.º e seguintes, 615.º, n.º 1, alínea d), do CPC e fez uma incorreta aplicação do citado artigo 6.º-E, n.º 7, alínea b), da Lei n.º 1-A/2020.
Termos em que, … nos melhores de Direito e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a decisão recorrida, ordenando-se em definitivo e finalmente a entrega do imóvel à Recorrente, assim se fazendo sã, plena e objectiva … JUSTIÇA.”
A 24/01/2023 (…) respondeu ao recurso interposto em 07/12/2022 alinhando as seguintes conclusões:
“Nestes termos, e em conclusão:
I. Por requerimento (Ref.ª7843622) apresentado em juízo a 22/04/2020, veio o EV constituir como Mandatário o Ilustre Colega, que subscreve o presente recurso interposto pelos adquirentes, sendo que, por requerimento apresentado a 7/12/2022, veio a interveniente acidental (…), constituir o mesmo Mandatário como Advogado no processo, e que, como se disse, subscreve o recurso interposto pelos mesmos.
II. O EV e a interveniente acidental compradora são objectivamente partes contrárias no âmbito deste processo, ainda que possam em concreto ter interesses convergentes, para os termos e para os efeitos do disposto no n.º 1 do artigo 99.º do EOA.
III. Assim, deve ser ordenada a notificação da interveniente acidental/compradora, ora recorrente para regularizar o mandato, juntando nova procuração forense outorgada a novo mandatário, com ratificação do processado, sob pena de ficar sem efeito tudo o que foi praticado pelo Senhor Dr. (…), e de este ser condenado nas respetivas custas. O que se requer.
Da Inadmissibilidade de Recurso
IV. Invoca a Recorrente a interposição de recurso ao abrigo do artigo 644.º, n.º 1, a), do C.P.C., que dispõe que cabe recurso de apelação da decisão, proferida em 1.ª instância, que ponha termo à causa ou a procedimento cautelar ou incidente processado autonomamente;
V. Assim, de harmonia com tal preceito legal, a apelação autónoma, na parte relativa aos incidentes, apenas abrange os processados autonomamente, ou seja, somente os incidentes que a lei processual civil expressamente prevê e regula de forma autónoma relativamente à acção principal, nos artigos 296.º a 361.º do CPC. O que não é o caso.
VI. Com efeito, e mais nada tendo sido alegado pela Recorrente, tem-se que, o presente despacho também não pode ser enquadrada na actual alínea h) do n.º 2 do artigo 644.º, por não configurar decisão cuja impugnação com a decisão final seja absolutamente inútil, nos termos limitados que o uso do advérbio absolutamente impõe.
Pelo que, o presente recurso não é admissível neste momento processual, nem ao abrigo do n.º 3 nem por via do n.º 4 do artigo 644.º do CPC.
Do Recurso
Sem prejuízo,
VII. Diferentemente do pretendido pela Recorrente, os presentes autos, constituem um inventário para partilha dos bens do dissolvido casal, encontrando-se apenso ao processo principal de divórcio ao qual, também se encontra apensado a Atribuição da Casa de Morada da Família, apenso B, e conforme acta que aqui se junta, a mesma foi atribuída à Requerida aqui contra-alegante, dando-se como reproduzido todo o seu conteúdo, doc. 1.
VIII. De forma, que não só cai por terra toda a alegação da Recorrente, no concernente à inexistência da casa demorada de família e habitação da Recorrida, como também parece que a Recorrente quer ignorar, que estamos exatamente no âmbito de um processo de inventário que corre termos no tribunal de família e menores com regras próprias.
IX. Com efeito, sem prescindir, dos recursos já interpostos pelas partes e aqui contra-alegante e das questões jurídicas neles suscitadas, dir-se-á, que a suspensão prevista na no artigo 6.º-E, alínea b) do n.º 7 da Lei n.º 1-A/2020, na redacção dada pela Lei n.º 13-B/2021 de 05.04, opera ope legis, isto é automaticamente por força da lei ou seja a suspensão pode ser decretada incondicionalmente, ie., ipso facto, dada a natureza e finalidade do imóvel.
Tem sido este o entendido maioritário – senão mesmo uniforme – da jurisprudência dos nossos tribunais superiores.
Pelo que não assiste qualquer razão à Recorrente.
X. Aliás, nem sequer se alcança com que fundamento a Recorrente indica como normas violadas os artigos 615.º, n.º 1, d) e 292.º do C.P.C., pois em nada concretiza onde existe omissão ou excesso de pronúncia e em que medida possam ter sido desrespeitado os pressupostos do estipulado no artigo 292.º do C.P.C., improcedendo toda a sua alegação.
XI. As partes apenas não podem transigir sobre direitos que não lhes é lícito dispor, nem sobre questões respeitantes a negócios ilícios (artigo 1249.º do CC e artigo 289.º do CPC). Não será assim admitida transação sobre direitos em relação aos quais falte legitimidade ao disponente (13), coisas fora do comércio (artigo 202.º, n.º 2, do CC), direitos de personalidade e direitos familiares, bem como relativamente a questões relativas a negócios em contrariedade com a lei, a ordem pública ou os bons costumes (artigos 280.º e 294.º do CC).
No caso concreto, as partes têm legitimidade, o objecto, não está fora do comércio jurídico, não respeita a direito de personalidade e direitos familiares, bem como a questões relativas a negócios em contrariedade da lei.
XII. Como já se invocou em sede própria, estando a causa no âmbito da disponibilidade das partes, o facto de existir uma decisão judicial transitada em julgado a resolver um litígio em determinado sentido não impede à partida que as mesmas partes venham a dispor sobre a situação substantiva, designadamente modificando os seus efeitos, extinguindo-os ou criando outros. O mundo não se imobiliza só pelo facto de existir uma tal decisão.
XIII. Também não surte efeito o argumento de que a Recorrente esteja prejudicada, uma vez que, como a mesma sabe, e há muito, é-lhe lícito desistir da aquisição (não registada) a todo tempo nos termos previstos na lei, sendo-lhe restituído o preço.
Já para as partes, designadamente, a Requerida, ficar aos 83 anos, sem a sua casa, e património familiar para o qual sempre contribuí e lutou, é imensuravelmente mais danoso e irreversível.
Naturalmente, sem prescindir da inadmissibilidade do recurso invocada, deve o mesmo improceder com todas as suas legais consequências.
XIV. Por fim, e sem consentir, diversamente do entendimento da Recorrente, o despacho em cries não sustenta nenhuma decisão de suspensão da instância, mas tão só e apenas da sustação da entrega coerciva do imóvel. Pois se assim não fosse, ser-lhe-ia aplicável o disposto do artigo 275.º n.º 2, do CPC. O que não é o caso. Nessa medida, também não é aplicável o disposto do artigo 645.º, n.º 1, alínea b), relativo à eventual subida do recurso, conforme pretendido pela Recorrente.
Termos em que nos Doutamente supridos e nos mais de Direito, deve o presente recurso ser rejeitado com todas as legais consequências, e caso assim não se entenda, devem Vossas Excelências julgar o mesmo totalmente improcedente o, assim se fazendo Justiça!!!
Com data de 03/10/2023 foi proferido o seguinte despacho no Tribunal a quo:
“A ‘(…) – Auditoria e Consultoria Fiscal, Lda.’, interveniente acidental nos autos, porquanto adquirente do imóvel vendido, veio interpor recurso da decisão de sustação da entrega do imóvel, o qual foi objeto de partilha e venda judicial no âmbito deste Inventário, invocando duas nulidades que seguidamente se apreciarão, de acordo com o disposto no artigo 641.º, n.º 1, in fine, do CPC.
Em primeiro lugar, quanto à invocada nulidade decorrente de não se tratar da casa de morada de família, mas tão só da casa de habitação da inventariada, o Tribunal a quo interpretou a norma latu sensu, por ter entendido que o escopo de protecção da norma consiste na protecção da família, distinguindo as casas habitadas, de segundas habitações ou outro tipo de edifícios, o que não é o caso. Por outro lado, o casal desfez-se por divórcio, pelo que não existe desde então casa de morada de família, mas ainda assim a casa não deixa de ser reconhecidamente (ainda que já não devesse ser) a habitação da Inventariada.
Quando à alegada falta de cumprimento do formalismo próprio da tramitação dos incidentes, entendeu este Tribunal que já havia sido observado o princípio do contraditório, a interveniente já havia oposto as suas razões à sustação da entrega do imóvel, e que não haveriam mais diligências a realizar antes de apreciar a questão.
Em face do exposto, entendo não existir qualquer nulidade que cumpra suprir, pelo que mantenho integralmente a decisão recorrida.
Todavia, os Srs. Desembargadores melhor decidirão, fazendo Justiça.
Porque tempestivo e legal, admito o recurso interposto por meio do requerimento datado de 7.12.2022 com a Ref.ª Citius 10747715, do despacho proferido em 23.11.2022 com a Ref. Citius 1263600411, que determinou a sustação da entrega do imóvel à ‘(…)’, acolhendo para o efeito a pretensão da inventariada (…), em face do disposto constante do artigo 6.º-E, n.º 7, alínea b), da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação dada pela Lei n.º 13-B/2021, de 5.4, por ter a recorrente (…) – Auditoria e Consultoria Fiscal, Lda., legitimidade para o efeito e sendo a decisão recorrível, recurso que é de apelação, com efeito suspensivo, subida imediata e nos próprios autos, nos termos dos artigos 269.º, n.º 1, alínea d), 627.º, n.ºs 1 e 2, 631.º, n.ºs 1 e 2, 637.º, n.ºs 1 e 2, 638.º, n.º 1, 639.º, n.ºs 1 e 2, 644.º, n.º 1, alínea a) e artigo 645.º, n.º 1, alínea b), todos do Código de Processo Civil.
Notifique.
Após, subam os autos ao Tribunal da Relação de Évora”.
*
E a 06/11/2023 foi ainda proferido no Tribunal recorrido despacho com o seguinte conteúdo:
“Quanto aos Recursos:
Por despacho datado de 27.12.22, foi admitido o recurso interposto por (…) e (…), por meio do requerimento datado de 7.11.2022, do despacho proferido em 16.10.2022.
Foi fixado a este recurso efeito suspensivo, subida imediata e nos próprios autos.
Por despacho datado de 3.10.2023, foi admitido o recurso interposto por (…), por meio do requerimento datado de 6.12.2022, do despacho proferido a 17.11.2011.
Foi fixado a este recurso efeito meramente devolutivo, subida imediata e em separado.
Por despacho datado de 3.10.2023, foi admitido o recurso interposto por “(…) – Auditoria e Consultoria Fiscal, Lda.” por meio do requerimento datado de 7.12.2022, do despacho proferido em 23.11.2022.
Foi fixado a este recurso efeito suspensivo, subida imediata e nos próprios autos.
Recaindo embora o efeito suspensivo sobre o despacho impugnado e não sobre a marcha dos autos certo é que deverão os autos subir de imediato para apreciação dos recursos já admitidos, e ser extraído traslado para a subida do recurso admitido em separado, o que se determina.
Para o efeito certifique:
a) despacho proferido a 6.11.2022 (ref.ª Citius 126093279);
b) requerimento apresentado pelas partes a 14.11.2022 (refª Citius 10663605);
c) requerimento de 15.11.2022 (refª Citius 10667582);
d) despacho a 16.11.2022 (ref.ª Citius 126270740);
e) requerimento de 17.11.2022 (ref.ª Citius 10678676);
f) despacho a 17.11.2022 (ref.ª Citius 126308569);
g) requerimento de interposição de recurso da Requerida de 06.12.23 (refª Citius 10742359);
h) despacho datado de 3.10.2023;
i) o presente despacho.
Após, suba o traslado ao Tribunal da Relação de Évora, em separado, e também os próprios autos para apreciação dos outros dois recursos, que deverão subir igualmente.
Notifique”.
*
Atendendo à manifesta falta de fundamento dos recursos, proferir-se-á de seguida decisão sumária, ao abrigo do disposto nos artigos 652.º, n.º 1, alínea c) e 656.º do Código de Processo Civil.
*
II – Questões Prévias:
- O recurso interposto da decisão proferida em 16/10/2022 é o próprio e foi correctamente admitido quanto ao modo de subida e efeito fixado, relativamente ao segmento decisório atinente à saída do imóvel e entrega das chaves, alterando-se o efeito do mesmo para efeito meramente devolutivo relativamente ao segmento decisório atinente ao indeferimento da requerida homologação da transacção.
- Quanto ao recurso interposto pela interveniente acidental (…), Lda., da decisão proferida em 23/11/2022 invocaram os Apelados na respectiva resposta ao recurso em sede de “Questão Prévia” a violação da norma prevista no artigo 99.º do Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), e a inadmissibilidade legal do mesmo enquanto apelação autónoma.
O artigo 99.º do EOA estatui sobre “Conflito de Interesses”.
Os Apelados em causa consideram que tal passou a verificar-se a partir do momento que o ilustre mandatário do encarregado da venda assumiu igualmente o patrocínio nesta causa da interveniente acidental (…), Lda., constituindo a interposição do recurso em representação desta o primeiro acto praticado nos autos.
Para além de estar em causa uma questão que demandaria uma prévia decisão no Tribunal a quo, da qual poderia, subsequentemente, o eventual interessado recorrer, afigura-se-nos, outrossim, que não sendo, nem tendo sido, o encarregado da venda, assim como a interveniente acidental (…), Lda., partes nestes autos de inventário, nem se vislumbrando que possuam interesses nesta causa passíveis de poder conflituar entre si, carece de fundamento a questão suscitada pelos Apelados na respectiva resposta ao recurso.
O Tribunal a quo admitiu esse recurso interposto do despacho proferido em 23/11/2022 como apelação autónoma ao abrigo do disposto no artigo 644.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, determinando a subida imediata, nos próprios autos e fixando-lhe o efeito suspensivo.
Está em causa a decisão de um incidente suscitado nos autos concretamente de sustação do acto de entrega de um imóvel à respectiva compradora.
Concordamos no essencial com o argumentário exposto pelos Apelados.
Na verdade, tendo em atenção a remissão efectuada a partir do n.º 1 do artigo 1123.º do CPC, percebemos que o recurso de tal decisão não cabe na previsão da alínea a) do n.º 1 do artigo 644.º do CPC, pois o incidente em apreço não colocou termo ao processo, nem a procedimento cautelar, não se enquadrando, igualmente, nos incidentes processados autonomamente, ou seja, nos “incidentes que impliquem trâmites específicos que não se confundam com os da ação em que estão integrados (v.g. habilitação, verificação do valor da causa, intervenção de terceiros)” (cfr. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, 2020, 2.ª edição atualizada, Almedina, pág. 804).
Por outro lado, também não se enquadra em qualquer uma das situações prevenidas nas várias alíneas do n.º 2 do artigo 644.º do CPC, nem do n.º 2 do referido artigo 1123.º do mesmo diploma legal, razão pela qual mostra-se aplicável ao recurso em apreço as normas contidas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 1123.º do CPC, o que equivale a dizer que o mesmo se revela neste momento intempestivo, impondo-se, como tal, o seu indeferimento.
De resto apenas de acrescentar que de acordo com o disposto no n.º 5 do artigo 641.º do CPC, a circunstância do recurso em causa ter sido expressamente admitido pelo Tribunal a quo não vincula este Tribunal Superior, que pode indeferi-lo, designadamente com fundamento no disposto na alínea a) do n.º 2 do mencionado artigo 641.º, o que, conforme demonstrado supra, se justifica no caso concreto.
De todo o modo, sempre se acrescenta que perante o que se argumentará e decidirá quanto ao segundo segmento impugnado da decisão proferida em 16/10/2022 será de considerar que a apreciação do recurso a que nos temos estado a referir carecerá de interesse, por prejudicialidade, dado que, conforme melhor se demonstrará infra, a argumentação jurídica expressa no despacho exarado em 23/11/2022 pelo Tribunal a quo para justificar a sustação da entrega do imóvel ancora em normas que já não vigoram neste momento.
*
III – QUESTÕES OBJECTO DO RECURSO ADMITIDO
Nos termos do disposto no artigo 635.º, n.º 4, conjugado com o artigo 639.º, n.º 1, ambos do CPC, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso, salvo no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes ao caso concreto e quando se trate de matérias de conhecimento oficioso que, no âmbito de recurso interposto pela parte vencida, possam ser decididas com base em elementos constantes do processo, pelo que são as seguintes as questões a apreciar:
I – Quanto ao despacho proferido em 16/10/2022, que, além do mais, indeferiu a homologação judicial da transação apresentada em juízo efectuada entre (…) e (…):
1 – Aferir da (i)legitimidade dos outorgantes para transigirem relativamente ao objecto sobre que a mesma incidiu;
2 – Subsidiariamente:
a) Aferir do mérito da ordenada entrega das chaves pela Co-Apelante (…) a “(…) – Auditoria e Consultoria Fiscal, Lda.”.
b) Aferir de eventual violação de preceitos constitucionais.
*
IV – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos relevantes para apreciação do recurso a apreciar constam descriminados supra no segmento atinente ao “Relatório”.
**
V – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
I – Iniciemos, então, este segmento do recurso reapreciando o primeiro segmento decisório impugnado da decisão proferida em 16/10/2022.
Insurgem-se os Interessados (…) e (…) contra o facto de o Tribunal a quo não ter homologado uma transação que efectuaram extrajudicialmente e carrearam aos autos para aquele efeito tendo a mesma como objecto um bem imóvel relacionado no presente inventário e já vendido.
Argumentam, em síntese, que o contrato de transação que celebraram, previsto no artigo 1249.º do Código Civil, apenas impede a transação que incida sobre direitos de que não é licito às Partes dispor e sobre questões respeitantes a negócios ilícitos, sustentando que tal não se verifica no caso dos autos mais argumentando que “não é a homologação judicial da transação que decide a controvérsia substancial trazida a juízo pelas partes, mas tão só fiscalizar a regularidade e a validade de tal pacto […] ficando excluída qualquer aproximação ao conceito de sentença referenciado no artigo 619.º do NCPC”, referindo , outrossim, que “ a sentença homologatória não retira à transação o carácter de instrumento de auto-composição, já que o juiz não julga a validade e eficácia substancial dos seus termos, a não ser que incida sobre relações jurídicas indisponíveis”.
Conforme perceberemos infra, não têm os Apelantes razão no tocante à sua pretensão.
Vejamos, então:
Dispõe o artigo 1248.º do CC, o seguinte:
1. Transação é o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões.
2. As concessões podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do direito controvertido”.
Já o artigo 1249.º do mesmo diploma legal estatui que:
As partes não podem transigir sobre direitos de que lhes não é permitido dispor, nem sobre questões respeitantes a negócios jurídicos ilícitos”.
Por seu turno, decorre do artigo 283.º, n.º 2, do CPC, que:
2. É lícito também às partes, em qualquer estado da instância, transigir sobre o objeto da causa”.
Estipulando-se no artigo 290.º do CPC que:
1. A confissão, a desistência ou a transação podem fazer-se por documento autêntico ou particular, sem prejuízo das exigências de forma da lei substantiva, ou por termo no processo.
[…]
3. Lavrado o termo ou junto o documento, examina-se se, pelo seu objeto e pela qualidade das pessoas que nela intervieram, a confissão, a desistência ou a transação é válida, e, no caso afirmativo, assim é declarado por sentença, condenando-se ou absolvendo-se nos seus precisos termos.
4. A transação pode também fazer-se em ata, quando resulte de conciliação obtida pelo juiz; em tal caso, limita-se este a homologá-la por sentença ditada para a ata, condenando nos respetivos termos”.
No inicio da decisão recorrida o Tribunal a quo não deixou de transcrever o trato sucessivo relativo à fase fundamental da concretização da venda judicial atinente ao prédio urbano objecto da transação outorgada, constante da peça processual apresentada pelo encarregado da venda em 22/09/2022, acertadamente resumido em 21 pontos e de onde decorre que se mostram esgotados uma série de mecanismos processuais de que os ora Apelantes se socorreram para tentar deitar por terra a validade/eficácia da venda judicial encetada nestes autos, sem, contudo, lograrem obter o sucesso por si pretendido.
Recordemos, ainda, o argumentário essencial carreado para a decisão recorrida por parte do Tribunal a quo:
[…]
Nos presentes autos estão sem dúvida em causa direitos disponíveis das partes e o processo de inventário constitui um processo de jurisdição voluntária, competindo a estas declarar e acordar na forma como pretendem por termo à causa, e o processo não se encontra findo, faltando ainda decidir quanto aos bens móveis. Sucede que os inventariantes pretendem transigir relativamente ao bem imóvel relacionado (já vendido) e excluir da relação de bens os demais bens, de natureza móvel.
Nestes termos, sendo jurisdição voluntária, os aqui inventariantes não estavam obrigados, por força de lei, a proporem o presente inventário, tal era algo que estava no domínio da sua disponibilidade, mas resolveram fazê-lo: pretenderam dividir o seu património há cerca de 13 anos, e, mais ainda, decidiram em juízo na conferência de interessados realizada há cerca de 10 anos em por à venda o bem imóvel que compunha a relação de bens, não obstante a idade da Inventariada, que aí residia.
[…]
A venda judicial tem uma eficácia inter partes, in casu, Requerentes e compradora, como os Requerentes eles próprios afirmam no requerimento datado de 29.9.2022, pelo que, podendo ser legítimo que os Requerentes tenham perdido o interesse na venda, o que já não é válido é que a sua perda de interesse afecte a compradora, pois que não afecta. Não voltando aqui a transcrever a análise do histórico da venda judicial, como o fez o Sr. Encarregado da Venda, a mesma foi considerada válida por decisão já transitada em julgado e, como tal, os Requerentes têm de respeitar tal contrato e o direito de propriedade sobre o imóvel, o qual se transferiu para a compradora, encontrando-se o produto da venda depositado a favor do processo, enquanto que a (…) se encontra desapossada quer do imóvel quer do dinheiro que despendeu pela aquisição do mesmo.
Concorda-se que a transacção – seja ela judicial ou extrajudicial – é um negócio jurídico (contrato) que, naturalmente, está submetido às normas substantivas que regulam essa matéria, esclarecendo-se que não é a homologação judicial da transacção que decide a controvérsia substancial trazida a juízo pelas partes, mas destina-se tão-só fiscalizar a regularidade e a validade de tal pacto.
[…]
A decisão judicial corporizada na homologação da transação, constituindo um ato jurídico, deve analisar a legitimidade das partes, a validade do negócio e a disponibilidade do objecto. Ora, no caso dos autos, o imóvel em causa – prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo (…), descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Coimbra, com o n.º (…), da freguesia de (…) – já não está mais na esfera da disponibilidade dos Requerentes, por ter sido vendida em acto de venda judicial à interveniente acidental (…) em resultado duma decisão tomada pelos próprios Requerentes, tendo transitado em julgado a decisão que declarou a venda por negociação particular válida do ponto de vista formal.
Conforme se disse, a transacção constitui um negócio jurídico válido, mas tão-só e apenas quanto aos bens móveis por partilhar, não tendo qualquer efeito juridicamente relevante que os requerentes tenham desistido da venda do imóvel, já que, produziu efeitos entre as partes no processo, isto é, os Requerentes e a compradora.
Nestes termos, uma transação que inclua o bem imóvel, para que seja válida, tem de incluir a compradora, actual detentora do direito de propriedade sobre o mesmo.
Em comentário ao artigo 290.º do CPC, já acima referenciado, dizem-nos José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1.º, 4.ª edição, Almedina, 2018, págs. 586-587), o seguinte:
“Ao juiz compete verificar a validade do ato, para o que terá em conta o seu objeto e a qualidade das pessoas que nele intervieram (n.º 3).
Tratando-se de negócio de auto-composição do litigio, o juiz verifica, pela indagação relativa ao objeto, se este estava na disponibilidade das partes (artigo 289.º), e tinha idoneidade negocial (artigos 280.º e 281.º do Código Civil) e, pela indagação relativa às pessoas, a sua capacidade e a legitimidade que tinham para se ocuparem do objeto (artigo 287.º, nomeadamente), o que constitui aplicação do direito substantivo.
[…]
Trate-se de negócio de auto-composição do litígio ou de desistência da instância, deve ser verificada também a coincidência entre o sujeito do ato e a parte processual; mas isto sem prejuízo da intervenção de terceiro nos casos em que tal seja necessário para assegurar a disponibilidade subjetivada do direito (cfr. artigos 287.º e 288.º).”
Ora bem, tendo em atenção o que acaba de ser exposto não podemos deixar de considerar que o Tribunal recorrido apreciou e decidiu correctamente a questão.
Com efeito, se é verdade que nenhum obstáculo se vislumbra relativamente aos requisitos físicos e legais do objecto negocial em causa (um prédio urbano), nem tão pouco sobre o fim pretendido com a transacção em apreço (partilha de bem com adjudicação a um dos interessados nela), o certo é que à data da outorga da transacção tal prédio urbano já não se encontrava na disponibilidade das partes outorgantes na medida em que, por ter sido alvo de um anterior acto de venda judicial que, apesar dos inúmeros esforços encetados por parte dos Apelantes nesse sentido, não foi declarado viciado por alguma invalidade, qualquer transação que abrangesse, como veio a suceder, o dito prédio apenas poderia ser validada por meio de uma decisão judicial homologatória se a compradora nela interviesse.
A constatação de que o objecto negocial da transacção já escapava à disponibilidade dos Apelantes no momento da respectiva concretização gera, ainda, a falta de legitimação das mesmas para transigirem sobre ele e retira validade ao acto para efeitos da sua homologação judicial.
Destarte, não se vislumbra fundamento para censurar o impugnado segmento decisório contido na decisão judicial proferida em 16/10/2022 improcedendo as conclusões recursivas no tocante ao mesmo.
2-
a) Subsidiariamente, para a hipótese de virem a decair no tocante à questão do indeferimento da homologação da transação, defenderam ainda os Apelantes a falta de fundamento para a imediata entrega das chaves à interveniente acidental e compradora (…), Lda., dessa forma impugnando o segmento decisório final da decisão de 16/10/2022 em que se determinou tal entrega.
Recordemos aqui e agora o teor de tal segmento:
“Notifique a Requerida (…) para deixar o imóvel vendido nestes autos livre de bens e no exato estado de uso em que o mesmo se encontrava há 3 anos, no prazo máximo de 10 dias e fazer a entrega das chaves à nova proprietária “(…) – Auditoria e Consultoria Fiscal, Lda.”.
Sustentam os Apelantes nas suas conclusões recursivas que “não pode o tribunal a quo ordenar uma entrega de chave do imóvel, casa de habitação de um dos Recorrentes, sem investir na autoridade para o efeito, com respectiva designação, oficial de justiça, ou eventualmente agente de execução, com poderes para o acto, sem atempar prazo adequado, em total desrespeito, pela condição habitacional e humana, e, ainda, porque, ao abrigo do artigo 6.º-E, n.º 7, alínea b), do DL 1-A/2020, de 19/03, as diligências judiciais de entrega de casa da morada da família e habitacional se encontra suspensa.”
Começando por este último argumento impõe-se salientar que estando em causa um imóvel validamente vendido a outrem há vários anos, na base de decisão tomada conjuntamente pelos dois membros do extinto casal que o habitava, carece de fundamento continuar a rotular o mesmo como casa de morada de família, podendo, apenas, sustentar-se que o mesmo se vem mantendo como casa de habitação de um dos ditos membros.
Acresce que o diploma mencionado pelos Apelantes, que, aliás, julgamos estar mal identificado como DL n.º 1-A/2020, de 19/03, pois tal diploma não é dessa data, mas sim de 03/01 e respeita ao “Programa de Apoio à Redução Tarifária nos transportes públicos”, querendo-se certamente aludir à Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, foi objecto de expressa revogação pela Lei n.º 31/2023, de 04/07, à excepção da norma contida no seu artigo 5.º, que não respeita à matéria invocada pelos Apelantes.
Na verdade, consta expresso nos artigos 2.º, 4.º e 5.º da aludida Lei n.º 31/2013, o seguinte:
“Artigo 2.º
Norma revogatória
Nos termos do artigo anterior, consideram-se revogadas as seguintes leis:
a) Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, que estabelece medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-COV-2 e da doença COVID-19, com exceção do artigo 5.º;
[…]
ll) Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, que cessa o regime de suspensão de prazos processuais e procedimentais adotado no âmbito da pandemia da doença COVID-19, alterando a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março;
[…]
xx) Lei n.º 91/2021, de 17 de dezembro, que prorroga até 30 de junho de 2022 o prazo para a realização por meios de comunicação à distância das reuniões dos órgãos das autarquias locais e das entidades intermunicipais, alterando a Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, que aprova medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-COV-2 e da doença COVID-19.
Artigo 4.º
Produção de efeitos
A revogação das alíneas b) a e) do n.º 7 e do n.º 8 do artigo 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, produz efeitos 30 dias após a publicação da presente lei.
Artigo 5.º
Entrada em vigor
A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação”.
Considerando as normas contidas nos artigos acabados de transcrever, é de concluir que a revogação da norma prevista na alínea b) do n.º 7 do artigo 6.º-E da Lei n.º 1-A/2020, de 19/03, produziu efeitos em 03/08/2023, ou seja 30 dias decorridos sobre a data de publicação da Lei n.º 31/2013, que entrou em vigor a 05/07/2023.
Quanto ao argumento da entrega da chave ter de ser efectuada mediante as condicionantes apontadas pelos Apelantes, dir-se-á que nenhum fundamento se vislumbra para tal, podendo a mesma ser perfeitamente realizada da forma determinada no segmento decisório censurado e sujeita ao prazo aí definido, visto ser por demais evidente através da leitura dos autos o protelamento que a entrega do imóvel tem conhecido em detrimento e mesmo prejuízo da compradora, sendo perceptível para um mediano observador que os Apelantes já beneficiaram de amplo período temporal para disponibilizar a entrega do imóvel vendido em causa.
b) Por fim, quanto aos preceitos constitucionais que vêm invocados pelos Apelantes, percebemos que os mesmos não lograram demonstrar devidamente em que medida é que aqueles resultaram violados no segmento decisório recorrido, ou, dito de outro modo, de que modo é que o Tribunal a quo ao decidir como decidiu incorreu na violação dos princípios constitucionais aflorados nas normas expressamente identificadas pelos Apelantes.
Do exposto, é de julgar totalmente improcedente o recurso que incidiu sobre os segmentos decisórios censurados da decisão proferida em 16/10/2022.
*
VI – DECISÃO
Pelo exposto, indefere-se o recurso interposto por (…), Lda., do despacho proferido nos autos em 23/11/2022 e nega-se provimento ao recurso interposto por (…) e (…) da decisão proferida em 16/10/2022, decidindo-se, em consequência, o seguinte:
a) Confirmar os segmentos impugnados pelos Apelantes da decisão proferida em 16/10/2022;
b) Condenar a (…), Lda. nas custas relativas ao recurso que interpôs e foi indeferido e (…) e (…) nas custas respeitantes ao recurso que interpuseram e foi julgado totalmente improcedente.
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Évora, 22/02/2024
(José António Moita, Juiz-Desembargador relator com assinatura electrónica certificada no canto superior esquerdo da primeira folha desta decisão).”
*
2 – Notificados da decisão acima reproduzida os Apelantes (…) e (…) vieram apresentar em 07/03/2024 peça processual com o teor que passamos a transcrever:
“(…) e (…), Recorrentes nos presentes autos, notificados da Decisão Singular ora proferida, vêm ao abrigo do artigo 652.º, n.º 3, do CPC, reclamar para a Conferência, requerendo que sobre a matéria da decisão, nomeadamente, que sobre o recurso em apreciação, recaia acórdão da conferência,
Nos termos e Fundamentos seguintes
1. Desde logo entendem os Recorrentes que a Decisão Singular parte de uma premissa errada, igualmente sustentada pela decisão recorrida, isto é, de que a venda foi considerada “substancialmente válida”, por decisão transitada em julgado.
2. Com efeito, o incidente suscitado relativamente à nulidade da venda ao abrigo do artigo 839.º do C.P.C, apenas se pode circunscrever aos casos identificados no referido preceito legal. O que equivaler a dizer, que apenas foi apreciada a nulidade invocada por preterição de imposições legais, nomeadamente o princípio do contraditório, tendo a decisão proferida, ou melhor, o Acórdão da Relação, se limitado a validar a formalidade processual da referida venda, e, não já, a sua validade ad substanciam.
3. Já que na fase processual em questão, e pelos meios intra processuais ao alcance dos Recorrentes, tal não era possível
Nessa medida, discordam os Recorrentes do entendimento sufragado, quer pelo tribunal a quo, quer pela decisão ora em crise, de que a venda como negócio jurídico ad substantivam, tenha sido validade por decisão transitada em julgado, já que apenas foi analisada a obrigatoriedade (ou não) o respeito pelo contraditório aquando da marcação da realização da escritura de venda, e não a venda em si.
4. Assim, com respeito por opinião diversa, a decisão proferida e transitada em julgado relativamente ao incidente de nulidade da venda, não a declarou válida do ponto de vista formal (enquanto negócio jurídico em si), mas apenas e tão só, validou o facto de os Recorrentes não terem sido notificados do dia da realização do DPA (compra e venda por documento particular).
O que é fundamentalmente diferente.
5. E aqui chegados, é simples descortinar a presente reclamação, até porque devidamente suscitado, aquando da promoção da venda pelo EV, o mesmo actuou com falta de legitimidade, já que à data se encontrava em recurso a decisão que ordenou o prosseguimento da venda (11/09/2019), sendo que, a entidade que titulou o acto (solicitador) não analisou a documentação de forma adequada, pois não detinha nenhuma certidão do tribunal nesse sentido, como também não advertiu os compradores desse condicionalismo, que a todo tempo enferma o acto de nulidade, e razão pela qual não foi possível efectuar o registo e suprir as deficiências apontadas.
Em bom rigor, o EV nem sequer tinha legitimidade ad substantium para outorga do contrato, face ao recurso interposto pela parte, confirmando a sua não concordância com a outorga do contrato.
6. Nos direitos reais – ou nos direitos das coisas – convencionalmente estabelecidos, para a produção do efeito real é condição necessária e suficiente um título, mas tal título há-de existir, ser válido e eficaz: o mesmo é dizer, não pode padecer de causas de inexistência, ser inválido ou inapto a produzir efeitos reais (vide, neste sentido, Mónica Jardim (2013); Efeitos substantivos do Registo Predial, Terceiros para Efeitos de Registo; Coimbra: Almedina, pág. 477).
7. O conservador não é mero subordinado à lei; o conversador é um “guardião da legalidade”, ou o “crivo” por onde só passam os actos que o ordenamento jurídico consente. Assim, na sua função qualificadora, o conservador deve atender ao artigo 68.º do Código do Registo Predial: “A viabilidade do pedido de registo deve ser apreciada em face das disposições legais aplicáveis, dos documentos apresentados e dos registos anteriores, verificando-se especialmente a identidade do prédio, a legitimidade dos interessados, a regularidade formal dos títulos e a validade dos actos neles contidos” (vide obra citada).
8. Nos autos, é indiscutível, que o registo não aconteceu e que o título não passou no crivo do conservador tal como foi apresentado, e, ainda sendo, a sua eficácia meramente obrigacional e entre as partes, regem-se pelas regras gerais dos negócios jurídicos, in casu, cumprimento e incumprimento dos contratos nos termos do Código Civil.
9. Assim, tendo os Recorrentes perdido o interesse na venda, e estabelecido outro negócio jurídico relativamente ao imóvel, igualmente válido, e, entretanto, apresentado a registo, não só gozam da prioridade do mesmo, ainda que fique provisório por natureza, como o não cumprimento do anteriormente estabelecido, terá de ser resolvido em sede de incumprimento contratual.
10. Outra premissa errada, é considerar a compradora / interveniente processual como parte. Efectivamente, a mesma não é parte no processo, sendo, sem consentir, eventualmente aplicado o regime de credor reclamante, mas nunca de parte.
11. A decisão ora reclamada não só descurou, como ignorou, todas as regras relativamente à problemática dos direitos reais como direitos obrigacionais, extravasando as decisões proferidos na parte aplicável. O que equivale a dizer, que relativamente à matéria do incumprimento contratual, o tribunal a quo esgotou o seu poder de decisão e cognição, equivalendo, por inerência este entendimento à decisão ora em crise.
12. As questões suscitadas no presente recurso, merecem uma apreciação e análise mais profunda de todo alegado e de todo o processo, não podendo descurar as questões obrigacionais, reais e registrais levantadas.
13. Até porque, a posse e manutenção do imóvel nunca deixou de estar na esfera patrimonial dos Recorrentes, nomeadamente, da recorrente (…), sendo que a posse de boa fé, e com título que sempre se manteve. O que, aliás, se invoca com todas as legais consequências.
14. Isto porque, a compradora nunca teve a posse do imóvel, como também, não alcançou ter titulação, face à impossibilidade de registo, que caducou, em 2019.
15. A usucapião constitui um modo de aquisição originária, ou seja, é uma forma de constituição de direitos reais e não uma forma de transmissão e, por isso, a propriedade conferida com base na usucapião não está dependente de qualquer outro circunstancialismo juridicamente relevante que surja ao lado do seu processo aquisitivo e que, só aparentemente poderá interferir neste procedimento de consignação de direitos; porque se trata de uma aquisição originária, o decurso do tempo necessário à sua conformação faz com que desapareçam todas as incidências que neste processo eventualmente possam ter surgido.
16. A existência de um litigio sobre a legitima propriedade do prédio "entre os apelantes e uma entidade externa (eventual compradora) – apenas sustentada pelo tribunal, não estorva a nossa perceção sobre a verdadeira posse do imóvel, e inegável, na convicção de que o imóvel era verdadeiramente seu e, por isso, ignoravam que lesavam o direito de outrem.
17. Pelo que, a transacção em questão, e nomeadamente relativamente ao imóvel, está e sempre esteve na disponibilidade das partes, já que, a aquisição originária por usucapião, que, obviamente se deixa invocada, nunca deixou de estar na sua disponibilidade, e consequentemente o direito de propriedade.
18. O direito da autonomia privada, tem dignidade constitucional, nas suas vertentes, quer ao nível da liberdade contratual, quer ao nível da liberdade de transação e desistência processual. Dessa forma, forma, os princípios constitucionais contidos nos artigos 2.º, 13.º, 20.º, 26.º, 62.º e 65.º só podem ser entendidos em termos de conformação com a constituição, de que em processos de jurisdição voluntárias as partes processuais (e não acidentais) são livres a todo momento de por termos ao processo, sem prejuízo de eventuais situações que possam ser dirimidas no âmbito dos meios comuns.
19. Mais o tribunal a quo, e a decisão em crise, continua a não optar por essa interpretação. Continua a proteger direitos não fundamentais em detrimento do direito de habitação, do direito à livre decisão de composição do litígio no âmbito do direito de um estado democrático, sobrepondo, numa graduação de direitos, um pseudo direito de aquisição não consolidado, a um direito à manutenção do património familiar e de habitação de uma parte processual que já tem mais de 80 anos de idade, e cujo imóvel em discussão é indubitavelmente a sua habitação.
20. Sem prejuízo, do argumentado no recurso, acresce que, que estando em discussão a propriedade, a posse e entrega do imóvel, não pode, nem deve ser ordenada qualquer entrega por parte do tribunal, em violação do disposto do artigo 704.º do C.P.C., com as devidas adaptações, sendo certo que na modesta opinião do Recorrentes, a referida discussão, abrange sempre todo segmento recursivo em termos de efeitos, conforme devidamente invocado na sua interposição.
21. E assim, dando-se como reproduzido tudo o alegado no recurso já interposto, pugna-se pela procedência da presente reclamação, com apreciação e procedência do recurso.
Nestes termos e nos melhores de direito, devem V. Exas. proferir acórdão em conferência, sobre a Decisão Singular, concluindo em consequência pela procedência do recurso e seus efeitos, tudo com as sua legais consequências”.
*
Não foi apresentada qualquer resposta pela Parte contrária.
*
3 – Apreciando:
Resulta do artigo 652.º, n.º 3, do CPC, o seguinte:
Salvo o disposto no n.º 6 do artigo 641.º, quando a parte se considere prejudicada por qualquer despacho do relator, que não seja de mero expediente, pode requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão; o relator deve submeter o caso à conferência, depois de ouvida a parte contrária”.
Os Apelantes (…) e (…) reclamaram para a conferência da decisão singular de relator proferida em 22/02/2024, que recaiu sobre o recurso que interpuseram da decisão proferida em 16/10/2022 no Tribunal a quo, a qual negou provimento ao dito recurso.
Fizeram-no estribando-se na fundamentação que anteriormente carrearam para o aludido recurso e que sintetizaram nas conclusões recursivas.
A nosso ver a decisão singular, ora objecto de reclamação, proferida em 22/02/2024, pronunciou-se sobre toda a matéria relevante suscitada nas conclusões recursivas, conforme se alcança, aliás, com facilidade, da simples leitura do segmento da decisão singular atinente às questões a decidir, com argumentação que nos cumpre neste momento reiterar na sua totalidade por se manter válida para o caso vertente, o que naturalmente implica refutar a argumentação apresentada pelos ora Reclamantes que não foi acolhida na reapreciação feita na decisão sumária.
Destarte, importa, sem necessidade de mais considerandos, julgar improcedente a reclamação apresentada a 07/03/2024 contra a decisão singular proferida nestes autos a 22/02/2024, sendo, como tal, de manter esta última nos seus precisos termos.
4 – DECISÃO
Termos em que, face a todo o exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a reclamação apresentada em 07/03/2024 pelos Apelantes/Reclamantes (…) e (…) da decisão singular de relator proferida nestes autos em 22/02/2024, bem como improcedente o recurso de apelação interposto em 07/11/2022 pelos identificados Apelantes, consequentemente se decidindo:
A) Confirmar os segmentos impugnados pelos Apelantes da decisão proferida no Tribunal a quo em 16/10/2022;
B) Fixar as custas a cargo dos Apelantes/Reclamantes … e … (artigo 527.º, nos 1, 1ª parte e 2, do CPC).
*
Notifique.
*
Évora, 09/05/2024
José António Moita (Relator)
Francisco Xavier (1º Adjunto)
Maria José Cortes (2ª Adjunta)