PROCESSO DE INVENTÁRIO
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
Sumário

I - Relativamente ao processo especial de inventário, existe norma específica (o artigo 1092.º do CPCivil) que resolve os casos em que o juiz deve determinar a suspensão da instância em razão de se suscitarem questões prejudiciais.
II - Assim, caso se suscitem questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição dos direitos dos interessados diretos na partilha o juiz determina a suspensão do processo.
II - Já fora dos casos previstos no artigo 1092.º o juiz apenas goza da faculdade de determinar a suspensão da instância a requerimento de qualquer interessado ou oficiosamente, se entender que a questão a decidir afecta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha (cfr. artigo 1093.º, nº 2 do CPCivil).
III - Por assim ser, não é de suspender o processo de inventário quando os interessados foram remetidos para os meios comuns tendo em vista a verificação de uma verba do passivo relacionado, quando inexistem indícios de insolvência da herança e não se lobriga que a predita questão afete, de forma assaz significativa, a utilidade prática da partilha.

Texto Integral

Processo nº 318/23.4T8STS.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Local Cível de Santo Tirso-J2

Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Drª Maria Fernandes de Almeida
2º Adjunto Des. Drª Eugénia Marinho da Cunha


5ª Secção

Sumário:
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I - RELATÓRIO

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

AA, residente na Travessa ... norte, ... veio requerer processo de inventário para partilha da herança aberta por óbito de seu pai BB.
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Tendo o processo seguido os seus regulares termos, em 28/09/2023 foi proferido o seguinte despacho:
“Requerimento com a ref.ª 35069398:
Aferindo-se que a matéria que enforma a reclamação da Requerente AA com referência à verba 1) do passivo configura questão linearmente complexa da matéria de facto subjacente, a qual não se compagina com o jaez sumário imanente ao vertente incidente, que induz uma inexorável redução das garantias dos interessados, postula-se a remessa dos mesmos para os meios comuns, à luz do consignado art.º 1092.º/1, al. b) e 2, do Código de Processo Civil (vd. Acórdãos do TRP de 27.1.2003, proc. n.º 0253080 e de 8.9.2009, proc. 325/06.1TBCNF-C.P1, in www.dgsi.pt ).
Pelo supra exposto, determina-se a remessa dos interessados para os meios comuns com referência à verba 1) do passivo”.
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Por requerimento impetrado em 10/10/2023 a cabeça-de-casal e ora recorrente veio solicitar que fosse ordenada a suspensão da instância até decisão, nos meios comuns, da existência, ou não, da verba nº 1 do passivo da relação de bens.
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Sobre o assim requerido recaiu o seguinte despacho:
“I.
Requerimento com a ref.ª 36896967:
A cabeça de casal CC cerqueira peticionou a suspensão da instância até à decisão, nos meios comuns, da existência, ou não, da verba n.º 1) do passivo da relação de bens
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Em convergência com o plasmado no art.º 272.º/1, do Código de Processo Civil o tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.
Ademais, não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens (art.º 272.º/2, do Código de Processo Civil).
Efetivando-se a densificação do sobredito conceito normativo de causa prejudicial, o nexo de prejudicialidade ou dependência ocorre quando estão pendentes duas ações e a decisão a proferir numa das mesmas pode afetar o julgamento na outra ação, i.e., a resolução de uma questão controvertida na causa prejudicial é passível de modificar uma situação jurídica relevante para a decisão de outro pleito (vd. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra Editora, 3.ª edição, Reimpressão, p. 383-384 e Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, vol. I, Almedina, 1.ª edição, p. 586 e ss.).
Enfatize-se que se impõe divisar a prejudicialidade técnica, a qual ocorre em situações em que o direito invocado em juízo depende da existência de outro direito relacionado com uma hipótese normativa distinta, e outrossim no âmbito das situações de prejudicalidade por incompatibilidade, em que o direito do autor depende da inexistência de contrafactos impeditivos, modificativos ou extintivos, i.e., as exceções perentórias, da prejudicialidade lógica, em que diversos direitos brotam de uma única situação jurídica (vd. Miguel Mesquita, Reconvenção e Exceção no Processo Civil, Almedina, 2009, p. 37-40).
Acresce que, em convergência com o plasmado no art.º 1092.º/1, do Código de Processo Civil, sem prejuízo do disposto nas regras gerais sobre suspensão da instância, o juiz deve determinar a suspensão da instância:
a) Se estiver pendente uma causa em que se aprecie uma questão com relevância para a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados diretos na partilha;
b) Se, na pendência do inventário, forem suscitadas questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados diretos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas;
c) Se houver um interessado nascituro, a partir do conhecimento do facto nos autos e até ao nascimento do interessado, exceto quanto aos atos que não colidam com os interesses do nascituro.
No caso previsto na alínea b) do número anterior, o juiz remete as partes para os meios comuns, logo que se mostrem relacionados os bens (art.º 1092.º/2, do Código de Processo Civil).
O tribunal pode, a requerimento de qualquer interessado direto, autorizar o prosseguimento do inventário com vista à partilha, sujeita a posterior alteração em conformidade com o que vier a ser decidido (art.º 1092.º/3, do Código de Processo Civil):
a) Quando os inconvenientes no diferimento da partilha superem os que derivam da sua realização como provisória;
b) Quando se afigure reduzida a viabilidade da causa prejudicial;
c) Quando ocorra demora anormal na propositura ou julgamento da causa prejudicial.
O sobredito normativo regula o regime das causas e questões prejudiciais essenciais, i.e., daquelas de que depende a admissibilidade do processo e a definição da consistência jurídica dos direitos sucessórios dos interessados diretos, como a validade do título de vocação sucessória ou a definição das quotas ideais dos interessados, v.g., ações de estado, de redução de inoficiosidades, divisando-se das questões não essenciais contempladas no art.º 1093.º, do Código Civil, conexas com a determinação do património hereditário a partilhar (vd. Miguel Teixeira de Sousa/Carlos Lopes do Rego/António Abrantes Geraldes/Pedro Pinheiro Torres, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, 2020, p. 44-51).
As regras vertidas no art.º 1092.º/1, al. a), do Código de Processo Civil), enunciam uma imperativa suspensão da instância no âmbito de causas prejudiciais essenciais, salvaguardando-se a aplicabilidade do estatuído no art.º 272.º/2, do Código de Processo Civil (idem).
Em correlação com o sobredito, se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns (art.º 1093.º/1, do Código Civil).
A suspensão da instância no caso previsto no número anterior só ocorre se, a requerimento de qualquer interessado ou oficiosamente, o juiz entender que a questão a decidir afeta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha (art.º 1093.º/2, do Código de Processo Civil).
As questões não essenciais consagradas no art.º 1093.º, do Código de Processo Civil, adstringem-se à determinação dos bens que compõem o acervo hereditário ou ao passivo que o onera o mesmo, sendo que, nesta sede, a suspensão da instância impõe-se se a questão a decidir afetar de forma significativa a utilidade prática da partilha (ibidem).
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In casu, afere-se linearmente que a matéria invocada pela cabeça de casal não se conecta com uma questão com relevância para a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados diretos, não configurando uma questão essencial, porquanto se adstringe tão-só à verba 1) do passivo.
Ademais, curando-se de uma propalada dívida de €95.000,00, presumivelmente inferior ao ativo hereditário, em função do valor patrimonial tributário da verba 10), inexistem indícios de insolvência da herança, não se lobrigando que a predita questão afete de forma assaz significativa a utilidade prática da partilha, postulando-se o decaimento da suspensão da instância.
Pelo supra exposto, indefere-se o requerido”.
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Não se conformando com o assim decidido veio o cabeça-de casal, CC, interpor o presente recurso, concluindo as suas alegações nos seguintes termos:
I) Estatuindo o nº 1 do artigo 1092.º do CPC que, sem prejuízo do disposto nas regras gerais sobre a suspensão da instância, o Juiz deve determinar a suspensão da instância nos casos previstos nas diversas alíneas constantes desse número, outra solução não restava ao Meritíssimo Juiz a quo que não fosse ordenar a suspensão, atenta a circunstância de haver fundamentado a remessa para os meios comuns à luz do disposto numa dessas alíneas, in casu a da alínea b).
Deste modo, entendendo o tribunal que a apreciação sumária no presente incidente das questões relativas à verba nº 1 do passivo poderia conduzir a uma “inexorável redução das garantias dos interessados”, deveria ter ordenado a suspensão da instância no presente inventário, como se estatui expressamente no nº 1 do mencionado artigo 1092º do CPC.
II) Segundo a doutrina e a jurisprudência portuguesas, o novo processo de inventário comporta as seguintes fases:
1. A fase dos articulados (subfase inicial: artigos 1097º a 1102º e subfase da oposição artigos 1104º a 1107º), na qual é requerida a instauração do processo e se suscitam e discutem as questões que influenciam a partilha;
2. A fase do saneamento na qual o juiz decide todas as questões ou matéria litigiosas que condicionam a partilha e define o património a partilhar, elaborando o despacho sobre a partilha e definindo as quotas ideais dos vários interessados (artigos 1109º e 1110º);
3. A fase da partilha, consubstanciada na conferência de interessados, destinada às diligências que culminam na partilha (artigos 1111º, 1114º, 1116º e 1117º a 1119º) e subsequente elaboração de mapa de partilha e sentença homologatória (artigo 1120º a 1122º) e posteriores incidentes (artigo 1126º).
Donde, é na subfase da oposição que se procede à delimitação do património hereditário (ativo e passivo), antecipando-se para este momento processual a verificação do passivo, que antes ocorria na conferência de interessados, (cfr. artigos 1104º a 1106º).
III) Assim, ao realizar-se a conferência de interessados (cf. art. 1111º), a verificação e o reconhecimento do passivo constituem tarefas já concluídas no processo seja porque se verificou o reconhecimento expresso ou a admissão por acordo (…), seja porque houve proferimento de decisão judicial que reconheceu a dívida controvertida.
IV) Inexistem dúvidas que, com o novo regime legal de inventário, previsto nos artigos 1082º a 1135º do CPC, a verificação e o reconhecimento do passivo têm de estar concluídos aquando da realização da conferência de interessados. Isto é, face ao actual regime legal do inventário, não é possível a realização da conferência de interessados sem se encontrar definida, por decisão transitada em julgado, a existência e o montante das dívidas controvertidas.
V) Ao remeter as partes para os meios comuns, o Meritíssimo Juiz considerou não poder resolver a questão da dívida, nos termos postulados no nº 3 do artigo 1106 do CPC, pelo que outra alternativa não resta às partes do que dirimir a existência da dívida nos meios comuns-para onde foram relegadas, por decisão já transitada em julgado-ficando a instância do presente inventário suspensa até ao trânsito da sentença que vier a julgar a ação, porquanto só após se poderá passar à fase da partilha, com a marcação da conferência de interessados.
VI) Assim, e ao contrário do invocado no despacho recorrido, a determinação da existência do passivo da verba nº 1 afeta de forma significativa-diríamos mesmo impede, no atual regime legal-a utilidade prática da partilha, pelo que deve a instância deste inventário ser suspensa.
VII) A douta decisão recorrida fez errada interpretação e aplicação de todo o atual regime legal de inventário e designadamente dos artigos 1092º, nº 1 al. b) e nº 2 e 1093º do CPC
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPCivil.
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Assim, e face ao teor das conclusões formuladas, é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir:
a)- saber se o tribunal recorrido devia, ou não, ter ordenado a suspensão dos presentes autos até decisão, nos meios comuns, da existência, ou não, da verba nº 1 do passivo relacionado.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Para a apreciação da supra enunciada questão importa ter em consideração a dinâmica factual constante do relatório e que aqui se dá integralmente por reproduzida.
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III. O DIREITO

Como supra se referiu é apenas uma a questão que importa apreciar:

a)- saber se o tribunal recorrido devia, ou não, ter ordenado a suspensão dos presentes autos até decisão, nos meios comuns, da existência, ou não, da verba nº 1 do passivo relacionado.
Como se evidencia da decisão recorrida o tribunal a quo indeferiu a suspensão da instância requerida pela apelante por, no caso, a matéria invocada não se conectar com uma questão com relevância para a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados diretos.
E contra este entendimento que se insurge o recorrente, estribado na circunstância de que no novo regime legal de inventário, previsto nos artigos 1082º a 1135º do CPC, a verificação e o reconhecimento do passivo têm de estar concluídos aquando da realização da conferência de interessados e, para além disso,  ao contrário do invocado no despacho recorrido, a determinação da existência do passivo da verba nº 1 afeta de forma significativa-diríamos mesmo impede, no atual regime legal-a utilidade prática da partilha, razão pela qual devia ter sido suspensa a instância.
Quid iuris?
A propósito das questões prejudiciais surgidas na pendência do inventário, de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição dos direitos dos interessados directos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser, incidentalmente, decididas, dispõe o artigo 1092.º, nº 1 do CPCivil sob a epígrafe “Suspensão da instância” que:
1 - Sem prejuízo do disposto nas regras gerais sobre suspensão da instância, o juiz deve determinar a suspensão da instância:
a) Se estiver pendente uma causa em que se aprecie uma questão com relevância para a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados diretos na partilha;
b) Se, na pendência do inventário, forem suscitadas questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição de direitos de interessados diretos na partilha que, atenta a sua natureza ou a complexidade da matéria de facto que lhes está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas;
c) Se houver um interessado nascituro, a partir do conhecimento do facto nos autos e até ao nascimento do interessado, exceto quanto aos atos que não colidam com os interesses do nascituro.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, o juiz remete as partes para os meios comuns, logo que se mostrem relacionados os bens.
3 - O tribunal pode, a requerimento de qualquer interessado direto, autorizar o prosseguimento do inventário com vista à partilha, sujeita a posterior alteração em conformidade com o que vier a ser decidido:
a) Quando os inconvenientes no diferimento da partilha superem os que derivam da sua realização como provisória;
b) Quando se afigure reduzida a viabilidade da causa prejudicial;
c) Quando ocorra demora anormal na propositura ou julgamento da causa prejudicial.
4 - À partilha, realizada nos termos do número anterior, são aplicáveis as regras previstas no artigo 1124.º relativamente à entrega aos interessados dos bens que lhes couberem.
Por sua vez o artigo 1093.º sob a epígrafe “Outras questões prejudiciais”estatui que:
1 - Se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.
2 - A suspensão da instância no caso previsto no número anterior só ocorre se, a requerimento de qualquer interessado ou oficiosamente, o juiz entender que a questão a decidir afeta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha.
Daqui decorre, respeitando-se entendimento diverso, que o incidente da verificação do passivo relacionado tem, em princípio, uma natureza procedimental diversa da arguição das questões prejudiciais de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição dos direitos dos interessados directos na partilha, muito embora, também estas sejam questões incidentais, mas que não devem ser decididas, no âmbito do próprio processo de inventário, como bem resulta da concatenação das normas dos artigos 1092.º e 1093.º, do CPCivil.
Com efeito, não obstante as questões prejudiciais, a que se reporta o artigo 1092.º tenham, igualmente, a natureza de questões incidentais, contendem com questões diversas daquelas a que se refere o incidente da verificação do passivo, sendo certo que, nesta última hipótese, podem ser decididas no próprio inventário, enquanto que naquela não devem, em princípio, ser, incidentalmente, decididas.
De facto, entre as questões de que depende a admissibilidade do processo ou a definição dos direitos dos interessados directos na partilha destacam-se, por exemplo, a aquisição, pelo de cujus, por usucapião, do direito de certo imóvel, que se relaciona como pertencente à herança, a pendência da acção de investigação de paternidade ou maternidade, cuja procedência pode a vir a afastar a admissão, no inventário, de todos os herdeiros chamados à sucessão, ou a pendência da acção anulatória no testamento, em que são admitidos herdeiros testamentários ou outra que possa ter como consequência a modificação da partilha, o que não acontece, manifestamente, no caso da titularidade dos bens.[1]
Portanto, o artigo 1092.º, do CPCivil, a respeito destas exemplificadas questões prejudiciais, prevê a faculdade de “o juiz determinar a suspensão da instância”, ao contrário do que acontece com a situação do incidente da verificação do passivo, em que o artigo 1093.º do CPCivil (aplicável por remissão expressa do artigo 1105.º, nº 3 do mesmo diploma), apenas contempla essa possibilidade quando o juiz entender que a questão a decidir afecta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha (cfr. nº 2 do mesmo normativo).
 Como refere Carlos Lopes do Rego[2], “Neste preceito (entenda-se 1335.º), apenas se regula o regime de questões ou causas prejudiciais “essenciais”, de que dependa a admissibilidade do processo ou a definição dos direitos dos interessados directos na partilha, dispondo o artigo 1350.º sobre decisão das questões que apenas condicionam a exacta definição do acervo de bens a partilhar no inventário” (negrito e sublinhados nossos), acrescentando depois o mesmo autor[3] na anotação ao artigo 1350.º que: “Ao contrário do que ocorre com as questões essenciais a que alude o artigo 1335.º, a insuficiência de elementos para dirimir incidentalmente as reclamações deduzidas em sede de relacionamento dos bens nunca conduz à suspensão do processo, aplicando-se, no caso de remessa para os meios comuns, o disposto no n ° 2 deste artigo” (negrito e sublinhados nossos).
Isto dito, no caso em apreço, torna-se vidente que, o fundamento invocado pela recorrente para a solicitada suspensão da instância, não integra a factie species do citado artigo 1092.º, pois que não diz respeito a qualquer questão de que depende a admissibilidade do processo ou a definição dos direitos dos interessados directos na partilha nos moldes supra referidos.
Com efeito, o que está em causa, após a decisão definitiva que venha a ocorrer no citado processo n.º 3832/17.7T8AVR, é saber se deve ser, ou não, relacionada a verba nº 1 do passivo constante da relação de bens.
Acresce que, curando-se de uma propalada dívida de €95.000,00, presumivelmente inferior ao ativo hereditário, em função do valor patrimonial tributário da verba 10) do ativo[4], inexistem indícios de insolvência da herança, não se lobrigando que a predita questão afete, de forma assaz significativa, a utilidade prática da partilha.
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Alega a apelante que no novo regime legal de inventário, previsto nos artigos 1082.º a 1135.º do CPC, a verificação e o reconhecimento do passivo têm de estar concluídos aquando da realização da conferência de interessados, razão pela qual devia a instância ser suspensa.
Não há dúvida, como assinala Lopes do Rego[5], o “novo modelo procedimental parte de uma definição de fases processuais relativamente estanques, envolvendo apelo decisivo a um princípio de concentração, propiciador de que determinado tipo de questões deva ser necessariamente suscitado em certa fase procedimental (e não nas posteriores), sob pena de funcionar uma regra de preclusão para a parte (…)” e mais à frente[6] que “a circunstância de o exercício de determinadas faculdades estar inserido no perímetro de certa fase ou momento processual implica igualmente que, salvo superveniência (nos apertados limites em que esta é considerada relevante, na parte geral do CPC e na regulamentação do processo comum de declaração), qualquer requerimento, pretensão ou oposição tem obrigatoriamente de ser deduzido no momento processual tido por adequado pela lei de processo, sob pena de preclusão”.
No mesmo sentido afirmam Miguel Teixeira de Sousa e Outros[7] que “a estruturação sequencial e compartimentada do processo de inventário envolve algumas cominações e preclusões, inexistentes no regime anterior, tendo o novo regime implícito um reforço da auto-responsabilidade das partes: o modelo consagra um princípio de concentração na invocação dos meios de defesa que é em tudo idêntico ao que vigora no artigo 573º: toda a defesa (incluindo a contestação quanto à concreta composição do acervo hereditário, ativo e passivo) deve ser deduzida no prazo de que os citados têm para deduzirem oposição (artº 1104º). Assim, por exemplo, é no articulado de contestação que os interessados devem suscitar todas as impugnações, reclamações e meios de defesa, quer respeitem à oposição ao inventário, à legitimidade dos citados ou à competência do cabeça de casal, quer se refiram à relação de bens ou aos créditos e dividas da herança. Institui-se, assim, um efeito cominatório, já que a revelia conduz em regra, ao reconhecimento das dívidas não impugnadas (artº 1106º nº 1 do CPC). Posteriormente só podem ser invocados os meios de defesa que sejam supervenientes (isto é, que a parte, mesmo actuando com a diligência devida, não estava em condições de suscitar no prazo de oposição) ou que a lei admita expressamente passado o momento da oposição ou que se prendam com questões que sejam de conhecimento oficioso (artº 573º nº2). Em comparação com o modelo anterior verifica-se por exemplo, que as reclamações contra a relação de bens devem ser deduzidas na sub-fase da oposição (artºs 1104º nº 1 al. d) e 1105º nº 1) e não a todo o tempo como parecia admitir-se no CP/61”.
Mais à frente[8] acrescentam que “importa salientar que, no novo regime do inventário, foi introduzido um ónus de contestação do requerimento inicial (arts. 1104.º e 1106.º) e um ónus de resposta à contestação (art. 1105.º, n.º 1), o que implica, como efeito cominatório para a falta de resposta ao requerimento inicial ou à oposição, a aceitação dos termos desse requerimento inicial ou dessa oposição. Passa, assim, a vigorar um verdadeiro sistema de preclusões, até agora inexistente, no processo de inventário”. E ainda[9] que “em regra–nada se prevendo sobre esta matéria no âmbito do processo de inventário, com excepção do que se estabelece para o reconhecimento do passivo (art. 1106.º, n.º 1)–vigora o efeito cominatório semipleno, considerando-se, no caso de revelia, confessados os factos alegados no requerimento de inventário (art. 567.º, n.º 1) e, no caso de falta de impugnação, admitidos por acordo os factos que não hajam sido objeto dessa impugnação (art. 574.º, n.º 1)”.
E ainda nesse sentido referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa[10], que o novo regime legal “recebe os contributos das regras gerais do processo e da ação declarativa, o que especialmente se evidencia pelo que se dispõe acerca da concentração e da preclusão dos atos respeitantes a cada fase processual, como forma de potenciar a celeridade e a eficácia da tramitação (…) É nesta primeira fase (fase dos articulados, que engloba a fase inicial e da oposições e verificação do passivo), em face do requerimento inicial e dos atos e documentos apresentados pelo requerente (arts. 1097º e l099º) ou pelo cabeça de casal judicialmente designado ou confirmado (art. 1100º, nº1, al. b)), que deve ser concentrada a discussão de todos os aspetos essenciais relevantes. Sem embargo das exceções salvaguardadas por regras gerais de processo (v.g. meios de defesa supervenientes) ou por regras específicas do inventario que permitem o diferimento (v.g. avaliação dos bens, incidente de inoficiosidade), cada interessado tem o ónus de suscitar nesta ocasião, com efeitos preclusivos, as questões pertinentes para o objetivo final do inventário (art.º 1104º), designadamente tudo quanto respeite à sua admissibilidade, identificação e convocação dos interessados, relacionamento e identificação dos bens a partilhar, dividas e encargos da herança e outras questões atinentes à divisão do acervo patrimonial (…)”.
Das supra transcrições decorre com toda a clareza que o novo modelo procedimental parte de uma definição de fases processuais relativamente estanques, envolvendo apelo decisivo a um princípio de concentração, propiciador de que determinado tipo de questões deva ser necessariamente suscitado em certa fase procedimental (e não nas posteriores), sob pena de funcionar uma regra de preclusão para a parte respetiva.
Acontece que, isso não exclui, como parece sugerir a apelante que, determinada questão, como no caso a verificação do passivo, suscitada na fase procedimental correta, impeça o desenvolvimento processual subsequente, até que não esteja definitivamente decidida tal verificação (no caso de as partes serem remetidas para os meios comuns com vista à sua dilucidação).
Aliás, por assim não ser é que, só nas situações estatuídas no artigo 1092.º supra transcritas se impõe a suspensão da instância, mas já não quando a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, porque nestas situações aquela suspensão só ocorre se, a requerimento de qualquer interessado ou oficiosamente, o juiz entender que a questão a decidir afeta, de forma significativa, a utilidade prática da partilha, ou seja, se assim não for o processo continua a correr os seus respetivos trâmites.
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Improcedem, assim, todas as conclusões formuladas pela recorrente e, com elas, o respectivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente por não provada e, consequentemente, confirmar o despacho recorrido.
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Custas da apelação pela recorrente (cfr. artigo 527.º, nº 1 do CPCivil)
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Porto, 8/4/2024
Manuel Domingos Fernandes
Fernandes de Almeida
Eugénia da Cunha
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[1] Cfr. neste sentido Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, IV, 2ª edição, revista e actualizada, 2005, 297; João António Lopes Cardoso e Augusto Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, I, 5ª edição, 2006, 604.
[2] In “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol. II, Almedina, anotação ao artigo 1335.º.
[3] Obra citada na nota anterior.
[4] Com o valor patrimonial atual de € 82.194,70-cfr. documentos juntos sob os n.ºs 2 e 3 com a relação de bens, sendo certo que o valor patrimonial é quase sempre inferior ao valor real de mercado.
[5] In A recapitulação do inventário, Julgar Online, Dezembro de 2019, página 12,
[6] Ibidem, pág. 13
[7] In O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Almedina, pág. 10,
[8] Ibidem, pag. 44.
[9] Ibidem pág. 83.
[10] In Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2ª edição, págs. 553 e 554.